quinta-feira, 2 de junho de 2005

Guiné 63/74 - P38: Afinal, onde ficava Geba? (2) (Marques Lopes)

Texto de A. Marques Lopes, ex-alferes milciano da CART 1690 (Geba, 1967/1969), actualmente coronel (DAF) na situação de reforma:

Geba existe e está, de facto, quase completamente abandonada. Estive lá em 1998. Mas não deu para tirar fotografias (só uma ou duas). Mas ainda tem habitantes, embora poucos.

As instalações militares do tempo da guerra colonial, essas, estão em completa derrocada. Situam-se no morro existente a um quilómetro do lado direito (de quem está virado para o rio Geba) da povoação. Tinham acabado de ser construídas quando a CART 1690 lá chegou, em Abril de 1967. Mas o comando da companhia situava-se mesmo na povoação.

Na Bíblia, Geba era uma cidade da antiga Palestina, situada a 8 km de Jerusalém, local onde Jonatan derrotou os filisteus. Ainda hoje existe esse local e está na zona da Autoridade Palestiniana. Será que o nome vem daí? Não me admira, dado que, quando os portugueses chegaram à Guiné no séc. XVI, já essa terra estava islamisada. Geba, juntamente com Cacheu e Ziguinchor, foi o berço do crioulo falado na Guiné. Procurem neste link http://www.unb.br/ics/dan/Serie154empdf.pdf o que foi Geba nos séculos passados.

A jornalista Diana Andringa esteve há anos em Geba e fez um filme que me ofereceu. Emprestei-o a um ex-camarada de armas e ainda estou à espera da devolução... Mas vou insistir com ele e pode ser que consiga tirar desse filme algumas imagens relativamente recentes sobre Geba.

Abraços.
A. Marques Lopes

terça-feira, 31 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P37: Afinal, onde ficava Geba? (1) (Marques Lopes)

1. Segundo uma oportuna mensagem enviada por Fernando Rodrigues Junqueiro, Geba ficava a oeste de Bafatá, a 12 km de distância. Em Abril de 1997, quando o nosso amigo Fred por lá passou, Geba, o antigo entreposto comercial português, era um monte de ruínas.

E as instalações militares ? Será que estamos a falar da mesma Geba, a tal povoação que supostamente não vem nos mapas e que era a sede da CART 1690, a companhia do Alferes Lopes e de outros camaradas que conheceram o inferno de Cantacunda, Banjara, Sare Gana, Sare Banda, Sinchã Jobel e outros sítios de má memória do subsector de Geba (que no meu tempo pertencia ao Sector L2 / Zona Leste, e que incluía Contuboel, um paraíso, pelo menos no tempo que lá estive: Junho/Julho de 1969)?

Viagem à Guiné-Bissau > Abril de 1977 > Bafatá & Interior:


"Bafatá é a segunda maior cidade da Guiné-Bissau com 10.000 habitantes. Fica no interior do país na margem do Rio Geba, 150 kms a leste de Bissau. Bafatá é uma cidade surpreendentemente tranquila, caracterizada por uma predominância de edifícios e casas coloniais, infelizmente num estado avançado de degradação. O herói nacional, Amílcar Cabral, nasceu em Bafatá e esse facto está assinalado num pequeno monumento com o seu busto e na casa onde nasceu, perto do Mercado Central. A cidade fica numa colina sobre o Rio Geba. 12 kms a oeste ficam as ruínas de Geba, um antigo entreposto português".

2. Como se pode ver pelo mapa da Guiné Portugesa, carta de Bambadinca (Escala 1/50.000), dos Serviços Cartográficos do Exército (1955),a povoaço e entreposto comercial de Geba fica a norte do Rio Geba (ou Geba Estreito), antes de Bafatá.

Agradeço ao meu amigo e ex-camarada de armas Humberto Reis a gentileza da oferta de fotocópias de diversas cartas da Zona Leste da antiga Guiné Portuguesa (Xime, Xitole, Contabane, Bambadinca, Bafatá, Contuboel, Duas Fontes), além da Carta da Província (1961). Foram estas famosas cartas, para além dos guias locais, que nos ajudaram a encontrar o caminho... de regresso a casa!

Fica aqui também a minha modesta homenagem a portugueses ilustres como Avelino Teixeira da Mota (1920-1982) que dedicou uma parte da sua vida à etnografia e à cartografia da Guiné.

Em mapas actuais da Guiné-Bissau, como o que consta por exemplo no sítio da OMS, Geba figura ainda, claramente, como localidade, devido em parte à sua importância histórica, cultural e económica, no passado.

segunda-feira, 30 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P36: Na bolanha dá para pensar... (Marques Lopes)

1. Os meus parabéns ao A. Marques Lopes pelo seu belíssimo texto que eu encontrei no sítio do Didinho e que já havia divulgado, neste meu/nosso blogue, através da indicação de um link…

Mal o descobri, logo achei que ele merecia outro destaque, partindo do princípio de que o seu autor iria autorizar-me a sua reprodução. Tinha desafiado o Marques Lopes a, num dia destes, explicar-nos o texto e o seu contexto: as circunstâncias, o dia, a hora, o local, a operação, que o levaram a escrever esta peça, de grande tensão dramática mas também de fino humor...

Ele acabou por desvendar o mistério, descrevendo-nos as circunstâncias (diria que insólitas, quiçá caricatas e até burlescas, se não tivesse sido tão dramáticas) em que se perdeu no mato e descobriu, atónito, a base do IN em Sinchã Jobel, no decurso da Operação Jigajoga, na noite de 24 para 25 de Junho de 1967 (vd. poste anterior).

É um texto de uma grande riqueza humana e de excelente recorte literário... Um texto de cortar a respiração, ao reconstruir o inferno da guerra, o infermo físico e psicólogico daquela guerra, ao mostrar o absurdo daquela guerra e das raus razões de Estado...Fiquei com a ideia de que, mais do que uma simnples página de um diário, poderia ser o excerto de um livro em curso. Um daqueles livros que se vai construindo na cabeça de cada combatente da guerra colonial na Guiné, depois de passar à peluda. Um livro que todos nós, um dia, gostaríamos de escrever e de publicar. Ou de ter escrito e de ter publicado. Um livro que gostaríamos de dar a ler, porventura com secreto prazer mas seguramente com reserva e pudor, à nossa companheira, aos nossos filhos e netos, aos nossos pais, aos nossos irmãos e e aos nossos amigos, e até aos poucos companheiros da nossa geração que não foram à guerra. Talvez um livro, ou talvez apenas um conto, um conto de guerra, em todo o caso a merecer antologia...

Espero que o nosso ex-camarada de armas continue a escrever, sobre a sua experiência militar e humana na Guiné, que foi tão rica e que lhe deixou marcas no corpo e na alma. Tudo indica, pelo que já sei dele, que foi um grande operacional e um grande sortudo, apesar de tudo. Como todos nós, que regressámos do inferno e ainda estamos vivos para contar, aos vivos, o que um homem é capaz de sentir, pensar e fazer numa situação-limite como a guerra, como aquela guerra. Pelo menos no dia 25 de Junho de 167, de manhã, na região de Sinchã Jobel, o Alferes Lopes regressou do mundo dos espíritos da floresta, e disse: "É tão bom estar vivo e saber onde estou e o que quero! Bem, Braima, rapaziada, toca a sair daqui".

Faço votos para que O A. Marques Lopoes continue a escrever, para ele, para nós e para todo o universo dos falantes da língua portuguesa, agora que, terminada a sua carreira militar, ele está, presumo, mais livre ou se sente mais livre para o fazer... Porque talento de escritor e matéria-prima não lhe faltam. L.G.

2. Na bolanha dá para pensar... (A. Marques Lopes, 2005)

(Originalmente publicado, em 13 de Fevereio de 2005, na página pessoal do guineense Fernando Casimiro, o Didinho)

Bonito! Os outros foram-se embora e aqui estamos, meia dúzia de mecos, no meio da bolanha. Tenho cada ideia, ás vezes... esta, então, de escolher a bolanha para descobrir se eles têm aqui uma base é do caraças. Que havia de fazer?... eles não nos deixaram aproximar mais por outro lado... O que vale é que não perdi o quico. Sempre me dá jeito e vou já mergulhá-lo na água, para ficar com as ideias mais frescas... Sabe di más!... Como é que eu não perdi o raio do quico no meio desta baralhada toda?!... Tem estado agarrado à minha cabeça como qualquer coisa que é parte integrante de mim mesmo... mas não é, claro. No entanto, tenho-o enfiado na cabeça de tal modo que mais parece o contrário, parece que faz parte de mim.

Tenho que pensar para ver como nos vamos safar daqui. Por agora, é de aguentar. Aqueles gajos continuam a andar por aí, que eu bem os oiço, mas não os vejo, no meio destas cortinas de capim. Se eu não os vejo, eles também não me vêem a mim... mas, é melhor não me armar em avestruz e pôr-me mas é a pau! Há barulho de passos no carreiro e na clareira e oiço cortar ramos e bater no chão. Estão a montar armadilhas, com certeza. Com uma base aqui, era o que eu faria também, para prevenir novas aproximações. Não são parvos, não senhor... e isso não me ajuda nada, pois estou a sentir-me cada vez mais entalado. Mesmo que se vão embora daqui a bocado, não me atrevo a meter-me por esses caminhos. É mais que certo que vou topar com uma armadilha, e não me agrada nada... se não lerpei até agora, não será por minha vontade que isso vai suceder daqui para a frente.

É evidente que eles não podem armadilhar toda a zona... têm de garantir o regresso do grupo que foi até à margem do rio Gambiel. Deve haver, evidentemente, um caminho não armadilhado... mas como vou adivinhar qual é? Não me atrevo a voltar por aqueles que conheço, por onde vim até aqui, pois esses estão-no, com certeza... porque são os mais evidentes. Posso procurar outros... mas quem me garante que não vou pisar uma puta duma bailarina? Não me arrisco. Tenho de pensar noutra maneira de sair daqui. Mas como?... só se me armar em Tarzan de árvore em árvore, agarrado às lianas... Havia de ter piada!... De qualquer modo, nem isso pode ser, pois lianas... cá tem. Não vi lianas em lado nenhum deste matagal. Nos filmes é que elas estão ali, mesmo à mão de semear, no sítio exacto e necessário. Mas aqui, de facto, não há nada no seu lugar devido, para me facilitar a vida.

Já lá vai o tempo em que as coisas para mim eram fáceis. Em termos de garantia de subsistência, em termos de programação de vida. Quando eu estava nos padres. Tinha tudo. Pequeno almoço, almoço e jantar a horas certas, brincadeiras e estudos programados e dirigidos. Havia, apenas, que cumprir o regulamento e ser piedoso. Mas tinha um grande contra para mim: não se podia cometer pecados.

(...) Não vou, agora, pensar nessas coisas, senão ainda me ponho aqui a rezar em vez de puxar pela cabeça e ver se nos safamos... O mapa, o mapinha que trago sempre comigo quando venho para estas coisas! Sou um gajo cumpridor das regras...Goza, goza, mas o facto é que o mapa me vai fazer jeito. Braima, dá-me aí o mapa. Sare Ganá... Sinchã Sutu aqui... a picada para sul e, aqui à direita, o desvio de Sare Madina... mais à frente... aqui está Sucuta, a bolanha e o rio Gambiel... que atravessámos com cuidado, por cima do troco submerso... avançámos por este carreiro... e aqui está Jobel... Sinchã Jobel, como vem aqui no mapa!... Aqui, no extremo da clareira, foi a emboscada... e cá está assinalado o palmeiral e, ao lado, a bolanha onde... por aqui, mais ou menos... estou com o cú de molho!... E estou mesmo todo encharcado, pés, botas, calças... Debaixo deste sol, o melhor seria estar só com a cabeça de fora, como as rãs. Mas não pode ser. Já não é mau ter o material ao fresco.

A nossa posição, pelo que estou a ver no mapa, não é famosa. A bolanha, que deve ter servido para as culturas de arroz de Jobel, vai até ao rio Gambiel, formando no encontro com ele um ângulo recto. Portanto, segue paralelamente ao caminho por onde vim para chegar ao local da tabanca. Esta bolanha é uma espécie de braço do rio na época das chuvas, mas na época seca tem mais capim que água. Está à vista. Assim sendo, e se estou a ver bem, se regressarmos ao longo e por dentro da bolanha, vamos ter a umas centenas de metros mais a norte do sítio onde atravessámos o rio. E tem mesmo de ser assim. Não vejo outra alternativa mais segura. E também me parece que, se o local de atravessar o rio era aquele que me indicou o guia quando viemos para cá, é porque não havia outro mais acima. Não, não estou disposto a correr o risco de atravessar noutro sítio que não seja o que já conheço. Esta bolanha não a conheço e não tenho, portanto, outra alternativa senão ir por ela, com cuidado, só se tiver azar é que vou cair nalgum buraco. Mas, quando chegar ao rio, já sei que há um lugar seguro para passar, Sucuta. Temos de descer até lá. Um rio não é uma bolanha, para se ir assim à aventura.

Tem que ser. Descemos a bolanha até ao rio e vamos passá-lo no mesmo sítio da vinda. O problema é que, se nos pomos agora a andar pela bolanha abaixo, caçam-nos que nem patos na água. Topam-nos no meio e é só apontar calmamente. Quer dizer que não posso largar daqui em pleno dia. Não tropeço numa mina nem caio num buraco, mas o mais certo é não dar dois passos sem levar uma rajada nas costas. Merda! Será que tenho mesmo de fazer isto à noite, cair num buraco e enfiar-me pelo rio dentro?... Puta de vida! Mas, não, não posso estar condenado, tem de haver uma saída. Deixa pensar mais um bocado. Vou refrescar os miolos outra vez... mais uma chapelada de água... Parece sopa, mas é mesmo boa! A vantagem de ter abancado neste charco é que tenho água para me refrescar, quanta quiser.

(...) A única possibilidade que temos de nos safar daqui é arrancar amanhã muito cedo. Às 5,30 já se começa a ver alguma coisa. Já podemos ir vendo onde pôr os pés e orientar-nos... além de que, segundo dizem os manuais, as sentinelas têm tendência para abrandar a vigilância pela madrugada e deixarem-se adormecer antes de despontar a aurora... Terá de ser nessa altura que vamos desandar daqui p´ra fora. E oxalá os gajos não tenham lido os manuais também!...

(...) Que calor infernal faz aqui no meio do capim! O sol e o ar quente entranham-se por entre os caules e permanecem também eles poisados sobre a água. Não há a mais leve aragem. A estagnação é total, na água e no ar. Afinal, não é nada bom estar aqui de molho... As rãs devem sentir-se melhor, com certeza, mas eu mais pareço uma azeitona em água parada, opaca e gordurosa. Começo a ter sede. Não trouxe o cantil, pois não contava com esta variante no programa das festas. A estas horas já eu devia estar a comer um bom bife de vaca, isto é, um bife dos cornos da vaca... nesta terra parece que não há carne tenra. De qualquer modo, com batatas fritas e empurrado com cerveja, com muita cerveja, não há nada que não entre pelas goelas adentro. E cerveja não falta para a tropa. Valha-nos isso... Afinal, lamento-me com sede, mas estou rodeado de água por todos os lados, como as ilhas. É só enfiar a cabeça no charco e abrir as goelas... Mas há por todo o tipo de bicharada. Eu seja cão se vou beber esta porcaria. Prefiro beber mijo.

Há vozes e barulho. O IN continua por aqui, a rebuscar no mato e a montar armadilhas. O tipo que eu vi com um penso no braço e companhia não vão largar tão cedo. Devem estar bastante confiantes, uma vez que não largam este sítio e não se preocupam com o barulho que fazem. Devem ter montado uma sentinela do lado de cá do rio. Sabendo de qualquer avanço, poderão organizar a defesa ou montar emboscadas com facilidade e segurança. Este local é de acesso muito difícil. Segundo o mapa, só de um lado é que não está cercado de matagal. É o lado da bolanha e do rio. E mesmo este é um bom bico d'obra. Tenho de aguentar e ver, pois eles não estão com vontade de se ir embora.

Relax e esquece o IN... O IN! Toda a gente usa isto. É mais fácil dizer IN do que "inimigo". Acho que é por isso que usamos estas abreviaturas... No entanto, tornando mais fácil a referência àqueles ou àquele de quem falamos, o "in" e o "turra" são, de facto, expressões meramente referenciais e sem o significado profundo contido nas palavras "inimigo" e "terrorista". Se não abreviasse, é claro que eu acabava por me cansar a pronunciar as palavras por inteiro. Passaria, enfim, a tratá-los com demasiada familiaridade, teria que me arrimar aos inevitáveis "os gajos", ou "os tipos" ou mesmo "os filhos da puta". Era tratá-los como trato, às vezes, os que me são indiferentes, os que me pisam ou dão um empurrão... Isto seria, seguramente, o abandalhamento da guerra. Em vez de balas a malta começava a amandar-lhes com nomes feios, a gritar-lhes que fossem levar no olho, que não chateassem, que nos deixassem em paz... Era complicado. Não havia guerra que durasse. Poderia ser uma das consequências, resultante do cansaço pelas palavras difíceis e compridas demais para inserir na linguagem corrente da soldadesca. E poderia dar noutra coisa, se o maralhal não usasse profusamente estas abreviaturas: ao pronunciar por inteiro as palavras "inimigo" e "terrorista" é natural que começássemos a interrogar-nos sobre a correspondência entre o significado e o significante... Ai estas aulas de Linguística!... O que é isso de "inimigo"? Aqui, na terra deles, são eles meu inimigo?... Atacam-me para me roubar, para ficar com o que é meu?... Têm interesses opostos aos meus e atacam-me, por isso?... Para eles, sou eu o inimigo? Venho roubar o que é deles? Tenho interesses opostos aos deles?... Claro, cinco séculos de história, civilização, blá, blá, blá..., como diz o Salazar. O facto é que isso se traduz nos libaneses a dominar o comércio, no nazi Landorf, fugido da Alemanha depois da guerra, a vender quinquilharias aos pretos de Geba. Eu, aqui, só estou a perder uma coisa: o curso de Filologia Românica que estes filhos da puta não me deixaram continuar. ... Não me parece que o "in" seja meu "inimigo". Eu sou, com certeza, o "inimigo" deles. Linguística à parte, isto é mesmo uma situação aberrante.

(...) Há pouco, quando os vi ali todos juntos, ainda pensei em disparar. Acabei por não o fazer e acho que fiz bem. É claro que eles devem ser muitos mais do que os que andam por aqui... E, sei lá, disparar, assim à queima-roupa sem que eles esperassem, sem mais, ainda era capaz de ficar com algum peso na consciência... Os meus anseios nunca foram matar. Só por medo o faria, por necessidade, pela situação. Tenho encarado isto como uma aventura. A verdade é que nunca desejei vir para a guerra. Se me tivessem dado o adiamento da incorporação, estaria, agora, a terminar o segundo ano de Românicas. Eu até gostava daquilo. Mas aos senhores da guerra não interessam os doutores em Letras. Se eu estivesse em Engenharia ou Medicina, isso sim... há sempre pernas e braços para cortar, certidões de óbito para passar, há que fazer quartéis, arame farpado para erguer e picadas para abrir. Para os doutores ou candidatos de Letras há que pôr-lhes mas é uma canhota nas mãos. Na guerra não servem para mais nada...

(...) Se eu tivesse continuado nos padres, o mais certo era não ter vindo à guerra ou, então, vinha como capelão, um ofício que, aliás, também faz muito jeito na guerra. Há preconceitos a alimentar, consciências a adormecer e angústias para apaziguar. Sou vítima da vingança concertada dos senhores da guerra e dos senhores da consciência: já que não quiseste reconhecer os imensos benefícios da religião, sentir a honra de pertencer ao número dos eleitos, vais sentir as agruras da guerra... que é um inferno na terra.

(...) Dentro em breve será noite. Já se estendeu sobre a bolanha um manto enorme de sombras, sinal de que o sol se começou a esconder por detrás da grande floresta de poilões que rodeiam a clareira de Jobel.

Já não estou tão calmo e seguro. A previsão do perigo eminente, a expectativa da emboscada ou do ataque repentinos não são nada comparados com um perigo que nos rodeia mas que não sabemos qual é, nada em comparação com este manto de escuridão que se abate sobre nós, que se entranha na minha farda, que me cobre as mãos, as pernas, o local onde estou. As trevas, meu Deus, é o pior que me pode acontecer. Mil vezes a emboscada que desaba sobre o grupo, mas que eu vejo, que acabo por limitar em todas as suas proporções, do que o perigo que só se imagina mas que nunca se vê, nem mesmo quando está em cima de nós.

Nesta terra de ténues ondulações a noite surge depressa. Começo a não distinguir as minhas próprias mãos. Não percebo como os outros ao longe as poderão ver. Mas vou fazer o que mandam as regras, barrá-las, e à cara também, com esta lama onde me assento. Mas, antes, vou beber desta água que me tem de molho há várias horas. Os outros já estão também com falta de água...Que remédio, tenho sede. Nunca a fome me atacou durante todo este tempo, mas a sede é um tormento e eu quero que se lixe a limpeza. Vou mesmo beber esta água, agora que já não consigo ver o seu grau de sujidade e inquinação.

Os sons nocturnos assumem proporções descomunais em relação aos diurnos. Aquilo que durante o dia me parece uma grande algaraviada, uma sinfonia de cacofonias, aparece-me agora como uma execução em estereofonia. Consigo distinguir todos os sons e vozes de pássaros. Aquilo que me parecia uniforme na promiscuidade de vozes aparece-me agora como o conjunto de várias espécies de pássaros e mamíferos. Não sei identificá-los pelo nome, a não ser o dos macacos, mas sou capaz de os contar através das diferenças de vozes. Na margem da bolanha, entre as árvores, são os macacos e os periquitos que dominam. Aqui, por aqui mais perto, são as moscas e mosquitos que não cessam de zumbir aos meus ouvidos. De vez em quando há um ruído na água. Pode ser um peixe a saltar, mas também pode não ser... Ao longe, um pássaro, penso eu que é um pássaro, lança um pipilar modulado que mais me parece um uivo de lobo. Mas, segundo sei, aqui na Guiné não há desses bichos...

Quem me dera a mim que se ouvissem só os macacos, os periquitos, as moscas e os mosquitos! O que me enerva e causa medo são os mil sons que eu desconheço. Este borbulhar na água pode ser uma cobra e aquele chapinhar mais além pode ser um javali, o resfolegar que vem das palmeiras pode ser uma onça...

Lá mais para a frente, do outro lado da clareira, precisamente daquele sítio onde os guerrilheiros montaram a emboscada, vêm ruídos que parecem provocados por pessoas. Ia jurar que há uma tabanca para estes lados... Como é que eu não me apercebi destes ruídos durante o dia? Seria mais lógico que os ouvisse melhor , uma vez que as pessoas fazem mais barulho durante o dia do que à noite. As marteladas, ou outras pancadas em madeira, deveriam ser mais audíveis durante o dia, quando não há tanta preocupação em manter o silêncio, em não incomodar. A explicação tem de ser esta: a tal enorme cacofonia diurna, que não deixa qualquer hipótese de identificação dos sons a que nos habituámos no nosso dia-a-dia. Porque a noite não deve ter sons, qualquer um que surja é identificável e sobressai no meio do silêncio, como milhares de pirilampos que, apesar de minúsculos, sobressaem na escuridão sem, no entanto, se conseguirem juntar num sol que torne a noite em dia.

Distingo perfeitamente os toques na madeira. Pilão ou martelo, é bater de gente. E surgem agora sons que só podem ser vozes de gente também. Então, contrariamente ao que me garantiram, esta zona não é desabitada! Isto explica a emboscada. Entrei no terreno deles, com tanto à vontade... e estupidez! Tenho de falar com o palerma do major de operações... se conseguir sair daqui.

(...) De olhar no escuro, tentando fazer luz com os olhos e com a mente, ver mais além do que esta escuridão me permite, na expectativa. Esta noite faz-me lembrar outras noites que passei à janela, de olhar perdido no escuro ou na barreira de ciprestes que cercavam aquele pequeno mundo do seminário. Mas bem pior estava então, apesar de tudo. Neste momento, estou esperando, pacientemente; nervoso, mas não desesperado; receoso, mas não em pânico; sozinho, mas não perdido. Não estou triste, não choro e não desejo a morte. Pelo contrário. Impaciente, desesperado, perdido, em pânico e desejando a morte... assim era eu, não há muito tempo. Passaram-se apenas três anos. Tinha vinte anos e não tinha outros horizontes senão uma vida de torturas e recalcamentos, ou o inferno como alternativa.

Mais do que as obrigatórias meditações em conjunto no seminário, no meio dos maus cheiros dos "irmãos em Cristo", de olhos fechados em atitude piedosa, este é o ambiente ideal para meditar, ligado pela escuridão à natureza. Naquelas mais de mil noites nunca consegui estar sozinho, apesar de me lamentar de uma solidão terrífica. Os outros e a organização estavam sempre presentes em mim, quando lutava sozinho para me ver livre deles. Por isso mesmo. Enquanto tive dúvidas nunca me largaram. Só me deixaram quando eu passei a ter a certeza do que queria e do que não queria.

Aqui, na guerra, não há outra coisa que me ligue aos outros a não ser o desejo de sobrevivência, e este desejo liga-me efectivamente, mas não o sinto como prisão. Pelo contrário, liberta-me para este tipo de meditações, para aceitar e tirar partido desta noite, para estar com todos no desejo de regressar, de não morrer, de viver. Lá, não. Os laços que me prendiam aos outros só me arrastavam para desejos de morrer e de os odiar. Aqui, na guerra, não há perigo de ter dúvidas, a certeza surge-nos dos factos do dia-a-dia. É tudo muito real, muito directo, entra-nos pelos olhos dentro, por todos os sentidos. Quando se nos revela assim, e surge sempre, mais tarde ou mais cedo, é um facto que faz parte de nós e é, portanto, uma certeza. Quando vim para cá não sabia nada o que era esta guerra. Mas já estou a saber o que é.

Tenho-me interrogado variadas vezes sobre as razões por que entrei para o seminário. Mais para carpir uma mágoa por um passo mal dado do que para tentar esclarecer aquilo que já sei. Foi a minha condição de menino pobre que me pôs perante essa necessidade. Mas nem por isso, naturalmente, fui responsável por essa decisão. A necessidade foi dos meus pais, que aproveitaram o desejo de um padre que se arvorou em meu protector. As pressões daí decorrentes, o meio em que passei a ter de me mover, fizeram o resto. À distância, sinto em mim uma grande mágoa por não ter conseguido libertar-me mais cedo dessa catástrofe que sucedeu na minha vida. Mas, nem sei se poderia ter sido diferente. Para quem tinha fome, para quem passava o dia com uma fatia de pão com margarina ou, mais do que uma vez, com uma côdea seca, era impossível recusar a possibilidade de ter refeições a tempo e horas. Como não aceitar a perspectiva do café com leite e pão com marmelada, da sopa, da carne e do peixe, se cheguei, quando era puto, a ter que andar aos caixotes?... Já tenho desejado muitas vezes não acreditar em Deus. Mas não consigo. Numa guerra, nesta guerra em que me encontro como interveniente activo, a fuga, os desejos, a esperança, a ideia de quem morre são os outros e não eu, tudo está depositado em Deus, que me há-de proteger e guardar... Mas porquê a mim e não aos outros?... aos que morreram, aos que ficaram sem braços e sem pernas, aos que ficaram cegos e aos que ficaram loucos? É uma dúvida e, ao mesmo tempo, uma incompreensão muito funda que se afoga e perde naquilo que a minha formação religiosa chama "os insondáveis desígnios de Deus"... Quer dizer que, se eu morrer ou ficar estropeado, foi desígnio de Deus, se eu sair bem disto tudo, será também vontade de Deus. E posso, desta maneira, encontrar em Deus a "explicação" de todas as coisas, poderei continuar tranquilamente a fazer a guerra. Posso matar, porque nos desígnios de Deus tanto pode estar o castigo como o prémio. O desígnio que eu mate, o desígnio que o outro morra. O prémio para mim que matei e não morri e o castigo para o outro que não me matou e morreu? Ou serei eu castigado porque matei e o outro terá um prémio na outra vida porque não me matou? Se eu comparecer perante Deus, durante ou após esta guerra, serei condenado às penas eternas ou entrarei no rol dos bem-aventurados? Serei condenado ou premiado se tiver obedecido aos meus "legítimos superiores", àqueles que " têm sobre si a pesada responsabilidade de governar e mandar"? Serei condenado ou premiado se lhes desobedecer e não matar?

"A Deus o que é de Deus e a César o que é de César". A citação fatal do director do instituto filosófico onde andei, quando seminarista, o qual, desta forma, tentava calar as minhas dúvidas. Que confusão, se o que interessa a César vai contra o mandamento "não matarás"! É uma resposta hipócrita. Procura justificar a passividade da Igreja perante a guerra... Ou consentimento? Como admitir que a Igreja abençoe a guerra? Antes de vir para a Guiné, o meu batalhão foi obrigado - é o termo - a assistir a uma missa na parada do quartel. Tal como no tempo das cruzadas, quando se partia para combater os infiéis e libertar os lugares santos. O padre capelão, o senhor major-capelão, fez uma eloquente exortação ao cumprimento do dever para com a pátria, da necessidade de defender os valores da civilização ocidental e o património legado pelos nossos antepassados... enfim, a mesma conversa dos senhores da política, abstracta, situada em algo que não me toca, em valores que não compreendo, em património que não possuo. E, ainda por cima, era um dos padres do seminário onde andei, um que eu bem conhecia.

Pode a Igreja justificar a sua atitude perante a guerra pela necessidade que há de acompanhar, assistir os soldados que passam dias e meses, anos até, de profunda angústia e desespero? Que o objectivo não é apoiar a guerra, mas sim servir de consolo religioso a quem necessita da religião? Para mim, não serve. Tentando diluir as contradições que naturalmente emergem da mente de quem é religioso, está-se a colaborar na manutenção de uma situação que o soldado não deseja instintivamente, está-se a diluir as dificuldades para que essa situação indesejável se mantenha o máximo possível. E, o que é mais grave para mim, não se responde às angústias e interrogações de quem se vê confrontado com uma realidade que é pura negação de tudo o que lhe incutiram de bom, de justiça, de amor, de fraternidade. Utilizando uma única frase dos Evangelhos - dar a César o que é de César - subverte-se todo o restante texto dos livros sagrados. Por oportunismo, pela mais rematada hipocrisia. São muitas as críticas que tenho a fazer àqueles que dizem representar-te cá na terra, ó Deus. Mas confio que me hás-de ajudar a sair deste aperto.

Tenho os membros anquilosados de tanta imobilidade. A pele das mãos está toda encarquilhada pelo permanente e prolongado contacto com a água. O mesmo deve suceder com os pés e com o material, devo ter tudo mirrado e encolhido.... Sinto nas mãos, nos braços e pelo corpo todo uma imensa comichão que, curiosamente, nunca tive vontade de coçar. Estou cheio de bolhas e ampolas, que só vejo nos braços e nas mãos mas que devem estar por todo o corpo, até na cara. À minha volta há milhares, talvez milhões de mosquitos e moscas tzé-tzé. A minha esperança é que só tenha sido picado por novecentas e noventa e nove moscas do sono... segundo dizem as estatísticas, só uma em mil é portadora da doença do sono, não é?... De qualquer modo, não sei se me fariam efeito: estou tão cheio de vacinas contra tudo que essa tal milésima, se me picou, deve ter morrido entoxicada, com certeza...

Devo ser um nojo completo. Uma merda da cintura para baixo.

(...) Começa a surgir uma luminosidade por detrás das palmeiras, uma luz branca muito mortiça. Por aqui, começo a vislumbrar uma neblina leitosa a empastar a bolanha. Há outro silêncio neste despertar da mata e dos seres que a povoam. Imagino-os dolentes, agora conscientemente enrolados sobre si mesmos, sem se mexerem, como fazem inconscientemente durante o sono. Procuram forçar o prolongamento desse sono. Por isso, este, agitado ou tranquilo, deu lugar a modorra prolongada e estática, intencionalmente silenciosa, para não acordar. No entanto, porque não é só o ouvido que está desperto e atento, como sucede na mais completa escuridão, toda esta imensa calma que precede a agitação e luta de mais um dia na vida da natureza é apenas perceptível ao nível dos sentimentos mais íntimos do meu ser, pois a luz que penetra nos meus olhos desperta nestes uma segunda dimensão que faz sentir as coisas de uma forma avassaladora e total. Tudo aquilo que povoou a minha mente, os ruídos que se apossaram de mim através do ouvido, tudo isso passou a estar submerso pela impressão visual do que me é exterior. Durante estas horas de vigília nocturna estive dominado e cercado por mim mesmo, por toda a minha vida, pelo passado.

Agora não. Sinto que tudo se vai diluindo, que a realidade externa se apossa de mim, que a posse da totalidade dos meus sentidos me introduz novamente no seio do meu destino, composto também de exterior. É uma visão "ruidosa", na medida em que este contacto com a realidade da manhã consegue abafar o domínio exclusivista do ouvido e do raciocínio. O conjunto harmonioso da vida não deixará que prevaleçam as sensações parcelares e limitadas. A total percepção da realidade não deixará que me deixe dominar por um único dos seus aspectos. A prefeita e clara percepção em todos os sentidos, agora, não deixará que me domine o medo do desconhecido ou do indefinido. É tão bom estar vivo e saber onde estou e o que quero!

Bem, Braima, rapaziada, toca a sair daqui.


A. Marques Lopes

Guiné 63/74 - P35: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)

Texto de A. Marques Lopes, coronel (DFA) na situção de reforma, ex-alferes miliciano da CART 1690 (1967/1969) e actual membro da direcção da Delegação do norte da Associação 25 de Abril:


1. Na primeira metade de 1967, o PAIGC montou uma base de guerrilha em Sinchã Jobel. Sem querer (vocês vão ver), fui eu que dei com ela. O responsável militar dessa base era o Comandante Lúcio Soares, que foi, depois da independência, Ministro da Defesa; o responsável político era Cabral de Almada, conhecido como Comandante Gazela, que foi Vice-Presidente da Assembleia Nacional Popular.

Quando estive na Guiné-Bissau, em 1998, pouco antes do golpe de Ansumane Mané, tive uma conversa muito interessante com o Comandante Gazela: lembrámos muita coisa sobre Sinchã Jobel, falámos dos problemas do povo guineense, concordámos que era melhor não termos andado aos tiros uns aos outros (pediu-me desculpa por me ter mandado para o hospital, “mas teve de ser assim”...)... e demos um abraço de despedida.

O objectivo do que mando hoje é lembrar tudo aquilo que nenhum de nós pode esquecer. Para mim também pode ser a, tão vilipendiada por alguns, catarse de mágoas e fantasmas, não tenho problemas em ter consciência daquilo que fui e daquilo que sou. Sobre isto, o nosso caro amigo Professor Luís Graça é que nos pode falar (procurem na Internet os seus impressionantes curricula, académico e profissional).

"Operação Jigajoga. 24 de Junho de 1967:


"Situação particular:

"O IN tem-se revelado em operações realizadas no regulado de Mansomine, ataques a tabancas, a aquartelamentos e outras flagelações. Deve existir algum acampamento que lhe sirva de base para a execução de acções sobre as NT e populações que nos são fieis.

"Missão:

"Assegura a ocupação do Sector, tendo em atenção os regulados da faixa Oeste e as linhas de infiltração que conduzam ao interior. Detecta, vigia ou captura elementos ou grupos suspeitos de subversão que se hajam infiltrado ou constituído no sector, impedindo que a subversão alastre. Captura ou aniquila os rebeldes que se venham a revelar, destruindo as suas instalações ou meios de vida e restabelece a autoridade e a ordem nas regiões afectadas.

"Força executante:

1 Gr Comb da CART 1690 reforçada 1 PEL MIL/CMIL 3
1 PEL do EREC 1578

"Desenrolar da acção:


"O PEL REC/EREC 1578 saiu de Bafatá pelas 05H00, tendo-se-lhe reunido em Sare Geba o Gr Comb da CART 1690 e em Sare Gana o PEL MIL. Entretanto o Dest da CMIL 3 em Sare Madina efectuava a picagem do itinerário Sare Madina-Ponte Rio Gambiel.

"Em Sucuta (Madina Fali) o Dest A iniciou a progressão apeada em direcção a Sinhã Jobel e o Dest B o patrulhamento do itinerário Cheuel - Ponte Rio Gambiel. Depois de atravessar a bolanha de Sucuta, o Dest A detectou pegadas bastantes recentes, deduzindo que se tratasse de una sentinela IN. Junto a Sinchã Jobel as NT foram emboscadas por um grupo IN numeroso, com mort. 82, LGF, MP e Amas Aut., tendo sofrido um ferido grave e 5 feridos ligeiros. Da reacção das NT o IN sofreu 3 mortos confirmados e 3 prováveis.

"Em consequência do pequeno efectivo das NT, da manobra efectuada com pequenos grupos, do grande potencial de fogo IN e da mata bastante densa desapareceu o Cmdt do Dest A, Alferes Lopes, que havia saído de um grupo de manobra para ir a outro trazer um LGF. Como o grupo já não se encontrasse no local previsto pelo Cmdt do Dest A, este viu-se sozinho e a ser alvejado pelo fogo IN pelo que se internou na mata. Pelo que em cada grupo se pensava que o Cmdt. estava no outro, não foi dado grande importância ao facto. Só depois de reunidos todos os grupos se verificou a falta do Cmdt. O furriel, agora Cmdt do grupo de combate, resolveu - porque sendo o seu efectivo reduzido, para o potencial de fogo IN, porque tendo 6 feridos, um dos quais grave e tendo ainda LGF avariado - regressar a Sucuta para pedir reforços. Em Sucuta, onde já se encontrava o Dest B ao corrente do sucedido por via rádio, foi resolvido pedir reforços ao Comando do BCAÇ 1877.

"Comunicado ao Comando do BCAÇ 1877, saiu imediatamente um Gr Comb /CCS constituído pelo PEL REC Inf e pelo PEL Sap. que juntamente com forças da CART 1690 efectuou uma batida na área de Sinchã Jobel até cerca das 21H30, sem resultado e sem contacto com o IN. As forças empenhadas na batida e o PEL EREC, que estava a fazer a segurança às viaturas e o patrulhamento do itinerário Cheuel-Ponte Rio Gambiel regressaram a Geba e Bafatá cerca das 23H30.

"Pelas 09H30 do dia 25 saiu o Gr Comb/CCS/BCAÇ 1877 que, juntamente com as forças da CART 1690, iriam novamente bater a zona de Sinchã Jobel. Ao chegar a Sare Geba foi-lhes comunicado que o Alferes Lopes já tinha aparecido, tendo o Gr Comb/CCS regressado a Bafatá.

Resultados obtidos:

-A detecção de um grupo IN numeroso e bem armado na região;
-A morte confirmada de 3 elementos IN mortos e alguns feridos prováveis.»

2. Foi o meu dia de S. João em 1967. O Alferes Lopes referido era eu. Fui o principal interveniente, mas não fui eu que fiz o relatório (foi feito antes de eu aparecer e enviado para Bissau logo que apareci, e eu fui dado como desaparecido em combate antes de aparecer).

O que sucedeu é que eu tive uma certa sensação de perigo (o subconsciente a funcionar?...) e deixei duas secções na clareira de Sinchão Jobel (onde havia essa aldeia, mas que estava destruída já) e avancei eu e um furriel com outra para atravessar a clareira. Talvez um dia, quando eu acabar de escrever a minha estória, se saiba tudo o que aconteceu. Não vale a pena referir todas as inverdades nele contidas - há gente ainda viva e culpas no cartório. Só uma: eu que estive lá e que passei lá toda a noite (vejam a minha lembrança dessa noite em Na bolanaha dá para pensar...). Eu sei muito bem que não morreram nem ficaram feridos quaisquer elementos do IN!

E uma outra coisa: como podem ver pelo início do relatório ("Situação particular"), os burocratas já suspeitavam que podia haver ali uma base de guerrilha. MAS NÃO ME DISSERAM NADA! Eu e trinta mecos fomos carne para canhão!! Por alguma razão deram à operação o nome de Jigajoga: em qualquer dicionário de português, quer dizer jogo da cabra-cega, ou, em sentido figurado, ludíbrio, engano, coisa pouco firme... Foi assim que nos trataram.
Vou contando, depois, mais estórias de Sinchã Jobel.

Um abraço. A. Marques Lopes

Guiné 63/74 - P34: Sare e Sinchã ou a " aldeia" nos dialectos fula e mandinga, respectivamente (Marques Lopes)

Texto de A. Marques Lopes, em resposta a uma pergunta de Afonso de Sousa sobre a existência de dezenas de topónimos da Guiné-Bissau, começadas por Sare (nada menos que 17, só na região do Óio):


30 de Maio de 2005:

Caro amigo Afonso Sousa

Agradecido pelas indicações de sítios [na Net] para ver localidades da Guiné. É claro que, estranhamente, Geba não aparece em nenhum deles (provavelmente só conhecem o Rio Geba, e não a povoação de Geba...). E aparece Jabel em vez de Jobel. Nesses sítios não há Sinchã mas, sim, Sincha, o que é natural por causa desse til da nossa língua... Mas foi uma grande ajuda.

Quanto à palavra Sare que aparece em muitos nomes de tabancas: Sare é a designação fula para "aldeia". É natural que, na zona do Óio, muitas tenham esse nome, dado que daí até ao Gabu foi o reino do Gabu, dominado pelos fulas. A seguir a Sare acrescentavam, a maior parte das vezes, o nome do "homem grande", fundador ou regente da aldeia... Ou, então, algum nome referencial do mundo islâmico, como, por exemplo, Sare Madina (a terra sagrada do Profeta), que conheci e de que hei-de falar.

O mesmo em relação a Sinchã que é a designação para "aldeia" dada pelos mandingas. Sinchão Jobel é, pois, a "aldeia de Jobel". Jobel é uma palavra de origem hebraica (jobil ou jobal), do tempo de Abraão (os muçulmanos aceitam também Abraão como seu pai), que significa "corno de carneiro", que foi tocado por Abraão para agradecer os dons de Deus sem ter de sacrificar o seu filho. Dizem que veio daí a palavra cristã jubileu (do latim jubilum), como sinal de comemoração de qualquer dádiva ou facto importante.

Um abraço. A. Marques Lopes

Guiné 63/74 - P33: A morte no caminho para Banjara (Marques Lopes)

Texto de A. Marques Lopes, coronel (DFA) na situação de reforma, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1968).

...e já agora, aqui vai um exemplo das dificuldades para chegar a Banjara. Digo-vos também que foi no caminho para lá que eu fui ferido e fui, por isso, para uma estadia de nove meses no Hospital Militar Principal da Estrela [,em Lisboa]...


59. Operação sem nome. 15 de Julho de 1968

Situação particular:

Do antecedente o IN coloca minas no itinerário Sare Banda-Banjara.

Missão:

Transporte de frescos e correio. Patrulhamento do itinerário Geba-Banjara-Geba.

Força executante:

Dest A - CART 1690 (1 Secção +) ref. c/PEL MIL 111/Companhia Milícias 3

Dest B - PEL CAÇ NAT 64

Dest C - 1 PEL REC/ EREC 2350


Desenrolar da acção:

Em 16 de Julho de 1968, às 11H15 saiu do destacamento de Sare Banda o 1º Gr Comb constituído por 2 secções do PEL CAÇ NAT 64 e seis milícias que iniciaram a picagem da estrada.

As 12H05 verificou-se o rebentamento de uma mina A/P, reforçada com 1 mina A/C, que provocou 6 mortos e 1 ferido grave às NT pelo que tive que pedir uma evacuação urgente e fiz transportar os corpos dos mortos (com excepção de 1 que ficou completamente pulverizado) e o ferido para Sare Banda. O transporte foi feito num Unimog, levando como escolta uma secção de atiradores e 1 Daimler. O restante pessoal ficou a manter segurança no local do rebentamento e aguardando a chegada destas viaturas.

Quando as mesmas regressaram verifiquei que os elementos da Companhia de Milícia não queriam prosseguir na operação, pelo que tive de os obrigar a continuar a desempenhar a missão de que iam incumbidos: picar a estrada.

Consegui que a coluna prosseguisse em direcção a Banjara, que se atingiu às 16H25. A saída de Banjara verificou-se às 17H00, tendo a coluna atingido Bafatá às 18H30. Foi cumprida integralmente a missão apesar do grande atraso em relação ao previsto.

A. Marques Lopes

Notas e siglas (L.G.):

A/C - Anticarro, Mina
A/P - Antipessoal, Mina
CART - Companhia de Artilharia
Daimler - Viatura blindada Daimler, usada pelos PEL REC
Dest - Destacamento
EREC - Esquadrão de Reconhecimento, Arma de Cavalaria
Gr Comb - Grupo de Combate (c. 30 homens)
PEL CAÇ NAT - Pelotão de Caçadores Nativos
PEL MIL - Pelotão de Milícias
PEL REC - Pelotão de Reconhecimento, Arma de Cavalaria
Unimog - Viatura de transporte de pessoal

A distância de Banjara a Geba era, em linha recta, de 27,5 km. Na prática era quase o dobro (47 km).

Guiné 63/74 - P32: As aldeias fulas em autodefesa (Luís Graça)

Excertos do diário de um tuga. Texto de L.G.:


7 de Março de 1970:

Sansancuta [regulado de Badora]:

1. Como esses bandos sinistros de jagudis (abutres) que pousam sobre a morança dos que estão a morrer, também o espectro negro da fome paira sobre as tabancas da Guiné. Porque a desnutrição, essa, é já endémica: facilmente se constata, sobretudo nas crianças, toda uma série de sintomas patológicos provocados pelas carências proteicas e vitamínicas de uma alimentação quase só à base de cereais (arroz, milho, fundo).

E, no entanto, trata-se dum território fértil, com umas das mais elevadas densidades demográficas do continente africano, concentrando-se as populações em especial nas bacias hidrográficas, junto às bolanhas e lalas (regiões alagadiças ricas em húmus) onde cultivam o arroz.

Mas a repressão colonialista e a escalada da guerra vêm modificar profundamente a geografia humana e económica da Guiné: por um lado, provocam o êxodo massiço de populações inteiras (balantas, manjacos, mandindas, beafadas, etc.) para as zonas controladas pelos guerrilheiros e para os países límitrofes (Senegal e Guiné-Conacri). E por outro, assiste-se ao fenómeno da militarização dos fulas (uma tribo islamizada cujos régulos detêm ainda algum do seu antigo poder feudal), através não só do reagrupamento e organização em autodefesa das suas aldeias como também da formação de milícias.

2. Eis a razão por que, a partir de 1963, se tem vindo a acentuar o decréscimo da produção agrícola (que aliás é quase estritamente para autoconsumo). Mas vejamos as duas culturas ainda comercialmente importantes: o amendoim e o arroz.

O amendoim (ou mancarra) constituiu só por si cerca de metade do valor total das exportações (da Guiné para a Metrópole).

Muito antes ainda de passar à clandestinidade, o engenheiro agrónomo Amílcar Cabral (que dirigiu uma brigada técnica dos Serviços Agrícolas Coloniais em Fá, aqui perto de Bambadinca, tendo feito estudos sobre a produtividade de diversos tipos de amendoim), já tinha denunciado o perigo que representava a monocultura desta oleaginosa para o desenvolvimento económico da Guiné, e criticando implicitamente a sua importância estratégica como matéria-prima para os monopólios metropolitanos (a CUF, aqui representada pela Casa Gouveia).

Tendo sido imposta ao indígena pela administração colonial, a cultura da mancarra está hoje em declínio irreversível: os fulas ainda são os únicos que lavram mancarra (cultivam amendoim) na periferia das suas tristes tabancas, cercadas de arame farpado e de minas. É com o produto da sua venda que o camponês fula paga, no posto administrativo, a sua taxa domiciliária, colectada na base do número de mulheres (e moranças) que possui! Curiosa é a origem da mancarra, a semente do diabo, segundo a lenda fula.

O segundo produto é o arroz. Antes da guerra, dois terços eram exclusivamente produzidos pelos balantas, a maior etnia do território: 150 mil, segundo o censo de 1962. Inclusive o arroz chegou a ser exportado. Hoje mal chega para o autoconsumo, tornando-se dramática a sua carência nos anos de menor pluviosidade.

Entretanto, no circuito da economia monetorizada, devido à inflação provocada pela guerra, a população que está sob o nosso controlo vê-se muitas vezes na contingência de vender, ao pequeno comerciante português ou libanês, o arroz que produz para comer (preço por quilo: 3 pesos!) para comprar umas chinelas de plástico:

- O senhor administrador dá porrada se pessoal africano anda descalço em Bambadinca!, diz um dos meus soldados fulas.

Noutras ocasiões, trata-se de fazer dinheiro para pagar a taxa domiciliária, imposta ao guinéu e devida pelos escassos metros quadrados de superfície que ocupa a sua morança.

Entretanto, quando as reservas se acabam no tempo seco, o guinéu volta a adquir o mesmo arroz pelo dobro do preço (6 pesos).

O drama destes pobres camponeses que foram obrigados a abandonar as suas áreas de cultura, arrancadas à floresta tropical ou à savana arbustiva, de geração em geração, pude senti-lo aqui em Sansancuta onde estive em autodefesa.

3. Sansancuta faz parte dum eixo de aldeias estratégicas , como se diz no Vietname, no limite sul do regulado de Badora, no Sector L1, e que funciona como uma espécie de pequena muralha da China, cortando as linhas de infiltração das forças da guerrilha que eventualmente se dirijam para o interior daquele regulado a partir do Rio Corubal.

Estão aqui reagrupados os habitantes de três tabancas, uma das quais Sare Ade cuja população, sobretudo os mais jovens, não se conformou com a ordem de deportação dada pelo comando militar de Bambadinca, tendo fugido para o nordeste (Gabu) e inclusivamente para o Senegal, que também é chão fula (Cassamance).

Hoje, de resto, só há duas alternativas para um homem fula: (i) oferece-se como voluntário para o exército colonial, passando primeiro pela milícia; ou (ii) emigra todo os anos, na época das chuvas, para o chão de francês (Senegal) a fim de trabalhar nos campos de mancarra.

É a única maneira de fugir ao universo concentraccionário da sua tabanca,e sobretudo à fome. Essa fome visceral que leva as crianças a aproveitar tudo aquilo que nós, tugas, nos damos ao luxo de deitar fora (vi-as aqui a assaram na brasa as vísceras de um frango que o bom do Suleimane me arranjou e reparti-las equitativamente entre si).

Fome, subnutrição, doença, carências de toda a ordem (roupas, medicamentos...) contrastam, de modo chocante, com a relativa opulência com que um tuga , como eu, aqui vive: ainda ontem me vieram trazer o reabastecimento semanal e, entre outros produtos enlatados, deixaram-me cinco quilos (!) de fiambre dinamarquês, para dois mecos, para mim e para o operador de transmissões, já que as praças são desarranchadas. Tivemos de o comer em menos de vinte e quatro horas, sob pena de se estragar com o calor, e, uma vez aberta a lata, repartir o resto do fiambre pelos putos da aldeia e soldados africanos da secção. É claro que lhe chamaram um figo, não tendo desconfiado sequer que tal iguaria pudesse ser feita de carne.. de porco!

Deportado e reagrupado em aldeias estratégicas (ou tabanacs em a/d, chamem-lhe o que quiserem), o camponês da Guiné que ama os grandes espaços livres (a floresta onde vai caçar a gazela, a bolanha onde cultiva o arroz, o rio onde vai buscar o mafé) vê-se confinado a uma área de reserva onde pratica uma miserável agricultura de subsistência.

Ironicamemnte as fiadas de arame farpado que cercam as palhotas cónicas,as trincheiras e os abrigos de combate, os espaldões para as armas pesadas, as valas de comunicação e os abrigos passivos das tabancas em a/d, ficarão proventura como os únicos vestígios arqueológicos da presença duma civilização tecnologicamente superior nesta parte ocidental de África.

Luís Graça

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Excertos de: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II.26:


A secção destacada em Sinchã Mamadjai foi transferida em 24 de Fevereiro para Sansancuta a fim de controlar os trabalhos de autodefesa da tabanca, regressando definitivamente a Bambadinca a 12 do mês seguinte [Março de 1970].

Guiné 63/74 - P31: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu (Luís Graça)

Excertos do diário de um tuga (3). Texto de L.G.:


15 de Agosto de 1969:

1. Sare Ganá. A última das tabancas do regulado de Joladu, no sub-sector de Geba. Estive aqui destacado duas semanas, em reforço ao sistema de autodefesa. O que não é irónico, porque a população é fula.

Armadilhada entre as duas fiadas de arame farpado e guarnecida por um pelotão de milícia e grupos civis de autodefesa, Sare Ganá é uma espécie de aldeia estratégica. Aqui termina a nossa soberania territorial, a norte do Rio Geba e começa a zona de intervenção do Com-Chefe que inclui, entre outras, as regiões de Mansomine, Caresse e Óio.

É aqui que vive o régulo, uma solitária figura de aristocrata fula. Todos os seus súbditos, mandingas, balantas e manjacos, que viviam em Joladu, "foram no mato" (leia-se: aderiram à guerrilha ou fugiram das NT). Hoje o seu regulado está circunscrito ao perímetro de Sare Gana e a mais duas ou três tabancas (Sare Banda, Sinchã Satu...).

Quase todos os dias ouvíamos os Fiats bombardearem Sinchã Jobel, uma base de guerrilheiros a 10 km a norte, e que é inacessível no tempo das chuvas devido às bolanhas e lalas que a rodeiam. Até Farim é tudo terra para queimar. Nenhuma tropa apeada, ao que parece, se atreve a penetrar neste santuário do IN. Fala-se aqui da "mata do Óio" como um misto de temor e de terror, domínio do sagrado e da morte...

Há hoje, de resto, vastíssimas zonas da Guiné onde só a aviação exerce os nossos direitos de soberania. Mas esses bombardeamentos massiços revelam apenas a raiva da nossa impotência.


2. Destacado ou desterrado ? O que farei eu com uma secção de combate, uma bazuca, um morteiro 60, dez G-3 e um rádio se isto der para o torto ? Estou aqui porque há dias houve um ataque malogrado a uma tabanca próxima, Sinchã Sutu, e a população fula anda inquieta... Sou como os bombeiros, sempre atrás dos fogos...

A minha missão ? ... Limito-me a estar aqui: de manhã, durmo como um porco; às onze levanto-me, porque o calor dentro da minha palhota já é insuportável. Devoro o almoço que o Suleimane entretanto já me preparou. Depois oiço velhas lendas dos tempos em que os cavaleiros do Futa Djalon eram donos e senhores destas terras. Ào fim da tarde dou um giro para fingir que me mantenho operacional.

3. Ainda ontem fiz uma bravata estúpida, bem típica de um periquito. Fui sozinho com um milícia local fazer o reconhecimento duma aldeia próxima, abandonada pela população e armadilhada. O tipo ia à frente com uma varinha feita de caule de capim seco, tentando detectar os fios de tropeçar que atravessavam os trilhos da aldeia, de resto já pouco visíveis A meio do percurso, apanho um susto: um antílope, que pastava perto, atravesssou-se-nos no caminho, em plena área supostamente armadilhada. Foi mais do que um susto, apanhei um calafrio: é que na noite anterior, um felino que vinha no encalce dos galináceos domésticos, tinha feito accionar um das armadilhas do perímetro de defesa de Sare Ganá. E de pronto comecei a ouvir,m de todos os lados, sucessivas rajadas de G-3... O pessoal anda mesmo nervoso.

4. Ainda não me habituei foi ao black-out total, imposto por óbvias razões de segurança: não posso ler nem escrever na minha morança (faz-me falta uma pequena lanterna de pilhas), o que torna ainda mais insuportáveis estas longas noites de Sare Ganà (...).

Luís Graça
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Excertos de: História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II.9:

De 5 a 17 de Agosto de 1969, o 4º Gr Combate [da CCAÇ 2590, futura CCAÇ 12] foi reforçar o Sector L2, sendo destacada uma secção para Sare Ganà e duas para Sare Banda (Sub-sector de Geba). Dias antes o IN fizera um ataque malogrado à tabanca em autodefesa de Sinchã Satu.

domingo, 29 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P30: Aerogramas de amigos e camaradas (2) (David Guimarães)

27 de Maio de 2005:

Olá, Bom dia:

Eu bem me parecia que o Marques Lopes, Coronel, não tinha desaparecido: aí está ele e com bastante força e energia... Um abraço, para ele.

Bom, estamos a constatar um facto e disso não nos podemos alhear: entramos todos novamente numa guerra, a guerra que foi de todos e é de cada um ... cruel e tão dura que é capaz de levar a fazer com que nos unamos, todos, em volta de uma causa justa e nobre, a solidariedade e a amizade, sem nos preoocuparmos com crenças e credos, raças, usos e costumes (...).

Eu sou péssimo em organização, que pena, mas começa a surgir a oportunidade de começarmos a juntar estes endereços todos (...) e começar a formar o nosso batalhão... Todos desempenhámos um papel na guerra da Guiné e sabemos, afinal, que nos faz bem falarmos sobre estes assuntos. É evidente que não se trata de recolocar as pinturas de guerra, mas com um grande cachimbo da paz contar todos as nossa histórias de guerra.

Cada um tem a sua guerra interior e bem precisa de a colocar cá fora, uma guerra que perdurou desde jovens, que nos cortou a possibilidade de sermos jovens, como os jovens de agora. A nossa juventude era a beber bazucas [cervejas de 0,75 l], a usar a G3, apanhar com granadas e manga de ronco. Eventualmente vir a Bissau ou a Bafatá, ir à meta, ao Solar dos 10, ao café Bento, ao Pelicano, dar uma volta no Pilão e depois ir comer umas ostras e beber cerveja até ao canto da boca.... Isto em Bissau porque em Bafatá era beber whisky, gin... Enfim, beber uns copos e voltar para o mato...

Há que perfilar estes nomes, todos; fazer um arquivo, sempre juntando nesse arquivo mais um e mais outro que vai chegando. Já adivinho, tudo a funcionar como uma bola de neve, a aumentar...

O Luís Graça fez o favor de pôr à disposição o seu blogue (...). Agora cumpre dividir a Guiné num espaço mais amplo. E mais sectores irão aparecer. Estávamos no L1 [, na Zona Leste], pois vamos por aí para fora. Que seja este mais um verdadeiro contributo para a história de uma guerra que foi de todos...

Sousa e Castro, o grande obreiro do congregar de direcções, faça o favor de arquivar sempre cada nova direcção que apareça...

Será este o princípio de uma narração, o mais completa quanto possível, de uma guerra que nunca se contou em pormenor... Li num livro de testemunhos de quatro generais - um deles o Bettencourt Rodrigues, o último COM-CHEF da Guiné. Segundo ele a guerra não estava perdida... Não sei se já morreu, mas se morreu e estava convencido disso, morreu efectivamente com algo de falho na cabeça e a sonhar...

Continuemos. Não sei se este mail vai chegar ao Varandas, quem dera... Ele anda a escrever um livro: será o contributo para que ele reformule muitos capítulos, quem sabe, e que a ficção fique uma história verdadeira. Para esquecer nunca, mas para que não se repita também.

Um abraço para toda a gente - amigos e companheiros, ex-camaradas de armas.

David, ou Guimarães, ou David Guimarães - ex-Furriel Miliciano da CART 2716, aquartelada no Xitole de 1970 a 1972 e pertencente ao BART 2917 com sede em Bambadinca. (Quero dizer que muitas vezes teremos que nos identificar assim).

sábado, 28 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P29: "Um ataque a Sare Ganá (1968)"

Texto de A. Marques Lopes, coronel (DFA) na situação na reforma, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967/1968):


"Tal como Sare Banda, Sare Ganá ficava perto de Sinchã Jobel, de onde veio o grupo de guerrilheiros que fez o ataque. Sare Ganá era uma tabanca com população, tendo nela um pelotão da Companhia de Milícia 3, sob o comando da CART 1690.

"Um ataque a Sare Ganá, 12 de Agosto de 1968:


"Acção inicial do IN: A 12, às 00H02, um grupo IN estimado em cerca de 60 elementos atacou Sare Ganá.

"O ataque iniciou-se por tiros de morteiro 82 e 60, lança-granadas-foguete, lança -rocketes e metralhadoras.

"Após a preparação de fogo de armas pesadas durante a qual foram utilizadas muitas granadas incendiárias, o IN cortou o arame farpado do lado Norte e penetrou em Sare Ganá por este lado e pelo lado Sul, aproveitando uma pequena passagem existente que se encontrava incompletamente fechada, passando a utilizar armas ligeiras automáticas e a incendiar casas.

"Reacção das NT:

"a) Da Companhia de Milícias nº 3:

"O pelotão 109 da CMIL 3, ao qual está confiado a defesa de Sare Ganá, reagiu pelo fogo, não só instalada nos abrigos como também dispersa pela tabanca, aguentando o impeto inicial do ataque e dificultando o mais que pôde a infiltração das forças IN, no que foi apoiada por grande parte da população (a quase totalidade dos que dispunham de armas). Deve notar-se que os soldados milícias começaram a retirar apenas quando as munições que dispunham já rareavam.

"b) Da CART l690

"Em Geba, logo após os primeiros rebentamentos serem ouvidos, dei ordem para que se comunicasse pela rádio esse facto ao Comando do BCAV 1905 e ordenei que saíssem imediatamente o maior número de homens possível, sem descurar a defesa de Geba; às 00H08 um grupo de 14 soldados, 1 alferes e 1 furriel, saiu em viatura em direcção a Saré Ganá. A última parte do percurso foi feita a pé tendo Sare Ganá sido atingida às 00H20. A aproximação da povoação fez-se com as forças divididas em 3 grupos.

"A população retirava pelo acesso utilizado pelas NT na aproximação. O primeiro grupo, que seguia na frente, lançou-se para o interior da tabanca e foi imediatamente alvejado por uma granada de morteiro que feriu ligeiramente uma praça na cabeça e matou uma mulher da população. Não obstante, o grupo na sua totalidade entrou na tabanca pelo arruamento principal, progredindo de casa em casa sob fogo do IN que enfiava o citado arruamento. Para possibilitar o avanço foram feitos 4 tiros do Lança Granadas Foguete estabelecendo-se em seguida contacto pelo fogo de armas ligeiras, à vista, com o IN. A progressão continuou com o apoio de mais tiros de Lança-Granadas Foguete.

"O 2º grupo entrou na tabanca em seguida, inicialmente pelo mesmo arruamento mas tomando um outro arruamento à direita, começando a alvejar com os seus fogos os elementos IN que actuavam nesse lado. Nesse momento viu-se que o IN lançou um sinal luminoso e iniciou a sua retirada, arrastando as baixas que sofrera e carregando o respectivo material.

"O 3º grupo, à rectaguarda, cobria a acção dos outros dois. A retirada do IN fez-se duma forma ordenada e a coberto do seu próprio fogo, aproveitando a abertura feita na rede de arame farpado e através da passagem para Oeste depois de deslocado o cavalo de frisa respectivo. Moveu-se uma outra perseguição que não foi além da orla da mata próxima devido à escassos de efectivos.

"Entretanto sentia-se ao longe a aproximação de uma coluna de viaturas vinda de Bafatá.

"c) DO BCAV 1905 e EREC 2350

"Às 01H00 atingiram Sare Ganá as forças de socorro de Bafatá e enviados pelo Comando de Batalhão. Estas forças eram constituídas a primeira por um pelotão do EREC 2350 e o PEL CAÇ NAT 64 a segunda por outro PEL REC do EREC 2350 e 2 secções da CCS/BCAV 1905.

"Uma vez que a situação estava praticamente normalizada, um pelotão do EREC 2350 e as 2 secções da CCS regressaram a Bafatá levando os feridos mais graves, tanto milícias como população, enquanto as outras forças se instalavam em Saré Ganá, montando segurança a tabanca.

"Resultados obtidos:

a) Baixas causadas ao IN: 5 mortos confirmados; várias baixas prováveis

b) Material capturado ao IN: 1 Met. Lig. Dectyarev com bipé; l Pist. Metr. Sundaiev; 2 Carregadores de Pist. Met.; l Carregador de Metr. Lig. ; l Fita com 85 cartuchos para Metr. Lig.; 2 Granadas de Mão Ofensivas»

Guiné 63/74 - P28: Um ataque a Sare Banda (1968) (Marques Lopes)

Texto de A. Marques Lopes, coronel (DFA) na situação de reforma, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967):

Sare Banda, como podem ver pelo mapa que já vos enviei da zona, estava perto de Sinchã Jobel (importante base do PAIGC, e muito bem equipada, como é claro pelo material que deixaram), e é natural que fosse atacada.

O alferes morto foi o Carlos Alberto Trindade Peixoto. O outro morto foi o Furriel Raul Canadas Ferreira. Mas as circunstâncias da morte deles não estão devidamente relatadas.

Foi assim: este, como todos os destacamentos da CART 1690, não tinha luz eléctrica, nem mesmo um miserável gerador. Eles estavam os dois numa tenda a jogar às cartas, com um petromax aceso (depreende-se, aliás, do relatório as péssimas condições de instalação). Para os guerrilheiros foi muito simples, foi só apontar o RPG2… e, mais uma vez, como vêem, a tentativa de entrar no destacamento. Não vos mando fotografias de Sare Banda porque não tenho.


"Um ataque a Sare Banda. 8 de Setembro de 1968:


"Desenrolar da acção:

"1. Acção inicial do IN: a 8, pelas 21h00, um numeroso grupo IN, estimado em cerca de 100 elementos instalados em semicírculo nas direcções NE-SW e SE-NW, atacou o destacamento de Sare Banda com o seguinte armamento:

-Canhão s/recuo

-Morteiro 82

-Lança granadas RPG-2

-Lança granadas P-27 Pancerovka

-Metralhadoras pesadas

-Metralhadoras ligeiras

-Armas automáticas

-Armas semi-automáticas


"O ataque foi iniciado com um tiro ao canhão sem recuo e dois Lança Granadas Foguete, dirigidos contra a cantina e depósitos de géneros que atingiram mortalmente o Alferes Comandante do Destacamento e um furriel e provocaram ferimentos numa praça. Estes tiros iniciais do IN atingiram e destruíram ainda o mastro da antena horizontal do rádio, ficando assim o destacamento de comunicações cortadas com toda a rede de Geba.

"No seguimento da acção, o IN atingiu com uma granada incendiária uma barraca coberta por 2 panos de lona de viaturas pesadas, onde costumavam dormir vários elementos das NT por não caberem todos nos abrigos, o que provocou a destruição de todo o material lá existente e iluminação das posições das NT.

"2. Reacção das NT:

"2.1. Das forças do destacamento:

"Apôs a surpresa inicial dos elementos que se encontravam fora dos abrigos, estes correram para os mesmos e reagiram imediatamente ao ataque IN. Não obstante terem ficado sem o seu Comandante e sem comunicações logo aos tiros iniciais, nunca perderam a calma e o moral, opondo tenaz resistência aos intentos do IN.

"Refira-se que logo no início da reacção as NT atingiram com tiros de morteiro a guarnição IN do canhão s/recuo, calando-o definitivamente e, em determinada altura do ataque, repeliram energicamente uma tentativa de penetração de elementos IN ao destacamento, que para o efeito haviam conseguido chegar junto da rede do arame farpado.

"Essa reacção, feita só à base de tiros de espingarda G-3 e granadas de mão em virtude de se ter avariado o Lança Granadas Foguete, foi verdadeiramente eficaz e decisiva para o desenrolar dos acontecimentos, pois o IN foi obrigado a recuar deixando no terreno 3 mortos além de armamento e arrastado consigo outros elementos feridos e mortos.

"O IN, sempre perseguido pelo fogo das NT, recuou cerca de 200 metros instalando-se entre Sare Banda e Sinchã Sutu donde continuou a flagelar o destacamento até cerca das 22H30 (1 hora e 30 minutos depois do início do ataque, após o que desistiu dos seus intentos, retirando definitivamente.

"2.2. Das forças de Geba (CART 1690):

"Em virtude das péssimas condições atmosféricas não foram ouvidos em Geba os rebentamentos de forma a poderem ter sido localizados.

"Refira-se ainda que o facto do destacamento de Sare Banda ter ficado sem comunicações logo no início do ataque, só permitiu que em Geba se tivesse conhecimento do sucedido cerca das 09H02 do dia 9 de Setembro de 1968, através de dois praças do destacamento que haviam vindo a pé voluntariamente comunicar a ocorrência.

"Prontamente saiu de Geba uma coluna de socorro que, ao atingir Sare Banda, às 05H45, fez um reconhecimento nos arredores, seguido de batida de madrugada, mas já não conseguindo contactar com o IN, que havia retirado na direcção de Darsalame e dirigindo-se para Sincã Jobel.

"Resultados obtidos:

"Baixas sofridas pelo IN; 8 mortos confirmados; muitos feridos sendo possível que hajam mais mortos devido aos rastos de sangue encontrados no carreiro de retirada do IN.

"Material capturado ao IN:


-1 Espingarda semi-automádica Simonov cal.7,62mm

- 1 Espingarda automática G-3 7,62mm

- 1 Granada de canhão s/recuo

- 2 Granadas de lança-granadas foguete

- 1 Granadas de morteiro 82

- 2 Granadas de mão ofensivas RG-4

- 8 Carregadores de Met. Lig.

- 2 Fitas de Met. Lig.

- 2 Facas de mato

- 2 Bolsas p/transporte de munições

- 2 Cantis

- Diversas munições de armas aut.

- Bolsa de medicamentos com o seguinte: Streptomycin. Sulphite-ampolas de 5.000.000 (3 Frascos); éter ( 1frasco; mercúrio cromo (1 frasco); bálsamo (1 frasco); Injecções (desconhecidas) (10 ampolas); Aspirinas em comprimidos (178 carteiras):; madexposte em comprimidos (96); Chinim Sulfur (comp) (6 embalagens de 5); Codemel (carteiras de 10) (5 Comprimidos); adesivo (1 rolo); algodão cardado (1 maço; 1 garrote; 20 mLigaduras de gase de 10 cm x 5cm; 1 seringa de plástico c/agulha". l

sexta-feira, 27 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P27: "Um ataque ao destacamento de Banjara (1968) (2)

1. A propósito do relato do ataque do IN ao destacamento de Banjara e da reacção das NT, comenta o Afonso Sousa:

27 de Maio de 2005:

"Por curiosidade estive a ver as coordenadas geográficas dos locais que, por desempenho de missão, [o A. Marques Lopes]tão bem conheceu.

"São estas as distâncias (em linha recta), [entre os seguintes pontos e Geba, sede da CART 1690]:

- Sinchã Jobel: 13 km
- Sinchã Culo: 60,5 km
- Banjara: 27,4 km
- Sare Madina: 6,6 km
- Sinchã Sutu: 5,6 km
- Sare Banda: 11,7 km
- Camamudo: 11,7 km


"A realidade (pelo terreno) é bem diferente. Como diz o ilustre oficial António Marques Lopes, entre Geba e Banjara eram 45 Km quando, em linha recta eram apenas 27,4. Prevejo que há por ali uma acentuada sinuosidade no trajecto e, se calhar, através de mata algo densa (a mata do Óio era tenebrosa, conhecida por muitos e falada por quase todos).

"Isto é apenas uma constação, à distância, mas certamente não estarei longe da realidade".

Afonso M. F. Sousa



2. Resposta do A. Marques Lopes, no mesmo dia:

"Amigo Afonso M.F. Sousa: Como bem diz, o caminho era mesmo muito sinuoso, ultrapassando em muito a distância entre coordenadas geográficas, que são, de facto, medidas em linha recta. Já agora, peço-lhe que me indique qual o sítio que utilizou para conseguir esses dados. Explico: estou a escrever umas coisas e faltam-me alguns elementos que penso poderei conseguir nesse sítio.

"A propósito de Carlos Fabião [que é referido pelo Afonso Sousa numa outra mensagem anterior], tenho uma óptima recordação dele: num dia em que estive em Bissau (na noite de 31 de Dezembro de 1968 para 1 de Janeiro de 1969), fui destacado pelo Comando-Chefe para montar uma emboscada com um grupo nos arredores de Brá, onde estava o aeroporto de Bissau (era o receio de um ataque na passagem do ano...).

"Umas horas antes, fui até à messe de oficiais, em Santa Luzia, para beber (preparação importante!). Tinha vestido, é claro, o meu camuflado de muitos combates e de muito tempo de mato, estava debotado, algo sujo, se calhar, também com alguns buracos. Estava eu assentado num dos maples, bebendo uma cerveja, quando chega o gerente da messe, um tenente-coronel a quem chamavam o lavrador (parece que a ocupação principal dele era gerir uma horta que havia lá), e me diz peremptoriamente: 'Não pode estar aqui porque o seu camuflado está sujo!'.

"Foi o bom e o bonito, como se calcula. Quase que chegámos a vias de facto. Foi, então, que interviu o então major Fabião, que lá se encontrava também. Procurou pôr água na fervura, e lá conseguiu. O lavrador afastou-se e, em conversa comigo, depois, o major Fabião deu-me razão e disse-me que, se eu quisesse, podia apresentar queixa ao general Spínola, que não era nada meigo com situações destas, em que os combatentes eram maltratados pelos burocratas. Não o fiz, porque não era o meu tipo de guerra... mas agradeci o gesto do então major Fabião.

"A propósito de Barro [também referido na citada mensafem de Afonso Sousa]: lembra-se que, em tempos, lhe enviei uma fotografias de Barro? Mais lá para a frente hei-de enviar mais coisas sobre Barro, onde estive com a Companhia de Caçadores nº 3.

"Um abraço. A. Marques Lopes"

quinta-feira, 26 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P26: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (6)

20 de Maio de 2005:

Castro:

A CART 3492 (Xitole, Janeiro de 1972-Março de 1974) foi exactamente a Companhia que rendeu a CART 2716 a que eu pertenci e fomos nós que fizemos a sobreposição... Também esse Capitão era miliciano.....

Muito gostaria de ter narrações do que se passou no Xitole, mais concretas, por que eu sei que houve para lá muita porrada com eles, segundo me soou aos ouvidos....

Um dia o Comandante do BART 2917, já na sobreposição, apareceu no Xitole. O Luís Graça e o Humberto Reis conheciam-no. Era o Tenente Coronel Polidoro Monteiro... Conto-vos uma peripécia passada com ele.

Perguntava eu, bem perfilado, ao Polidoro Monteiro:

- Meu comandante, a nossa missão é ir ensinar o caminho a esta gente...Proponho que ensinemos o início dos caminhos por onde passamos tantas vezes....

Resposta:

- Vai-te foder, seu caralho, quero que lhes ensinem a toca....

Deu em riso, como é evidente....

O Polidoro Monteiro foi o único Tenente-Coronel que usava arma e eventualmente percorria um pedaço de caminhos connosco... Gostava muito de passear no Xitole, pois de manhã gostava de ir até Cussilinta, ao banho, no Corubal e à noite ir à caça às lebres que iam para junto da mancarra (amendoím], na Tabanca de Cambessé, à guarda do aquartelamento do Xitole....

Sempre vi nele um bom militar e era da inteira confiança de Spínola.... Aliás ele era Tenente-Coronel de Infantaria e foi colocado por Spínola em Bambadinca para ir comandar o BART 2917, tendo o Tenente-Coronel Magalhães Filipe, que era o Comandante inicial do Batalhão, sido posto fora deste e da Guiné por "ser incompetente de Comandar um Batalhão" (assim saiu á ordem)...

A gota de água para retirar o Comando ao Magalhães Filipe foi a operação na Ponta do Inglês onde morreu aquela secção do Cunha [da CART 2716]... Quem merecia a porrada acabou por não a apanhar: é que o incompetente do A.C. vinha de professor da Academia Militar e deveria ter uma grande cunha... O Magalhães Filipe, bom homem e mau comandante, coitado, apanhou a porrada quando estava de férias. Não se percebe como um faz a asneira e o que está de férias é que apanha a porrada (...).

Ainda sobre o Polidoro Monteiro... Um dia ele manda um rádio para o Xime com a seguinte nota: "Dois pelotões formados às 5.30 para sair com CMDT" (...). O Polidoro Monteiro chama o condutor de dia e percorre sem qualquer escolta aquele caminho de Bambadinca ao Xime, a alta velocidade... Resultado: 10 dias de prisão para o Rodrigues, 2º Comandante, e 10 de detenção para outro Alferes... É que eles nunca se fiaram que àquela hora ele aparecesse lá e como tal não estavam prontos como ele mandara....

Luís Graça e Humberto Reis: vocês já não estavam lá, creio, mas que isto se passou, passou... O Polidoro era assim, um bom Comandante, a nível operacional: dizia quantas asneiras havia no dicionário... Muito operacional mas bom sujeito... Vocês conheceram-no ainda....

Abraço. David Guimarães


Nota de DJG e LG: Tanto o Magalhães Filipe como o Polidoro Monteiro já faleceram. O A.C. ainda é vivo, razão pro que não o identificamos. Mas o que lá, lá vai... Aqui estamos apenas a recordar estórias que se passaram connosco, não estamos a julgar ninguém...


20 de Maio de 2005:

Amigos: O sacana do Guimarães tem boa memória. Confirmo o que ele diz. Do Polidoro Monteiro recordo-me bem, tal como do filho da p... do A.C. (que poderia ter-me dado um porrada…). Não sabia que o gajo tinha sido professor na academia. Era um militarista (incompetente…). Os milicianos não gostavam do gajo: obrigava-nos a bater pala. Em Bamdinca, imaginem! Se ele ainda é vivo, deve ter tido muita sorte… Nas operações, o gajo gostava de andar de cu tremido, de avioneta, lá por cima… Nos relatórios das operações, aparece a sigla PCV. È isso mesmo quer dizer.

Nos meus apontamentos escritos tenho o seguinte: “No dia 6 de Fevereiro de 1971, participação na Acção Hipopótamo, integrado no 4º Grupo de Combate da CAÇ 12, mais um 1 Gr Com da CART 2715 [do Xime], numa operação de reconhecimento da região de Madina Colhido, Gundagué Beafada, Gidemo e Lantar. Nessa patrulha tomou o parte o Comandante do BART 2717, o Tenente-Coronel João Polidoro Monteiro, a quem fui dando diversas informações sobre a região”.

Fui o único "cão grande" (como eu costumava chamar, no meu diário, aos oficiais superiores) que se dignou acompanhar-nos no mato, de camuflado e G-3… Quase que ia ficando a admirá-lo, como militar e como homem. Confesso que simpatizei com o homem. Diz-me o Guimarães que ele já morreu… É verdade ?

Quanto aos capitães, já não me lembro do nome de nenhum. Lembro-me do meu, o Carlos Brito, que era um bom homem, muito pouco ou nada militarista...

Este mês, o de Fevereiro de 1971, já na véspera da peluda, foi divertido: o Levezinho e o Humberto (do 2º Gr Comb da CCAÇ 12) e outros camaradas (3º Gr Com), juntamente com um Gr Comb da CART 2715, do Xime, foram levar os nossos periquitos, furriéis, a dar um passeio até à Ponta Varela… Até o nosso Piça, o sorja da secretaria, que deveria estar já com os seus 37 ou 38 anos, foi na excursão turística… Saíram do Xime pela fresquinha, com o cacimbo matinal, pelas 4.30, a caminho do local de piquenique, pela antiga estrada, de má memória, do Xime-Ponta do Inglês…

Por volta das 8 e tal, a caminho da bolanha do Poindon, avistaram população a trabalhar, progredindo com cautela até darem de caras com um grupo IN que fazia a segurança à bolanha (mas que felizmente não era muito numeroso: 10 a 15 gajos)… Zás, embrulharam-se em tiroteiro e roquetada durante um quarto de hora…

Infelizmente eu perdi este espectáculo (não se podia estar em todas…). Felizmente não houve baixas, de parte a parte, que eu me lembre. Mas os periquitos e o Piça não ganharam para o susto. Foi assim ou não ? Mas eu gostaria que fossem eles, o Levezinho e o Humberto, a recordar este episódio… A partir de 1 Março começámos a apresentar-nos no Depósito Geral de Adidos, em Bissau, aguardando o regresso a Lisboa… Até lá, fomos esvaziando tudo o que era garrafa…

Ciao. Luís Graça


18 de Maio de 2005:

Amigo Sousa de Castro: Preciso de ajuda para tentar arrumar um puzzle de Mansambo, a partir da CART 2714, do BART 2917 de Bambadinca, que vocês foram substituir.

O BART 3873 esteve na Guiné de Janeiro de 72 a Abril de 74, certo? E a CART 3493 esteve sempre em Mansambo? Quem é que esteve em Mansambo durante esse tempo depois da CART 2714?

Um abraço.

Humberto Reis


18 de Maio de 2005:

Ora, bem...

- O BART 3873 (CCS), Bambadinca, de Janeiro de 1972 a Março de 1974;

- A CART 3492, Xitole, de Janeiro de 1972 a Março de 1974;

- A CART 3493, Mansambo, de Janeiro de 1972 a Março de 1973, sendo transferida para zona do Cantanhês (Cobumba), onde ficou de Abril de 1973 a Março de 1974;

- A CART 3494, Xime, de Janeiro de 1972 a Março de 1973, sendo transferida para Mansambo, onde ficou de Março de 1973 a Março de 1974;

- A CCAÇ 12 substituiu a CART 3494 no Xime;

- Em Fevereiro de 1974, o BCAÇ 4616 rendeu o BART 3873.

Castro

quarta-feira, 25 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P25: Aerogramas de amigos e camaradas (1) (Luís Graça)

Amigos e camaradas da Guiné, do tempo da guerra colonial:

Lembram-se do aerograma ou, mais prosaicamente,do "corta-capim" u "bate-estrada" ? 

A partir de agora vamos publicar nesta secção as vossas mensagens, desde que não estejam directamente relacionadas com o triângulo Xime-Bambadinca-Xitole, o nosso triângulo da morte, o sector L1. Malta de outros sectores, dentro ou fora da Zona Leste, podem-me fazer chegar as vossas mensagens, que eu prometo divulgá-las, neste blogue e nesta secção (Aerogramas de amigos e camaradas). 

Cliquem no nome que assina a mensagem: encontrarão o respectivo endereço de e-mail, sempre útil para futuros contactos. E não se esqueçam: tragam mais cinco (amigos e camaradas daqueles tempos e daquelas paragens).

25 de Maio de 2005:

Amigos, algum de vocês conhece alguém que tenha feito parte da CART 6254 "Os presentes de Olossato", Março de 73/Agosto 74 ? Se, por acaso, conhecerem alguém, agradecia contacto.

Manuel Castro (Viana do Castelo)


25 de Maio de 2005:

Manuel Castro, indico-lhe dois contactos:

(i) António Pedras (seripbar@sapo.pt);

e (ii) o ex-furriel miliciano João Ferreira (ilferreira@net.sapo.pt)

Certamente que os conhecerá. Eram seus ex-camaradas da CART 6254.

Afonso M. F. Sousa

24 de Maio de 2005:

Caro amigo: Antes do mais, os meus parabéns pelo óptimo trabalho do seu sítio "Subsídios para a história da guerra colonial". É bom que se saiba o que foi [essa guerra], sobretudo as gerações mais novas. Daí que eu lhe esteja a dar a minha colaboração nos seus objectivos.

Queria, agora, dizer-lhe que eu não me chamo A. Américo Marques mas, sim, A. Marques Lopes e que não sou tenente-coronel na reserva, mas, sim, coronel (DFA) na situação de reforma.

Peço-lhe desculpa pela trapalhada do envio das "fotografias de Banjara". O que sucede é que não me dou bem com estas coisas da informática...

Um abraço e bom trabalho.
A. Marques Lopes

Nota de L.G. - O A. Marques Lopes não foi capitão da CART 1690, aquartelada em Geba, com destacamentos em Cantacunda e Banjara. Os relatos que ele publica, neste blogue, sobre o ataque a Cantacunda e depois a Banjara, remonta a acontecimentos passados em meados de 1968. Nessa altura ele era apenas alferes miliciano. Como terá ocasião de explicar melhor, neste sítio, o povo da Guiné ganhou um amigo. Em 1998, trinta anos depois, ele voltou lá... E sobretudo continua a escrever sobre os encontros, felizes e menos felizes, que ele teve com os povos guinéus. Na Net fui encontrar um fabuloso texto (presumivelmente, excertos de um livro que ele anda a escrever). Tomem nota:

Na bolanha, dá para pensar... (13.02.2005)


18 de Maio de 2005:

Amigo David Guimarães:

Cá recebi o seu e-mail, fiquei muito sensibilizado pela sua gentileza. Como todos os que passaram por aquela guerra, naqueles vinte e quatro meses, a Guiné-Bissau é hoje uma terra mítica, algo inesquecível que vive presente para todo o sempre na nossa cabeça. Daí a necessidade de buscar algo sobre aquele tempo passado relacionado com a guerra, o que se torna para nós uma forma de dizer que estamos vivos.

Meu bom amigo, também fui companheiro de luta na nossa querida Guiné, como elemento da CCAC 2636 (companhia açoreana) e fizemos o percurso coroa com o seu início em Brá-Có (fizemos a segurança da estrada alcatroada para Pelundo e ligação a Teixeira Pinto).

O Pelundo era a região onde, em 20 de Abril de 1970, o comando de zona do PAIGC traíu as negociações que decorriam com o grande Chefe General Spínola para a rendição das forças do PAIGC que operavam naquela zona e a respectiva população), fazendo o PAIGC o assassinato dos três majores, Passos Ramos, Pereira da Silva e Magalhães Osório.

Depois saltámos para a zona leste, para Bafatá, ficando metade da companhia adstrita ao Batalhão de Caçadores 2856, e a outra metade ao Esquadrão de Cavalaria 2640. No leste e naquela altura o homem grande da guerra o era o Carlos de Almada, o célebre Chefe Gazela.Um grupo de combate entrou em auto-defesa em Ualicunda, outro em Sare Uale na linha limite da fronteira do Senegal, ficando a base do comando destes dois grupos sedeada em Contuboel. Os outros grupos ficaram em actividade operacional no sector leste com sede em Bafatá, para cortar a eficácia de ataque do PAIGC,
assim tudo o que era risco foi batido em operações de sector como sejam Fá Mandinga, Xime, Bambadinca, Porto Cole, Capé e Mansomine (Mansomine, de má memória, na durissíma Operação Fareja Melhor onde tivemos a primeira baixa, que foi um voluntário que, em acto de coragem e bravura, quis dar solidariedade ao grupo a procurar, detectar e aniquilar quaisquer elementos inimigos, destruindo todos os meios de vida e recuperar as populações civis sob controlo inimigo.

No leste tudo quanto foi matas, rios ou bolanhas foi por nós calcorreado à procura de quem não prometeu vir até nós, para tudo quanto mais não fosse dialogar os caminhos da paz. Por fim, assentamos arraiais em Sare Bacar, a pouco mais de cem metros da linha limite com o Senegal.

Operacionalmente estivemos em exercício em Pirada e Paunca, ficando com dois grupos de combate estacionados em Sare Aliu, Sene e Sora (corredores de infiltração do PAIGC para selecção de guerrilheiros e por onde infiltravam o armamento pesado).

Meu bom amigo, muitas peripécias se passaram fizemos a guerra sem querer, enfim agora isto faz parte da história que está pouco passada para o papel. Temos de unir esforços e todos contar o que foram aqueles dias, não podemos deixar para trás o que foram esses tempos e deixá-los esfumar-se como o fumo de um cigarro.

Meu bom amigo vou deixar-lhe os meus contactos:

(i) Casa: João José Braga Neves Varanda,
[...]

(ii) Serviço: João José Braga Neves Varanda, Serviços Académicos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (Secção de Alunos), Porta Férrea - Paços da Escola, 3004 - 545 Coimbra.

Deixo-lhe os meus préstimos para tudo o que desejar de Coimbra. Não quero findar este e-mail sem dizer ao meu bom amigo que estou a escrever um livro de memórias sobre a nossa passagem pela guerra colonial na Guiné-Bissau.

Com um grande abraço.
Varanda

Guiné 63/74 - P24: O ataque ao destacamento de Banjara (1968) (1) (Marques Lopes)

Texto enviado por A. Marques Lopes, Coronel (DFA) na situação de reforma.

1. Os que já me conhecem neste grupo, sabem que o meu endereço anterior era banjara@netcabo.pt (o tal que tive de mudar).

Vou-vos falar sobre Banjara. Não havia população civil e estava cercado por mata. Estava só um pelotão, 30 efectivos. A um quilómetro havia uma fonte onde, alternadamente, os nossos e o PAIGC se iam fornecer de água. Às vezes, encontravam-se… Mas havia uma fuga concertada dos dois lados, sem tiroteio. Ficava a 45 kms da sede da companhia (a CART 1690, em Geba).

Como podem ver pelo mapa [do sector de]Geba que já vos enviei, tinha do lado esquerdo a base de Samba Culo do PAIGC e do lado direito a base de Sinchã Jobel. Os abastecimentos eram feitos por terra, com grandes dificuldades. Às vezes demoravam muito tempo, pelo que era necessário recorrer aos "produtos" da natureza, isto é, apanhar algum bicho para comer (javalis, pássaros, macacos e, até, cobras). Neste ataque de que vos dou o relatório, tentaram fazer o mesmo que em Cantacunda, mas sem sucesso.


2. Ataque a Banjara:

24 de Julho de 1968.

"Desenrolar da acção: No passado dia 24, pelas 18H00, o destacamento de Banjara foi atacado por numeroso grupo IN, estimado em cerca de 80 elementos (Bigrupo reforçado) com o seguinte armamento:

-Morteiro 82

-Morteiro 60

-Bazooka

-Lança-Rocketes

-Metralhadoras pesadas

-Armas ligeiras


"O ataque terminou às 19H15. Verificou-se que, durante o ataque, as NT sofreram 1 morto e 2 feridos, tendo sido atingido por uma granada de morteiro a caserna e por uma granada do lança-rocketes o depósito de géneros.

"O ataque foi efectuado no sentido Norte-Sul tendo o IN instalado alguns elementos do lado Sul. Verificou-se que mal o IN abriu fogo com os morteiros 82 e 60, alguns elementos correram imediatamente para a rede de arame farpado, cortando o arame nalguns sítios, procurando penetrar no aquartelamento. No entanto, devido à pronta reacção das NT, não o conseguiram, tendo sido obrigados a retirar, após o que continuaram a flagelar o aquartelamento sem, contudo, causarem mais baixas às NT.

"Diversos: A hora a que o ataque se realizou quase que coincidiu com a hora da terceira refeição. Verificou-se que a maioria dos soldados se encontravam a tomar banho, pois tinham acabado de jogar uma partida de futebol.

"O impacto inicial do ataque foi sustido principalmente pelo soldado Manuel da Costa que, mal se iniciou o ataque, correu para a metralhadora pesada Breda e, sem ser apontador da mesma, pô-la imediatamente [em acção] e manteve-se sempre nesse posto, e pelo soldado José Manuel Moreira da Sila Marques que, sozinho, em virtude dos outros dois camaradas que constituíam a esquadra do morteiro 81, terem sido feridos, funcionou com o mesmo, tendo a presença de espírito para, a certa altura, e após ter verificado que algumas das granadas estavam sujas de terra, despir os calções para limpar as mesmas e poder assim continuar a bater o IN com um fogo bastante certeiro.

"A coluna de socorro, constituída por 1 PEL REC do EREC [Esquadrão de Reconhecimento]2350, 1 GR COMB da CART 1690 e pelo PEL CAÇ NAT 64, saiu de Saré Banda às 07H30 do dia 25 (e tal deveu-se a ter sido necessário recolher as forças que executavam a Operação Iluminado) e atingiu Banjara às 15H00, pois foi necessário picar toda a estrada até ao destacamento de Banjara.

"Quando a coluna lá chegou ordenei que um GR COMB batesse toda a região, tendo o mesmo detectado várias manchas de sangue e pedaços de camuflado IN, e munições de armas ligeiras.

"Devido às baixas, deixei uma secção a reforçar o destacamento de Banjara, tendo em seguida regressado a Geba.

"Resultados obtidos:

"Baixas sofridas pelo IN: dois mortos confirmados; várias baixas prováveis; material capturado: munições de armas ligeiras e uma granada de morteiro 82".

Nota de L.G.
- As fotos sobre Banjara estão (ou vão estar muito em breve) disponíveis na página Subsídios para a História da Guerra Colonial > Guiné (3) > Ontros Sectores da Zona Leste

sábado, 21 de maio de 2005

Guiné 63/74 - P23: Os anjos da morte (Luís Graça)

Excertos do diário de um tuga:

Bambadinca, 20 de Agosto de 1969:


Nisto os páras são bons. Têm de ser bons. Tiram efeito do factor surpresa. Do terror que vem dos ares. Como os anjos do céu das visões místicas de Santa Teresinha, empunhando espadas de fogo, eles caem fulminantes sobre o objectivo e em poucos minutos desbaratam o IN ou obrigam-no a uma retirada desastrosa. Os seus contactos com tudo o que mexe no chão são breves mas mortais. Vejo nos meus camaradas, milicianos, uma secreta, inconfessável, admiração por esta elite da tropa.

A nós, tropa-macaca, puseram-nos no anfiteatro, em semicírculo, nas proximidades da bolanha do Rio Biesse. Eles são os actores, nós os espectadores. Quando muito somos simples figurantes. É uma peça de teatro com três actos. Acto final: um heliassalto, a presa, os roncos... Eles são chitas, especialistas nos 100 metros. Nós, somos chacais, verdadeiros corredores de fundo. Eu cheiro a merda que tresando, aqui postado na orla da mata.

Há um mês que andamos pela região de Camará [ a nordeste de Mansambo, no regulado de Badora, no limite do Sector L1] em patrulhamentos ofensivos. De dia e de noite, ao calor e à chuva, como uma matilha de cães a reconhecer o terreno, a bater a coutada, a farejar a caça, para depois virem os anjos do céu, em formação, em voso raso sobre os palmares, cair sobre as pobres presas encurraladas.

A primeira vaga é lançada a oeste da bolanha, penetrando os paras logo de imediato na espessa mata que se estende para sul e onde há dias tínhamos localizado um acampamento. Eles vêm de Bafatá, de helicóptero. Impecáveis no seu fato camuflado de arcanjos da morte. Frescos, perfumados.

Devido ao mau tempo, os T-6 não puderam bombardear previamente a zona. De qualquer modo, o helicanhão, aterrador como um dragão alado, lança o pânico entre os guerrilheiros, pondo-os em debanbandada, enquanto na estrada as forças de Mansanbo fecham o cerco, cortando uma possível retirada para Biro, do outro lado da estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole.

Cinco minutos depois é capturado um guerrilheiro armado de RPG-2. Do interrogatório sumário, os paras arrancam-lhe poucas informações. Diz apenas chamar-se Malan Mané, pertencer a um bigrupo (reforçado, ou sejam, oitenta homens), comandado por Mamadu Indjai e disperso em pequenos grupos pela mata. Pelo apelido, Mané, parece-me ser mandinga. Ficará aqui preso em Bambadinca, depois de esprimido pelos paras e pelos pides.

Sucedem-se mais duas vagas de helicópteros e os paras passam então a percorrer a mata no sentido norte-sul. Ouvem-se tiros de rajada, para além do matraquear do helicanhão: são feitos dois mortos e capturadas três armas automáticas. Fraco resultado, fraco ronco, para tanto aparato bélico. Afinal, trata-se de uma operação a nível de agrupamento, envolvendo o sector L1 (Bambadinca) e o COP 7 (Bafatá).E, no mínimo,o combate não é leal: há um guerrilheiro para cinco combatentes nossos...

Quanto a acampamentos ou arrecadações de material, nada de importante é detectado. Passado o efeito de surpresa, os guerrilheiros, dispersos em pequenos grupos, conseguem fugir da zona do heliassalto, e retiram-se muito provavelmente na direcção do Biro.

O pano cai sobre o palco: a tropa especial regressa a Bafatá, a tropa-macaca segue para Bambadinca e Mansambo.

PS - Soube-se mais tarde que Mamadu Indjai, o mítico comandante do Sector 2 no meu tempo, foi ferido com gravidade em trocas de tiros com as forças de Mansambo e evacuado. Fiquei com uma secreta admiração por este homem que nunca chegarei a conhecer. Nem sei se hoje está vivo ou morto, depois das lutas fraticidas que ocorreram no seio do PAIGC antes e depois da independência. Lisboa, 21.05.2005.