domingo, 28 de outubro de 2018

Guiné 61/74 - P19143: Blogpoesia (591): "O serrador", "Entusiasmo" e "Os enigmas", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

1. Do nosso camarada Joaquim Luís Mendes Gomes (ex-Alf Mil da CCAÇ 728, Cachil, Catió e Bissau, 1964/66) estes belíssimos poemas, da sua autoria, enviados entre outros, durante a semana, ao nosso blogue, que publicamos com prazer:


O serrador

Duas serras e dois cavaletes eram a ferramenta.
De colete e botas.
Trabalhava à jorna.
Dois preços.
De comer ou a seco.
Chegava ao monte pela manhãzinha.
Pelo chão, espalhados, estavam os toros do eucalipto.
Mais os ramos.
Um cheirinho de invejar.
Escolhido o sítio, vinha a tarefa de pôr o toro sobre os cavaletes.
Sem ajudas.
À altura dum homem.
Em dois lances, uma força bruta,
e o toro jazia pronto para a serração.
Lá no alto, um pé à frente e outro atrás,
Derreado, apontava a serra ao tronco,
Já descascado.
E, vai de força, de cima abaixo,
Daquele jeito que só o mestre sabe,
Zás... Zás... Zás...
O serrim caía no chão e fazia tapete.
Uma tábua surgia e depois outra
E outra, até à última.
Aí, umas dez, conforme a grossura.
Era o primeiro.
A seguir o descanso. O suor escorria.
Ia ao bornal.
Uma caneca de tinto, um naco de broa e um chouriço.
Ao fim do dia, vinha o patrão.
Tarefa pronta.
Satisfação de ambos.
Madeira prá casa.
Quinze mil réis.
Graças a Deus!...

Berlim, 23 de Outubro de 2018
10h8m
Jlmg

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Entusiasmo

Não se compra nem vende o entusiasmo.
É um estado de alma.
Não se sabe donde vem.
É luz acesa. Sem ele, tudo apaga.
Nada tem sabor.
A apatia vem.
Reagir é o remédio.
Dar um passeio.
Pela montanha ou até ao mar.
Refrescar os olhos. Ver além.
Ouvir música.
Alegre e colorida.
Um bom vinho.
Abrir a janela.
Olhar o céu.
Tomar um duche.
Ir ao café.
Na esplanada.
Ver gente.
Ir a uma feira.
Estou certo.
Fica melhor.
Pode ser que tudo passe
E volte a sorrir...

Berlim, 25 de Outubro de 2018
8h33m
Jlmg

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Os enigmas

No começo, tudo está bem.
O sol e o vento são bons.
A chuva e o mar se dão bem.
Não pergunto o que haverá para lá daquela serra.
Me contento com o que tenho ao redor do meu quintal.
Uma bola, de trapos me contenta. De borracha será melhor.
Não importa a cor da camisola ou da camisa.
O que interessa é brincar.
O comer aparece sobre a mesa quando vem a fome.
Se alguém me fez mal digo ao meu pai.
É tão bom viver.
Sem perguntas. Está tudo certo.
Mas, depois vem a escola.
Letras e algarismos trazem dúvidas.
Traduzir a voz em sinais gráficos é uma meada muito envencilhada para decifrar.
Vem a história com suas histórias.
Os réis que já não há.
Suas façanhas sempre a mal.
A geografia a falar de rios e de continentes.
Já me bastava o regato da minha aldeia
e o lago de Sestais.
A aritmética das contas sempre a dar erradas.
Escrever sem erros é uma epopeia.
Depois, a religião a falar do que se não vê.
Para que serve acreditar?
De vez em quando há alguém que morre.
O corpo vai para o chão.
Para onde vai a alma do pensamento.
Dizem que é imortal.
Acreditar sem ver não é bem do nosso agrado.
Os preceitos do bom viver. Qual a fonte?
Porquê o prémio e o castigo, já me chega o que chamam a consciência?
Enfim. Um emaranhado de mistérios.
Se não fossem bem explicados,
Mais valia não haver...

ouvindo Secret Garden- Música para el espíritu - Luty Molíns
Berlim, 26 de Outubro de 2018
8h 56m
Jlmg
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Nota do editor

Último poste da série de 21 de outubro de 2018 > Guiné 61/74 - P19124: Blogpoesia (590): "No meio da geometria", "Não tem pele a alma" e "Estado de alma", da autoria de J. L. Mendes Gomes, ex-Alf Mil da CCAÇ 728

9 comentários:

Hélder Valério disse...

Caro amigo Joaquim Gomes

Acho que já te tinha dito que leio os teus poemas, embora raramente me pronuncie.
Não tenho, não sinto "veia", para comentar poesia, embora consiga gostar do género e normalmente dizer: "gosto", "não entendo", "não apreciei", mesmo que para qualquer das 'categorias' não tenha grande 'argumentação' para decidir sobre uma coisa ou outra.

Hoje comento.
O primeiro poema, "O Serrador", é um relato da actividade do mesmo, para muitos de nós desconhecida, mas que revela um conhecimento próximo. Pode-se até considerar que se trata de um "fresco" sobre essa actividade.
O segundo, "Entusiasmo" é uma boa receita para ultrapassar momentos menos bons. Tem aí algumas indicações que também costumo utilizar: a música, um passeio, por vezes a solidão para reflectir, por vezes mergulhar na multidão...
O terceiro, "Os enigmas", soa como que a evolução e a história de uma vida.

Gostei.
Hélder Sousa

Joaquim Luís Mendes Gomes disse...

Obrigado pela tua certíssima apreciação. De facto custa-me não receber dos camaradas nada. Mas compreendo. A poesia não é bem o seu negócio.
Um grande abraço. E muita saúde.

Valdemar Silva disse...

Caro Mendes Gomes.
Eu também leio todas as semanas os teus Poemas.
Também não sei interpretar poesia, que aliás só se pode a interpretar conhecendo a vida do seu autor e mesmo assim com grande dificuldade.
Mesmo assim, já utilizei um Poema teu na dedicatória de um livro que ofereci ao meu filho no dia do seu 45º. aniversário.
Mas, isto de escrever poesia tem que se lhe diga. Nunca saberemos se o teu 'O Serrador' é o retrato dum lenhador/serrador/carpinteiro ou é outra coisa que se passa na nossa vida.
Prá semana venha mais, e que seja feito a ouvir a guitarra melancólica nos 'Verdes Anos' tocada por Carlos Paredes.

Abraço
Valdemar Queiroz

Joaquim Luís Mendes Gomes disse...



Estou mais contente por encontrar mais um comentário lisonjeiro aos meus escritos. A minha participação para este magnífico Blogue. Pela mão do nosso Editor Carlos Vinhal.

Fico feliz por teres utilizado um poema meu para o teu filho. O Serrador, de facto é o relembrar dalguém que conheci e acompanhei de perto na minha infância. O Manel serrador. Escrevi um pequeno romance em que romanceei o seu namoro e casamento com uma moça de então, muito disputada. A Emília das Cancelas.
"Verdes anos". Já escrevi ao som da guitarra dourada de Carlos Paredes. Vou ver se o encontro.
Um grande abraço, Valdemar. Saúde.
Mendes Gomes

Joaquim Luís Mendes Gomes disse...

Caro Valdemar

Pus o Carlos Paredes a tocar " Verdes Anos" e escrevi assim, agora mesmo:



Suaves plangências.
Brisas do mar. Ondinhas no Tejo.
Telhados vermelhos.
Bairros com cor.
Muitas colinas.
Expostas ao sol.

Latadas de praças.
Roupas lavadas,
Estendidas em fios.
Janelas abertas.
Bancos corridos.
Novos e velhos.
Ditosa fraternidade.
Tempos passados.
Dias vindouros.
Vizinhos sentidos.
Sangue doirado.
Corre nas veias.
Gente boa.
Sempre haverá.
Lisboa antiga.
Seara madura.
Nos alimenta de amor e de paz...

Ouvindo Carlos Paredes a tocar "Verdes anos"
Berlim, 31 de Outubro de 2018
16h31m
Jlmg

Espero que gostes.
Abraço.
Mendes Gomes

Joaquim Luís Mendes Gomes disse...



https://www.youtube.com/watch?v=XwhV1ivYNsQ

Valdemar Silva disse...

Caro Mendes Gomes.
Estou a ouvir a guitarra do Parede nos 'Verdes Anos'.
Este teu Poema, como as notas musicais, sai de dentro da própria guitarra.
Em Breda-Holanda, no ano de 2006, numa rua vestida de Natal, parei espantado para
ouvir a música ambiente que vinha dos altifalantes. Até as bicicletas pararam, era a guitarra do Paredes nos 'Verdes Anos'. Inesquecível, o Natal tem destas coisas. Só faltou o teu Poema.

Abraço
Valdemar Queiroz

Hélder Valério disse...

Meus caros amigos

De facto, quando se interage, ainda se consegue "ir mais além".
Mas é o que temos....
Foi bom o "desafio" do Valdemar pois também te aqueceu a alma e "obrigou-te" a fazer esse poema.
Abraços
Hélder Sousa

Joaquim Luís Mendes Gomes disse...




Primeira nota da guitarra

Primeira nota da guitarra levada pelo vento acordou as colinas de Lisboa.
Soltou gemidos, cantou cantigas e lamentos pelos mortos de alfacinhas que se foram.
Os lembra com saudade. Lhes cobre de flores suas campas.
Cobre-se de negro porque o tempo não pode voltar atrás.

Chamas de fogo de saudade ficam a arder para sempre, enquanto as almas da gente lisboeta não esquecer os seus que já os deixaram...

ouvindo "Os Verdes Anos" por Carlos Paredes

Berlim, 2 de Novembro de 2018
7h38m
Jlmg

2 de novembro de 2018 às 08:57 Eliminar