domingo, 30 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3543: O segredo de ... (1): Mário Dias: Xitole, 1965, o encontro de dois amigos inimigos que não constou do relatório de operações


Guiné > Bissau > 1959 > Alguns dos 1ºs Cabos Milicianos do 1º Curso de Sargentos Milicianos, realizado na província portuguesa da Guiné, em participaram juntos europeus e guineenses.

"De cócoras, a partir da esquerda: Domingos Ramos; um outro cujo nome não me lembro mas que também foi para a guerrilha; Laurentino Pedro Gomes.

"De pé: não me recordo o nome mas também foi para a guerrilha; Garcia, filho do administrador Garcia, muito conhecido e estimado em Bissau; mais um de cujo nome não me recordo; eu, [Mário Dias]; e mais outro guerrilheiro. Como se pode concluir, o recrutamento de 1959 do CIC [Centro de Instrução de Civilizados] , foi um autêntico alfobre [de quadros ] para o PAIGC.

Foto e legenda: ©
Mário Dias(2006). Direitos reservados


1. Volta a reproduzir-se, agora na II Série do nosso blogue, uma das mais fabulosas histórias da guerra da Guiné, o encontro algures nas matas do Xitole, em 1965, entre dois amigos inimigos, o português, comando, Mário Dias, e o chefe de guerrilha, o guineense Domingos Ramos (*).

Em 1959 , tinham feito a recruta juntos, com início em 8 de Maio de 1959, numa unidade que então se chamava Centro de Instrução de Civilizados (CIC), destinado a naturais da Guiné considerados civilizados. O comandante era o capitão Teixeira, pai do historiador Severiano Teixeira, actual Ministro da Defesa. (No anos seguinte, passaria a chamar-se Centro de Instrução Militar (CIM), tendo sido transferido para Bolama).

Em 10 de Agosto de 1959, prestam juramento de bandeira, uma semana depois dos sangrentos acontecimentoss do Pidjiguiti.

Em 14 de Agosto desse ano, os dois estão no 1º Curso de Sargentos Milicianos e estreitam a sua amizade. Em 29 de Novembro de 1959, são promovidos a 1ºs cabos. O Mário fica em Bissau a dar recruta, enquanto o Domingos segue para Bolama.


Guiné-Bissau > A efígie de Domingos Ramos numa nota de 100 pesos. Emissão de 1975.



Quem era o Domingos Ramos ? Era filho de um quadro local da administração colonial portuguesa, com o estatuto de assimilado, expressão cínica usada na época pelas autoridades portuguesas.

O Mário tem palavras de grande apreço e admiração pelo Domingos Ramos, reveladoras da sua grandeza como homem e como português. Escreveu ele: "Se um dia tiver a oportunidade de regressar à Guiné, é meu firme propósito ir visitar a sua campa e prestar-lhe merecida homenagem. Não é pelo facto de termos combatido em campos opostos que deixei de ser seu amigo e de o admirar".

Para o Mário, que ira depois seguir a carreira militar, como furriel do quadro, "o Domingos Ramos era um indivíduo bem constituído fisicamente e, sobretudo, moralmente. Aquilo que se pode chamar, um bondoso gigante. Desde o início da nossa vivência comum que por ele tive uma especial estima. Tornámo-nos bons amigos em todas as situações e na caserna, nas horas de descanso, trocávamos opiniões sobre os mais variados assuntos, com especial interesse da minha parte por tudo relacionado com os usos e costumes dos guineenses. Muito aprendi com ele. Recordo ainda com saudade e emoção as paródias, próprias da irreverência da nossa juventude. E da célebre água pú que ele me ensinou e a que aderi com entusiasmo".

O Mário tem sempre palavras de grande apreço e respeito pelo seu amigo:

"Na verdade, enquanto com ele convivi em Bissau, nem o mais leve indício de descontentamento, nem o mais pequeno sinal de revolta ou discordância com o status quo existente demonstrou. Se algo havia na sua mente, disfarçava muito bem, o que não creio, dada a sua rectidão de carácter. O mesmo já não se passava com outros como, por exemplo, o Rui Demba Jassi, que tinha atitudes incorrectas para com os europeus sem que houvesse razões para tal e não conseguia disfarçar animosidade contra nós".

Mário Dias sugere que ele ter-se-á alistado nas fileiras do PAIGC, em Novembro de 1960, depois de ter sido vítima de uma grave injustiça enquanto 1º cabo miliciano. Domingos Ramos morreu em combate em Madina do Boé, em 1966. Os seus restos mortais repousam hoje na Amura, no panteão nacional.

O Mário já nos contou aqui que um dia, próximo da sua passagem à situação de licença registada, que ocorreu em Outubro de 1960, seguindo-se a disponibilidade em Fevereiro de 1961, o Laurentino lhe mostrou "uma espécie de memorando que o Domingos Ramos havia escrito em Bolama respeitante a uma tremenda injustiça por parte de um superior hierárquico que o levou à prisão durante uns dias".

"Foi uma daquelas situações tão frequentes, infelizmente, na vida militar que levam a que muitos inocentes sejam punidos apenas porque a corda parte sempre pelo lado mais fraco e a máxima de que 'palavra de oficial faz fé' é uma realidade. Nesse memorando, era bem patente o desgosto que ele sentia por ter sido vítima de tal injustiça e, mais do que um desgosto, notava-se o destruir das convicções que até ali o tinham norteado".

Nos primeiros dias de Novembro [de 1960], juntamente com o Rui Jassi, Constantino Teixeira e outros antigos camaradas do Mário Dias, Domingos Ramos "partiu para Pequim, Praga, Moscovo e demais escolas de guerrilha tornando-se um dos primeiros e mais importantes chefes de guerrilha daquele movimento".


2. O encontro de dois amigos inimigos, no Xitole, em 1965
por Mário Dias


Estando com o meu grupo de comandos no Xitole, sensivelmente em meados de 1965, fomos fazer uma patrulha de reconhecimento pois o inimigo há muito mostrava sinais de intensificar a sua actividade na região. Porém, as informações eram escassas. Desconhecia-se com precisão por onde andavam os guerrilheiros e as possíveis localizações dos acampamentos. Por tal facto, foi-nos dada a missão de efectuar um reconhecimento ofensivo, tentando localizar o destruir o inimigo.

Por volta das 3 horas da madrugada saímos no maior silêncio, a pé, pela estrada que liga o Xitole a Mampatá, Aldeia Formosa, etc. Alcançada a bifurcação da picada para Amedalai, internámo-nos no mato, constituído quase só por palmeiras mas bastante denso, e aí aguardámos o romper do dia.

Reiniciada a marcha, com as habituais cautelas e as indispensáveis medidas de segurança, fomos progredindo pelo mato, acompanhando de perto o traçado da picada.

Andar um pouco, parar, escutar, analisar pistas e vestígios de presença humana, consumiu uma boa parte da manhã. Era quase meio dia quando ouvimos, vindos da nossa esquerda, alguns tiros. Não foram muitos. Por não terem sido dirigidos com precisão e sobretudo com intenção de nos atingir, concluímos que se tratava de tiros de reconhecimento (eles também os faziam). Devem ter pressentido algo mas não tinham a certeza da nossa posição nem, possivelmente, da nossa presença.

Desta forma, e como nos interessava obter informações sobre a actividade do inimigo, deixei o grupo instalado defensivamente e fui, com a minha equipa (5 homens) em direcção à zona de onde os tiros tinham partido fazer o reconhecimento. O que essa progressão teve de cautelas, expectativas e adrenalina é fácil de imaginar para quem viveu situações semelhantes.

De repente, ouvimos pessoas a conversar e o ruído característico de movimentação. Querendo observar melhor o que se estava a passar, ergui-me acima do arbusto que me ocultava. Foi então que aconteceu. Do outro lado, a cerca de vinte ou trinta metros, um vulto se ergueu também e olhou na minha direcção. Espanto dele! Espanto meu! Era o Domingos Ramos.

Ficámos ambos como petrificados. Não falámos, apenas nos limitámos a sorrir e houve como que uma espécie de telepatia. Mas, mesmo sem falar, as expressões de contentamento de ambos (espero que ele tivesse entendido que também eu estava contente com o inesperado mas feliz encontro) tornaram mágicos aqueles breves momentos que jamais esquecerei.

Mas era preciso regressar à terra. De imediato ouvi as suas ordens:
- Nó bai, nó bai -. E internou-se ainda mais, desaparecendo na densa mata. Voltei para trás, para junto do resto do grupo:
- Não há problema. Era um pequeno grupo mas já fugiram.

E continuámos a patrulha sem mais percalços. Claro que este episódio não constou do relatório. E foi assim.

Um abraço

Texto: © Mário Dias (2006). Direitos reservados

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Nota de L.G.

(*) Originalmente publicado na I Série do nosso blogue em 2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIII: Domingos Ramos e Mário Dias, a bandeira da amizade (Luís Graça / Mário Dias)

Vd. outro postes do Mário Dias sobre o Domingos Ramos, seu amigo e camarada do Curso de Sargentos Milicianos de 1959:

2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCI: Domingos Ramos, meu camarada e amigo (Mário Dias)

Vd. ainda:

2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIV: O segredo do Mário Dias, ex-sargento comando

12 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2343: PAIGC - Quem foi quem (5): Domingos Ramos (Mário Dias / Luís Graça)

20 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2461: Blogoterapia (38): Dois heróis, dois homens com valores, Domingos Ramos e Mário Dias (Torcato Mendonça)

24 de Julho de 2008 >Guiné 63/74 - P3090: Simpósio Internacional de Guileje: Comunicação do cubano Ulises Estrada


Sinopse: Neste excerto [vídeo], Ulises Estrada que chega à Guiné em meados de 1966 - não fazendo parte, por isso, do primeiro contingente cubano, que era composto por 3 médicos e 3 artilheiros, chegados a 29 de Abril de 1966 - relata o esforço dos voluntários cubanos na luta de libertação, ao lado dos guerrilheiros do PAIGC.

Faz referência a ataques em que ele próprio participou, desde o Olossato a Farim, desde Buba ao Morés, incluindo uma emboscada na estrada de Enxalé-Portugole, e um ataque ao destacamento de Missirá, no Cuor, a norte do Rio Geba (em Dezembro de 1966), a nossa conhecida Missirá onde estiveram, em épocas diferentes, os nossos camaradas Beja Santos (Pel Caç Nat 52, 1968/69) e Jorge Cabral (Pel Caç Nat 63, 1970/71).

Evoca também a figura e Domingos Ramos, chefe da Frente Leste e comissário político do PAIGC, que morre a seu lado a 10 de Novembro de 1966, num ataque de artilharia (1 canhão s/r) e infantaria ao quartel de Madina do Boé. O Ulises disse-me pessoalmente, em Bissau, que o Domingos Ramos foi morto por um estilhaço de morteiro, quando o tentava proteger. O seu corpo foi resgatado pelo cubano, "para que não caísse nas mãos dos portugueses" (sic), e levado a seguir para a base de Boké, na Guiné-Conacri, onde foi entregue a Aristides Pereira. Ulises diz do seu camarada guineense que era um grande homem, um grande combatente, e um grande líder político.

1 comentário:

Anónimo disse...

Nunca soube de reacções de dirigentes históricos do PAIGC em relação a esta história... Mas gostaria que alguém do PAIGC, histórico ou não, pudesse comentar o caso dos dois amigos inimigos... Será que alguma dia alguém do PAIGC vai saber desta história, por nós, ou por outra via ?