quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Guiné 61/74 - P22774: O meu sapatinho de Natal (1): Outono, uma refexão de Francisco Baptista, ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 e CART 2732


1. Em mensagem do dia 1 de Dezembro de 2021, do nosso camarada Francisco Baptista (ex-Alf Mil Inf da CCAÇ 2616 / BCAÇ 2892 (Buba, 1970/71) e CART 2732 (Mansabá, 1971/72), enviou-nos um texto a que deu o título:

OUTONO

As notas da música caem compassadas com suavidade, sobre o meu cérebro, o meu coração já morreu por desgaste e mau uso. Música pura, sem palavras, que ameniza as adversidades e estimula a imaginação.
A estética, comum a todas as artes, cria pontes de comunicação entre elas, quando escrevo procuro muitas vezes a ajuda da música, essa arte tão universal, e tão ancestral como a linguagem. Os povos primitivos actuais e os que desapareceram dizimados pelos colonizadores fazem ou faziam sons com ritmo e harmonia, com conchas, paus, pedras, canas, outros utensílios simples e com as cordas vocais naturalmente.

O meu neto mais novo, agora com dois anos, desde muito cedo começou a tamborilar em todos os objectos disponíveis e adaptáveis que encontrava para esse efeito e a dançar ao ritmo dos sons que produzia.
Já o meu neto mais velho, quando tinha um ano, a avó deu-lhe um bombo que comprou nas festas da Senhora da Agonia, que teve que se tirar do seu alcance, porque ele não parava de batucar. Quando tinha três ou quatro anos ficava enlevado quando ouvia música clássica.

Nos meus tempos de garoto não havia rádio em minha casa, em toda a aldeia haveria rádios somente em duas casas. Alguns homens e rapazes tocavam gaitas de beiços a que chamavam realejos. Havia outros músicos, só já conheci alguns dado que a maioria era do tempo dos meus avós ou mais velhos. Tocavam guitarra, viola, violão, violinos e por vezes juntavam-se à noite a fazer "rondas" com música e cantigas, pelas ruas da aldeia.
Estive dois anos completos na Guiné, durante a vida militar, e nunca tive a sorte de assistir a um batuque africano, mais autênticos e genuínos embora menos elaborados do que os brasileiros. Buba, onde passei mais tempo, tinha uma população reduzida, vinte ou trinta milícias fulas, (tropas auxiliares), e as respectivas mulheres, nunca ouvi falar lá de qualquer cerimônia tradicional, com música e bailado.

Em Mansabá, para onde fui acabar a comissão, havia uma tabanca grande, de mandingas oingas, mas nada recordo das suas festas ou cerimônias.

Considero os povos africanos, apesar da sua pobreza, os mais felizes da Terra, porque dentro deles parece viver a melodia e o ritmo do Universo. Reparem no brilho do olhar e no gingar dos corpos das mulheres africanas, sendo mulheres mais sintonizadas com a criação e com o movimento e com o som, que o acompanha, dos astros.

Dia de outono, frio, com chuva, triste que se derrama, com neblina próxima, quase sem se mostrar. Tempo sem flores, com folhas multicolores que cobrem as árvores caducas e se vão desprendendo para atapetar o solo, ao ritmo da passagem dos dias da estação.
O tempo mudou ainda ontem era um dia de sol claro e eu sentado na esplanada deserta do Parque da Cidade, a admirar a natureza que me envolvia, que ao despedir-se do Verão, mostrava uma imagem decadente e bela.

Sempre gostei de esplanadas desertas ou não, para companhia uma bebida com espírito e a vista duma paisagem natural, com árvores, com campos, com floresta, com rio, mar por onde a vista se alonga e todo o nosso ser entra em comunhão com todos esses elementos essenciais e primordiais.
Dias curtos e claros de Outono, em que os raios solares mais oblíquos e menos fortes dão uma luminosidade mais calma e repousante a esta quadra, que em Novembro nos avivam as saudades dos nossos mortos, das festas com eles, com os magustos, em tempo frio, a descascar e comer os bilhós quentes (castanhas descascadas) à volta da lareira, nos mata-porcos com a companhia e o calor de toda a família alargada, avós, tios e primos.

Na continuação da quadra, com o frio seco do planalto, a ser combatido pelos toros da lareira, em Dezembro, entre verdades, milagres e mitos, a religião católica trazia-nos o renascimento da vida com o Natal que festejávamos como uma verdade sagrada.

Em Janeiro, a vida continuava com o mesmo ritmo, os mesmos trabalhos, com os mesmos deuses, santos e santas dos céus que nos protegiam de todos os males e que sem festejos nos davam entrada no Novo Ano, como se entrássemos na Eternidade que nos era prometida.

Bom Natal e Bom Ano Novo, a todos os camaradas e amigos!

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Nota do editor

Esta é a primeira colaboração, que se espera de muitas, deste Natal de 2021.
O mote está lançado, venham mais reflexões e histórias relacionadas com os nossos natais, seja os passados na Guiné ou os vividos em família.

1 comentário:

Fernando Gouveia disse...

Mais um bom texto, ao teu estilo, que eu muito aprecio. Continua Francisco.
Um grande abraço.
Fernando