1. Mensagem de Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69), com data de 14 de Novembro de 2010, dirigida ao seu camarada de Companhia, Carlos Marques Santos:
Carlos Amigo:
Aí te mando um anexo. Não é muito semelhante ao que navegou ciber-espaço fora. Não faz mal. Sabes, foi melhor assim. Escrever sobre a 2339 deve ser escrita cuidada. Fala-se e não se escreve.
Também não quero fazer comparações. Nada disso. Fomos uma Companhia Independente. Primeiro ligada ao Bart 1904 e depois ao BCaç 2852. Tive estima pelos comandantes. O do 1904 recebeu a Companhia em Évora e o do 2852 veio connosco no regresso.
Um abraço forte e fraterno para todos do T.
A 2339
Carlos, o Luís Graça diz e eu vou adoptar o sistema. Escrevi demasiado e talvez por isso borregou.
Não sou capaz de repetir. Fiz a escrita com ganas. Talvez fosse melhor.
Vocês, do terceiro, foram render-me a Galomaro, uns dias, longos, depois. O Historial da Companhia é… o que é. Um grupo em Galomaro, um em Candamã…. Desenfiados…
Viemos, cito de cor mas está escrito, de Cansamba (Galomaro), com passagem e briefing em Bambadinca em meados de Agosto. Finalidade: encontrar acampamento IN que atacara Candamã e Áfia. Só regressam quando quando estiver tudo “tratado” – Cor Felgas dixit!
Fomos, descobrimos, fizemos a operação com os Páras e tu com teu Grupo trataram de arrumar contas com os “fugitivos”. Uns viajaram para junto dos deuses e o chefe Mamadu Indjai para o hospital em Conacry. Teria chegado? Deves saber o que fizeste.
Dizia eu, no comentário que navega pelo espaço, que há tropa e tropa. A 2339 estava sempre no embrulho. Tudo bem e habitáamo-nos e nem queixume deve ser feito. Mas:
Leio certos textos e dizem que a tropa estava mal preparada… outros que a instrução era dura… uns celebram com yaaaaa e outros com yeeee. Uns dizem NT e IN e outros turras e tugas… nós se da mata vinha “tuga, tuga” fazíamos fogo e dizíamos filhos de puta. Tudo bem.
A nossa especialidade – tua, minha e da maioria dos graduados da 39 CSM ou COM – foi o que foi. Logo no segundo dia toca a levantar, correr e saltar, um bocado de pão e um tubo de leite e marcha… a noite de Janeiro veio gelada, a fome atormentava, as mãos enregelavam… eu mão direita na gaita e mijava quentinho na esquerda… calculada a metade fazia o inverso. A madrugada chegou geada e o Capitão Comando, tronco nu, barbeava-se… e nós, salta, corre macaquinho. O dia decoreu e só á noite ao quartel chegamos. Comida? Não! Só dormida.
Foi determinante para a Guiné e os nossos camaradas, soldados da 2339, assim foram instruídos. Antes de dar instrução, já mobilizados creio eu, uns foram para Tancos e outros para Lamego. Recordo o presunto de Lamego, um peixe que nunca tinha comido - truta, a pensão do desenfianço, o galho, a Torre da Igreja e o gozo que aquilo deu enquanto durou…
A 2339 tem muito que contar. O camarada aos bocados nas árvores devia ser na estrada Mansambo/Bambadinca, na zona das emboscadas a seguir à primeira ponte. Está escrito nos Filhos de um Deus Menor. Foi no dia 2 de Abril de 1969.
A nossa zona era boa e Galomaro aqueceu e também assim ficou boa como a merda. A Inteligência Militar não queria acreditar que eles tinham, com a saída de Béli e Madina, o corredor aberto. Nem o Administrador de Bafatá. A 2405 que diga.
Fiz uma ou duas colunas loucas, antes da estrada Mansambo/Xitole estar aberta, por Galomaro, Dulombi, Quirafo (gostava de ter caído numa emboscada do tal hoje Cor Malu… com canhão… em cima da população). Conversávamos, claro, amigavelmente. E íamos até ao Saltinho e Xitole. Uma parvoíce. Coluna com vinte ou trinta carros, civis e uma moto-niveladora da Tecnil… nós trinta? Com mecânicos reforço de arma pesada…
Falas na água… e eu a ser evacuado para Nova Lamego, língua e lábios rebentados, meio grogue da febre… e a enfermeira pára-quedista a injectar e eu sem sentir. Quantos meses sem beber água potável? Uma bebida fresca ou comida… só comida de gente.
Fizemos o que tinha que ser feito. Uns talvez tenham acreditado e pensado estar a defender a Pátria, outros diziam que sim e aguentavam, outros nem sim nem não ou: tenho o dever de defender-me e aos homens que comando e, para isso, sou pago… outros…
Não guardo rancor e compreendo o IN, lutavam por algo que acreditavam. Tem isso muita força. Pena nem sempre resultar. Se lutavam com a lealdade possível, tudo bem. Não esqueço certos acontecimentos e não perdoo. Eles também não e têm mais problemas do que eu. Para mim há a Espécie Humana. Só! E do outro lado…?
Vê tu, Amigo, que tenho saudades. Sou homem de paz, muita paz mas…
A 2339 é, isso sim, uma saudade e algo que sinto e não consigo descrever, uma parte de minha vida, uma parte de mim. Ela, a 2339, e todos os que nos rodeavam milícias, picadores… etc.
Só fui a dois Encontros. Do primeiro vim tão amarrotado mas feliz por ver aquela gente. Ao outro porque pensei não voltar a ver os meus camaradas. Erro meu e um dia ainda apareço.
Carlos, deixa-me abraçá-los fraternamente a todos, os de cá e os de lá, a estes Tertulianos e, sem problemas aos que outrora me, nos, combateram. Ainda ao Povo das Tabancas, em especial… a certas gentes de que guardo para mim.
Isto é um teclar até ao infinito… não cabe, vai em anexo. És o culpado de eu escrever e de ter entrado neste Espaço (blogue) de afectos, de sensibilidades diversas e de pluralidade de homens e mulheres que sentem a amizade.
Oxalá.
Um abraço Fraterno.
Faço CC e vai para os Editores.
Abraço a todos do Torcato
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 9 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7248: Ser solidário (94): Tenho tanta pena do que acontece e louvo o trabalho da Catarina Furtado (Torcato Mendonça)
Vd. último poste da série de 10 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7260: Blogoterapia (166): Virar as costas sem se despedir (José Eduardo Alves)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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1 comentário:
Caro Torcato Mendonça
Gostei,gostei desta tua Alma.
Um abraço
Luis Faria
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