Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 4 de fevereiro de 2006
Guiné 63/74 - P481: Os dias felizes na ponte do Rio Undunduma (CCAÇ 12) (Luís Graça)
Guiné > Rio Undunduma > 1970 > A estrada Xime (à direita) - Bambadina (à esquerda), com a respectiva ponte. Vísivel também o troço da nova estrada que estava em construção, a cargo da empresa Tecnil, e que implicou a construção de uma nova ponte. © Humberto Reis(2006)
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Estrada Xime - Bambadinca > 1997 : Ponte (velha) do Rio Undunduma. Em 1969/71, no tempo da CCAÇ 12, a segurança desta ponte, construída em 1952, era de importância estratégica para toda a região leste. Ficava a 4 km de Bambadinca e a 7 do Xime. No ataque em força, a Bambadinca, em 31 de Maio de 1969, os guerrilheiros do PAIGC tentara dinamitá-la. Embora parcialmente destruída (era de bom cimento armado...), continuou operacional. Já sabemos que a partir daí passou a ser defendida permanentemente por uma força a nível de pelotão, a cargo das unidades do BCAÇ 2852.
A partir de 16 de Dezembro de 1969 a segurança permanente passou a ser feita pelos Gr Comb da CCAÇ 12 e pelo PEL CAÇ NAT 53 (Bambadinca). Havia apenas abrigos individuais, extremamente precários: bidões de areia com cobertura de chapa de zinco, e valas comunicando entre os abrigos individuais.
© Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá, professor em Bambadinca)
Comentava há dias o Jorge Cabral, com uma ponta de fina ironia, que nós - aqui no blogue - somos demasiado sérios e que escrevemos como se a guerra (da Guiné) ainda não tivesse acabado para nós. Os nossos relatos são dramáticos. As nossas memórias estão carregadas da tensão dos dias, do cansaço dos meses e do silêncio dos anos.
Guiné > Rio Undunduma > Destacamento da CCAÇ 12, 2º Grupo de Combate > 1970 > O Humberto, à ré, mais um soldado de transmissões, à proa, treinando as suas perícias na difícil modalidade da canoagem local... "Era o António Dias Santos, de alcunha, não sei porquê, O Bacalhau. Quando estava em Bambadinca normalmente andava pela tabanca ao cheiro das bajudas e quase sempre com uma varinha na mão a imitar um pingalim. Há uns anos, quando organizei um dos primeiros almoços da rapaziada, procurei na lista telefónica o nome dele na zona da Régua, pois sabia que ele tinha sido funcionário da CP e que morava ali. Descobri-o, mas quando falei com a senhora é que fiquei a saber que ela já era viúva do Bacalhau" (HR)
© Humberto Reis (2006)
Se calhar o Jorge tem razão. Pelo menos, alguma razão. Os nossos sentimentos são contraditórios. Alguns de nós conseguem ter (ou mostrar) uma visão mais diurna e positiva da Guiné do tempo da guerra. São capazes de se encantar com as imagens e as recordações da Guiné. Alguns conseguiram até lá voltar e fazer as pazes com os jagudis ou os sinistros fantasmas que os perseguiam. O Humberto, o Marques, o Guimarães, o Albano, o Teixeira, o Allen, o Camilo, o algarvio, voltaram lá (O Camilo, que ainda não pertence à nossa tertúlia, prepara-se, em Fevereiro de 2006, para voltar à Guiné-Bissau, com um novo grupo de camaradas e os jipes carregados de material escolar)... . O Paulo vive lá, como cooperante.
Outros ainda querem lá voltar ou andam a arranjar coragem para fazer a viagem de retorno, divididos entre uma certa imagem mítica do passado e o medo (traumático) do desencanto e do pesadelo dos dias de hoje.
Guiné > Rio Undunduma > Destacamento da CCAÇ 12, 2º Grupo de Combate > 1970 > Passados mais de meio ano, ainda eram visíveis os sinais da tentativa de destruição da ponte... © Humberto Reis (2006)
Enfim, outros continuarão a ter uma visão mais nocturna e negativa dos acontecimentos que os marcaram: as emboscadas, as minas, os ataques e as flagelações, a morte, a dor, o sofrimento, a solidão, a angústia, o absurdo da guerra que fomos obrigados a fazer...
Guiné > Rio Undunduma > Destacamento da CCAÇ 12, 2º Grupo de Combate > 1970 > O Tony (Levezinho) e o Humberto sentados na manjedoura... Era ali, protegidos da canícula, que tomavámos em conjunto as nossas refeições, escrevíamos as nossas cartas e aerogramas, jogávamos à lerpa, bebíamos um copo, matávamos o tédio... © Humberto Reis (2006)
Guiné > Ponte sobre o Rio Undunduma > Saltos para a água... Soldados africanos da CCAÇ 12. Uma cena idílica... © Humberto Reis(2006)
Já deixámos, porém, aqui provas do nosso bom humor, já aqui contámos estórias, mais pícaras, mais divertidas ou mais banais, tentando dar cor, cheiro e sabor àqueles 700 ou mais dias das nossas vidas que passámos na Guiné... O próprio Jorge deu o exemplo, deliciando-nos com as suas pequenas estórias que eu chamei cabralianas... O Jorge sempre teve uma maneira muito própria, desalinhada, talvez até marginal, de ser e de estar na tropa e, por extensõa, na guerra... O nosso convívio era esporádico mas foi o suficiente para eu o sinalizar como uma das figuras impagáveis que passaram por Bambadinca... Felizmente, que está de regresso e que podemos relembrar, em conjunto, velhas estórias...
Guiné > Ponte do Rio Undunduma > 1970 > Pesca à linha, banho à fula, um dia descontraído ... © Humberto Reis(2006)
Tens razão, Jorge. Nem todos os dias eram sofridos, dramáticos, tensos, esgotantes... Nem todos os dias eram de vida ou de morte... Também houve dias ou tardes ou manhãs, calmos, poéticos, bem dispostos e até felizes. Por exemplo, os dias que passávamos no destacamento da Ponte do Rio Undunduma (e tu em Fá Mandinga). Eu, pessoalmente, não guardo nem boas nem más memórias dos dias em que era obrigado a lá ficar (2). À noite, aquilo era um pesadelo... Já o Humberto, a avaliar pelas suas fotos, soube tirar partido da situação: por exemplo, pescava, que era uma coisa que eu não sabia fazer...
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(1) Vd. post do Carlos Marques dos Santos, de 4 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXIX: Os Solitários da CART 2339 na Ponte do Rio Undunduma e em Fá
"Em 28 de Maio de 1969 ouvimos rebentamentos para aqueles lados e pensámos ser na tabanca Moricanhe. Afinal, para nosso espanto, era mesmo em Bambadinca, sede do Batalhão.
"Dia 29, pela 05.30 da manhã, seguimos para reforço da sede de Batalhão. 15 dias. Salvo erro com o Pel Caç Nat 63 estivemos em tendas (panos de tenda com botões), em vigília constante, àquela que era uma passagem importante [,a ponte sobre o Rio Undunduma, na estrada Xime-Bambadinca]" (...).
Guiné > Rio Undunduma > Destacamento da CCAÇ 12, 2º Grupo de Combate > 1970 > Da esquerda para a direita: O soldado Arménio e os Furriéis Milicianos Humberto Reis e Tony Levezinho... © Humberto Reis (2006).
(2) Vd post de Luís Graça, de 3 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXVI: Herr Spínola na ponte do Rio Undunduma
"Ponte do Rio Undunduma, 3 de Fevereiro de 1971: De visita aos trabalhos da estrada Bambadinca-Xime, esteve aqui de passagem, com uma matilha de cães grandes atrás, Sexa General António de Spínola, Governador-Geral e Comandante-Chefe (vulgo, o Homem Grande). Eu gosto mais de chamar-lhe Herr Spínola, tout court. De monóculo, luvas pretas e pingalim, dá-me sempre a impressão de ser um fantasma da II Guerra Mundial, um sobrevivente da Wermacht nazi (...).Cumprimentou-me mecanicamente. Eu devia ter um aspecto miserável. Eu e os meus nharros, vivendo como bichos em valas protegidas por bidões de areia e chapa de zinco. O coronel (?) que vinha atrás do General chamou-me depois à parte e ordenou-me que, no regresso a Bambadinca, cortasse o cabelo e a barba"...
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