1. Acabei de falar com o José Carlos Mussá Biai: nasceu em 1963, no Xime, e era menino no tempo em que por lá passaram a CART 2715 e a CART 3494. Era menino no tempo em que eu estive no Sector L1 da Zona leste, correspondente ao triângulo Xime-Bambadinca-Xitole.
Sei que, até ao fim da guerra, ele, a família e os vizinhos da sua tabanca sofreram muitos ataques. Uma família inteira, perto da sua morança, morreu. A sua infância não foi fácil. A vida também não foi fácil para a população civil, de etnia mandinga, que ficou no Xime.
2. Em contrapartida, também houve algumas coisas boas. Por exemplo, o furriel miliciano enfermeiro José Carlos José Luís Carcalhinho da Ponte, natural de Viana do Castelo, foi alguém especial na sua vida e na vida dos outros meninos do Xime. Foi seu professor primário na única escola que lá havia, a PEM (Posto Escolar Militar) nº 14. O Mussá Biai também teve como professor, depois da CART 3494 ter ido para Mansambo, o furriel Osório, da CCAÇ 12, que dava aulas no Posto Escolar Militar nº 14, juntamente com a esposa.
Em suma, o menino Mussá Biai fez a sua instrução primária debaixo de fogo. Um dos seus irmãos, o Braima, era guia e picador das NT. Tal como o Seco Camarà que morreu ingloriamente na Operação Abencerragem Candente, no dia 6 de Novembro de 1970, perto da Ponta do Inglês, no regulado Xime. O seu corpo foi resgatado por mim e pelos meus homens. Os restos humanos do mandinga Seco Camará, guia e picador das NT, morto à roquetada, foram transportados pelos meus soldados, fulas, para a sua tabanca do Xime. O José Carlos, embora menino, de sete anos, lembra-se perfeitamente deste trágico episódio em que os tugas do Xime tiveram cinco mortos, além do Seco Camarà.
O seu pai, um homem grande mandinga do Xime, era o líder religioso da comunidade muçulmana local. A família teve problemas depois da independência devida à colaboração com as NT. Depois dos tugas sairem, o José Carlos foi para Bissau fazer o liceu. Tinham-lhe prometido uma bolsa, se trabalhasse dois anos como professor para as novas autoridades da Guiné-Bissau. Ficou cinco anos como professor, até decidir partir para Lisboa e lutar pela obtenção de uma bolsa de estudo. Conseguiu uma, da Fundação Gulbenkian. Matriculou-se no Instituto Superior de Agronomia. Hoje é formado em engenharia florestal. Trabalha e vive em Portugal. Mas nunca mais voltou a encontrar os seus professores do Xime. E é seu desejo fazê-lo.
Moral da estória: O José Carlos é um exemplo de tenacidade, coragem, determinação e nobreza que honra qualquer ser humano. Que nos honra a nós e ao povo da Guiné-Bissau a ele que pertence.
3. Ontem, 9 de Maio de 2005, o Mussá Biai deve ter tido uma agradável surpresa. O Sousa de Castro, que esteve no Xime nessa altura, escreveu-lhe, depois de saber a sua estória através de mim. E deu-he notícias do seu professor primário! Aqui vai o teor da sua mensagem:
"Como estas coisa são!... Como este mundo é pequeno!... Quero dizer ao Zé Carlos que eu, António Castro, de Viana do Castelo, fui 1º cabo radiotelegrafista da CART 3494 (Fantasmas do Xime), conheço perfeitamente o ex-Furriel enfermeiro, dou-me muito bem com ele. Curiosamente ele irá talvez em Junho ou Julho à Guiné ao abrigo da Plataforma de Cooperação com a Guiné-Bissau, mais precisamente ao Cacheu que está geminado com Viana do Castelo desde 1988.
"Informo também o Zé Carlos qual o endereço e telefone para o poder contactar. O nome correcto é:
José Luís Carvalhido da Ponte
Rua Moinho Vidro, 89
Viana do Castelo
4900-753 MEADELA".
O que dizer mais ? Que esta história não acaba aqui, mesmo acabando bem. Um dia destes almoçamos juntos e vamos continuar a contar estórias sobre o Xime e os meninos da guerra que às vezes até conseguiam ser felizes.
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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