segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Guiné 63/74 - P9006: Notas de leitura (300): Amílcar Cabral, por Oleg Ignátiev (2) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 11 de Outubro de 2011:

Queridos amigos,
Esta biografia romanceada, com episódios dignos da mitologia e da saga patriótica, vale pelo que vale. Foi a primeira biografia, o que se estranha é que o jornalista não tenha medido as consequências de que o panegírico tinha buracos e remendos, que tudo (ou quase tudo) se iria desvendar mais tarde.
Agora mudo de agulha.
Tenho outros panegíricos para ler, os de Horácio Caio e José Manuel Pintasilgo, ao serviço da propaganda de Marcelo Caetano. Ando a folhear o livro histórico, a grande preciosidade de JERO que o nosso confrade Belmiro Tavares depositou nas minhas mãos, o seu diário referente ao primeiro ano de comissão da CCAÇ 675 que saiu de uma tipografia, em 1965.
Afinal, não foi só o Armor Pires Mota quem escreveu diários em 1965. E o nosso confrade António Marques Lopes enviou-me as conversas com o comandante Bobo Keita que trazem algumas revelações surpreendentes.
Enfim, trabalho não me falta, como nos contos das 1001 noites.

Um abraço do
Mário


Amílcar Cabral, a biografia romanceada de Oleg Ignátiev (2)

Beja Santos

O principal mérito desta obra reside na cimentação cronológica, o jornalista soviético conhecia com alguma profundidade a formação de Amílcar Cabral e o percurso da sua formação. Daí que, nos traços essenciais, o itinerário do líder do PAIGC em Cabo Verde, Lisboa, Guiné, Lisboa, Angola, um saltitar entre a Europa e norte de África, a fixação em Conacri, etc., apareça correcto. Pode até entender-se que tenha procurado escrever, por imperativo ideológico, um retrato biográfico de hagiografia, um mártir de causas, um visionário impoluto, um marxista visionário mas agradecido às múltiplas ajudas de Moscovo. O que se torna completamente incompreensível é confundir a propaganda do PAIGC com a visão que ele próprio devia ter dos acontecimentos e da realidade da luta política e militar que se travava na Guiné.

Ele fala do congresso de Cassacá como se este tivesse sido um evento pré-programado. Luís Cabral e Aristides Pereira deixaram bem claro que Cassacá foi uma reunião que se transformou imprevistamente num congresso, durante 30 horas sem pausa Amílcar Cabral fez análise da situação política, fez aprovar o programa do PAIGC, estabeleceu uma orgânica para as forças militares, deliberou sobre infra-estruturas e subitamente encetou-se um ajuste de contas com elementos torcionários que amedrontavam a população, especialmente na região Sul.

O programa do partido era inconfundivelmente baseado no socialismo autoritário: um partido vanguarda, uma economia controlada pelo Estado, propondo uma política externa formalmente de não alinhamento em blocos militares. A descrição de Ignátiev quanto à prisão dos dirigentes com comportamento repreensível é de uma candidez espantosa. Foram presos e não se fala mais no assunto.

Por conveniência de serviço, o autor maquilha a análise marxista heterodoxa de Cabral quanto ao proletariado com um partido-guia fundamentado na pequena burguesia. Mais tarde, em Havana, em 1965, Cabral expendeu doutrina que inquietou o leninismo convencional. Pela primeira vez e abertamente, um dirigente revolucionário defendia e justificava uma pequena burguesia nacionalista a liderar um proletariado rural. Na sua utopia (que Ignátiev justificadamente ignora) Cabral confiava que a classe dirigente iria por osmose adquirir uma concepção da classe operária.

Na continuação dos dislates já anteriormente escritos, Ignátiev continua descarado na menção de mentiras descomunais:

 “Nos territórios libertados o partido criou dezenas de escolas. É de destacar que até ao fim de 1966 os patriotas tinham libertado 60 % do território da Guiné portuguesa com quase 50 % da população”.

Um jornalista experimentado na luta de guerrilhas descreve a acção dos portugueses como uma invasão dos hunos, atacando aldeias pacíficas nas regiões libertadas. Aparece uma primeira referência a Inocêncio Cani, compreensivelmente desprimorosa:

“Recordo como Amílcar visitou uma base perto de Mansabá que era comandada por Inocêncio Cani. Os habitantes da região queixavam-se de que ele os tratava mal. Amílcar, depois de regressar da viajam, deu ordem para demitir Cani do posto de comandante da base”.

Depois embarca em mentiras revoltantes como o massacre de Jolmete, de 20 de Abril de 1970, isto depois de já ter dito que o PAIGC conquistara Madina de Boé, de que Spínola tinha atraído um tipógrafo coxo, Rafael Barbosa, para a sua causa e que os antigos prisioneiros libertos foram postos ao serviço da PIDE. Afinal não houve massacre nenhum, diz Ignátiev, o que se passava no chão Manjaco é que três majores que trabalhavam para a PIDE saíram de um carro durante uma operação em que se ia encontrar com um renegado do PAIGC, a coluna foi atacada com rajadas de espingardas-metralhadoras, e os oficiais ao serviço da PIDE foram capturados. E escreve sem nenhum tremor da consciência:

“No mesmo dia, o tribunal militar do PAIGC condenou os 4 ao fuzilamento, executando-os imediatamente. Foi este o desfecho de uma operação que na história do PAIGC figura como operação dos três majores. A pena de morte em relação aos dirigentes da acção psicológica devia mostrar ao general Spínola que os combatentes e os comandantes do PAIGC nem se compravam nem se vendiam e estavam determinados a lutar até expulsão do último soldado colonialista”.

Fica-se igualmente com a ideia, quando está a descrever os acontecimentos relativos a 1970, que Ignátiev está mortinho por acabar o livro, entra num rimo frenético e aborda superficialmente os eventos em catadupa: participação nas solenidades por motivo do centenário do nascimento de Lenine, a polémica audiência de Paulo VI aos representantes dos movimentos de libertação nacional. A invasão de Conacri, os périplos de relações internacionais em que Cabral andou numa roda-viva em 1971 e 1972, acrescentando o facto de ter havido uma missão especial da ONU em 1972 que aumentou a credibilidade internacional do PAIGC.

Chegamos depois à reunião em que Cabral mostrou a informação 42/71/DGS durante uma reunião partidária, versando o seu conteúdo a um plano para acirrar descontentamentos internos e levar ao derrube da actual Direcção com a promessa de Spínola assegurar postos elevados na vida política do futuro Estado guineense, donde estariam liminarmente arredados os cabo-verdianos.

A verdade é que este documento existe o que não existem são as provas de qualquer tipo do envolvimento da DGS no plano de assassínio de Amílcar Cabral ao contrário do que diz categoricamente Ignátiev. Pela primeira vez é escrito o nome, de acordo com depoimento de Ana Maria Cabral, de quem deu o tiro de misericórdia no líder do PAIGC. Terá sido Inocêncio Cani quem deu um tiro de revólver que o feriu, seguiu-se uma grande discussão e então Inocêncio Cani ordenou a Bacar que ultimamente era soldado na garagem para acabar com ele:

“Amílcar estava sentado no chão, de costas viradas para Bacar, que baixou o cano da metralhadora e disparou. Disseram-me depois que uma das balas o atingira na face e a outra na cabeça. Foi assim que eles mataram o meu marido”, remata Ana Maria Cabral que viveu todos estes acontecimentos ao lado do marido.

O jornalista não esconde o seu fraco para caracterizar Cabral como o mártir de uma causa justíssima. E volta à carga passando descaradamente dos dados biográficos para o panfleto:

“As forças armadas do PAIGC intensificaram os ataques ao inimigo, de Março a Setembro de 1973 a defesa antiaérea do PAIGC abateu mais de 40 aviões inimigos. As guarnições portuguesas eram destruídas uma após outra, libertavam-se novas áreas”.

É isto o essencial o miolo da biografia romanceada de um jornalista que visitou repetidamente a Guiné-Bissau, escrevendo sobre ela dezenas de artigos e notícias, seis livros e dois filmes documentários.

Voltaremos em breve a falar de Ignátiev e do seu livro com a versão oficial do assassinato de Cabral a soldo da PIDE.
____________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8995: Notas de leitura (299): Amílcar Cabral, por Oleg Ignátiev (1) (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Antº Rosinha disse...

Beja Santos, que trabalheira,pela minha parte, obrigado.

Já li em Bissau deste autor "O três tiros da PIDE", há muitos anos, que circulava em abundância em Bissau.

Ao fim e ao cabo o jornalista Oleg, ficou o historiador e biógrafo "oficial" de Amilcar e do seu PAIGC, até 1974.

Não sei se continuou a escrever sobre o PAIGC, após esta data.

E era desta maneira que ia sendo aceite e repetido em Bissau, estes relatos, embora passivamente nos primeiros anos de independência.

Mas na realidade veio a ser aplicada em Bissau, aquela ideia que leste sobre "a pequena burguesia nacionalista" a governar o proletariado rural, como dizia Amilcar.

Sem dúvida, Luis Cabral aplicou as regras todas do socialismo idealizado pelo irmão.

Estou convencido que Luis Cabral agia de boa fé, como Machel agiu em Moçambique e Agostinho Neto em Angola.

Mas África é África, não resoltou.

Nem noutros lados resultou.

Mas que não foi por falta de ajuda dos soviéticos, não foi mesmo.

Cumprimentos

Carlos Vinhal disse...

Em tempo:
Foi corrigido o nome do nosso camarada Marques Lopes que neste poste constava como Marcos Lopes.
A este nosso camarada e ao Mário Beja Santos peço desculpa por não ter detectado a gralha.
Carlos Vinhal
10/11/2011