Capa do livro "Padre Fontes, o romance de uma vida". Âncora Editora,2ª ed., 2001, 216 pp. Autor: Eugénio Mendes Pinto (com a devida vénia...) |
O Lourenço Fontes, ele próprio um Barrosão de alma e coração, começou a fazer recolhas etnográficas, desde os primeiros tempos de seminário, nos anos 50, sendo a sua própria mãe a primeira (e privilegiada) fonte de informação e conhecimento.
- Boticas: 14,5 (1960); 10,9 (1970); 5,0 (2021)
- Montalegre: 32,7 (1960); 22,9 (1970); 9,3 (2021)
Em homenagem a este homem, o Padre Fontes, e naturalmente aos demais homens e mulheres do Barroso, mal conhecido (e talvez até mal amado) damos a conhecer alguns dos seus escritos, que também falam de "coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços" (*).
Referència: FONTES, António Lourenço - Etnografia transmontana: II - O
O regedor e Junta de Freguesia são hoje as autoridades que superintendem e dão ordens ao povo. É digno de se ver e ouvir o povo junto, aos domingos e dias antes, fora da igreja e ouvir as ordens do regedor ou juntas de freguesia. Nessas ordens:
- mandam compor caminhos,
- consertar pontilhões,
- reparar moinhos, fornos.
- combinam a venda ou merca de outro boi do povo, resolvem a chega do boi com o de outra aldeia,
- marcam o dia de segar o feno do boi,
- ou outros trabalhos comuns,
- mandam abrir as regras da regra,
- avisam e dão ordens de interesse público,
- marca reuniões extraordinárias para fins utilitários.
E também os populares têm vez de dizer as suas opiniões e razões ou queixas de qualquer roubo, coisa partida, ou falta de comparência de algum favorito, nos juramentos ou coutos.
As fontes e lavadouros são para todos. Há pouco, quase ninguém tinha água ao domicílio. Todos, especialmente as moças novas, à noitinha, hora poética, iam com os canecos de lata, barro ou madeira. à fonte. Ali vinham os seus namorados conversar, ajudar alevantar o cântaro. Algumas, ao acabar de encher, vazavam-no para terem mais tempo de namorar. As mais velhas até das paredes da fonte fazem urinol, ementes ninguém vem.
Nos lavadores de água corrente e limpa:
As Mulheres quando se juntam,
Só falam da vida alheia,
Começam na lua nova,
Acabam na lua cheia (grávidas).
Nas ardenas, ou seja, quando arde a casa do vizinho, todos ajudam com caldeiras e panelas a apagar o lume. E na reconstrução, todos se cotizam.
Se prejuízo é grande, assim é a proporção da ajuda. Arde uma casa. Todos entramna sua reconstrução. conforme as posses e generosidade. Ins dão as traves, outros as ripas, a palha, outros cplmam, outros dão o vinho, etc.
Nas festas familiares ou no luto, todos são solidários. Dia de boda, todos vão a boda. Compram os homens a vitela, as mulheres os doces (Cambezes, Padroso).
No enterro, igualmente, novos e velhos vão velar o morto no dia da morte, durante a noite, em que se come e bebe. Uns vão chamar os padres, outros, pelos montes, antes de haver telefone, vão dar parte ao cangalheiro, outros vão abrir a cova. e as mulheres vão cozinhar para o forno, cozer o carolo, ou em casa, cozinhar para os padres e gente de fora da terra. Diz o povo: na morte e na boda verás quem te honra.
Se falta de um animal, cabra da vezeira, vaca, burro ou até pessoa da família, todo o povo vai pelos montes ajudar a procurar o perdido, enquanto um vai rezar o responso a Santo António para que depare as coisas perdidas e não as deixe correr perigo. Ao aparecer tocam o sino, para avisar os que andam no monte.
Quando um filho vai à inspecção e fica apurado toda a aldeia é convidada a sentir a alegria na borga, que, rua abaixo, rua acima, os apurados fazem. E na véspera de ir assentar praça, todos os vizinhos, familiares e amigos vão despedir-se dele e dão-lhe coisas ou dinheiro.
Se emigra, na despedida fazem igual, solidarizando-se na alegria e na saudade.
Alguém está doente. Antes todo o povo acompanhava quando quando ia o Senhor fora. Fazem o trabalho do doente se ele não pode.
Nos serões,ou se vai para o forno, que está a cozer, ou está ainda quente, ou para casa dos amigos ou familiares. O petról é pago por todos â vez.
Há relógios de pedra públicos. Em Pincães (Cabril) há a pedra de água. (…)
Há canelhos ou recintos públicos ao ar livre, que servem de retrete a mais de uma família.(Comua).
Há pedras de amolar e afiar instrumentos de corte, gadanhos, fouces, machadas, facas, onde toda a gente amola. Seja na pedra do tanque. do adro (Solveira). do pé do Cruzeiro (Gralhas).
Há maçadouros públicos onde todos podem maçar o linho (Tourém).
Em Vilar de Perdizes, há lagares e alambique onde alguns podem pisar o seu vinho e cozer o bagaço.
Em Fafião e Pincães há lagares do azeite para todos, assim como alambiques.
Enfim, tudo é de todos, quando a necessidade oprime. Se o vizinho tem uma vaca e precisa de outra, pede uma vaca, ou uma junta se precisa de um carro. de qualquer utensílio, o vizinho que tem, empresta.
Quando apareceram os escaravelhos da batateira, agrupavam-se vizinhos para comprar e utilizar em comum o pulverizador. Para limpar o grão, compravam em conjunto a limpaderia.
Quando o forno não cozer e a vizinha precisa do pão, vai pedir emprestado â que cozeu há pouco e depois passa a torná-lo, quando cozer,.
Se precisa de lume para acender de manhã, porque a cinza do rescaldo se apagou à míngua de lenha, vai-se pedir uma brasa ou. numa lanterna, o lume, a casa da vizinha que fumega.
Quando pare a vizinha, todas a amigas, especialmente as que foram à boda, vão nos primeiros 8 dias visitar a parturiente e levar a cesta. A cesta é a prenda que se dá: açúcar, arroz. massa, trigo, ovos, etc.
O soqueiro, o alfaiate. o carpinteiro, o colmador não eram pagos. tornavam lhe os dias em trabalhos agrícolas.
O cabeleireiro é pago em alqueires de pão por família.
Até ao médico (boticairo) se era pago em alqueires ó ano.
Quando a folha está ceibe, isto é, quando se carrou o centeio das terras, as vacas e outro gado podem pastar livremente nas terras, sejam de quem forem. A vezeira alaga paredes, come espigas que ficaram, e ninguém pode dizer olé. pois é um direito comum.
Embora a propriedade seja particular, nesta ocasião, cede ao bem de todos. Também é certo que as messes não pode de pé, a rés das vezeiras não pode pastar nessa folha, até que as carradas estejam feitas. Esta ordem de pastar, por vezes, é dada no adro da Igreja pelo regedor.
Há caminhos
e passagem comuns
Há águas de régua para lameiros de vários herdeiros, onde cada qual rega dias fixos, ou as horas marcadas Há poços e poças de vários vizinhos ou de toda a povoação. Umas são para rega, outros é proibido abrir-lhe a água com regar. São reservadas, em todo o Verão, para acudir a possíveis incêndios.
Enfim, era um rosário de aplicações do sistema comunal. se fossemos a desafiar todos os casos e momentos da vida do Barrosão.
Não serei eu o mais indicado para fazer uma observação e análise crítica e rigorosa do comunitarismo na minha terra. Vivo-o, estou impregnado dele, como quase todo o Barrosão, que ainda se não deixou dominar pelo individualismo de origem capitalista.
Por isso, é para mim anormal que, em Barroso, se não viva e pratique este modo de vida, enquanto que um estranho à terra nota estas divergências, de povo para povo.
Apesar disso, procurei abstrair de mim mesmo e da minha terra, fazendo-me estranho, para poder chegar e descrever a nossa originalidade de vida, ao nosso sistema de produção e de consumo.
In: Etnografia transmontana: II - O comunitarismo do Barroso. Montalegre(pp. 57/61)
[Seleção / fixação e revisão de texto / itálicos e negritos, para efeitos de publicação deste poste; LG. (Com a devida vénia ao autor... )]
(*) Último poste da série > 2 de novembro de 2023 > Guiné 61/74 - P24817: Coisas & loisas do nosso tempo de meninos e moços (16): O Barroso que não era(é) só a 'carne barrosã' DOP: o comunitarismo agropastoril, segundo o Padre Fontes (1977) - Parte I: do boi do povo à paulada nas chegas e nas feiras
2 comentários:
Sobre Pitóes das Júnias, leio no sítio do Ecomuseu do Barroso . Espaço Padfre Fontes
(...) Herdeira natural da velhíssima freguesia de São Vicente do Gerês, nas profundezas do rio Beredo, que recebe águas de vários ribeirinhos na montanha, Pitões é a povoação mais alta de Barroso, na cota dos 1100 metros.
Este facto contribuiu em grande medida para a elevada qualidade do presunto e fumeiro desta localidade.
Sempre foi conhecida por ser terra de gente lutadora e mesmo guerreira: não resistiu à destruição do Castelo, nem do Mosteiro, nem da sua “república ancestral” (conjunto de normas comunitárias e democráticas dos seus habitantes) mas resistiu aos Menezes, condes da Ponte da Barca, a quem um rapaz de casa do Alferes foi raptar uma filha com a qual casou; e resistiu à pilhagem e assaltos sistemáticos que os Castelhanos organizavam durante a guerra da Restauração.
Em 1665, “um grande troço de infantaria e cavalaria, sob comando de D. Hieronymo de Quiñones atacou Pitões mas não só não conseguiram queimar o povo como este lutou bravamente pondo em fuga o inimigo e sem perdas”.
Alguns dias após (com os pitonenses a ajudar, em represália) o capitão de couraças João Piçarro, com 800 infantes, atacaram Baltar, Niño d’Águia, Godin, Trijedo e Grabelos “donde trouxeram 400 bois, 1500 ovelhas e 20 cavalos”.
E resistiu ao florestamento da Mourela, com pinheiros, o que levaria à perda das suas vezeiras. Resistiram sempre e ainda bem resistem! Nesta aldeia pode visitar a corte do boi do povo, agora reconstruída como pólo do ecomuseu. (...)
https://www.ecomuseu.org/index/pt-pt/visite/freguesias/pitoes-das-junias
Náo c onfundir a !posta mirandesa" com a "carne barrosã"... O seu a seu dono...
https://carnebarrosa.com/
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