segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Guiné 63/74 - P7833: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (39): Teixeira Pinto - Capó e a bela donzela

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 19 de Fevereiro de 2011:

Caro amigo Vinhal
Com um abraço e votos de saúde e paz, envio-te mais um pouco de “Viagem…” para, se assim achares, publicar.

É um dos apontamento sobre um pequeno – longo período que passamos, onde a vida se resumia à sobrevivência diária embrutecida, em que qualquer “escape” era viver.

Um abraço para todos
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (39)

Teixeira Pinto – Capó e a bela donzela

As primeiras semanas de Outubro foram-se passando num dia-a-dia de certo modo rotineiro, em que as saídas para as matas se iam sucedendo sem haver felizmente maus encontros e as “cerimónias” marcavam o ponto, com maior ou menor assiduidade e extravasamento individual ou colectivo dos convivas, consoante o estado de alma, o mote (se é que era preciso), e a quantidade e variedade das bebidas intervenientes.

Em 02Out70, a CCAÇ 2791 (FORÇA) tinha pisado solo da Guiné. Um ano havia passado, muita vida se tinha vivido, muito sangue se tinha vertido, muita dor se tinha cumprido, no que acreditávamos ser um Dever Nobre.

Mas aquela terra que também era nossa, que juráramos defender e nos subtraíra já a juventude, iria querer ainda mais esforço, mais suor, mais dor, mais vida e a 10Out71, a escolha recaiu sobre o malogrado Jesus, Soldado Básico, simpático, solícito e bem disposto, que as águas calmas da bolanha reclamaram aquando dum refrescante banho. Triste sina a do Jesus. Indevidamente (?), já tinha sentido a mata em Bula e sobrevivido.

Os dias foram-se sucedendo sem outros males e a 25 do mês, a FORÇA a 3 GCOMB, reforçada com um GCOMB da CCAÇ 3308 vai para Capó, um não lugar no meio de nada, entre Teixeira Pinto e Cacheu, onde irá ser reinventado e construído um aquartelamento temporário que nos servirá de abrigo e base logística de apoio ao prosseguimento dos trabalhos de construção da estrada, em que íamos passar a estar empenhados na segurança próxima directa de trabalhadores, máquinas e da própria estrada.

Para além de se situar em zona já por nós ensaiada a ferro e fogo, neste acampamento íamos enquadrar meio milhar de trabalhadores nativos, o que era mais uma certa dor de cabeça diária, em especial quando regressavam do trabalho

Trabalhadores (foto J Fontinha)

Como o que não tem remédio remediado está, a desmatação inicia-se e a maquinaria faz ouvir o ronco dos seus potentes motores, desbravando e aplainando terreno, escavando valas e fossas, levantando barreiras protectoras de terra em substituição dos aramados, (por essa altura ainda nos eram desconhecidos os famigerados “bandos do arame”!?) edificando o que a breve prazo se vai transformar em reduto defensivo quadrangular torreado, que irá receber as cerca de seiscentas almas para aquelas bandas desterradas e que por lá se irão espairecer até primeiros de Dezembro.

Capó -Aspecto do aquartelamento (foto J Fontinha)

Construídas pelos exímios nativos em tempo recorde, as instalações feitas de ramos, folhas de palmeira e capim(?), vão alastrando nas suas formas paralelepipédicas pelos espaços a elas destinados. Nos quartos, perfeitamente ventilados e com “saídas de emergência”, as camas são também do mesmo material, com a particularidade de os estrados de fina ripagem arbustiva assentarem em pés enterrados no chão. Os bancos, mesas e todo o mobiliário eram peças artesanais únicas, perfeitamente enquadradas no estilo arquitectónico das edificações, estas concebidas de molde a não ferirem a sensibilidade paisagística do local.

Capó - Descanso do guerreiro! “Escopeta” sempre à mão.

Capó – higiene matinal

Capó – mobiliário - elementos 4.º Gr (foto J Fontinha)

Quanto a operacionalidade defensiva e reactiva, o Pessoal foi instruído das posições a ocupar, dos cuidados a ter e do modo de actuar. Na hora, só podíamos contar connosco, em especial à noite, já que o apoio da artilharia do Bachile não seria viável por não ter alcance suficiente, Teixeira Pinto e Cacheu estavam distantes e aviação era problemática (acabou por vir ajudar-nos, brindando-nos com um dos mais belos quadros pintados a um anoitecer)

A actividade operacional diária dos GCOMB começa a desenrolar-se com normalidade e rotatividade nas tarefas necessárias, como picagem e segurança às máquinas e trabalhos, abastecimentos, patrulhamentos e emboscadas de proximidade, segurança ao aquartelamento…

Elementos 2.º GComb (meu) - Augusto em 1.º plano

Os dias de canícula abrasadora iam-se sucedendo sem males de maior que lembre, embrenhando-nos a viver naquele meio de nada, onde o diferente era por vezes exacerbado, dando vida e alento àquelas almas penadas que por aquelas bandas se atreviam de quando em vez a sonhar(?!).

É assim que um belo dia, creio que pela manhã, reparo na correria desgarrada do pessoal ”residente” em subida para a barreira frontal à estrada. Apresso-me na mesma direcção a inteirar-me do que se passa e estampa-se-me o olhar numa branca e alourada donzela (?!), de mini - mini saiinha, que arejava as coxas e calcinha protectora das “vergonhas”, debruçando-se na apanha de pequenas florinhas amarelas, que julgo malmequeres.

Talvez por se aperceber das movimentações militantes, resolve prolongar e até alindar o trabalho, aumentando um pouco mais a ventilação da alva blusa em uso, quiçá devido ao eventual aumento de temperatura provocado pelo calor dos humanos olhares embicados e perscrutadores ou mesmo com intenção meritória e altruísta de tentar exercitar e dar um pouco de vida aos “mangalhos pendurões” e em hibernação daquela plateia de galfarros com avidez gulosa espelhada nos olhares.

Fosse por que motivo fosse… foi um raio de luz e calor que nos envolveu e marcou momentos que intimamente agradecemos e ainda hoje recordados .

Luís Faria

© Fotos L Faria/J. Fontinha
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Nota de CV:

Vd. último posue da série de 8 de Janeiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7573: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (38): Teixeira Pinto - movimentações militares e dores de cabeça

2 comentários:

Jorge Fontinha disse...

Do que te havias de lembrar!
Lembra-te que estavamos lá para fazer protecção aos trabalhadores nativos e ás maquinas de engenharia,não propriamente, para sonhar.Era contudo assim, que por vezes nos surpreendiam, sonhando com o impossível.Só foi pena que a minha máquina fográfica não estivesse á mão!...

Aquele abraço.
Jorge Fontinha

Anónimo disse...

Luís,
As loirinhas que conheci na Mata dos Madeiros chamavam-se Cucas e Sagres. Ajudavam a suavizar a nossa sede.
Loirinhas de mini-saia e cuequinhas a esconder zonas proibidas não conheci por aqueles lados.
Foi bom não ter conecido esse tipo de loirinha. A sede teria sido horrorosa de suportar...
Bela história com os imponderáveis da guerra e a dor constante da perda de camaradas.
Com amizade,
Jose Câmara