1. O David J. Guimarães tem sido um incansável alimentador da minha/nossa memória da guerra colonial. As suas fotografias, os seus apontamentos, ajudaram-me a preencher inúmeras falhas de memória em relaçã à Guiné do meu tempo, desde Bissau a Bafatá, do Xime ao Xitole... Hoje recebi mais umas tantas fotografias de Bissau, tiradas por ocasião da sua viagem em finais de 2001. Diz o meu camarada do Xitole e de Bambadinca:
"Ora aí vai mais um pedaço daquilo que está lá, na nossa Guiné. Digo nossa porque afinal está no coração. Quanto ao resto, é deles e com todo o direito. E que eles tenham inteligência para não deixarem o país capitular. Pouco falta e é pena"...
Muitos ex-combatentes, como o David e eu, seguem com apreensão os acontecimentos políticos na Guiné-Bissau. São pessoas que têm um sentimento de afecto pelos guinéus, que querem o melhor para os filhos da Guiné, mas que receiam pelo futuro, pela paz, pela liberdade, pela independência daquele país. É um parto difícil a construção de um Estado democrático e moderno em África. Também nós levámos séculos, em Portugal e no resto da Europa, a modernizar e a democratizar as nossas sociedades e os nossos Estados. O ponto a que chegámos hoje não é, de modo algum, um ponto irreversível. A barbárie está sempre à espreita. O fascismo, o totalitarismo, podem sempre entrar-nos pela porta dentro. Historicamente não há conquistas irreversíveis. Quem sou eu para levantar o dedo acusador à Guiné-Bissau e aos guinéus ? É claro que me aflige ver que a Guiné-Bissau pode estar à beira da barbárie, do precipício,da pulverização, do golpe de Estado, da anarquia, da fome... É uma caixa de Pandora. Preocupa-me que não haja Estado, administração pública, serviços de saúde e escolas a funcionar em condições, garantias e liberdades, pão, paz, segurança... Preocupa-me o futuro da Guiné, das suas crianças, das suas mulheres, dos seus trabalhadores, dos seus desempregados... Vai haver eleições presidenciais, mais de vinte e tal candidatos e, pelo que ouvi na Rádio África, cada candidato terá direito a um subsídio de campanha no montante de vinte mil dólares. Será que ouvi bem ? Um dos países mais pobres do mundo, com um escasso milhão de habitantes, e que vive da caridade internacional, vai financiar com mais de meio de dólares a campamha eleitoral dos vinte e tal candidatos à Presidência da República!... Delirante ? Surrealista ? Burlesco ? Trágico ? Kafkiano ?
Quem sou eu, que fui combatente da guerra colonial, memso contra a a minha própria guerra, para dar lições de ética, de moral ou de civismo aos guinéus ? Mas mesmo assim tenho direito a pensar emn voz alta e em manifestar as minhas perplexidades perante ao actual momento social e político na Guiné-Bissau. SEm com isso querer ser paternalista e, muito menos, imiscuir-me nos "assuntos internos" do país que Amílcar Cabral ajudou a fundar.
2. Retomando a mensagem do Guimarães: " Envio-te esses testemunhos. Creio que todos reconhecerão a 5ª Rep, o antigo Café Bento: acho importante essa fotografia. Todos se lembrarão do Pelicano e da Marginal; da casa Gouveia, que é agora o Ministério da Economia; do Forte da Amura e do quartel-general, lá em cima, na zona de Santa Luzia...Enfim, é a Guiné.
"Muito gostaria, dado o ficheiro ser grande, de ter a certeza de que o recebeste em boas condições. Mata saudades que, afinal, é das coisas que vale a pena matar"...
Grande filósofo, grande sábio, o meu amigo David:
"Ninguém de sã espírito entenderá como um combatente gostará assim tanto dos locais onde sentiu a morte tão perto, o matraquear da metralhadora, o troar do obus, a metralha das armas ligeiras, os gritos de horror... Afinal a vida até por isso valerá a pena, não sei!"...
E com esta é que ele me mata: "Sabes, Luís, ninguém entenderá como milhares de Portugueses hoje têm saudades daquilo lá. E vale a pena, podendo, ires lá, digo eu... Para um dia dormires descansado. E se tiveres que chorar chora, porque agora temos liberdade para isso e faz-nos bem. Não, não é feio um homem chorar: feio foram outras coisas, mas isso já é política... Abraço. David".
3. Fico sem palavras. LG.
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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