sábado, 6 de julho de 2024

Guiné 61/74 - P25721: Os nossos seres, saberes e lazeres (635): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (160): Díspares modos de ver, mimoseio para um coração feliz – Reguengo Grande, Praia da Adraga, Ofélia Marques (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Março de 2024:

Queridos amigos,
Fui ao baú buscar alguns instantâneos, explicavelmente associados a acasos felizes, um céu noturno, a quietude de uma praia caracterizada por mar revolto e assombrosos rochedos, uma exposição bem original do desenho de uma das nossas maiores artistas modernistas, Ofélia Marques. O que me deixa particularmente feliz, agora que caminho para a quarta idade, é recordar a estupefação que sempre senti pelas ilustrações de Ofélia, a graciosidade daquelas ternas juventudes, os apaziguamentos domésticos, a criança e os jogos; e depois os retratos dos adultos, da Ofélia omnipresente, e até daquela Ofélia que metia medo aos bons costumes, basta pensar que depois de Eduardo Viana ninguém se atrevia a exibir o corpo de uma mulher nua, mais a mais uma artista. Vale a pena ir conhecer esta Ofélia versátil e ensimesmada, uma menina grande, genial e provocadora.

Um abraço do
Mário



Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (160):
Díspares modos de ver, mimoseio para um coração feliz – Reguengo Grande, Praia da Adraga, Ofélia Marques


Mário Beja Santos

Por excelência, a fotografia é uma arte do acaso, incluindo estados de alma, do tempo, e daquela multiplicidade de circunstâncias que nos faz sair da contemplação e querer intervir, congelar/fixar imagens de agrado ou de embevecimento. É uma leitura estrita, confesso, durante anos interroguei-me o que levara a minha mãe a chamar um fotógrafo profissional ao velório da minha avó materna para gravar cena tão lúgubre, nunca me passara pela cabeça ter uma fotografia da minha avó morta. A explicação materna parecia incluir uma reprimenda: “Estas fotografias são para África, a minha mãe tem lá os seus parentes, quer acredites quer não eles ficarão mais satisfeitos em vê-la tal como faleceu do que eu lhes mandar uma fotografia embonecada com uma citação bíblica, quando cresceres verás o que eu estou a dizer.” Tenho para mim que não me chegou ainda a hora desse entendimento, dou-me melhor com as alegrias de certas contemplações, ainda por cima hoje tudo é facilitado pela rapidez com que utilizamos a câmara – é o que se chama o feliz acaso.

É o anoitecer no lugar do Reguengo Grande, concelho da Lourinhã, onde me sinto tão prazenteiro a olhar a terra lavrada onde crescem abóboras, favas e batatas, com fruteiras de toda a parte (ah, a maçã reguengueira, a pera rocha…). Estamos no inverno, ainda há para ali um vestígio do fim do dia, será esmagado pela nuvem gigante portadora do negrume, dentro de minutos os contornos da colina em frente de minha casa apagar-se-ão, restam aquelas lâmpadas do casario, vigilantes pela noite fora. Como gosto de escutar, noite de inverno!
A praia da Adraga fica perto de Almoçageme, esta liga com Colares, descendo, e com o Pé da Serra e Atalaia, quem sobe, abre cainho para o Cabo da Roca, Malveira da Serra, Cascais e Estoril. À hora que cheguei nada daquele mar bravio que açoita esta costa atlântica e que faz tremer os banhistas até à Foz do Arelho. Muitos pintores se sentiram atraídos por este penhasco fendido, permite a imaginação que nos leve a supor que é um elefante a viajar nas águas ou casca de oliveira milenar; não, é uma erosão que vem de tempo antiquíssimos, é, acima de tudo, uma atração da praia, daí estas duas imagens, uma mais próxima a outra mais longe.
É dia de semana, ainda é inverno, andam por aqui alguns residentes e forasteiros; se aqueles rochedos esmagam ou assombram, não menos importante é a falésia com aquela florestação rasteira, tais e tantos são os açoites do vento; há muito por onde passear e no verão, nas certezas da vazante saltita-se entre pedregulhos e rochedos e a pequenada em férias faz castelos de areia. Como são diferentes estas praias tão próximas umas das outras, mesmo acobertadas por falésias e terrenos penhascosos, não há afinidades absolutas entre a praia das Maçãs, a Praia Grande ou a Adraga. Despeço-me chamando a atenção para o pormenor de que esta senhora de cabelo ruivo dá a impressão que vai caminhar para aquela imensa montanha mágica, com a neblina turva à sua volta.
A Fundação Arpad Szenes Vieira da Silva tem patente uma exposição até 2 de junho dedicada a uma escolha de retratos do vasto acervo desta importante artista modernista deposito na instituição, é curadora do evento uma especialista em Ofélia Marques, Emília Ferreira, hoje diretora do Museu de Arte Nacional Contemporânea.
Ofélia Marques é uma das grandes artistas modernistas que se impôs nas décadas de 1930 e 1940. Acolhida com muito agrado no desenho gráfico, em livros e revistas, tendo tido um papel dinâmico e inovador na revista Panorama, ao lado do marido, Bernardo Marques, não há nenhum exagero em dizer que ela faz parte daquele elenco onde se notabilizaram Sarah Afonso, Estrela Faria, Maria Adelaide Lima Cruz, Mily Possoz, Maria Keil, que no campo das artes plásticas do modernismo foram tratadas como figuras subalternas, como ilustradoras. Ofélia impôs-se em inúmeras exposições, que permitem o confronto da sua arte caleidoscópica onde há muito mais que gatos, criançada, flores, fitas, agulhas. Foi uma retratista exímia, o que esta exposição deixa ver, no seu geral, são desenhos muito à volta de ela mesmo, uma personalidade vincada que transcende a linha expressionista, o cuidado com a coisa mundana, pouco interessada em retratos de representação social e muito menos em arranjos decorativos. Retratando-se e retratando outrem, é como se o nosso olhar oscilasse entre um espelho e uma câmara fotográfica a interrogar a geografia interior destes seus retratos, na sua generalidade não saíram de um circuito privado.
O que verdadeiramente me apaixona no desenho de Ofélia é a ambivalência entre o dado formal e a sua pujança lírica; o formal prende-se com o arquétipo da criança ou do gato em ambiente doméstico; a pulsão lírica é nos dadas pelas tensões de uma certa irregularidade do traço, olharmos para muitos destes desenhos e intuir que há algo inacabado. E temos na exposição esta formidável galeria de autorretratos, mas cuidado com o que se vê nem sempre são retratos de Ofélia, são mais encontros dramáticos entre uma certa volúpia que ela pretende desenhar e a forma estilizada, onde não falta por vezes a provocação e um certo gosto pelo escândalo. Até então, só Eduardo Viana pintara a mulher nua, Ofélia pinta três.

E, por último, há esta ritualidades do desenhar imaginário, é como se a Ofélia mulher vive no eterno retorno da sua própria imagem de mulher dá-nos a frescura da criança, por vezes em posturas lânguidas, ela que era acusada por alguns mestres de pintura de ser preguiçosa. O poeta José Gomes Ferreira, que ela retratou, dirá dela que ninguém, entre os artistas do seu tempo pintou melhores retratos de crianças. Talvez tenha faltado neste comentário do grande poeta o aditamento daquelas crianças eram uma pura reminiscência da criança que ela gostaria de ter sido para sempre.
Beatriz Costa
José Gomes Ferreira
Ofélia dentro de Ofélia
A Ofélia adulta virada para uma criança
Um retrato em que Ofélia não está ausente, atenda-se àquele laçarote icónico
Ofélia tinha uma predileção de registar ambientes domésticos, intimidades da leitura, aqui é um jovem já bem crescida, nada de laçarotes e veja-se a provocação das saias curtas.

Gostei imenso da exposição, dê por onde der hei de voltar, estes desenhos que vêm agora à luz do dia a criteriosa escolha de Emília Ferreira fazem-me considerar Ofélia Marques a detentora da varinha mágica que transmudou o modernismo em Portugal.

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Nota do editor

Último post da série de 29 DE JUNHO DE 2024 > Guiné 61/74 - P25701: Os nossos seres, saberes e lazeres (634): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (159): Na vila realenga de Belas, no termo de Sintra, já houve Paço Real, estamos perto da Venda Seca - 2 (Mário Beja Santos)

2 comentários:

Fernando Ribeiro disse...

Quem só for à Praia da Adraga e não vir o que existe ali mesmo ao lado, no alto da falésia do lado sul, não sabe o que perde. É uma beleza de tirar a respiração. Para mim, aquele é o trecho mais belo de toda a costa continental portuguesa. Nem na Costa Vicentina se encontra um trecho mais belo do que aquele que se estende da Praia da Adraga até à Praia da Ursa. Quando vivi em Lisboa, fui lá muitas vezes ao fim de semana, e iria muitas mais vezes se pudesse. Há quem vá até lá acima de carro. Quem tiver limitações físicas também deve ir lá acima, seja de carro, seja de outra maneira qualquer, mas deve ir. Juro que não se arrependerá. Juro! Passo a socorrer-me do que publicou Raul Proença há exatamente cem anos, no seu Guia de Portugal, que ainda hoje é "a" obra de referência para quem quiser viajar pelo nosso país. Começa por escrever Raul Proença, na pág. 559 do 1.º Volume (Lisboa e Arredores) do Guia de Portugal:

«Logo na fenda em que desemboca a estr., a Praia da Adraga (...), com um côncavo dourado de areia dentre dois morros formidáveis. De um destaca-se uma pedra enorme caída no mar e o outro parece um monstro petrificado. O que aqui é interessante é o contraste entre as falésias cortadas a pique e a areia onde o mar banzeiro se espraia. O que aqui é admirável é a onda dum verde translúcido, que se despedaça em rolos de escuma sobre as patas do monstro ante-diluviano. Do meio da praia a ilusão é perfeita. Vêem-se-lhe nitidamente a cabeça, os olhos, as ventas, o focinho aguçado, a boca enorme que mergulha na água - como se a fera sedenta tivesse descido há séculos da montanha e houvesse ficado ali a tragar o oceano para toda a eternidade.

«Volvendo alguns metros atrás e subindo à dir. [isto é, para sul] por uma vereda aberta num monte coberto de zimbro, achamo-nos na plataforma abrupta sobranceira ao oceano, no alto das fragas silenciosas. Ali vamos admirar um dos mais soberbos trechos que pedras e águas, no seu embate eterno, recortaram ainda em costas atlânticas. Vem primeiro, entre duas rochas enormes, talhadas a pique, a Praia do Cavalo, que dá, com todo o frisson da grandeza, a impressão de uma paisagem das Berlengas - o mesmo aspecto da falésia, a mesma pequenez da língua de areia, a mesma atracção de sonho e de mistério lá no fundo abismo temeroso e glauco. Em seguida, o chamado Fojo (...) escancara a boca hiante e negra. É um enorme funil fechado ao cimo em toda a volta, e do alto do qual nos debruçamos em vista horripilante para um medonho recesso onde as águas em fúria galgam as rochas e fazem soar um estampido de inferno. Solta-se os olhos do abismo fugindo à vertigem, e fica-se surpreendido ao ver o mar quase verde, orlado mais ao largo por uma franja de azul turmalina, enquanto do lado oposto refulge a casaria de Almoçageme, e no último plano o Castelo da Pena ergue no ar fino e transparente o seu altivo diadema. Para o norte segue a linha dourada da costa até à Ericeira, franjada de espuma, golpeada de pequenas abras e enseadas solitárias, até se fundir, ao longe, indecisa e diáfana, no azul do céu. - A poucos passos a Pedra de Alvidrar (...), imensa penedia quase a prumo (...).

(continua)

Fernando Ribeiro disse...

(continuação)

«Mas é adiante da Pedra de Alvidrar que o aspecto da costa atinge a sublimidade na decoração fantástica. Mais do que nunca também o mar é verde. Diante dos olhos extasiados recortam-se contornos cenográficos, agulhas, pináculos, castelos medievais debruçados sobre abismos, eriçados cantábricos babujados pela nívea espuma. Um dos leixões (Pedra da Ursa) ergue-se isolado no mar, e toma o feitio de uma pirâmide; outros têm formas humanas, e num deles descobre-se mesmo a cara dum gigante, com os olhos, a testa, o mento, a boca fortemente acusados; no alto de outro, finalmente, parece que poisou agora mesmo uma ave marinha, e que está à espera de desferir voo pela amplidão sem fim. À luz viva do sol, o tom branco das rochas que se pegam à terra firme dá-lhes a aparência de estarem cobertas de neves eternas. Por fim, no extremo do cenário, e quebrando-lhes talvez um pouco o encanto, um farol - o da Roca.

«Continuando a percorrer a plataforma erguida sobre as ondas, em certa altura vemos lá ao fundo um dos mais belos aspectos desta admirável sucessão de paisagens. É a Praia da Ursa. Para ir até lá, há que descer uma íngreme colina (...)»

Raul Proença passa a descrever a lindíssima Praia da Ursa, que é tão pura e virginal como se o mundo tivesse acabado de ser criado. Infelizmente, a descida a esta praia, muito íngreme e perigosa, já não é façanha para rapazes da nossa idade. Mas vale a pena olhá-la do alto da falésia. É uma vista sublime.

A Pedra de Alvidrar, de que nos fala Raul Proença, é um gigantesco paredão em rampa inclinada para o mar, que era usado no tempo dos romanos como local para julgamentos, de onde se atiravam os acusados de crimes. Se sobrevivessem, considerava-se que estavam inocentes; se não, teriam sido mesmo culpados. Que tempos bárbaros aqueles!