sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3496: Hospital Militar Principal: Fazendo mini-caixões antes de ser mobilizado (António Santos)


O actual Hospital Militar Principal, à Estrela, em Lisboa, instalado num antigo convento, nasceu de uma vasta rede de hospitais militares portugueses, criada no reinado de D. João IV por ocasião da Restauração, na década de 1640. Sofreu sucessivos aumentos e remodelações. Em 1961, foi criado o Centro Ambulatório de Doentes e Convalescentes, o famigerado Anexo de Campolide, por onde passaram milhares de camarados nossos , feridos graves, evacuados dos três teatros de operações da Guerra do Ultramar. Esse Centro ocupou as antigas instalações do Aquartelamemnto de Campolide, onde até então funcionava o Regimento de Artilharia nº 1.

Vd. Sítio do Hospital Militar Principal > Instituição


1. Mensagem de António Santos (*):

Camaradas e amigos da tabanca grande e pequena.

Saúde para todos.

LG/CV/VB.

O Luís escreveu no poste 3485 (**), passo a citar:

" É estranho que ao fim de 3 anos e meio de blogue ainda não tenhamos aqui o testemunho, na primeira pessoa do singular, de um camarada que tenha passado pela Estrela", fim de citação.

Eu não estou na pele da primeira pessoa do singular, mas já que o Luís puxou pelo assunto, eu vou contar o que se passou comigo, e de certeza com muitos mais camaradas.

Este é um assunto que tenho evitado contar, por motivos óbvios, porque devem compreender quando se escreve no blogue sobre estropiados, nem calculam o que se passa na minha cabeça, as recordações de muitas das situações que vi e vivi no HMP.

Ainda hoje não sei o porquê de, após o terminus da especialidade de TRMS de Infantaria, me terem enviado para o HMP em diligência. Quando lá cheguei, e talvez pela minha profissão de então (Estofador de móveis, portanto trabalhava com madeira), fui mandado para a carpintaria que na época se situava num local chamado a cerca. Era onde estavam algumas oficinas, esse local ficava mesmo por trás da Basílica da Estrela, esta descrição toda para quem não conhece o local mas, pelo menos, já viu a Basílica na TV.

Portanto, cá o rapaz, querendo ou não, tinha que ver o resultado da guerra, nas deambulações diárias pelo hospital, incluindo anexo e urgências. E embora não fosse propriamente um menino que tivesse vivido em redoma de vidro, aquelas imagens chocavam os mais fortes, eles eram de cadeiras de rodas, de canadianas, (agora), na altura eram muletas, cabeças rapadas cheias de cicatrizes, só entrava nas enfermarias quando tinha que ser, uma vez mandaram que fosse à morgue mudar uma fechadura, etc.

Como se não chegasse para pôr o bom do militar a bater mal, o meu trabalho principal na carpintaria era fazer caixas, caixões em miniatura para as pernas que os cirurgiões iam cortando. Quando tocava o telefone com origem na medicina, era certo, só havia 2 perguntas, 90 ou 1.20, isto em centímetros, e dependia por onde o cirurgião cortava.

Passados que foram 2 meses e meio de HMP, fui mobilizado para a Guiné. Não foi, não é fácil recordar situações destas.

Um alfa bravo, para todos.

AS
SPM 2558
_________

Notas de L.G.:

(*) Vd. os postes do nosso amigo e camarada António Santos (Recorde-se que ele foi, na outra incarnação, Sold Trms, Pel Mort 4574/72, Nova Lamego, 1972/74, é membro da nossa Tabanca Grande desde 15 de Maio de 2006; mora em Caneças, mas é (ou era...) um puto reguila, alfacinha):

11 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3439: Falando sobre o seu amigo Gregório (António Santos)

23 de Julho de 2008 > Guiné 63/74 - P3089: Antropologia (7): As tabuinhas das escolas corânicas: tradutor de árabe, precisa-se (A. Santos / Luís Graça)

31 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2393: Álbum das Glórias (36): O meu Racal TR 28-B2 (António Santos, Pel Mort 4574, Nova Lamego, 1972/74)

7 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1821: Armamento do PAIGG (2): Mísseis terra-terra Katyusha ou foguetões 122 mm (A. Santos)

23 de Maio de 2007> Guiné 63/74 - P1781: Ambulância do PAIGC, de fabrico soviético, capturada pelo Marcelino da Mata, em Copá (A. Santos)

20 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1448: Os quatro comandantes da CCAÇ 2586 (A. Santos)

12 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1422: A derrocada do Leste e a mina que desgraçou o meu amigo de infância André, da CCAV 3864 (A. Santos)

27 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1216: A batalha (esquecida) de Canquelifá, em Março de 1974 (A. Santos)

22 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1103: Breve historial do BCAÇ 1911 e do BCAÇ 1912 (A. Santos)

21 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1097: Imagens chocantes do cemitério de Bambadinca (A. Santos)

4 de Julho de 2006 > Guiné 63/74 - P934: Da Casa da Mariquinhas do Gabu à Senhora Malária que me atacou seis vezes (A. Santos, Pel Mort 4574)

23 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P900: O 25 de Abril em Nova Lamego (A. Santos, Pel Mort 4574/72)

21 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P892: Memórias de Nova Lamego com o Pel Mort 4574/72 (A. Santos)

29 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCCXI: Os cagaços de um periquito a caminho do Gabu (A. Santos, Pel Mort 4574/72)

8 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXXIV: Nunca digas jamais (António Santos, Pel Mort 4574/72, Nova Lamego)

(**) Vd. poste de 20 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3485: Gloriosos malucos das máquinas voadoras (13): Os MAN - Mecânicos de Material Aéreo e o outro lado da guerra (João Coelho)

(...) "O João Coelho, que é um leitor atento e apaixonado do nosso blogue, e membro da nossa Tabanca Grande, é daqueles camaradas das Força Aérea que, nunca tendo estando em serviço na BA 12, Bissalanca, Guiné, esteve perto de nós, dos nossos feridos graves, recambiados para Lisboa, para esse outro inferno que era (imagino!) o Hospital Militar Principal, à Estrela, mais os seus anexos...

"É estranho que ao fim de 3 anos e meio de blogue ainda não tenhamos aqui o testemunho, na primeira pessoa do singular, de um camarada que tenha passado pela Estrela" (...)

1 comentário:

calos rios disse...

Caro Camarada!
É gratificante poder ir ao encontro das preocupações que demonstras. Aqui deixo o meu testemunho; fui dos que passou pelas instalações e sofri as piores atribulações que aquelas miseráveis e desumanas instalações, principalmente o anexo (Texas) tinham. Ali passei seis anos com imensas operações, vindo a ficar estropiado de 66 a 72. O director era um déspota bem como a maioria do pessoal ligado aquilo que deveria ser o lenitivo para as miséris que nos atingiam mas que afinal se vinha a transformar coo que um castigo por termos sido feridos; de tal maneira que já no Deposito de Indisponíveis, onde se encontrava o pessoal em tratamentos ambulatórios termos sido metidos nas escalas de serviço, como se os doentes em tratamento estivessem numa Unidade. Imagina um Oficial de dia quase maneta e eu próprio, já coxo a fazer ao o içar da bandeira na porta de armas vindo ao exterior a comandar a guarda e dar ordens militares para o caso. Fui um espectáculo macabro, eu só consigo andar com uma bengala. Calcula o ridículo. No decrépito anexo não havia um espaço onde pudessemos ter um bocadinho de lazer, havendo apenas uma horrorosa cantina pequena para largas centenas de todo o tipo de doentes, cegos, amputados Loucos Etc...tudo á mistura. Não podiamos estar nas camas depois das nove horas nem sair para o exterior antes das catorze, exceptuando os acamados. Era-nos sugerido; quase obrigado que não andássemos fardados. Enfim atribulações e peripécias dos pobres que eram arrancados às familias para servir alguém.
Carlos Rios
Ex-Furriel Milº CCAÇ-1420
Guiné