1. Texto do nosso camarada Rui Silva, ex-Fur Mil, CCAÇ 816 (Bissorã, Olossato e Mansoa, 1965/67), e que vive hoje em Vila da Feira:
Um grande abraço Luís Graça extensivo à fantástica tertúlia.
Cá recebi a tua mensagem que me encheu de alegria. Não tens nada de pedir desculpa por respostas atrasadas pois percebe-se bem os teus muitos (e nobres) afazeres.
Já vi a minha figura na galeria de fotos. São só 42 anos de diferença entre as minhas duas.
Vou continuar, com muito gosto, a enviar-te material incluindo fotos em Bissorã e Olossato principalmente. Por agora vou-te enviar o intróito do meu caderno de memórias a que lhe dei o nome de Páginas Negras com salpicos cor-de-rosa.
Muita saúde e bem-estar para todos!!.
Rui Silva
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Páginas negras com salpicos cor-de-rosa > Introito,
Um grande abraço Luís Graça extensivo à fantástica tertúlia.
Cá recebi a tua mensagem que me encheu de alegria. Não tens nada de pedir desculpa por respostas atrasadas pois percebe-se bem os teus muitos (e nobres) afazeres.
Já vi a minha figura na galeria de fotos. São só 42 anos de diferença entre as minhas duas.
Vou continuar, com muito gosto, a enviar-te material incluindo fotos em Bissorã e Olossato principalmente. Por agora vou-te enviar o intróito do meu caderno de memórias a que lhe dei o nome de Páginas Negras com salpicos cor-de-rosa.
Muita saúde e bem-estar para todos!!.
Rui Silva
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Páginas negras com salpicos cor-de-rosa > Introito,
por Rui Silva
Eram 4 horas e meia da madrugada quando parámos. Fazia noite, noite escura. Já tínhamos andado um bom par de quilómetros.
Olhares que se interrogam e… era a espera. Era aquele terrível espaço de tempo que se repetia sempre em todas as operações de Golpes de mão. Era aquela inquietante altura do tempo que nos punha na maior tensão e ansiedade. Era o aguardar da hora H, a hora do assalto ao refúgio inimigo e era ao mesmo tempo o retemperamento das energias gastas ao longo da caminhada.
Algumas dezenas de metros mais adiante estava o inimigo, oculto, algures acoitado naquela densa e emaranhada mata. A obscuridade dava às árvores e à sua folhagem feições de figuras fantasmagóricas e assustadoras. Estávamos todos reunidos, uns sentados, outros deitados, outros ainda nas posições que mais lhes apeteciam. Havia o maior silêncio, apenas cortado por um ou outro pigarrear inevitável ou pelo estalar de folhas secas provocadas pela mudança de posição deste ou daquele.
De olhos extasiados, circunspectos e de músculos contraídos, entreolhávamo-nos e parecia interrogarmo-nos: Como vai ser?..., Haverá surpresa?..., Conseguiremos o objectivo?, ou estarão eles já alertados e à nossa espera com uma emboscada montada?
Eram estas as pertinentes interrogações que nos martelavam o cérebro numa expectativa profundamente emocional. Que pesadelo!!... Não, naquela altura não éramos seres humanos, sentíamos e pensávamos como irracionais, quais animais selvagens prontos a atacar a presa.
Estávamos ali para matar, sim, matar, matar o semelhante, só que este tratava-se do inimigo, que, também… nos queria matar.
…E chegou a hora!!
O dia começou a nascer. Era na semi-obscuridade a altura ideal para atacar. Em pé e como autómatos tomámos as posições iniciais de fila indiana e a coluna retomou a marcha. Os cuidados agora redobravam-se. Era a etapa final, a curta etapa que precedia o ataque. As armas foram tomando nas mãos a posição adequada e os cuidados de progressão cingiram-se ao máximo.
De repente, inesperadamente, soa um tiro!... e foi o começo! Foi como que uma gigantesca trovoada então entoasse no silêncio da madrugada. As rajadas ouviam-se incessantemente; o matraquear da metralhadora pesada inimiga fazia-se destacar com as suas fortes detonações; os rebentamentos de granadas de bazooka e lança-rockets faziam-se aqui e acolá; o fogo era pleno… de parte a parte. A nossa reacção, como que impelida por uma mola, foi de imediato. Vi os soldados de dentes cerrados e feições crispadas apertarem com raiva os gatilhos, e trocarem os carregadores em movimentos nervosos mas calculados.
Foram 25 minutos de fogo cerrado e ininterrupto, e, embora lentamente, o inimigo foi cedendo… cedendo...
A peito descoberto e ainda debaixo de fogo, avançámos em leque, em passos firmes e decididos, na direcção do refúgio inimigo que, entretanto, se põe em debandada, mas sem, no entanto deixar de atirar na nossa direcção, com rajadas cada vez mais esporádicas e cada vez também mais distantes.
E o refúgio de Iracunda [, entre Bissorã e Mansabá, a sul do Olossato e Fajonquito,] deu então lugar a gigantescas chamas que reduziram a cinzas aquela importante e estratégica base inimiga algures no Oio, zona de grande poderio e concentração inimiga.
O inimigo reagiu, e de que maneira! Reagiu forte e decididamente!
Aliás foi o primeiro a atacar, pois tinha-se gorado o factor surpresa com que contávamos, o que aliás acontecia em grande parte das vezes, e então emboscou-se aguardando a nossa aproximação.
O tal tiro era o sinal para abrir fogo.
Deram bem a noção da sua força, quer humana quer bélica. Tinham-nos também escapado, mas o seu tributo não tinha deixado de ali ser pago e de forma implacável: no chão, jaziam os corpos de três guerrilheiros; três corpos despedaçados, por, presumivelmente, granadas das nossas bazookas ou dos nossos morteiros.
________
Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 30 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1711: Tertúlia: Apresenta-se o Fur Mil Rui Silva, CCAÇ 816 (Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67)
Eram 4 horas e meia da madrugada quando parámos. Fazia noite, noite escura. Já tínhamos andado um bom par de quilómetros.
Olhares que se interrogam e… era a espera. Era aquele terrível espaço de tempo que se repetia sempre em todas as operações de Golpes de mão. Era aquela inquietante altura do tempo que nos punha na maior tensão e ansiedade. Era o aguardar da hora H, a hora do assalto ao refúgio inimigo e era ao mesmo tempo o retemperamento das energias gastas ao longo da caminhada.
Algumas dezenas de metros mais adiante estava o inimigo, oculto, algures acoitado naquela densa e emaranhada mata. A obscuridade dava às árvores e à sua folhagem feições de figuras fantasmagóricas e assustadoras. Estávamos todos reunidos, uns sentados, outros deitados, outros ainda nas posições que mais lhes apeteciam. Havia o maior silêncio, apenas cortado por um ou outro pigarrear inevitável ou pelo estalar de folhas secas provocadas pela mudança de posição deste ou daquele.
De olhos extasiados, circunspectos e de músculos contraídos, entreolhávamo-nos e parecia interrogarmo-nos: Como vai ser?..., Haverá surpresa?..., Conseguiremos o objectivo?, ou estarão eles já alertados e à nossa espera com uma emboscada montada?
Eram estas as pertinentes interrogações que nos martelavam o cérebro numa expectativa profundamente emocional. Que pesadelo!!... Não, naquela altura não éramos seres humanos, sentíamos e pensávamos como irracionais, quais animais selvagens prontos a atacar a presa.
Estávamos ali para matar, sim, matar, matar o semelhante, só que este tratava-se do inimigo, que, também… nos queria matar.
…E chegou a hora!!
O dia começou a nascer. Era na semi-obscuridade a altura ideal para atacar. Em pé e como autómatos tomámos as posições iniciais de fila indiana e a coluna retomou a marcha. Os cuidados agora redobravam-se. Era a etapa final, a curta etapa que precedia o ataque. As armas foram tomando nas mãos a posição adequada e os cuidados de progressão cingiram-se ao máximo.
De repente, inesperadamente, soa um tiro!... e foi o começo! Foi como que uma gigantesca trovoada então entoasse no silêncio da madrugada. As rajadas ouviam-se incessantemente; o matraquear da metralhadora pesada inimiga fazia-se destacar com as suas fortes detonações; os rebentamentos de granadas de bazooka e lança-rockets faziam-se aqui e acolá; o fogo era pleno… de parte a parte. A nossa reacção, como que impelida por uma mola, foi de imediato. Vi os soldados de dentes cerrados e feições crispadas apertarem com raiva os gatilhos, e trocarem os carregadores em movimentos nervosos mas calculados.
Foram 25 minutos de fogo cerrado e ininterrupto, e, embora lentamente, o inimigo foi cedendo… cedendo...
A peito descoberto e ainda debaixo de fogo, avançámos em leque, em passos firmes e decididos, na direcção do refúgio inimigo que, entretanto, se põe em debandada, mas sem, no entanto deixar de atirar na nossa direcção, com rajadas cada vez mais esporádicas e cada vez também mais distantes.
E o refúgio de Iracunda [, entre Bissorã e Mansabá, a sul do Olossato e Fajonquito,] deu então lugar a gigantescas chamas que reduziram a cinzas aquela importante e estratégica base inimiga algures no Oio, zona de grande poderio e concentração inimiga.
O inimigo reagiu, e de que maneira! Reagiu forte e decididamente!
Aliás foi o primeiro a atacar, pois tinha-se gorado o factor surpresa com que contávamos, o que aliás acontecia em grande parte das vezes, e então emboscou-se aguardando a nossa aproximação.
O tal tiro era o sinal para abrir fogo.
Deram bem a noção da sua força, quer humana quer bélica. Tinham-nos também escapado, mas o seu tributo não tinha deixado de ali ser pago e de forma implacável: no chão, jaziam os corpos de três guerrilheiros; três corpos despedaçados, por, presumivelmente, granadas das nossas bazookas ou dos nossos morteiros.
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Nota de L.G.:
(1) Vd. post de 30 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1711: Tertúlia: Apresenta-se o Fur Mil Rui Silva, CCAÇ 816 (Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67)