segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Guiné 61/74 - P20334: (Ex)citações (362): Excertos do meu Diário de Pequim, ainda inédito, a propósito de Camões, Engels, de todos nós, do racismo e do colonialismo (António Graça de Abreu)

Camões
Engels
 1. Mensagem enviada pelo António Graça de Abreu, com data de 6 do corrente:


Data - Quarta, 6/11/2019 à(s) 13:15

Assunto - Do meu Diário de Pequim, ainda inédito, a propósito de Camões [, foto à esquerda], Engels (, foto à direita,],  de todos nós, do racismo e do colonialismo (*)



Excertos do meu "Diário de Pequim":

Pequim, 12 de Setembro de 1980 (**)

 (...) Entender Camões é, quatrocentos anos depois da sua morte, conhecermo-nos melhor, como cidadãos à deriva, ou de pés bem assentes na terra, no embate, no extravagante diluir pelo mundo. Vamos ver porquê.

Luís de Camões, fidalgo pobre, valdevinos, desregrado e brigão, apanhado pela engrenagem complexa da sociedade do seu tempo, participou activamente, até à exaustão, na grande aventura dos Descobrimentos Portugueses. Antes de quaisquer outros povos, os homens do Douro e do Tejo chegariam por mar, às costas de África, América, Índia e também China.

António Graça de Abreu
Aqui em Pequim encontrei alguns amigos que eram de opinião que Camões teria sido um precursor do colonialismo português. É verdade que durante o longo governo dos reaccionários Salazar e Caetano, derrubado em 1974, o poeta foi transformado numa espécie de arauto do expansionismo português. 

De facto, em Os Lusíadas, o grande poema épico da nossa língua, Camões cantou o ilustre peito lusitano e os que entre gente remota edificaram/Novo Reino que tanto sublimaram." Mas Camões também reconhece, nas últimas estrofes dos mesmos Lusíadas, que o Portugal que cantava estava metido "no gosto da cobiça e da rudeza/ duma austera, apagada e vil tristeza. Camões, profundamente humano, nunca rejeitou, antes assumiu plenamente, a contradição das palavras e da vida.

Camões é o português de corpo inteiro, aventureiro, apaixonado e triste, cavaleiro andante errando pelas mais estranhas paragens do mundo, contraditório, lapidarmente humano. É o poeta que traduz, em versos maravilha, o que de bom e de mau se conjugam no génio português. Homem do Renascimento, Camões buscou uma sociedade mais justa. Um campeão dos humildes, "um socialista antes do tempo", como lhe chamou, talvez com um certo exagero, o camonista brasileiro Afrânio Peixoto. Teve perfeito conhecimento dos males do mundo, porque os viveu, estudou e sofreu e diz:

Não me falta na vida honesto estudo
Com longa experiência misturado…


Como afirmou o prof. Rodrigues Lapa, "Camões inseriu corajosamente em Os Lusíadas alguns versos que nos asseguram uma posição político-social de cidadão vigilante:

Vejamos no canto VII de Os Lusíadas:

Também não cuideis que cante
Quem, com hábito honesto e grave, veio,
Por contentar o Rei no ofício novo
A despir e roubar o próprio povo!
Nem quem acha que é justo e que é direito
Guardar-se a lei do rei, severamente,
E não acha que é justo e bom respeito
Que se pague o suor da servil gente.


Camões, um colonialista? Se participou na grande expansão portuguesa pelo mundo, que de resto abriu caminhos ao desenvolvimento da Humanidade, isso deveu-se à dinâmica do período histórico em que viveu. Se é verdade que os Portugueses oprimiram outros povos na sequência dos Descobrimentos, Camões assumiu uma atitude crítica e não foi um elemento passivo capaz de assistir, impávido e sereno, às muitas injustiças cometidas. Se tal não tivesse acontecido, o poeta não teria morrido pobre e miserável, vivendo, praticamente, nos últimos anos da sua atribulada existência, de esmolas, de caridade, de amigos.

Como homem do Renascimento, Camões foi o poeta de um mundo novo e diferente, mais amplo, mais vasto, que então começava e se abria a todos os homens.

Na sua obra lírica, foi também o grande poeta do Amor, e da negação do Amor. Ninguém como ele, na língua portuguesa, cantou o Amor, a complexidade de quem ama e é amado, as desilusões, o sofrimento, as "memórias da alegria", essa pura paixão tão portuguesa de amar e não amar.

O jovem Friedrich Engels, companheiro de Marx, numa carta escrita a 30 de Abril de 1839 ao seu amigo Wilhelm Graeber, diz que está a estudar a língua portuguesa que "é como ondas do mar sobre flores e prados" e depois confessa-lhe que, de manhã cedo, gosta de "se sentar num jardim com  o sol batendo-lhe nas costas lendo Os Lusíadas." O que levaria Engels a gostar de Camões e de Os Lusíadas?

Um grande historiador português deste século, Jaime Cortesão, dá uma das muitas respostas possíveis:

"O português de Camões foi moldado  pelas águas e pelos ventos, foi enriquecido pelas verdades de outras gentes e alumiado pelas estrelas de todos os céus. É o português-tritão que se misturou a todas as ondas e ao amargo sargaço dos oceanos; é o português suave que se diria respirar como as velas, ao sopro perene dos alisados; é o português amoroso que lançou os fundamentos do Império no sangue de outras raças; é o português para quem o perigo é o sal da vida e todos os homens são camaradas; e a Pátria, na própria frase do poeta, é toda a Terra.".

Em Pequim, Junho de 1980, quatrocentos anos depois da morte de Luís de Camões, portugueses e chineses recordaram o grande poeta que soube moldar o génio de todo um povo nessa língua que, como escreveu Engels, "é como as ondas do mar sobre flores e prados." (...)

[Seleção e realce a amarelo e a negrito, da responsabilidade do editor LG] (***)

____________

Notas do editor:

(*) Vd.poste de 6 de novembro de 2019 > Guiné 61/74 - P20318: Historiografia da presença portuguesa em África (182): A eterna polémica sobre o racismo no colonialismo português (1) 
(**) vd. poste de 19 de abril de 2019 > Guiné 61/74 - P19698: Os nossos seres, saberes e lazeres (317): Excertos do "meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu) - Parte II: 12 de setembro de 1980: o 4º centenário da morte de Luís de Camões

(***) Último poste da série > 29 de outubro de 2019 > Guiné 61/74 - P20285: (Ex)citações (361): Do meu amigo Zé Saúde, com quem estive estes anos todos sem falar da guerra, até ao segredo dos 'Asas Brancas' de Contuboel (Manuel Oliveira Pereira, ex-fur mil, CCAÇ 3547, 1972-74)

9 comentários:

Anónimo disse...

Interessante tema.
Interessante análise.
Muito interessantes conclusões.

Sem querer ser pretensiosamente injusto “por defeito” diria:
-Graça de Abreu no seu melhor.

Um Camões que,com o avançar das idades cada vez soa mais próximo.

“E sou já do que fui tão diferente
Que,quando por meu nome alguém me chama,
Pasmo,quando conheço
Que ainda comigo me pareço “.

Abraço. J.Belo

Manuel Luís Lomba disse...

Cumpre-nos dar contraditório aos arautos da negativa (não raro pagos pela nossa República) das meias meias ou verdades incompletas que não houve Descobrimentos mas expansionismo português, que não civilizamos mas oprimimos e escravizamos, que não fizemos a ligação entre povos, culturas e economias, que não passamos duns imperialistazitos, etc.
Considerando que o Português foi a primeira Língua europeia introduzida na África, América e Ásia e que "Os Lusíadas" são o seu expoente, Luís de Camões foi o maior imperialista - de tudo isso só subsistiu a CPLP, a "pátria" de 300 milhões de falantes.
Abr.
Manuel Luís Lomba

Valdemar Silva disse...

Luis Lomba
Julga-se que Marco Polo não teria contactado em português nas suas viagens pela Ásia e Colombo não saudaria(?) em português no seu primeiro contacto com os tainos antilhanos.
Não sei se dos acompanhantes de Polo algum teria ficado pela Ásia, mas sabemos que castelhanos houve que ficaram na América.

Ab.
Valdemar Queiroz

Anónimo disse...

Quanto a ter sido o português a primeira língua europeia a ser introduzida na Ásia não se pode esquecer que tanto venezianos como genoveses por lá andaram antes das viagens portuguesas.
Mesmo os missionários jesuítas das Índias e Japão eram de origem Castelhana.
O próprio Francisco Xavier é um bom exemplo.
Mas,e tendo em conta onde “trabalhavam” há muito será de esperar que o português deles fosse quase...galego.
Quanto às Américas a esquadra Castelhana de Colombo,para além do Almirante que certamente algum português falaria,alguns marinheiros
Nacionais por lá andariam também.
Mas a esquadra (infelizmente) era Castelhana.
Tirarão estes factos o valor e importância dos contactos e influência portuguesa pelo mundo de então?
Obviamente que não.
O que levará a que alguns tenham a necessidade patológica de sempre diminuir os resultados culturais da nossa época de expansão ,sem dúvida muito mais importantes em perspectiva larga do que as curtas conveniências políticas do momento?

Mas,e sem querer deixar em mãos alheias à divulgação da nossa língua e cultura de raíz,este Lusitano/Lapao (único!) sempre que “arranca”
com o seu trenó puxado a renas exclama o tão nacional (ou será nacionalista?) :

-Arre macho!

Um abraço do J.Belo

Manuel Luís Lomba disse...

Valdemar Queiroz:
O Marco Polo (o Marco Paulo é nosso camarada e só começou a viajar após "descobrir" Bissau), o Vasco da Gama e a sua malta levaram intérpretes; mas o Marco limitou-se a viajar e a regressar a Veneza, enquanto o Vasco cuidou logo de fazer negócios e de instalar a malta de Portugal na Índia. Então a aprendizagem linguística foi mútua: os indianos foram os primeiros asiáticos a aprender Português e os portugueses foram os primeiros europeus a aprender o dialecto dos indianos.
Salvo erro ou omissão, os primeiros ocupantes desse continente foram 2 grumetes desertores que trocaram a armada de Pedro Álvares Cabral por aquelas praias tropicais e 2 degredados, que os notáveis capitães Bartolomeu Dias e Nicolau Coelho foram "instalar" no sertão baiano. E primeiro cuidado destes não terá sido a língua, mas a "invenção do mestiço - que não é feita com a língua...
Devemos "cantar e espalhar" que a onomástica "América" é mais uma entre muitas usurpações.
Dois anos antes de lá ter chegado o Pedro Álvares Cabral e muitos anos antes de lá ter chegado o Américo Vespúcio, já o sábio e explorador Duarte Pacheco Pereira havia informado D. João II que seguindo determinada corrente e latitude, conhecimento adquirido no Descobrimento da Guiné, se descobriria um "Novo Mundo". E foi o que a nossa malta daquele tempo fez.
Abr.
Manuel Luís Lomba

Manuel Luís Lomba disse...

J. Belo
Peço desculpa da omissão, mas o meu comentário é extensivo ao teu comentário. Apenas acrescento que o teu sentir de Lusitano e o teu ver de Lapão é um privilégio adquirido teu, a que acrescento de invejável, porque não acessível a qualquer um. Eu estou reduzido a sentir e a ver "à moda do Minho".
Não sou prosélito do PAN (partido político, com 3 deputados na nossa AR) ma a tua pedagogia de aproveitares o momento do stresse do arranque do teu trenó para ensinar a Língua portuguesa às renas merecerá crítica.
Abr.
Manuel Luís Lomba

Valdemar Silva disse...

Luis Lomba
Essa do mestiço não ser feito... com a língua... é um bocado… quer dizer.
Quanto ou restante comentário, com certeza que deveria ter assim acontecido. No entanto essas primeiras 'conversações' deveriam ter sido em latim que era a linguagem usual entre as classes importantes.
Não quero, de maneira nenhuma, desprestigiar os portugueses de toda aquela grande aventura dos séc. XV-XVI que tão importante foi para a humanidade.

Ab. e saúde da boa
Valdemar Queiroz

Antº Rosinha disse...

Mas quantos complexos que até confundimos viajantes e negociantes (Marco Paulo)com geógrafos, astrónomos e mareantes que mapearam meio mundo e deram-no a conhecer a toda a Europa, o tal meio mundo ao mundo, que Portugal deu.

Quem na Europa localizava geograficamente Funchal, o Cabo Horn ou Cape town? Claro que essa época foi a época dos descobrimenbtos.

Quem pensava em radicar-se na Ásia, cristianizar, ocupar, guerrear, matar e morrer, chamar seu àquilo que era dos outros? E porque não, se já se tinha feito isso em Lisboa, Ourique, em Ceuta e em Olivença?

Deu tudo em águas de bacalhau? foi um risco!

Não se pode pôr em dúvida aquilo que foi e é histórico, se foi correto e justo o que se seguiu aos descobrimentos, isso é outra conversa, mas aí já entraram potências que nos ultrapassaram,tanto na escravatura, na exploração de riquezas, na pirataria, aí acabou-se a nossa "grandeza", limitámo-nos a acompanhar de perto o que os outros "grandes"praticavam.

Agora o que é estranho, é negar o que se passou, só porque os portugueses oriundos das Ásias, África e Oceanias, julgarem-se hoje apenas de "portugueses vítimas", quando a história foi mesmo aquilo que se passou, e aquilo que hoje se passa, de bom e de mau, em tudo houve da parte de Portugal, muita cooperação dos autóctones desses mesmos povos.







Valdemar Silva disse...

Luís Lomba
..continuando
Evidentemente que os marinheiros, condenados às galés e degredados, que faziam parte da tripulação das naus, não falariam latim nem sequer um português à Fernão Lopes, mas muitas das suas palavras fazem parte, hoje, dos vários crioulos falados em vários países por onde estiveram os portugueses. Incluindo Curaçau, a ilha holandesa das caraíbas, que tem um crioulo com muitas palavras do português, por se terem fixado/fugido para lá os judeus portugueses do Recife e os seus criados, após 1640.

Valdemar Queiroz

p.s. não sei quando foi escrito o comentário anterior, mas o PAN tem 4 deputados na AR