terça-feira, 28 de junho de 2011

Guiné 63/74 - P8478: Notas de leitura (251): Mansas, Escravos, Grumetes e Gentio – Cacheu na encruzilhada de civilizações (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Junho de 2011:

Queridos amigos,
Cacheu é um local incontornável na aproximação entre o colonizador e os autóctones guineenses, desde a primeira hora.
Este livro tem o mérito apresentar comunicações que permitem concluir que não é possível estudar a história de Cacheu apartada de outras estruturas políticas e económicas vizinhas, sobretudo a Gorée (ponto alto do tráfico de escravos), o espaço Kaabunké e a sua vivência específica que permitiu a penetração islâmica. Se há cidade guineense que pode utilizar com propriedade a expressão “cidade antiga” é Cacheu.

Um abraço do
Mário


Cacheu, quando era a jóia da coroa e a encruzilhada de civilizações

Beja Santos

“Mansas, Escravos, Grumetes e Gentio – Cacheu na encruzilhada de civilizações” é o repositório das comunicações apresentadas no IV Centenário da Fundação da Cidade de Cacheu (1588-1988), coordenado por Carlos Lopes, estudioso hoje renomado à escala internacional (INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, 1993).

Trata-se de uma miscelânea de comunicações apresentadas num evento histórico de alto significado. Estruturado em quatro partes, o essencial é acolhido na primeira parte (a dimensão histórica da cidade de Cacheu) e nalgumas das comunicações enunciadas na segunda parte). Os estudos sobre o crioulo e a organização do colóquio são matérias que extravasam, para o caso em apreço, a atenção do leitor.

Porquê mansas, escravos, grumetes e gentio? Por se tratar de categorias sociais indispensáveis para entender como Cacheu foi a alavanca da colonização portuguesa na Guiné. Os mansas são sinónimo da realeza na terminologia Mandinga, uma sociedade em muitos aspectos feudal; os mansas só puderam ter a importância que se lhes atribuiu porque tinham um poder económico e político considerável: o comércio dos escravos, era comum a prática de capturar escravos, este tráfico esteve na origem da prosperidade dos rios da Guiné; os grumetes decorrem da presença europeia, constituem a categoria social que articula a relação social que os mestiços ou próximos da “civilização” estabeleceram com as populações locais, aparecendo como porta-vozes junto do branco ou do cabo-verdiano; o gentio rotula todas as outras populações em torno dos não integrados na “civilização”. Carlos Lopes identifica as principais etapas da história de Cacheu: uma primeira etapa que vai até 1588; uma segunda etapa que se estende até 1878, corresponde à construção de uma fortaleza, à instalação de uma administração portuguesa na costa, já com veleidades de ocupação territorial, corresponde a um período de crises do poder central português, de revoltas permanentes dos autóctones contra os capitães-mores da feitoria; uma terceira etapa, correspondente à instalação da administração provincial em Bolama, na época em que se estabeleceram as fronteiras do território, em que se perde, a favor dos Franceses, a região do Casamansa; uma quarta etapa, posterior ao tratado Luso-Francês (1886 e que vai até à pacificação do território, período em que Cacheu viveu momentos de intensa transformação).

Os participantes que analisaram a dimensão histórica da povoação de Cacheu concluíram que não é possível estudar a sua história sem situar a feitoria em relação às estruturas políticas e económicas vizinhas. Foi nesse contexto que a investigadora Maria Emília Madeira dos Santos interveio sobre a importância dos lançados ou tangomaos (tangomaus, tangomãos ou tangomans). Essencialmente, foram os pioneiros europeus nesta região, no tempo em que a costa da Guiné se estendia entre o Cabo Verde e a Serra Leoa. Era homens de diversos estratos sociais, aventureiros, renegados e cristãos novos que se lançavam no interior, subtraindo-se, na maioria dos casos, às autoridades portuguesas – lançavam-se no desconhecido que era a terra e a lei dos gentios. Havia judeus, mestiços, degredados e até fidalgos. A investigadora dá depois conta das acusações que caiam sobre estes lançados: faziam concorrência ao resgate de embarcações portuguesas, eram tidos por ladrões de fama e do crédito, traidores; foragidos de Portugal, intrusos ou hóspedes em África. Ocuparam-se do comércio da troca: as mercadorias vindas da europa eram fundamentalmente bretãs, mas havia, além disso, contaria da Índia, roupa branca e pintada da Índia; em troca, os lançados entregavam aos comerciantes couros, marfim, cera, goma, âmbar, anil, escravos e ouro. Escreve a historiadora: “Os pontos escolhidos nos tangomaus, para se fixarem eram de preferência a costa ou as margens dos rios com boa navegabilidade que lhes permitissem um fácil acesso ao mar. Este posicionamento facultava-lhes o contacto com os navios europeus e com o sertão. Importa não esquecer que a partir do terceiro quartel do século XVI as naus francesas passaram a aparecer na costa e o rio Grande encontrava-se à mercê dos seus roubos; seguiu-se a chegada dos ingleses. Os lançados comerciavam sem escrúpulos com portugueses, franceses ou ingleses. Isolados, sem lei, sem justiça e sem religião, na dependência do poder africano e dos capitães dos navios, cedo se tornaram dispensáveis e desapareceram sem deixar rasto.

Cacheu é também uma encruzilhada religiosa, para aqui confluem o fervor islâmico, as práticas animistas e as tentativas de missionação. João Vicente, da diocese de Bissau, apresentou uma comunicação sobre “Quatro séculos da vida cristã em Cacheu”. Como é público e notório, a missionação falou no essencial, isto a despeito de, a partir dos anos 30 do século XX, ter havido um grande esforço por parte do bispo de Cabo Verde, nos anos 40 chegou a haver 3 escolas de missões, a catequização foi feita por professores catequistas, muito imperfeita, e Cacheu, a quem se chamou a “Roma da Guiné” não irradiou a mensagem cristã.

Falando dos aspectos económicos e implicações sociais da presença colonial, Daniel Pereira, da Direcção-Geral da Cultura de Cabo Verde, apresentou uma intervenção sobre a fundação da Companhia de Cacheu (1671-1676). É uma exposição luminosa que abarca a situação dos rios da Guiné ao longo de todo o século XVII, detalha pormenores sobre a formação da Companhia e reflecte sobre a política de organização de companhias comerciais em Portugal, relacionando-a com o mercantilismo, em oposição ao comércio livre. A Companhia de Cacheu foi entendida como a única forma de “conservar e instituir e fazer crescer o comércio em benefício da Coroa”. Fez surgir grandes tensões pois veio ferir os interesses dos homens das ilhas de Cabo Verde, habituados como estavam a dispor de ampla liberdade de acção nos rios da Guiné e que vira na Companhia de Cacheu um grave competidor. De acordo com a historiografia, a criação desta Companhia surge num quadro de profunda desagregação do comércio português nos chamados rios da Guiné, a Coroa já não estava em condições de fazer face às investidas dos estrangeiros, a presença dos portugueses era tolerada pelos autóctones desde que pagassem tributo.

Igual importância teve a comunicação de Wladimir Brito, da Universidade do Minho sobre a importância de Cacheu para a instalação da administração colonial da Guiné. O estudioso debruçou-se sobre a evolução dos capitães contratadores para as companhias de navegação e destas para a presença da administração pública da Guiné, mediante companhias coloniais e mais tarde a emergência de uma verdadeira administração pública da colónia. No início do século XIX, Portugal tinha estabelecido na Guiné duas capitanias, a de Cacheu e a de Bissau. Com as alterações que o liberalismo veio imprimir, ocorreram a partir de 1882 alterações de tomo nas estruturas político-administrativas tanto na Guiné como em Cabo Verde. Em 1842 Cacheu voltou a retomar a sua autonomia (deixou de estar dependente de Bissau) passando a depender directamente de Cabo Verde, a situação vai oscilar até 1879 data em que foi criada a província da Guiné, completamente autónoma de Cabo Verde.

Se Cacheu avulta como o lugar geográfico-político onde se realizaram os primeiros contactos entre os povos africanos e europeus, e se tornou o ponto de partida à abertura da Guiné à colonização, é uma memória a preservar o papel que exerceu no intercâmbio cultural e é símbolo do sofrimento humano em torno do esclavagismo.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 24 de Junho de 2011 > Guiné 63/74 - P8469: Notas de leitura (250): A Guerra de África 1961 - 1974, por José Freire Antunes (2) (Mário Beja Santos)

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