
Fonte: Ilustração. nº 222, ano 10º, 16 de agosto de 1935, pág. 9. (A revista, quinzenal, era propriedade da Livraria Bertrand, Lisboa; editor: José Júlio da Fonseca;) custava 5$00 um número avulso (Cortesia de Hemeroteca Digigit6al / Càmara Municipal de Lisboa)
1. Continuação da publicação da série "I Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente (Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e Angola, 10 de agosto - 4 de outubro de 1935) (*)
(...) Entre chuviscos intermitentes, aquele sábado de manhã na Feira da Ladra permitiu-me adquirir esta preciosidade, ao longo dos anos em que entabulei grande amizade com o Ruy Cinatti, este nunca me fizera referência à sua visita à Guiné e muito menos mencionara existir texto de tal viagem. A sua grande recordação fora a Ilha do Príncipe, deu-lhe fulgor para escrever uma pequena gema literária, o conto "Ossobó".
É bom recordar que este antropólogo e poeta tinha 20 anos quando escreveu estas recordações de viagem. (...)
O 1º Cruzeiro de Férias às Colónias, coordenado por Marcello Caetano, constituiu uma novidade pelo modo como se pretendia atrair a juventude aos conhecimentos das parcelas do império. Guardaram-se vários testemunhos dessa viagem em que o regime procedera a uma rigorosa seleção de universitários de elevada craveira.
Um dos escolhidos foi Ruy Cinatti (Londres, 1915- Lisboa, 1986) que se irá afirmar como grande poeta, etnólogo, antropólogo e defensor da causa timorense.
O meu livro “A Viagem do Tangomau”, arranca com um encontro em sua casa, convidar-me para jantar na véspera de eu partir para Mafra, para frequentar a recruta. Leu-me poemas de safra recente, que virão a ser publicados a título póstumo. E na correspondência que com ele troquei na Guiné, deu-me sábios conselhos, foi um lenitivo para a minha alma, daí o ter tratado sempre por “Dear father”.
Encontrei em “O Mundo Português”, revista de cultura e propaganda, arte e literatura coloniais, o seu número 24, de dezembro de 1935, o seu texto “A Mocidade Académica e o 1º Cruzeiro de Férias às Colónias”.
O resto são campos de calhaus partidos, triturados, onde a vida vegetal é impossível, porque as águas que nas épocas de chuva se despenham em torrentes pelas encostas arrastam o pouco húmus que se tenha depositado ou os materiais terrosos provenientes da desagregação da rocha.
Todos estes aspetos, geológico, climático, ausência de vegetação na maior parte das ilhas, motivada ou pela falta de chuvas ou pelo seu desperdício quando cai, conduzem à grande tragédia do arquipélago – a fome.
Em 1924, só em S. Tiago morreram à fome 20 mil pessoas. No Fogo, o colmo é arrancado das casas indígenas para ser cozido e servir assim de alimento. As crioulas levavam os filhos já mortos ao colo, iludindo os administradores, para receberem maior ração”.
E conclui:
“Foram S. Vicente e depois o Príncipe, as ilhas que, no desfilar tumultuante de visões sucessivas, mais indelével recordação deixaram no meu espírito”.
“O mar muda de cor. Já não é azul ultramarino nem azul-cobalto. As águas são barrentas, com reflexos esverdeados provenientes dos aluviões arrastados pelo Geba e outros rios. A ondulação é mínima, apenas provocada pelo deslocamento do navio.
Atravessámos o dédalo das ilhas Bijagós, cobertas de intensa vegetação verde-amarelada, que me dá uma sensação muito diferente do que eu supunha vir a encontrar.
Costas baixas, em praia, abundantes em recortes e braços de mar, prolongando-se a perder de vista, a ponto de se julgar que a vegetação nasce das águas.
Era já tarde e o sol velado pela fímbria das nuvens caminhava para o ocaso. Não bulia uma folha. Estava tudo parado, tudo embebido num banho morno.
Caminhava ao longo de uma rua de Bolama, com os muros e as casas cobertas de musgo, onde o branco da cal há muito tempo dera lugar ao cinzento esverdeado da terra e das plantas. Andava e não via ninguém. Tudo estava deserto. Só ouvia o ecoar das minhas passadas no cimento do passeio.
Envolvia-me um silêncio sepulcral. Invadia-me um aniquilamento absoluto. Qualquer coisa me amolecia, tornava mais vagaroso o andar. Com a face, com o corpo a escorrer suor, bebi grandes golos de água do cantil; quanto mais bebia mais a sede me torturava.
De repente, em poucos minutos, o céu tapou-se de nuvens; uma ligeira brisa baloiçou a folhagem dos poilões; começou a chover torrencialmente e a água, rejeitada pela terra saciada de humidade, corria em regatos para as margens lodosas do mar. Ali, refrescando a alma, refrescando o corpo com a deliciosa chuva a escorrer-me pelos cabelos e pela face, reagi.
Com outra alma, caminhei com energia, embebendo-me na paisagem tropical verde cinzenta. Nas margens do rio, onde o lodo borbulhava, o mangal de folhagem miúda muito cerrada estendia-se indefinidamente numa estreita faixa, com as raízes brutescas saindo da água.
Com o mesmo imprevisto com que tinha aparecido, as nuvens foram-se, e de novo o sol inundou a terra. Atravessei a cidade; segui por uma estrada onde, dentre o verde brilhante das bananeiras, das árvores de fruta-pão e dos poilões, surgiam as tabancas cor de argila.
Em volta, em porções de terreno sem área nem contorno definido, estendem-se as plantações de mancarra cultivada pelos negros. Grupos de indígenas, diferentes na aparência física e no vestuário, seguiam ao longo da estrada e estacionavam à porta das tabancas.
Uns, quase nus, com as costas tatuadas em relevo, com folhas de palmeira-leque e um grande cutelo nas mãos. Outros, vestidos com grandes camisas grandes que quase chegam ao chão, com o peitilho bordado e um alfange pendente a tiracolo. Mulheres, ora de tanga, ora envoltas em grandes panos, caminhavam com os filhos às costas e com grandes cabaças sobre o lenço amarelo enrolado em volta da cabeça.
Entrei numa tabanca de Fulas. Casas retangulares e circulares, o telhado de colmo estendendo-se para fora das paredes a servir de alpendre ou galeria. Sentados em volta os homens conversam, as mulheres entram e saem. As crianças brincam indiferentes ao que em volta se passa.
Lá ao longe, mas dentro da tabanca, o barulho de muita gente junta a falar atraiu-me. Fui lá.
Formando uma roda, homens e mulheres olhavam, gesticulando, o começo de um batuque. O tambor começou a suar e logo um negro despindo a camisa branca, descalçando as chinelas vermelhas, saltou para o meio, os músculos salientes a brilhar, exibindo o corpo atlético de um deus grego queimado pelo sol.
Começou a andar em volta, olhando a multidão que o cercava, saracoteando o corpo, batendo ritmicamente os pés, em flexões que iam aumentando com rapidez. Dirigiu-se às raparigas que em monte o olhavam embevecidas, num conjunto de cores em que o vermelho e o amarelo predominam.
Cantava a mesma frase com intervalos em que o som fica suspenso no ar e continuava cada vez mais excitado, na sua movimentada dança, dando saltos mortais.
De vez em quando chegava-se ao pé do tocador de tambor, dobrava-se, batendo com os dedos no chão e levantava-se em seguida bem alto, apontando para alguns dos que ali estavam. Era o desafio para a luta.
Ninguém veio. Mais alguns saltaram para o centro e com as mesmas atitudes desafiaram outros. Ninguém veio. Tudo se parecia temer. Em volta, homens e mulheres procuravam animar, batendo compassadamente as palmas, acompanhamento o canto intermitente dos lutadores. Nada conseguiram. Em breve começaram a dispersar. O sol já tinha desaparecido lançando apenas no horizonte um pálido clarão, que mais fazia realçar a beleza eternas das palmeiras.
2. Comentário do editor LG:
Mas em 1937 irá realizar-sen o I Cruzeiro de Férias dos Estudantes das Colónias à Metrópole, transportando estudantes dos liceus de Angola e Moçambique ao "Puto", e depois um outro que levou estudantes de Moçambique a Angola...
A moda do turismo colonial pegou: alguns anos depois iniciar-se-iam os cruzeiros da Mocidade Portuguesa e, posteriormente, da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT).
O ACP (Automóvel Clube de Portugal), já dera o mote, inaugurando a prática turística do cruzeiro a terras exóticas: em 11 de Julho de 1933, organizou o primeiro cruzeiro ACP a Marrocos (Tânger e Casablanca) e Madeira, a bordo do Quanza (fretado à Companhia Nacional de Navegação).
É interessante ligar turismo, crise económica dos anos 30 (que afetou duramente os colonos portugueses de Angola e Moçambique, com a quebra da procura de matérias-primas), companhias de navegação (CNN e CCN, em competição), colónias africanas (em disputa e em risco: os italianos e os alemães não viam com bons olhos os imensos territórios de Angola e Moçambique tão mal aproveitados, a par do Congo Belga...), sem esquecer o triunfo das teorias da supremacia racial, mas também a "incubação" do luso-tropicalismo de que o Marcello Caetano será um dos grandes arautos...
______________
Notas do editor LG:
2 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27379: 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente (Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e Angola, 10 de agosto - 4 de outubro de 1935), de que foi diretor cultural o jovem e brilhante professor Marcello Caetano - Parte I: um grande evento social e político
3 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27381: 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente (Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e Angola, 10 de agosto - 4 de outubro de 1935), de que foi diretor cultural o jovem e brilhante professor Marcello Caetano - Parte II: a nata do regime no cais da Fundição, à despedida
Fomos "repescar" um texto do nosso crítico literário Mário Beja Santos (ex-alf mil, Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com o título "Ruy Cinatti e uma viagem a Bolama, 1935" (**).
O Ruy Cinatti será profundamente marcado por este cruzeiro. Pode- se dizer que, de facto, foi "o cruzeiro da sua vida", sem qualquer ironia (como nós dizemos do nosso para a Guiné). De resto, ele será uma das vedetas do evento, ganhando inclusive um prémio literário pela melhor composição sobre a viagem.
O texto é antecedido da seguinte mensagem do nosso camarada e colaborador permanente, o Beja Santos, com data de 10 de fevereiro de 2016:
(...) Entre chuviscos intermitentes, aquele sábado de manhã na Feira da Ladra permitiu-me adquirir esta preciosidade, ao longo dos anos em que entabulei grande amizade com o Ruy Cinatti, este nunca me fizera referência à sua visita à Guiné e muito menos mencionara existir texto de tal viagem. A sua grande recordação fora a Ilha do Príncipe, deu-lhe fulgor para escrever uma pequena gema literária, o conto "Ossobó".
É bom recordar que este antropólogo e poeta tinha 20 anos quando escreveu estas recordações de viagem. (...)
Caoa da revista "O Mundo Portuguès"
"Ruy Cinatti, um dos participantes do 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente, dá-nos a suas impressões de uma viagem ao Mindelo e a Bolama, em agosto de 1935"
por Mário Beja Santos
![]() |
| Ruy Cinatti, pintado pela Maluda (cortesia de Mário Beja Santos) |
Um dos escolhidos foi Ruy Cinatti (Londres, 1915- Lisboa, 1986) que se irá afirmar como grande poeta, etnólogo, antropólogo e defensor da causa timorense.
Tive o privilégio de receber alguns dons da sua amizade benfazeja. Conheci-o quando era membro da direção do jornal “Encontro”, a publicação da JUC – Juventude Universitária Católica, em 1966, fui pedir-lhe um poema, ofereceu-nos “O cego”, o primeiro dos seus “Sete septetos”, livro que viria a ser premiado com o Prémio Nacional de Poesia.
O meu livro “A Viagem do Tangomau”, arranca com um encontro em sua casa, convidar-me para jantar na véspera de eu partir para Mafra, para frequentar a recruta. Leu-me poemas de safra recente, que virão a ser publicados a título póstumo. E na correspondência que com ele troquei na Guiné, deu-me sábios conselhos, foi um lenitivo para a minha alma, daí o ter tratado sempre por “Dear father”.
Encontrei em “O Mundo Português”, revista de cultura e propaganda, arte e literatura coloniais, o seu número 24, de dezembro de 1935, o seu texto “A Mocidade Académica e o 1º Cruzeiro de Férias às Colónias”.
Chamou-me à atenção, na chegada a S. Vicente, a descrição crua que nos faz da vida dolorosa do cabo-verdiano:
“A vegetação em S. Vicente está reduzida a pequenos oásis de verdura – as ribeiras – regiões sobrejacentes aos leitos de ribeiras subterrâneas, onde se desenvolvem plantas dos climas quentes, e a pequenas extensões de vegetação arbórea cuja ramaria, passada certa altura, se estende, se inclina horizontalmente, se prostra ante a fúria niveladora do vento do deserto, que sibila, que ecoa doidamente nos recôncavos da rocha.
“A vegetação em S. Vicente está reduzida a pequenos oásis de verdura – as ribeiras – regiões sobrejacentes aos leitos de ribeiras subterrâneas, onde se desenvolvem plantas dos climas quentes, e a pequenas extensões de vegetação arbórea cuja ramaria, passada certa altura, se estende, se inclina horizontalmente, se prostra ante a fúria niveladora do vento do deserto, que sibila, que ecoa doidamente nos recôncavos da rocha.
O resto são campos de calhaus partidos, triturados, onde a vida vegetal é impossível, porque as águas que nas épocas de chuva se despenham em torrentes pelas encostas arrastam o pouco húmus que se tenha depositado ou os materiais terrosos provenientes da desagregação da rocha.
Todos estes aspetos, geológico, climático, ausência de vegetação na maior parte das ilhas, motivada ou pela falta de chuvas ou pelo seu desperdício quando cai, conduzem à grande tragédia do arquipélago – a fome.
Em 1924, só em S. Tiago morreram à fome 20 mil pessoas. No Fogo, o colmo é arrancado das casas indígenas para ser cozido e servir assim de alimento. As crioulas levavam os filhos já mortos ao colo, iludindo os administradores, para receberem maior ração”.
E conclui:
“Foram S. Vicente e depois o Príncipe, as ilhas que, no desfilar tumultuante de visões sucessivas, mais indelével recordação deixaram no meu espírito”.
O vapor "Moçambique", da CNN, ao largo de Bolama > Agosto de 1935
Foto: "O Mundo Português", vol II, nºs 21-22, setembro-outubro de 1935
(Exemplar pessoal de Mário Beja Santos; digitalização e edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné) (*)
E assim chegaram à Guiné, registará a sua viagem a Bolama:
“O mar muda de cor. Já não é azul ultramarino nem azul-cobalto. As águas são barrentas, com reflexos esverdeados provenientes dos aluviões arrastados pelo Geba e outros rios. A ondulação é mínima, apenas provocada pelo deslocamento do navio.
Atravessámos o dédalo das ilhas Bijagós, cobertas de intensa vegetação verde-amarelada, que me dá uma sensação muito diferente do que eu supunha vir a encontrar.
Costas baixas, em praia, abundantes em recortes e braços de mar, prolongando-se a perder de vista, a ponto de se julgar que a vegetação nasce das águas.
Era já tarde e o sol velado pela fímbria das nuvens caminhava para o ocaso. Não bulia uma folha. Estava tudo parado, tudo embebido num banho morno.
Caminhava ao longo de uma rua de Bolama, com os muros e as casas cobertas de musgo, onde o branco da cal há muito tempo dera lugar ao cinzento esverdeado da terra e das plantas. Andava e não via ninguém. Tudo estava deserto. Só ouvia o ecoar das minhas passadas no cimento do passeio.
Envolvia-me um silêncio sepulcral. Invadia-me um aniquilamento absoluto. Qualquer coisa me amolecia, tornava mais vagaroso o andar. Com a face, com o corpo a escorrer suor, bebi grandes golos de água do cantil; quanto mais bebia mais a sede me torturava.
De repente, em poucos minutos, o céu tapou-se de nuvens; uma ligeira brisa baloiçou a folhagem dos poilões; começou a chover torrencialmente e a água, rejeitada pela terra saciada de humidade, corria em regatos para as margens lodosas do mar. Ali, refrescando a alma, refrescando o corpo com a deliciosa chuva a escorrer-me pelos cabelos e pela face, reagi.
Com outra alma, caminhei com energia, embebendo-me na paisagem tropical verde cinzenta. Nas margens do rio, onde o lodo borbulhava, o mangal de folhagem miúda muito cerrada estendia-se indefinidamente numa estreita faixa, com as raízes brutescas saindo da água.
Com o mesmo imprevisto com que tinha aparecido, as nuvens foram-se, e de novo o sol inundou a terra. Atravessei a cidade; segui por uma estrada onde, dentre o verde brilhante das bananeiras, das árvores de fruta-pão e dos poilões, surgiam as tabancas cor de argila.
Em volta, em porções de terreno sem área nem contorno definido, estendem-se as plantações de mancarra cultivada pelos negros. Grupos de indígenas, diferentes na aparência física e no vestuário, seguiam ao longo da estrada e estacionavam à porta das tabancas.
Uns, quase nus, com as costas tatuadas em relevo, com folhas de palmeira-leque e um grande cutelo nas mãos. Outros, vestidos com grandes camisas grandes que quase chegam ao chão, com o peitilho bordado e um alfange pendente a tiracolo. Mulheres, ora de tanga, ora envoltas em grandes panos, caminhavam com os filhos às costas e com grandes cabaças sobre o lenço amarelo enrolado em volta da cabeça.
Entrei numa tabanca de Fulas. Casas retangulares e circulares, o telhado de colmo estendendo-se para fora das paredes a servir de alpendre ou galeria. Sentados em volta os homens conversam, as mulheres entram e saem. As crianças brincam indiferentes ao que em volta se passa.
Lá ao longe, mas dentro da tabanca, o barulho de muita gente junta a falar atraiu-me. Fui lá.
Formando uma roda, homens e mulheres olhavam, gesticulando, o começo de um batuque. O tambor começou a suar e logo um negro despindo a camisa branca, descalçando as chinelas vermelhas, saltou para o meio, os músculos salientes a brilhar, exibindo o corpo atlético de um deus grego queimado pelo sol.
Começou a andar em volta, olhando a multidão que o cercava, saracoteando o corpo, batendo ritmicamente os pés, em flexões que iam aumentando com rapidez. Dirigiu-se às raparigas que em monte o olhavam embevecidas, num conjunto de cores em que o vermelho e o amarelo predominam.
Cantava a mesma frase com intervalos em que o som fica suspenso no ar e continuava cada vez mais excitado, na sua movimentada dança, dando saltos mortais.
De vez em quando chegava-se ao pé do tocador de tambor, dobrava-se, batendo com os dedos no chão e levantava-se em seguida bem alto, apontando para alguns dos que ali estavam. Era o desafio para a luta.
Ninguém veio. Mais alguns saltaram para o centro e com as mesmas atitudes desafiaram outros. Ninguém veio. Tudo se parecia temer. Em volta, homens e mulheres procuravam animar, batendo compassadamente as palmas, acompanhamento o canto intermitente dos lutadores. Nada conseguiram. Em breve começaram a dispersar. O sol já tinha desaparecido lançando apenas no horizonte um pálido clarão, que mais fazia realçar a beleza eternas das palmeiras.
Em redor os homens, sentados à porta das cubatas, lavavam os pés, preparando-se para a oração muçulmana”.
Ruy Cinatti escreve este texto com 20 anos. Chamou-me à atenção a dedicatória que ele apõe:
Ruy Cinatti escreve este texto com 20 anos. Chamou-me à atenção a dedicatória que ele apõe:
“Para o muito caro José Vaz Pinto, esta recordação do nosso cruzeiro de maravilha com a amizade de Ruy Cinatti Vaz Monteiro Gomes. Janeiro de 1936”.
(Revisão / fixação de texto, título: LG)
(Revisão / fixação de texto, título: LG)
Este foi, de facto, o primeiro e único cruzeiro de férias às colónias, com direção cultural de Marcello Caetano, que exercerá mais tarde o cargo de ministro das colónias (1944/47), depois de ter sido comissário nacional da Mocidade Portuguesa (1940/44).
A moda do turismo colonial pegou: alguns anos depois iniciar-se-iam os cruzeiros da Mocidade Portuguesa e, posteriormente, da Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT).
O ACP (Automóvel Clube de Portugal), já dera o mote, inaugurando a prática turística do cruzeiro a terras exóticas: em 11 de Julho de 1933, organizou o primeiro cruzeiro ACP a Marrocos (Tânger e Casablanca) e Madeira, a bordo do Quanza (fretado à Companhia Nacional de Navegação).
É interessante ligar turismo, crise económica dos anos 30 (que afetou duramente os colonos portugueses de Angola e Moçambique, com a quebra da procura de matérias-primas), companhias de navegação (CNN e CCN, em competição), colónias africanas (em disputa e em risco: os italianos e os alemães não viam com bons olhos os imensos territórios de Angola e Moçambique tão mal aproveitados, a par do Congo Belga...), sem esquecer o triunfo das teorias da supremacia racial, mas também a "incubação" do luso-tropicalismo de que o Marcello Caetano será um dos grandes arautos...
«
Vd. Silva, Maria Cardeira da, et Sandra Oliveira. « Paquetes do Império ». Castelos a Bombordo, édité par Maria Cardeira da Silva, Etnográfica Press, 2013, https://doi.org/10.4000/books.etnograficapress.347.______________
Notas do editor LG:
(*) Vd. postes anteriores da série
4 de novembro de 2025 > Guiné 61/74 - P27386: 1º Cruzeiro de Férias às Colónias do Ocidente (Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e Angola, 10 de agosto - 4 de outubro de 1935), de que foi diretor cultural o jovem e brilhante professor Marcello Caetano - Parte III: um documentário de hora e meia, que diz muito (até pelo que omite) sobre o que era o "ultramar português" há 90 anos
(**) Vd. poste de 8 de maio de 2017 > Guiné 61/74 - P17331: Notas de leitura (954): Ruy Cinatti e uma viagem a Bolama, 1935, em “O Mundo Português”, revista de cultura e propaganda, arte e literatura coloniais, o seu número 24, de Dezembro de 1935 (Mário Beja Santos)





5 comentários:
Tal como o Rui Cinatti, o Orlando Ribeiro e outros, também nós fomos (e continuamos a ser) "luso-tropicalista".
Os ingleses, esses, eram simplesmente africanistas.
Todos estes chavões são de uma enorme ambiguidade...
Rosinha, o "Botas" pagou uma nota preta e não foi no cruzeiro. Mandou o delfim dele... O Ministério das Colónias deu um subsídio para financiar esta dispendiosa viagem de 56 dias... Mas, afinal, foram só cerca de 70 estudantes... O resto (dos 200 passageiros) eram "penduras" (famílias, funcionários públicos, professores...).
150 contos (em 1935)= 1 milhão de euros a preços de hoje. Muita massa.
O realizador do documentário, San Payo, foi também um dos grandes animadores a bordo.
Rosinha, Angola é a tua praia. Eu só conheço Luanda e o Mussulo e mal. Continua a comentar o filme. Mas não é te esqueças que já tem 90 anos.
Rosinha, só para relembrar o resumo análitico do documentário:
até 8' > Lisboa (despedida e partida do navio); viagem até Cabo Verde
8' - 23' > Cabo Verde (Mindelo, Praia, interior)
23' - 37' > Guiné (Bissau e Bolama)
37' - 46' > São Tomé e Príncipe (c/ visita a uma roça)
46' - 91' > Angola (Luanda, rio Dande, Catete, Dalatando, Casengo, Porto Amboim, Gabela, fazenda de café, Lobito, caminho de ferro de Benguela, empresa de Cassequel, Catumbela, Ganda, Moçamedes, foz do rio Bero, regersso a Luanda, minumento aos mortos da Grande Guerra, batuques, desfile)
Enviar um comentário