sábado, 28 de março de 2020

Guiné 61/74 - P20784: Os nossos seres, saberes e lazeres (383): Andar por Ceca e Meca e não pelos olivais de Santarém (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 29 de Agosto de 2019:

Queridos amigos,
Nenhum de nós se pode subtrair a esta tremenda hesitação de descartar imagens das nossas viagens, seja qual for a sua dimensão, perto ou longe. É então, nesse terrível processo seletivo que a memória é sujeita à revisão daquilo que se viu e se sentiu. Feito o gosto ao mecanismo da memória, pergunta-se sempre se aquele material sobrante não deve ser entregue aos outros. E neste caso tomou-se a decisão de que aquilo que foi visto maravilhara tanto o andarilho que devia ser entregue aos seus amigos. O que ora acontece, com imensíssima satisfação.

Um abraço do
Mário


Andar por Ceca e Meca e não pelos olivais de Santarém

Beja Santos

Os andarilhos captam aqui e acolá imagens recordatórias, e quando chega a hora de rever o que se percorreu, com, onde e como, tem-se por vezes uma segunda gratificação, o prazer de ver estampado na imagem a alegria que se viveu, pormenores que se desentenderam. Por isso o andarilho vai concatenar as imagens que joeirou de várias andanças, passeios de fim de semana, por exemplo, e dá conta ao leitor, em forma de partilha, de itinerâncias que deixaram saudade, muito aprazimento, gosto de regressar. Começa-se pelo Agroal, imagine-se, a praia fluvial dos tomarenses fica na freguesia de Formigais, concelho de Ourém. É uma nascente de água muito limpinha, goza de tradições de ser curativa para várias maleitas, no caminho da praia avistam-se imagens do passado, aqui se vinha à procura de lenitivos para a saúde. Vê-se a nascente, veem-se os borbotões dos olhos de água, e tudo escorre a caminho do Nabão, afluente do Zêzere. A água é limpa mas muito fria, tendo nós de viver com o que temos, aqui as crianças saltam e pulam, há parque de merendas e restaurantes de múltiplos pitéus.





Água chama água, de praia fluvial inflete-se para outra. Chama-se Mosteiro, no concelho de Pedrógão Grande, festa rija para criançada e adultos de todas as faixas etárias, transformou-se um lagar de azeite em restaurante, a ribeira escorre em fluência, sem empecilhos, é um lugar onde se avistam três pontes, com boa vontade até se associa o quadro da paisagem a pinturas impressionistas. A ribeira de Pera irá sinuosa desembocar nas fímbrias do Penedo do Granada, mítico a vários títulos, já na correnteza de águas da Barragem do Cabril, o mesmo é dizer Zêzere a caminho de Constância.


Muda-se de azimute, vem-se até Ourém, é sempre com enorme satisfação que se contempla o paço-castelo erguido, por volta de 1450, por D. Afonso, Conde de Ourém e Marquês de Valença, filho do 1.º Duque de Bragança. Este D. Afonso prezava a sua fidalguia, levava-se muito a sério, visitou Itália, de onde seguramente trouxe referências para esta monumentalidade um tanto exótica na região. Era neto de Nuno Álvares Pereira, teve pretensões a ser O Condestável, a Coroa ignorou-o, mais tarde voltou a Itália, foi levar a infanta D.ª Leonor a casar com o imperador Frederico III. A paisagem que de aqui se avista é de estalo, as serras de Minde e de Aire parecem dali tão perto. Está sepultado na atual igreja de Ourém, a estátua jacente é verdadeiramente dramática. A quem nos lê apela-se a uma visita a este castelo cujo dono era neto de D. João I e de Nuno Álvares.



Ourém velho é riquíssimo em detalhes, e o andarilho não resistiu a este conjunto azulejar dedicado à mulher de Carlos II de Inglaterra, a tal soberana que introduziu o hábito do chá, que está imortalizada no castelo de Windsor, com toda a pompa e circunstância. Não teve feliz sina, levou dote altíssimo para o nosso velho e nem sempre fiel aliado, em moedas de ouro, com Tânger e Bombaim, viúva e sem filhos para cá regressou, quem queira ver sinais da obra que deixou passe pelo Paço da Rainha, junto à Academia Militar. Terá uma agradável surpresa.


É bem interessante verificar a crescente notoriedade da Festa dos Tabuleiros em Tomar. Uma comunidade prepara-se, labuta discretamente para que o programa das festas fascine a gente local, nacional e internacional. Na véspera do grande dia, uma multidão magnetizada percorre o casco histórico de Tomar, a arte do papel atinge aqui proporções incomparáveis, são cordames de cor intensa, que a noite aviva, não só acima das nossas cabeças, há os tapetes que parecem bordados, têm efeitos tocantes. Quem aqui se deslumbra com esta paleta de cores, este inusitado de formas está a preparar a alma para o que vem no dia seguinte, um aparatoso desfile em que o espetáculo se sujeita a múltiplas incógnitas, ali vão mordomos transportando a Coroa do Espírito Santo, impossível não questionar esta sobrevivência de devoções que extravasam a ortodoxia católica, todo aquele cerimonial tem reminiscências do passado, é mistérios e lendas. E por mais ruído que estrondeie pela cidade, até porque tudo começa com o silvo dos foguetes, é o Espírito que esmaga, é o Espírito que fica, e que preparará a nova edição. Assim se fecha este cotejo de imagens com a seguinte frase: Até à próxima.




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Nota do editor

Último poste da série de 21 de março de 2020 > Guiné 61/74 - P20756: Os nossos seres, saberes e lazeres (382): Itinerâncias pelo Sotavento Algarvio (2) (Mário Beja Santos)

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