sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Guiné 63/74 - P13625: Notas de leitura (633): “Poesias e Cartas", por José Bação Leal (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 17 de Setembro de 2014:

Queridos amigos,
Quem quiser ir ao encontro de um jovem intelectual do início da década de 1960, um adolescente a transmutar-se em jovem adulto, com problemas de fé e crescentes dúvidas religiosas, a poetar, amante do cinema, com enorme prazer pelo convívio, seguramente um caso ímpar de alguém que vai para a guerra pejado de literatura e sempre a pedinchar mais e mais, revoltado, entediado, em rota de colisão com a hierarquia militar, punido com 5 dias de prisão por ter enfiado um par de bananos noutro camarada por razões desconhecidas e que vai parar a um teatro bem incómodo no Norte de Moçambique, acidentado numa mina anticarro e que entra em coma sem que os médicos diagnostiquem o seu mal, tem que ler obrigatoriamente este livro.
Aproveitem, porque é barato, é uma edição do jornal Público.

Um abraço do
Mário


Poesias e cartas, por José Bação Leal

Beja Santos

O jornal Público tem vindo a editar livros proibidos. A Censura foi implacável no seu juízo, escrevia o capitão Brandão de Mello em Dezembro de 1971: “Trata-se de obra póstuma de um combatente em África contra o terrorismo, mas imbuída de um doutrinismo político-social inaceitável ou reprovável por antinacional e negativista (…) há trechos elucidativos ou caraterísticos do pensamento ou ideário político-social do autor do livrinho que me parece sem o menor interesse literário ou espiritual, mas, isso sim, mais uma obra de contestação, eivada de revolucionarismo e revolta e constituindo um péssimo exemplo de uma mocidade para outras mocidades”.

Recomendo a todos os títulos que se procure ler este voluminho de alguém que morreu em Nampula, com 23 anos, pouco tempo depois de um acidente com mina anticarro, terá morrido de doença não diagnosticada. Convém saber que quem pesquisar na net por João Bação Leal pode ter acesso a um documentário mais esclarecedor e revelador da personalidade deste jovem com uma clara inclinação para as letras. Correndo o risco de ser injusto, a sua poesia é de um iniciado que procura rumo, está datada e percebe-se quais os seus santos de culto, como é o caso de Ramos Rosa e de Herberto Helder. Onde atinge uma fasquia respeitável é na epistolografia, é verdadeiramente incomum encontrar tão possantes faculdades. Como escreve no prefácio Urbano Tavares Rodrigues: “O caráter extremamente pessoal das suas conotações, o tom coloquial, íntimo, a violência terna e exacerbada das suas metáforas, em que é sempre patente a carga afetiva, o tónus poético de muitas das cartas dão-nos uma tocante imagem de vertiginoso crescimento humano e estético”. E também uma cultura incomum, não cita à toa Sartre ou Roger Garaudy, e mesmo Mounier ou Gabriel Marcel.

Duas palavras sobre a sua poesia, foi a mãe do autor que as recolheu de rascunhos que ele deitava fora. Empreguei a palavra pesquisa, alguém que desperta o estro poético e o dilui em pequenos poemas. Assim:

As poesias nascem dum silêncio
ou de uma conversa que temos a sós
com uma dúvida ou uma madrugada
que faz de nós que não somos nada
a própria dúvida mas concretizada

Em Novembro de 1962 escreve a um amigo que queimou tudo o que tinha escrito. Depois voltou a escrever e confessa: “Não supões a emoção absurda que se sente quando se destrói, voluntariamente, o que nos momentos mais nossos criámos”. Gosta de cinema, foi ver “Cléo de 5 a 7”, de Agnès Varda, filme muito badalado e incensado pela crítica, não gostou, embora reconhecendo ter momentos belíssimos. Está em Mafra e inicia uma carta com quatro citações. De Fernando Pessoa: “Quero ir para a morte como para uma festa ao crepúsculo”; de António Ramos Rosa: “Não posso adiar o amor para o outro século. Não posso adiar o coração”; de Herberto Helder: “Porque o povo não sabe que um homem morre antes da sua última canção”; de António Ramos Rosa: “Era o tempo em que sentados na pedra, ouvíamos a erva. E era verão”. E arranca logo: “… poeticamente exausto, verticalmente só, lembro memória de um qualquer verão em nenhuma parte”. Estamos em Agosto foi promovido a aspirante. Segue para Lamego, vai tirar o curso de Ranger. Dirige-se a um amigo: “Talvez tropece em Lisboa depois de amanhã”.

Dá sugestões sobre recitais. Em Julho está em Beja, de formação católica, depois de ter assistido a uma procissão escreve: “Toda aquela gente, toda aquela pompa, um sabor a erro antigo, a falsidade. Nunca mais, nunca mais acreditarei em Deus”. Em Novembro, escreve de Luanda: “Se eu morrer em África (voluntária ou involuntariamente) não permitas a utilização do meu nome por quem quer que seja”. Chegado a Nacala, parte para Alto Molocué. Pede livros, e é preciso no que pede. A melancolia não o larga, melancolia e solidão, começa a sair para o mato, mas pede insistentemente mais livros: de Philippe Sollers, de Lawrence Durell, de Fernando Pessoa. Chegou o Natal, endereça mensagens: “Um vasto Natal, rente ao coração dos teus”. Está enfronhado nos problemas religiosos: “Não posso acreditar num Criador distraído”. Quer mais livros: de Kafka, de Malraux, de M. S. Lourenço. Continua a interrogar os amigos sobre cinema, remete poesia, recomenda a um amigo que leia o estudo da personalidade de John Ford na revista “Positif”. Quer saber se houve Dia do Estudante. Recomenda a um amigo que leia “Os Condenados da Terra”, de Franz Fanon. Recusa-se a falar da guerra, mas sente-se que entrou num processo de diluição, de confrontação: “Chegou o 2.º comandante, mas nada se alterou. Sempre o mesmo sol doente, o mesmo esqueleto a fingir de esperança”.

Estamos em 30 de Maio de 1965, ainda no Alto Molocué: “Cumpro 5 dias de prisão. O general agravará fortemente, em virtude do texto, redigido a martelo, da punição”. O problema religioso devora-o: “Abraçar o catolicismo lembra-me algo como legitimar o egoísmo. Esta uma verdade que me dói no sangue. Perdoa-me, mas hoje tinha que dizer isto a alguém. Escolho-te a ti, porque te considero um católico bom, porque, penso, não me levarás a mal” e a outro amigo: “5 dias de prisão podem significar Mueda ou Vila Cabral. Sou neste momento um cadáver em fúria. Aguardo transferência, aqui em Nampula”. Quase na mesma data escreve a outro amigo: “Apresento-te um ex-presidiário, um homem ferozmente silencioso, a um degrau do Norte (isso: da guerra)”. Está obcecado pelo Norte, fala recorrentemente em Mueda ou Vila Cabral, aqui chegará em 29 de Junho, distribui o seu novo S.P.M. pelos amigos, está colocado em Metangula, povoação à beira-lago do Niassa.

Em 10 de Julho, acidenta-se com uma mina anticarro, é evacuado para Nampula, vai às consultas de ortopedia, tem um braço fraturado. Está visivelmente desencorajado, diz que está a enlouquecer, a tropeçar de raiva e tédio. Em Agosto, ainda em Nampula, começa a adoecer, nas suas últimas cartas, datadas de 24 de Agosto, fala num diabólico ataque de sinusite e diz mesmo a um amigo: “Acredita que prefiro o Vietname a estas dores de cabeça. Era boa altura de me mandarem para casa”. Vai adoecendo, morrerá em 1 de Setembro. O pai, um conceituado estomatologista de Lisboa, João Bação Leal, tudo fará para deslindar os responsáveis pela negligência médica. Poder-se-ão ler estas cartas com a dupla amargura de se perceber que morreu um jovem cheio de talento, de férrea estrutura cultural para os seus 23 anos, mas também alguém que representa uma certa imagem da sua geração, alguém que vagueia em solidão e escreve trepidantemente aos amigos, à procura de uma âncora. E escusado é dizer que Bação Leal viva encouraçado nas suas leituras e nos seus poemas, aquela guerra não lhe disse literalmente nada. Este livro está disponível nas livrarias ao preço de 6,50€.
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Nota do editor

Último poste da série de 15 de Setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13611: Notas de leitura (632): “Guiné: Até amanhã se Deus quiser" por Vítor Nogueira (Mário Beja Santos)

3 comentários:

Bispo1419 disse...

A poesia no seu esplendor!
"Era o tempo em que sentados na pedra ouvíamos a erva. E era Verão" ... (António Ramos Rosa)

Palavras simples que levam à imersão num tempo leve e fluído de um pôr-do-sol de verão, "ouvindo a erva" na "harmonia" do silêncio profundo, num prazer dúbio entre o vazio e a plenitude da existência, entre o SER e o NADA.

Manuel Joaquim

Anónimo disse...



Um grande poeta, com muita arte e sensibilidade que essa guerra longinqua, levou tão cedo e tão longe dos seus e da pátria.
Gostei tanto do poema que acompanha o texto que vou comprar o livro.
Um abraço a todos os camaradas

Francisco Baptista

Anónimo disse...

Olá Camaradas
Parece-me que este poeta foi um dos que reagiu mal à mobilização e, num crescendo de sofrimento e contestação a dada altura bateu no Of. Tms do Batalhão que era tão miliciano e estava tão contrariado como ele.
Do que li parece-me que entrou numa espécie de pãnico que o impediu de reconhecer o o verdadeiro inimigo e a maneira de o contrariarmos...
Foi pena, pois perdeu-se um bom poeta. Quanto à censura só posso dizer que, como temos vindo a ver nutria um ódio vesgo e às vezes, quanto mais olhava, menos via.
Um Ab.
António J. P. Costa