segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Guiné 63/74 - P7286: Notas de leitura (171): A Malta das Trincheiras, de André Brun (Arménio Estorninho)

1. Mensagem de Arménio Estorninho* (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, CCAÇ 2381,Ingoré, Aldeia Formosa, Buba e Empada, 1968/70), com data de 11 de Novembro de 2010:

Cordiais saudações a todos os tabanqueiros.

Ainda, em referência ao Poste P7225 – Contrapondo (Alberto Branquinho), no qual está escrito “Em guerra esteve o povo português em 1914-1918, com mortos, feridos, estropiados, gaseados… e alguém fala nisso?”

Quanto ao despropósito do chorrilho de imprecisões e atoardas, que do meu ponto de vista não merecem qualquer consideração e não lhe ficaria mal ao menos respeitar os camaradas mortos, deficientes físicos e psíquicos.

Assim, vindo a propósito e achando por conveniente o momento oportuno, a partir de agora irei dar começo em apresentar uma série de crónicas que foram publicadas na revista “Portugal na 1.ª Grande Guerra.” E, no ano de 1924 sendo parte das mesmas extraídas para composição e impressão do livro com o titulo “A Malta das Trincheiras,” sendo seu autor o Major André Bruno, e o qual foi Comandante de um Batalhão do Corpo Expedicionário Português, a terras de França.

Crónica 1

O retrato, cuja reprodução serve de capa ao livro “ A Malta das Trincheiras,” foi executado nas trinchas de Ferme du Bois (Quinta do Bosque) pelo pintor Sousa Lopes.


Extractos da “estória” de José Maria Folgadinho que foi parar às trincheiras quando Portugal esteve (diga-se somente) em 1917 e 1918 na 1.ª Grande Guerra.

José Maria Folgadinho é da Comarca de Arganil, como poderia ser de Freixo de Espada à Cinta ou de Vila Real de Santo António. Não fez para isso a menor diligência. Caiu nas sortes, foi para o regimento, andou por lá alguns meses de instrução, e, quando tinha aprendido algumas artes militares e várias artimanhas de caserna, licenciaram-no. Na aldeia falava-se que iam portugueses para a guerra, falava-se em que não iam… Folgadinho, esse, depois de ter falado uns tempos com a Gertrudes, falava com a menina Rosária, quando de repente, ordem de mobilização e partida.

Pegou num saco de retalhos, meteu pés ao caminho, chegou tarde, deram-lhe uma porção de equipamentos, enfiaram-no num comboio, dormiu e chegou a Lisboa, que, como o herói do Sr. Tomás Ribeiro, ele nunca tinha visto. Também a não deixaram ver, porque o puseram a bordo de um grande navio e este abalou. Folgadinho, pouco marítimo enjoou como uma catita, dormiu duas noites com um bolo-rei de lona enfiado no pescoço e começou a achar que fazia frio. Cada vez mais se foi instalando nesta opinião, até que o barco chegou a um porto.

- Isto aqui é que é a França, meu sargento? - perguntou ele ao seu primeiro.

- É, respondeu este muito aborrecido.

A França estava feia. Fazia cada vez mais frio, sobre a cidade caía neve e Folgadinho não tinha trazido guarda-chuva. Escusado será dizer que ficou que nem uma sopa ao som da Portuguesa. Para variar um pouco de meios de transporte, meteram-no num outro comboio. Este levou três dias a parar em todas as estações e foi nessa viagem tormentosa, sob rajadas de neve, que Folgadinho soube que a carne de vaca metida em latas se chamava “corned beef” e que há uma gente que se entretém a enfiar vinagre, cebolas e mostarda dentro dos frascos a que chamam depois pickles. Ele, que no regimento estava habituado ao feijão, à couve, à batata, à tora de carne fresca, não percebeu a graça que tudo aquilo podia ter.

Um dia, com uma grande guedelha compridíssima, uma barba de oito dias, sujo como um limpa chaminés, o equipamento às três pancadas, os ossos num feixe, José Maria Folgadinho fez a sua entrada numa pequena cidade “Aire-sur-la-Lys.” Chegado a um pátio de uma pequena herdade, apontaram-lhe um palheiro e era ali. Tirou a tralha de cima das banhas, estendeu os braços, mediu a palha com a vista, deitou-se e dormiu.

Passa essa noite um pouco sobressaltado com baterias que estoiram por perto, que, quando uma pessoa vai a olhar para dentro, ribombam, abalam a casa de cada um e levam nisto horas sem fim.

No fim de três dias estava como em casa. Tinha dado uma volta pela localidade, espreitando para dentro das casas. Vira muitos santos pendurados, chão de tijolos muito limpos, uns fogões muito reluzentes e caras de boa gente.

Porque é reinadio e mais patusco que os ingleses que por ali andam há três anos, Folgadinho torna-se simpático. O que ele é, é malandro. Escangalha as bombas, passa por onde não deve passar, suja e não limpa; mas é simpático e gostam dele. Até estimam que ele estrague para poderem fazer reclamações ao “maire” e pedir duzentos francos por um pé de salsa pisado.

Tocavam ao rancho quatro vezes por dia, havia vinho e chá, concluiu que quando fizesse menos frio, aquilo não seria tão feio como o tinham pintado.

Folgadinho sabe que a nove quilómetros se tira um retrato por um franco. Ele aí vai a unhas de cavalo… Depois das fundições de canhões, quem tem ganho mais dinheiro com a guerra, são os fotógrafos da zona onde acantona a tropa.

Certa tarde chega a ordem para ir a instrução a trincheiras. Momento de comoção. Os oficiais passam graves, com mapas na mão, a dizerem histórias uns aos outros. Na manhã seguinte abala-se. Até às trinchas são uns quarenta quilómetros e faz-se a marcha em dois dias. No fim do primeiro, Folgadinho começa a ver casas arrasadas e dorme num telheiro que não tem telha. Ouve-se o troar do canhão ao longe e Folgadinho, sentado no capacete de aço, continua a olhar para o céu, a ver muitos aeroplanos. Só vem a rapaziada da companhia, mais o nosso capitão, o nosso tenente, os nossos sargentos… Um piquenique em família.

Na manhã do segundo dia rompe-se a marcha sem cornetas e, depois do alto do almoço a companhia divide-se em dois grupos. Entra em zona em que a cautela não é desnecessária. À Tarde chega-se a uma aldeia onde há ingleses em barda. Metem o nosso amigo com outros dentro de um palheiro cheio de camaradas britânicos. A noite é passada com um pouco de sobressalto com baterias que estoiram por perto.

O dia passa e o Folgadinho vai ver os ingleses fazerem exercício. Sente-se turista e mirone.

A vida seria boa se não fosse à tardinha a ordem de formar. A companhia vai partir para as trinchas.

De súbito, lá do alto, há um grande estoiro de terra que voa pelo ar e fumo que se enrodilha. Folgadinho avança o nariz fora da forma. Mau! Que foi aquilo? Uma granada que veio de lá, não achando graça e a saliva seca-se-lhe um pouco.

Quatro à direita volver… Marche… e ele lá vai em direcção ao ponto onde a segunda e terceira granada acabam de cair. Toma-se, porém por um campo, por detrás dumas árvores e Folgadinho sente-se mais feliz. Apanha-se outra estrada onde, à luz do crepúsculo, passam carros pesadamente e grupos de ingleses que regressam, arma em bandoleira, capacete no braço e cigarro na boca. Andam-se dois ou três quilómetros, cortam-se caminhos até que de repente e junto a uma tabuleta aparece uma passadeira de madeira. Essa passadeira vai-se metendo pelo chão abaixo, até se enterrar entre dois taludes revestidos de sacos cheios de terra.

As marmitas, todos os acessórios da mobília de um soldado esbarram nas esquinas bruscas daquele beco que não consegue andar dez metros na mesma direcção.

José Maria Folgadinho, “lãzudo” da 1.ª Grande Guerra, está pela primeira vez nas trinchas.

Foram situações havidas, das quais cinquenta anos depois muitos de nós tivemos a oportunidade de nos revermos e como mancebos chegarmos à ZI da Guiné, a história repete-se.

Com um forte Abraço,
Arménio Estorninho
1.º Cabo Mec Auto
CCaç 2381
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 23 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7165: Estórias do meu amigo de infância Alfredo Ramos, ex-Sold Condutor Auto da CCAÇ 556 (Guiné, 1963/65) (Arménio Estorninho)

Vd. último poste da série de 15 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7284: Notas de leitura (170): Fuzileiros – Factos e Feitos na Guerra de África, Crónica dos Feitos da Guiné, de Luís Sanches de Baêna (Mário Beja Santos)

9 comentários:

Carlos Nery disse...

André Brun, oficial português durante a Primeira Guerra Mundial, tinha o apelido francês Brun e não Bruno. Veio a ser autor de diversas peças de teatro nomeadamente "A Maluquinha de Arroios" e "A Vizinha do Lado". Era hábil nesse tipo de dramaturgia conseguindo certa notoriedade. Ainda hoje é representado tendo passado ao cinema mais do que uma vez, creio.

Anónimo disse...

Arménio Estornimho

Nesta altura do "campeonato" ainda havera alguém que pense que o que está escrito no Post sob o meu nome é o "meu ponto de vista", que alguma vez aquelas "coisas" são o que eu penso ou possa ter pensado?

Quem andou a calcorrear quase toda a Guiné feito cigano, a fazer guerras em territóris de outras tantas companhias, como companhia de intervenção, quem fez a operação de Gandembel (cerca de mês e meio)pode pensar assim?

Ou nunca encontraram ninguém que pensa assim e, por mais que se prove e argumente. continua a dizer as mesmas baboseiras, que até apetece ir-llhe ao focinho?

JÁ CHEGA!!
Alberto Branquinho

Torcato Mendonca disse...

Nunca esperei ver um comentário a terminar assim.
Ainda por cima vindo de quem vem.
Sou contra os cortes, mas devido ao excesso e a bem de quem o fez...
Calma.

Abraço para vocês,
Torcato

Anónimo disse...

Torcato

Leste bem o que está escrito no inicio do Post do Arménio?
Se não leste bem, relê.

E lê bem o que eu escrevi, porque eu não estou a referir-me ao Arménio, mas ao indivíduo que eu tive que aturar e que pensava assim como ele, Arménio, pensa que eu penso.

Um abraço
Fico triste se não me entenderes.
Alberto Branquinho

José Marcelino Martins disse...

A I Grande Guerra não foi só em França. Ela tambem se travou em África, para onde se deslocaram várias unidades em reforço das então "Tropas Coloniais". O envio deu-se a partir da Conferência de Berlim que terminou em 1895.

Portugal bateu-se com a Alemanha em Africa, sem que tivesse havido antes qualquer declaração de guerra.

A declaração de guerra só aconteceu depois de Portugal ter aprisionados todos os barcos alemães, abrigados nos portos portugueses - a declaração de guerra foi recebida em Março de 1916.

Estiveram empenhados em África 32000 efectivos militares, de que resultaram 5721 mortos e 2276 feridos e incapacitados. Os numeros referem-se apenas a militares metropolitanos, não havendo estatistica para os africanos.

Anónimo disse...

As crónicas de guerra eram assinadas por Capitão X...
Na Hemeroteca Digital existem seis números da revista "Portugal na Guerra" (e não na 1.ª Grande Guerra, designação que, aliás, é incorrecta).
A crónica sobre o Folgadinho foi publicada no n.º 3. Há uma foto do Capitão André Brun na n.º 4.
Em todos os seis números da revista (são os que estão online, não sei se haverá mais) André Brun colabora.
A revista é muito ilustrada com fotografias de grande qualidade.

Carlos Cordeiro

http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/OBRAS/PORTUGAL/PortugalNaGuerra.HTM

Anónimo disse...

E,mais uma vez...."Perdoai Senhor aos que näo sabem perdoar"!(Ou será...ler?)-Isaías/versículo XXI. Um grande e sincero abraco.

Luís Graça disse...

"Todo homem prudente age com discernimento, mas o insensato põe em evidência sua loucura". (Provérbios 13,16).

Alberto, o humor é um traço superior de inteligência. Vamos pôr a G3 em segurança e no armeiro, que ainda não se ouviu (nem se ouvirá neste bivaque de homens grandes, com calças compridas, barbas a embranquecer e ouvido duro...) a corneta a tocar para a guerra.

O humorista é o último a perder o sentido do humor.

PS - Por muito respeito que eu tenha por todos os mortos de todas as guerras, tenho - por obrigação de ofício - que chamar a atenção para o principal enfoque deste blogue...que é a Guiné e a guerra, dita de baixa intensidade, que lá se travou entre 1961 e 1974...

Contra...ponto, vírgula ou reticências...

Anónimo disse...

LUIS

Se bem entendi, é incorrecto escrever que apetece "ir ao focinho" de um terceiro indeterminado e insolente, mas será correcto (?) referir pessoa identificada (eu mesmo) como tendo escrito "despropósito de chorrilhos de imprecisões e atoardas" devido a deficiente e, apressadíssima leitura de um texto publicado sob o meu nome, como sendo atribuido a esse terceiro.
É que há situações que nem o humor nem a ironia nem o sarcasmo conseguem vencer.
Alberto Branquinho