quarta-feira, 5 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P209: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (1)

Guiné-Bissau (2005) > Antigo e actual quartel de Mansoa.

© Jorge & Paulo Salgado (2005)

Texto do Paulo Salgado

Camaradas e Amigos:

Vou tentar relatar (narrar, contar, ficcionar quanto baste) as minhas vivências nesta terceira (ou quarta?) comissão / presença demorada... (Agora estamos numa Missão que é um termo muito divulgado por quem passa aqui curtas ou mais longas estadias em nome de alguém a fazer qualquer coisa – confesso-vos que tenho visto muita coisa mal feitinha).

Mas estou para aqui com um arrozoado inicial que só faz sentido porque estamos entre Camarigos (bolas, saiu!) para vos dizer que gostaria de poder cumprir este desafio. Mas essa promessa só pode ser cumprida quando me der na real gana, quando tiver um tempo solto, quando levantar emboscadas, quando deixarem de me atacar… Ou seja: não é um diário, nem semanário, nem mensário – o que for, seguirá. Mas ao correr da pena.

O Luís Graça dar-lhe-á a forma mais conveniente para ser lido no nosso blogue.


CAPÍTULO I – Viagem

O filho da mãe do Carvalho Araújo fazia a primeira viagem depois de transformado em transportador de carne para canhão – ele era um dos transatlânticos entre Lisboa e Açores: um barquinho, sem quilha, chato, que levava víveres e algumas pessoas e trazia gado, muito gado das ilhas (vós já imaginastes o gado numa quilha?!)

Então os chefões do tempo resolveram fazer plataformas, e pôr o barco plano, no fundo carradas de pedra para o navio se aguentar e equilibrar e nele construíram camaratas, aos montes: era ali que vinha a tropa macaca, jogando cartas, zangando-se, vomitando o pouco que se comia.

Mas, nessa primeira viagem (que a CCAV 2721 e mais duas companhias de que não me lembro o número), o barquinho andou a acertar agulhas nesse dia 4 de Abril de 1970 (nesse dia, anos mais tarde, nasceria a minha filha Paula – a tal que está em Oxford, e que adora esta terra, que é a Guiné-Bissau) desde o Cais de Alcântara até quase Santa Apolónia durante seis horas… E as famílias , rio acima e rio abaixo, a fazerem adeuses com lenços brancos, na esperança de o barco não passar o Bugio – a malta triste, encostada ao convés (que me desculpem os marinheiros se a linguagem não está correcta) também triste.


Desta vez, adivinhais quem estava: o Humberto. O malandro emboscou-me à entrada da porta / gate 18 - embarque para Bissau. Lá estava, apanhou-me. E demos aquele abraço. Descobriu-me, porque levava uma miúda e a minha mulher.

Que sorriso aberto, o do Humberto! Que delicioso encontro (ou reencontro?), não esquecerei! Aliás, oh Humberto, fiquei com a sensação de que te conhecia, que nos cruzáramos antes… ou já será a minha senilidade?!? Mas, olha que eu tenho uma memória visual muito boa… Foi giro estares ali, abraçares-me, com uma mão cheia de amizade e de carinho, e dares-me o teu cartão…

O pior foi à chegada. A miúda já não me queria largar. Tinha sido bem tratada no Hospital de Gaia e de Santo António – foi o bom e o bonito! Valham-me os deuses todos, quase chorei ao ver a criança cair, obrigada, nos braços dos pais. Aliás, confesso-vos: vou passar um mau bocado. Estas coisas dão-me volta ao coração. A Maria da Conceição [Salgado] e o Jorge (magnífico e exemplar colaborador, tiro-lhe o meu chapéu) ficaram mesmo chocados! Pudera!

No Olossato, a malta dizia que eu iria meter o Chico. Eu era, de facto, um bocado disciplinado e gostava das coisas direitas. Em Lamego, nos 'rangers' aprendera muito sobre a maneira de andar na mata, a sobrevivência, a disciplina. Pois não meti o Chico e, penso, à distância: como eles se enganavam… eu até já tinha uma profissão: professor primário.

A seguir, foi o que vos tinha dito: primeiro umas gorjetas para facilitar a saída (sempre ajuda para o peixe), os putos, os acotovelanços, o motorista João. E logo a seguir pousar as coisas no Bairro da Cooperação, ir ao Hospital, ao Laboratório com o Jorge (técnico de análises clínicas que veio também para fazer a manutenção dos equipamentos).

Primeiro a obrigação e depois a D. Berta – a Instituição D. Berta, a Pensão Central (merecerá um capítulo bem à parte), onde almoçámos e bebemos as primeiras poderosas Cristal (termo que aprendi com um médico moçambicano que esteve aqui no Projecto…e como foram dias porreiros com esse gajo…)... Estavam poderosamente geladinhas!

No sábado fui visitar alguns funcionários no [Hospital] Simão Mendes – a puta da cólera lá está. Não está só nos jornais. Está ali, viva, matando…

Deixámos a cerimónia a decorrer no Palácio Colinas do Boé – Assembleia Nacional (os chineses quiseram deixar a marca de palácio), já o discurso do Presidente ia a meio (na rádio ouvíamos a oratória) e era uma boa altura para nos safarmos da confusão de convidados, de amigos - que sei eu? - e saímos, correndo a almoçar a Uaque (perto de Jugudul, perto de Mansoa, onde está o António que dirige um turismo de caça e pesca – é uma hipótese para dar resposta ao apelo de muitos, em especial do João Tunes, em termos de visita a Bissau), demos um salto a Mansoa e o Jorge tirou umas fotos ao actual aquartelamento.

O Jorge Neto tem razão: não se pode tirar fotos à maluca e sem autorização. Tivemos que andar depressa.

Bolanha de Mansoa © Jorge & Paulo Salgado (2005)

Mas, meus Caramigos: vimos a azáfama da plantação do arroz, a ida à pesca, as crianças correndo ou ajudando, um jovem balanta que vinha do trabalho com o seu arado, e pedaços do velho pontão de Mansoa (substituído por uma ponte). E a bolanha, bela, longínqua. Verdíssima, alagadíssima.

Ainda fomos pela picada fora, no finzinho de tarde até ao porto de Encheia, mas a bolanha não deixou a viagem ir até ao fim. Demos boleia à Maria: que sorriso e que simpatia.
- A nós, portugueses (tugas…) – disse eu, num arremedo de crioulo - e ela riu (ainda temos que esclarecer essa de tugas, a coisa não está clara, Amigos e Camaradas).
- A mim na odja ki bos i bom, ki ta patim bolea…- e ficámos satisfeitos com a satisfação da mulher balanta.

Ao fim, mesmo, mais duas fotos (entre muitas) de um pôr de sol com cores amarelas e cinzentas. E passámos Nhacra, Safim e, ao lado, o aeroporto com alguns aviões a partir com os convidados…

Partilhar “isto” com a minha mulher e com o Jorge foi uma lufada de ar fresco.

Dia di dumigu: na diskansa um bukadu; dia di segunda fera nô tem ki pega teso.

Mantenhas pa tudus.
Paulo Salgado.
Bissau, 2 de Outubro de 2005

PS - Seguem fotos em novas mensagens separadas porque a Net funciona aqui à velocidade africana....

terça-feira, 4 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P208: Guerra limpa, guerra suja (3) (Luís Graça)

1. Texto de Luís Graça:

Meu caro João, meus caros amigos & camaradas (versão "universal", sem bolinhas vermelhas ao canto superior direito):

1. A realidade é sempre mais complicada do que a construção (social) que dela fazemos... Ainda não li o livro da Dalila, vi só um resumo... É claro que a Pide trabalhava bem articulada com as NT... O Spínola e a sua corte protegiam os gajos porque também precisavam deles.. No 25 de Abril, ele terá deixá-los cair, não sei...

Fui obrigado uma vez a partilhar um almoço em Bafatá, com dois ou três pides... Como antifascista, desde os meus catorze, quinze anos, eu tinha um asco aos pides... Eu estava incomodado com a merda da conversa e com a presença deles: um deles tinha levado uma dentada de um "filho da puta de um turra" (sic) mas não lhe pudera "cascar" (sic), em resposta, por causa do Caco Baldé, o Spínola... Tenho isso algures escrito nos meus canhenhos (eu tinha um diário lá na nhos terra....)...

Mas também tenho outros revelações tenebrosas que os meus soldados (fulas) me contavam, nas noites longas que passávamos no mato, em operações, em emboscadas, em patrulhamentos ao Mato Cão (Rio Geba Estreito, para protecção da navegação civil, os barcos da Casa Gouveia que iam e vinham de Bafatá), em tabancas de autodefesa, aqui e acolá...

Revelações da guerra pura e dura, em 1963, 64, 65, no tempo do Schultz, que terá sido uma verdadeira política de terra queimada e de genocídio (é a minha interpretação: nunca saberemos a extensão disto; há documentos da tropa que continuam secretos; além disso, branqueávamos os relatórios...).

No entanto, no meu tempo, havia ainda muitos vestígios desse tempoo: eu (mas também o Humberto, o Tony, Fernandes) passei por muitas tabancas, balantas e beafadas, reduzidas a cinzas, no outro tempo; havia só algumas estacas, tudo tinha sido invadido pelo mato; os habitantes terão fugido, "ido no mato", ou terão sido deslocados)...

Assim como já contei (está no blogue) a história, arrepiante, do Seco Camará, mandinga, que foi nosso guia em muitas operações no Xime, até ao dia em que lerpou, com um roquetada (andei a apanhar os bocados dele na manhã de 26 de Novembro de 1970; fizemos uma trouxa com o que restou, dele e de mais cinco dos nossos...). O Seco era o gajo que matava, à paulda, de noite, os "turras" (ou elementos suspeitos, ligados à população), e depois o capitão do Xime, "manga de bom pessoal" (sic), pagava uma laranjada no regresso ao quartel: o desgraçado contou-me esta estória, a mim, uns tempos antes de morrer...

Tudo isto se terá passado no início da guerra, por volta de 1963/64... Agora, não vos posso garantir que não era fanfarronice do gajo... Não creio que fosse. A coisa colava com outras estórias que os meus fulas me contavam, com aquele ar inocente e amoral das criancinhas que sabem coisas horríveis mas não têm (ainda) o sentido do trágico e do horror...

E o Uloma , dos comandos africanos ? ... De facto, tens razão: deixámos a parte suja da guerra para os pides (mas também para os gajos dos pelotões de reconhecimento & informações, como o sinistro sargento do cavalo marinho de que eu falo no post de 11 de Julho de 2005)... Para os pides e ... para os próprios guinéus!... Essa é que é a verdade. Mas também alferes e furriéis milicianos que eram mais chicos que os chicos...

Andei sempre de arma calada, sem bala na câmara, sem granadas, sem nunca ter feito fogo debaixo de fogo... Mas também engoli muitos sapos, até que um dia rebentei e chamei uns nomes feios ao A. C. e ao resto do comando do BART 2917, em plena parada, em frente à messe de oficiais, alto e bom som: "assasinos, cabrões, criminosos de guerra, limpo o cu às folhas do RDM"...

Nunca mais pude esquecer estas palavras de raiva e de impotência... Não me deram uma porrada, não sei porquê: (i) talvez por que por tinham a conscência pesada, no dia 26 de Novembro de 1970, em que tivemos seis mortos e 7 feridos graves; (ii) talvez por que não queriam arranjar problemas com um "gajo porreiro" de uma "companhia de pretos" que gostavam do tuga, o "furié Enrico" (Henriques, o meu apelido paterno)...

Mas eu hoje sei: havia já um claro desiquilíbrio de forças entre os tontos dos oficiais superiores e o resto da maralha a começar por nós, milicianos; eles já não tinham, por falta de competência e sangue na guelra, qualquer força (física e moral) para comandar; (iii) esse A.C.
teve uma entrada de leão e uma saída de cordeiro em Bambadinca; em suma, (iv) os gajos não tiveram tomates para me dar uma porrada; além, disso, (v) éramos muitos unidos, mesmo que a maior parte da malta não fosse lá muito politizada; (vi) por fim, o meu gesto foi interpretado, pelo meu capitão, como um "distúrbio emocional", pelo que no dia seguinte fui enviado à consulta do Dr. Vilar (se não me engano, o mesmo que é amigo do Guimarães): dá-me um Valium 10 que eu nunca cheguei a tomar; recordo-me de ter sido muito porreiro para comigo; interpretei o seu gesto como uma prova de solidariedade e de cumplicidade:

- Os filhos deles é que precisam de Valium 10 para ficarem com baixa psiquiárica em Lisboa e livrarem-se da guerra...

Enfim, é giro, há anos que não pensava nesta merda e agora fico perturbado... Eu sei que a escrita, como tu diz o João Tunes, é meia cura... Mas eu nunca mais consigo perdoar a mim a mesmo o não ter tido coragem ou dinheiro ou apoios para ir para Paris (aos 18 anos, como cheguei a planear), ter sido "apanhado como um cão" e mandado para a Guiné... Se calhar, isto também se passou com alguns de vocês... Eu não sou diferente.

Continuando: a gente não sabe exactamente o que se passava com os paras, comandos, fuzos, que não eram menos brutais... Já repararam que, tirando o Jorge Santos (fuzo, em Moçamboque), não temos aqui ninguém das tropas especiais na nossa tertúlia ?... Há malta das tropas especiais que ainda hoje falam por meias palavras, com um grande sentimento de culpa, julgo que muitos deles precisariam de apoio terapêutico e psicológico...

Tenho para aí também um post sobre os paras (uma operação que fizémos juntos e em que apanhámos o pobre do Malan Mané, roqueteiro, mandinga, que fazia parte de um bigrupo comandado pelo lendário Mamadu Indjai, também ferido nessa operação, em Setembro de 1969...).

Em suma, gostei do texto do João Tunes. É saudavelmente provocatório. Temos dificuldade em falar disto. Ele toca aí num ponto sensível para a rapaziada, pelo menos para os operacionais: por exemplo, eu, o António Levezinho, o Humberto, todos da CCAÇ 12; o Marques Lopes, que esteve como alferes, miliciano, em Geba e em Barro, e que foi gravemente ferido; o Vitor Junqueira que também era alferes, atirador; e depois há o Guimarães, que era de minas e armadilhas; e outros mais recentes, que ainda não se manifestaram muito... Estou a citar de cor... Não somos muitos, os operacionais...

Bom, vou ter que basar... Ciao. Façam o link para este endereço (se quiserem saber a estória do gigante Uloma, felupe, caçador de cabeças):

11 Julho 2005 > Guiné 69/71 - CIII: Comandos africanos: do Pilão a Conacri

Vejam também o que o escrevi, há tempos (uma parte de vocês já deve ter lido) sobre o guerrilheiro Malan Mané (o primeiro de vários que capturámos)...

09 Agosto 2005 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga

sábado, 1 de outubro de 2005

Guiné 63/74 - P207: Estórias do Xitole: Tangali e o quico do furriel Fevereiro (David Guimarães)

...... 58, 59 ... 70, 71...89, 90... 98... 99... 100! Cem canhoadas em 10 minutos no ataque ao aquartelamento do Xitole.

© David Guimarães (2005)


Texto do David Guimarães (ex-Fur Mil Guimarães, CART 2716, Xitole, 1970/72):

1. Era costume nós irmos fazer protecção nocturna à tabancas. Era também uma forma de acção psico... Um dia lá fui eu e o Fevereiro a comandar uma secção do 3º grupo de combate. Tangali era o nome da tabanca, a última que estava à guarda do Xitole. Ficava na estrada Xitole-Saltinho (os da CCAÇ 12 muitas vezes passaram por ela).

Bem, saímos pelo fim da pista do Xitole, com dois Unimogs 411 e lá fomos. Era mesmo chato, ir dormir para a tabanca e logo para aquela:
- Pôça, eles até eram todos de lá! - pensei eu, pouco ou nada confiante na lealdade da população local para com as NT. Na realidade, os de Tangali jogavam para os dois lados, conforme as conveniências... Bem, lá fomos e ao fim de 7 Km lá estávamos nós.... Nisto, diz-me o Fevereiro:
- Porra, Guimarães, perdi o meu quico!
Entretanto, vejo e ouço toda aquela gente alarmada:
- Furriel, furriel, manga de ronco lá para o lado do Xitole!... Muito tiro, muito tiro.
- Transmissões, liga para o quartel, pergunta o que houve, ordeno eu.
- Furriel, ninguém atende, não consigo nada, porra para isto!
- Bem, nós estamos aqui, amanhã veremos o ronco, arrematei eu.

Nessa noite não dormimos tão descansados:
- Porra, ronco e tiros, sei lá, vamos mas é ficar atentos...
A noite nunca mais acabava... De manhã cedo, bem formados e atentos, lá fomos estrada fora, de regresso ao Xitole e entrámos pelo fundo da pista de aviação... Bem, buracos no chão não faltavam. Diz-me o Fevereiro:
- Guimarães, olha ali o meu quico!
- Boa, disse eu, tiveste sorte, ele apareceu. - Ele pega no quico e mesmo no local da nuca estava um furo:
- Já viste - exclama o Fevereiro para mim - se eu tinha a cabeça aqui dentro!...
Bem, lá chegámos ao aquartelamento:
- Tanto buraco!
- É, pá, os gajos apontaram para aqui e até parecia que disparavam em rajada os canhões sem recuo... Vinha daquele lado do Corubal...

Tarefa matutinal: ver os estragos e contar as canhoadas; sim, as marcas bem visíveis e os cotos das granadas bem enterradas no chão como se fossem setas de índios:
- Olha, esta entrou no depósito de géneros... vamos ver! - Depois de bem contados, parece que só se tinham partido 4 garrafões de vinho... Coitados dos garrafões, do mal o menos...
- ... 58, 59 ... 70, 71.... porra e mais aqui ... 89, 90... 98... 99.... e esta também ... 100!!!

O ataque tinha demorado... dez minutos!

- Porra, porra!!!, ainda dizia o Fevereiro, a olhar para o estado lastimoso em que ficou o seu quico.

2. Nessa altura tinha chegado ao Xitole um morteiro de calibre 107 mm. Para dar instrução sobre esse morteiro tinha vindo um primeiro sargento especialista de armas pesadas, ex-cabo e ex-comandante de um posto qualquer da GNR lá na Metrópole.

Experimentou-se o dez sete, assim chamávamos ao morteiro.... Poça, parecia uma arma de artilharia, boa não há dúvida, pelo menos muito barulho fazia....

De manhã, o 1º sargento costumava dar as aulas teóricas sobre o funcionamento da coisa e não é que, por ironia do destino, muitas noites e algumas seguidas éramos atacados sempre de canhão sem recuo.... A certa altura o homem do bar dizia:
- Fui eu, ao bater a porta do frigorifico... - É que que esse barulho punha-nos todos a caminho do abrigo... Tantas vezes ele repetiram aquelas flagelações e o dez sete a funcionar... Logo de manhã, as aulas práticas e, à tarde, a teóricas...

Até que se aproximou o dia da minha licença disciplinar de 30 dias... Sim, aquilo que chamávamos férias.... Bem, mas antes teria que se ir a Satecuta [uma das bases do PAIGC, junto ao Rio Corubal, a oeste do Xitole]... Aquilo parecia uma cidade, já tinha sido visto de avioneta....

Na primeira ida, ficou a companhia de formação e comando e fiquei eu. Não relatarei o que disseram, relatarei apenas o que vi do aquartelanmento... Enfim, sem querer ser herói, percebi quanto um jogardor de futebol sofre quando está na bancada... Era o caso: a certa altura naquele dia, uma avioneta lá londe começou a andar em círculo, por baixo os jagudis na mesma em círculo, ouviam-se tiros e mais tiros, rebentamentos e mais rebentamentos. Um inferno!
- Ai, como estarão eles, coitados, que coisa, dizia eu cá para mim.- A certa altura, inesperadamente a avioneta (uma DO) afasta-se e os tiros terminam. E os jagudis também desaparecem....

Por fim, todos sujos, cagados, os bravos voltam:
- Não, não deu para entrar....

Em cada operação em que havia tiros, que coisa, vínhamos todos enfarruscados....
- Bem, tudo muito bem, mas eles não deixaram, recebemos ordem de retirar pelo Comandante... Ninguém ficou ferido, ao menos isso... Enfim, desta vez ao menos as balas do inimigo nos acertaram.
- Ainda bem, disse eu cá para os meus botões - Agora, Guimarães, vais até à metrópole, num voo TAP e pela agência Costa... E que tal? De avioneta até Bissau, que luxo!!!

Ai, era o meu baptismo de voo. Porreiro, o meu cu já tinha calos do Unimog...
- Mas isto é mesmo bem bom... Adeus Xitole, adeus camaradas, adeus Fevereiro... Até daqui a um mês.

sexta-feira, 30 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P206: Guerra limpa, guerra suja (2) (Marques Lopes)

Resposta do Marques Lopes ao João Tunes:

Estás enganado, camarada ex-combatente João Tunes.

É verdade que a PIDE tinha esse principal papel, e eu assisti, em Bafatá, ao início da tortura de um prisioneiro por essa polícia e por um capitão de informações. Revoltei-me e fui-me embora, quando vi meter o homem num bidão de água até ele gorgolejar.

Em Geba, os alferes que estávamos tivemos que nos afastar um dia (o Maçarico viu e que conte, o Luís Graça conhece-o) quando o capitão (que até morreu lá) e o primeiro-sargento deram tal enxerto de porrada a outro prisioneiro que este se borrou todo e se mijou.

Em Barro, sei de um alferes que, duma só vez, matou dez elementos da população civil controlada pelo PAIGC.

Esta é diferente, mas também sucedeu: em Samba Culo, um soldado do meu grupo de combate quiz saltar para cima de uma moça que tinha levado uma rajada na barriga (acabou por morrer, coitado, apesar de tudo, no cativeiro em Conakri). Não o fex porque lhe dei uns murros e uns pontapés.

É verdade que na Guiné não terá sido tanto como nos outros locais, mas terá havido alguns casos, certamente.

Mantenhas.
Cantacunda

Guiné 63/74 - P205: Bibliografia de uma guerra (12): (João Tunes)

Texto do João Tunes:

Camarigos,

Julgo que conheçam o livro de crónicas sobre a guerra na Guiné do Médico José Pardete Ferreira, intitulado O Paparratos - novas crónicas da Guiné (Lisboa: Ed. Prefácio, 2004; Colecção: História Militar) (1).

Além de ter estado lá no período 1969-71, andou não só pelo chão manjaco como por Bambadinca. Admito até que alguns de vós o tenham conhecido pesoalmente (o que não foi o meu caso, embora tenhamos andado, talvez ao mesmo tempo, a pisar o mesmo chão).


Título: O Paparratos: Novas Crónicas da Guiné 1969-1971
Autor: José Pardete Ferreira
Editora: Prefácio
Colecção: História Militar
Ano: 204O

O autor é agora "cirurgião-medicina desportiva" e gosta (e sabe, muito bem) escrever.

Para os que não conheciam ou não leram este livro, aconselho-o vivamente. A atmosfera, a vivência e o vocabulário recriam bem o que todos nós passámos. E a figura do Soldado Paparratos está muitíssimo bem desenhada. Recomendo.

E talvez possa ter o efeito de os mais acanhados puxarem pelo teclado e desfiarem a memória, reconstruindo-a e transmitindo-a (para que a história não se esqueça de nós). O que só faz bem, garanto, pois foi assim que cheguei à meia-cura (2).

Abraços,
João Tunes

_______________

Notas de L.G.:

(1) vd. post de 17 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CX: Bibliografia de uma guerra (4)

(2) O livro estava hoje a cerca de € 15 na ACVL - Livraria On Line

quinta-feira, 29 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P204: Recordações do Caco Baldé no Xitole (David Guimarães)

© Manuel Ferreira (2005)

O Soldado condutor auto Ferreira, de bigode, "com amigos nos fados".

Foto provavelmente de 1973, e tirada em Mansambo (CART 3494, que se mudou do Xime para Mansambo em Abril de 1973; pertencia ao BART 3873, 1972/74, que veio render o BART 2917, 1970/72, a que pertencia a CART 2716, aqui referida neste post).

O título da letra de fado podia ser "Fado do Caco Baldé". Repare-se no modo de vestir dos nossos soldados... O isolamento, o clima, a guerra, a fadiga geral e o stresse psicológico levaram a uma acentuada quebra da disciplina e do aprumo dos militares...


Texto do David Guimarães:

Um helicóptero que pousa na pista do Xitole, gente da alta e o homem grande (General, Comandante-Chefe e Governador do CTIG - Comando Territorial Independente da Guiné): António de Spinola, ele mesmo, mais conhecido por... Caco Baldé!

Spínola era conhecido por Com-Chefe, Caco, Caco Baldé, Homem Grande de Bissau...

Foto > Fonte: Extracto da capa do livro de Pintasilgo, J. M. - Manga de Ronco no Chão. Lisboa: s/e. 1972.


Volta à companhia, verificação da posição das NT dentro do Aquartelamento... Rapidamente se forma um U, cada qual fardado o melhor que podia, era um ver se te avias.... Sua Excelência, de pernas afastadas, mãos atrás das costas, impecavelmente fardado e com seu monóculo começa assim um discurso:

- Tenho péssimas informações do Batalhão [ BART 2917, com sede em Bambadinca ], à excepção desta companhia [ CART 2716 ]... Continuem, e tal e tal... 

E lá foi o homem embora: meteu-se no helicóptero e saiu pelos ares da Guiné, algures no Leste, rumo a Bissau, possivelmente.

- Porra que elogio, mas para quê? Ele afinal até é bom!
- Porreiro, dizia um...
- Que se foda, dizia outro...
- Bem, sempre é melhor este elogio do que o contrário...
- Que se lixe, já foi...
- Mas seremos assim tão bons para levar este elogia? Tão novos... merda, que se dane...

Percebemos pouco tempo depois o que ele nos queria a dizer... Tinha-se realizado a Op Abencerragem Candente (Ponta do Inglês, Xime, 25 e 26 de Novembro de 1970, que o Luís e o Humberto já têm aqui evocado várias vezes), com um porrada de mortos e feridos...

Aí percebemos melhor o discurso do General quando na ordem de serviço veio o seguinte (reproduzo de cor): Segue para a Metrópole o Tenente Coronel de Artilharia M. F. por ser incompetente para comandar um Batalhão... Em seu lugar nomeio João Polidoro Monteiro, Tenente Coronel de Infantaria, etc. etc. etc... Nestas coisas, o Caco Baldé não brincava em serviço, cortava a direito... Não percebo por que é poupou o major A.C. (dizem que foi por ser antigo professor da Academia Militar...).

- Ai olha, ele varreu com o Nord Atlas - assim chamávamos nós ao M. F. (um bom homem, mas que de guerra efectivamente só deveria saber o que vinha nos livros)... Apanhou uma porrada desse nível e, ainda por cima, estava de férias, enquanto o A. C., o principal responsável pelo fracasso dessa operação e o consequente desastre, ficava...

© David J. Guimarães (2005)

Guiné > Zona Leste > Xitole > 1970 : O furriel miliciano Guimarães, de minas e armadilhas, no aquartelamento e povoação de Xitole.

Rei morto, rei posto e aí aparece o novo comandante a conhecer a sua tropa...
- Ena, que este tem pinta de guerreiro, estamos fritos...
- Bem bem, não estamos aqui propriamente em férias numa colónia balnear...


As grandes operações começaram a desenvolver-se, Polidoro Monteiro queria que fossemos a Satecuta, em 'zona libertada' pelo PAIGC (diziam eles), já perto da mítica mata do Fiofioli...

Devido à morte do Furriel Quaresma e à evacuação de Leones, dois Furriéis apareceram para os substituírem - Cardoso e Fevereiro... O primeiro já andava por ali desde 1966 (!), com porradas em cima; e o Fevereiro estava a a dormir na sua bela caminha, quando apanhou uma rendição individual e foi ter connosco....

As operações grandes que tivemos começaram nesta altura. Polidoro Monteiro parecia entender daquilo... Pois que seja.... Vejam os próximos episódios...

Abraço,
David
(ex-Fur Mil Guimarães,
CART 2716,
Xitole, 1970/72)

Guiné 63/74 - P203: Operação Guiné-Bissau 2006 (3) (Sousa de Castro)

1. Queridos tertulianos:

Boas notícias: já está em marcha a Op Guiné-Bissau 2006...

Agora é preciso a montar a logística, as transmissões, as comunicações, o planeamento, os patrocínios, o sponsorship, o marketing, enfim, chamar os gajos do Estado Maior General do... "Caco Baldé" (esta foi o Guimarães que nos veio recordar: era assim que a malta do chão fula - Bambadinca, Xime, Xitole - chamava ao "homem grande de Bissau" e nosso Com-Chefe...).

Outra boa notícia: estamos em vias de admitir na tertúlia a primeira... camariga! A mulher do Paulo Salgado, a Maria da Conceição, que é economista, "bebeu a água do Pidjiguiti" (em sentido figurado, claro) e vai amanhã para Bissau, trabalhar como cooperante, juntamente com o Paulo e mais dois elementos da equipa ...


2. Mensagem do Sousa de Castro (o tertuliano nº 1, o culpado desta blogaria toda!):

Amigos tertúlianos, o ex Furriel Mil. de Transmissões de Infantaria Luís Fernando Moreira pertenceu à CCAÇ 2789 do BCAÇ 2928, que esteve em Bula, Capunga e Ponta da Consolação na Guiné (1970/72)... Procura ex-companheiros.

Contacto:

(i) lmoreira@sapo.pt;

(ii) luismoreira@envc.pt

3. Mensagem que enviei ao Luís:

Luís F. Moreira (para não não fazer confusão com o outro Luís Moreira, ex-Alf. Mil. Sapador da CCS do BART 2917, Bambadinca, 1970/71):

Já publiquei o teu apelo no nosso blogue. Manda mais dados sobre a tua "guerra"... Não temos nada sobre Bula, [que fica a norte de Bissau, já na região do Cacheu ]... Quanto a Capunga, há pelo menos duas localidades com esse nome... Se tiveres fotos, documentos, estórias, estás à vontade... Já somos porventura a melhor fonte, a mais autêntica, a mais pura, mais espeontânea, de informação sobre a guerra da Guiné (1963/74)... Por este andar ainda vamos todos apanhar uma medalha de cortiça, por relevantes serviços à Pátria, no dez de Junho...

Fragata Alm. Magalhães Corrêa, construída em 1968, nos Estaleiros Navais de Viana de Castelo, uma empresa que honra a nossa longa e rica tradição na arte e na ciência da construção naval e onde trabalham (ou já trabalharam) alguns dos nossos queridos tertulianos.


Fonte: ENVC (2005) (com a devida vénia)

Já percebi que trabalhas com o Sousa de Castro (que é o pai desta tertúlia) e outros camaradas, aí nos ENVC. Segunda feira vou a um congresso a Braga, "botar discurso", mas não dá para dar um salto a Viana... Mas prometo ainda um dia fazer uma visita ao Sousa de Castro, ao Américo Marques, ao Manuel Castro e agora a ti (não sei se me esqueci de mais algum valente camarada dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo)... Vai dando notícias. Já somos vários Luíses... Fica com os nossos endereços, o do blogue e das várias páginas. E vai divulgando a coisa, aí pelo Alto Minho (podes entrar pela Galiza dentro, se lá houver rapaziada da Guiné...).

Luís Graça

Guiné 63/74 - P202: Operação Guiné-Bissau 2006 (2)

Mensagem do Jorge Neto, enviada de Bissau à 1.51h da madrugada de hoje:

Caro Luís [Graça]e João [Tunes]:

Os agradecimentos pelas palavras elogiosas publicaram-se no blog [Africanidades: vd. post com data de hoje > Pegar de caras os fantasmas do colonialismo e da guerra do Ultramar].

Quanto ao restante, estou disponível para ajudar a preparar essa viagem. O que for preciso da minha parte é só pedir. Com uma condição. Imagino que uma vez cá, queiram dar uma volta pelos locais onde passaram. Bom, têm que me deixar ir convosco para fazer a reportagem. Se não houver lugar na cabine do 4x4 posso ir mesmo lá atrás, na caixa, onde viajam as galinhas! Eu garanto que ainda não sofro das costas.

Em resposta à provocação do João, devo dizer que o pior da viagem por terra é mesmo a Guiné-Bissau, onde as vias rodoviárias não são estradas com buracos, mas sim buracos com estrada. Sofrem mais as costas nessa centena de quilómetros que nos 4900 restantes. No entanto eu percebo essa preocupação. Venha lá de avião que a malta pede ao presidente Nino para disponibilizar a banda e ir esperar-vos ao aeroporto!

Quanto a colaborações no Blogue-Fora-Nada, dentro das minhas possibilidades tentarei. Como disse no post de agradecimento (vide AFRICANIDADES) não percebo nada de guerras. Talvez consiga de vez em quando uma ou outra foto de quartéis. Tiradas à socapa que nessas coisas de "Segurança de Estado" os militares guineenses continuam muito briosos. Pode o quartel ser um amontoado de tijolos sem telhado que se veja, mas se o turista tira o retrato está em apuros.

Um abraço e uma vez mais obrigado
Jorge Neto

Guiné 63/74 - P201: Operação Guiné-Bissau 2006 (1) (João Tunes)

1. Na nossa tertúlia (virtual) já se falou na agradável, se não mesmo excitante, hipótese de um encontro de 1º grau. A oportunidade, eventualmente, mais próxima poderia ser ainda este ano ou mais provavelmente no início de 2006, por ocasião da realização das provas de mestrado do nosso paisano, historiador e ilustre guineense, o Leopoldo Amado, que está a finalizar a sua tese de dissertação sobre a dicotomia guerra colonial / guerra de libertação (Guiné 63/74). Essas provas, ainda sem data mnarcada, deverão realizar-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, ao Campo Grande.

Este primeiro encontro poderia reunir, sem grande aparato logístico, quase a custo zero, os tertulianos, mouros ou não, que residam na área da Grande Lisboa (Mas todos os outros serão bem vindos).

Um segundo encontro, de 1º grau, já teria que ser mais alargado, e eventualmente falou-se na hipótese de ser a norte do Douro, para juntar mouros e morcões.

O João Tunes, mais rápido do que o Speedy Gonzalez, veio logo fazer uma sugestão ainda mais radical: é aquilo a que eu chamo a Operação Guiné-Bissau 2006... Oicemos o nosso tenente Tunes (a ideia já circulou pelo circuito-fechado da tertúlia; passo a divulgá-la pelo ciberespaço, de modo a chegar a outros possíveis interessados). LG


2. Texto do João Tunes:

(...) Outra [proposta de encontro](que já tive o atrevimento de alvitrar ao Paulo e ao Jorge Neto, do "Africanidades"), esta mesma de VIP, ou manga de ronco, e que seria em ... Bissau!... Com programa extra de complemento de "parte social" com saltadas a Pelundo, Olossato, Xitole, Bambadinca, Catió e...).

Só que esta exige puxar dos cordões à bolsa e deveria ser programada para o ano (mas ainda quando o Paulo estivesse em Bissau).

Proponho que se aprovem as operações. Com as emendas necessárias, é claro!, que nem o Luís nem eu nos chamamos Jerónimo nem isto anda ao toque de caixa do centralismo democrático. Mas sem rebaldarias, que isto não é tropa manifestante, é tropa disciplinada e medalhada, nem nos lembrámos ainda de metermos as nossas esposas (ou esposos ... para não me acusarem de homofóbico) a darem a cara por nós.

Depois, é distribuir as missões aos grupos de combate. Eu cá estarei para me desenrascar com o que me calhar em sorte. Obedecendo ao nosso Cmdt-Chefe Luís (relativamente ao qual só me volto a insubordinar se ele se lembrar de usar caco).

Guiné 63/74 - P200: Fotos do Pelundo, na região do Cacheu! (João Tunes)

Texto do João Tunes [que foi Alf. Mil. de Transmissões, em 1970, na CCS de um batalhão, aquartelado no Pelundo, de que ele já não sabe o número de identificação, ou não quer saber; e se sabe, não nos diz: ele lá sabe porquê...]

Camarigos (*),

Em tempos recebi e publiquei estas duas fotos relativas ao Pelundo [vd. post do autor no seu anterior blogue, o Bota Acima, com data de 30 de Abril de 2004].

Foram tiradas pelo último Alf. Mil. de Transmissões lá colocado (João Lemos), portanto um dos meus "sucessores", antes de o quartel e sede de Batalhão ser abandonado e entregue ao PAIGC, e que ele deu autorização para divulgação pública.


© João Lemos (2005)









Refira-se que no Pelundo (perto de Teixeira Pinto/Canchungo)(1) estava a sede do Batalhão, a CCS e uma companhia operacional. [No Pelundo estava ainda o comando de ] companhias operacionais destacadas em Jolmete e em Có.



© João Lemos (2005)


Uma das fotos é do aquartelamento e a outra fixa o momento em que as ex-NT e o ex-IN confraternizam enquanto o comando local do PAIGC avança para tomar posse do aquartelamento.

Podem ser publicadas, devendo mencionar-se que a sua autoria é do João Lemos.

Mantenha pa nhos tudu.
João Tunes

(*) Forma preguiçosa de dizer "camaradas e amigos"
____________

Nota de L.G.

(1) Na região do Cacheu, na bacia hidrográfica do Rio Mansoa, entre Canchungo/Teixeira Pinto e Bula, a noroeste de Bissau: vd. mapas >

Guiné-Bissau > Mapa 1

Província Portuguesa da Guiné > Carta dos Serviços Cartográficos do Exército (1961)

Guiné 63/74 - P199: A origem das palavras 'turra' e 'tuga' (João Tunes)

© Manuel Ferreira (2005)

Tugas da CART 3494 (1972 /74), jantando leitão, na sua caserna-abrigo no Xime (1972).

Texto do João Tunes (que, entre muitos outros talentos, é um conhecido cinéfilo e um artesão da palavra):

O termo tuga não tem a raíz que o Luís lhe atribui. De facto, ele acabaria por ser adoptado pelos nossos soldados (e, espanto dos meus espantos, até serviria recentemente para exaltação de marketing da nossa mobilização futebolística no Euro!).

Mas a origem do termo tuga (abreviatura de portuga que, por sua vez, abreviava o português) foi uma devolução de insulto por parte dos guerrilheiros perante o turra com que a propaganda colonial os tratou (julgo que os mesmos termos - turra e tuga - foram utilizados na Guiné, em Angola e em Moçambique). Ou seja, uma resposta léxica à indução de terrorista mais "estúpido, primário" e que, resultando na força da brevidade insultuosa de turra, permitia injuriar com brevidade, repulsa e força.

Então, a volta do correio no insulto, vinha no tuga (a guerrilha recuperava e devolvia o tu associando terrorismo com a marca de nacionalidade portuguesa e de presença exógena em África).

O facto de o insulto ter sido adoptado pelo insultado (não me constando que, simetricamente, os guerrilheiros alguma vez tenham usado o turra entre eles), quando os soldados portugueses, entre si, se chamavam de tugas, terá a ver com a nossa capacidade de interiorizarmos a noção de pequenez e, afinal, sabermos que a nossa distância civilizacional não estava assim tanto nas antípodas do nível cultural dos que combatíamos.

© Agência de Notícias Xinhua (1972)

Guerrilheiros do PAIGC em posição de combate (ou em pose fotográfica ?) (O termo injurioso turra era usado por alguns de nós para designar os combatentes do PAIGC; apesar de tudo, a guerrilha do PAIGC impunha respeito às NT, em grande parte devido a estatura política e moral do seu líder, o Eng. Amílcar Cabral, mas também pelo valor militar de alguns dos seus comandantes, como o Nino Vieira).


2. Comentário de L.G.

Deixo aqui a resposta de um especialista da língua portuguesa, o angolano Rui Ramos, a uma pergunta de utilizadora do Ciberdúvidas da Língua Portuguesa (aliás, aconselho vivamente os nossos tertulianos a visitarem este sítio sempre que tiverem dúvidas sobre uma palavra ou uma expressão: é uma caixinha de surpresas, um autêntico consultório da língua portuguesa - procurado diariamente pro milhares de utentes -, um verdadeiro serviço público à lusofonia, um sítio que tem tido uma vida de sobressaltos, depois de criado em 1997 pelo José Mário Costa e pelo saudoso jornalista João Carreira Bom).

Pergunta:

"Li algures que a palavra tuga era pejorativa. Não a encontro em nenhum dicionário mas de facto tornou-se conhecida pois foi o nome dado à Selecção Nacional aquando do Mundial 2002. A pergunta é: a palavra existe? E é pejorativa?" Manuela Couto. Portugal.


Resposta:

"A palavra tuga é de facto pejorativa. Surgiu em contraponto à palavra turra ('terrorista') que os colonos portugueses em África usavam para designar os que, com armas, se opunham ao colonialismo. Surgiu na década de 60, já em plena luta armada de libertação nacional.

"Eu próprio a usava, já inserido na luta clandestina do MPLA em Luanda, para falar dos soldados portugueses em Angola. 'Turra-Tuga' é uma dicotomia que faz parte integrante da luta anticolonial e que, já se vê, define o lado mau da luta.

"Por isso eu desde o início considerei que a palavra tinha sido muito mal escolhida para a selecção portuguesa devido à carga guerreira, colonial e incivilizada, porque parece homenagear um dos períodos mais tristes da História de Portugal.

"Em sentido mais amplo temos a expressão pula (os imigrantes africanos tratam, invariavelmente, os brancos por esta palavra)". Rui Ramos. 07/01/2003.

Guiné 63/74 - P198: Bibliografia (3): Aquela lufada de ar quente que vem das bolanhas de Brá e de Safim... (Paulo Salgado)

Capa do romance de Boris Vian (1920-1959), L'écume des jours , que está de resto traduzido em português já há muitos anos, A Espuma dos Dias). Um dos livros de referência da geração do existencialismo. Lido no Olossato no tempo da guerra colonial ... Para levar na bagagem de um tertuliano e reler hoje em Bissau...

Fonte: Le petit cahier du grand BORIS VIAN (29.09.2005)

Texto de Paulo Salgado, que estava com insónias, na penúltima última noite, antes de partir para Bissau:

Luís,

Já escolhemos - a minha mulher e eu. Ela não foi soldado, mas qualquer dia entra como bloguista, juro-vos; ela até me atira:
- E se vivessemos sempre em Bissau?!

Eu fico admirado, palavra; estive 18 anos para ir à República da Guiné-Bissau e ela, sempre na nega:

- Não te chegou a guerra?!
- Bolas, tu não compreendes - ...Até que foi passar comigo o fim de ano de 1990...e depois bebeu a água do Pidjiguiti !

Pois é, já escolhemos os livros e os discos. Lá vão alguns clássicos, para revisitar, um ou outro ensaio:
- Ah, ela meteu as Farpas (parece que vêm a propósito, nesta quadra eleitoral)...

Eu, pela minha parte, pus a Mahalia Jackson, a Areta, o Zeca, o Adriano (porra, então não houvera de ser: no Olossato ouvíamo-los antes de sair para as emboscadas!...quantos de vós não fizeram o mesmo ?!).

Não sei por que razão, o Moura Marques - grande cabo e amigo e camaradão e companheirão - um calmeirão que vive em Tires (carago, ainda não lhe liguei a dizer que vou mais uma vez) lá ia ouvir a 5.ª Sinfonia (não sei bem a razão desta audição, mas pronto).

O pior é a merda dos livros de trabalho. Pensava eu que sabia muito. Pus-me a ver o que me fazia falta: e lá vão coisas sobre recursos humanos, armazéns, procedimentos, processos clínicos, estatística - quando sei que, apesar de tudo, o que é preciso é ouvir os companheiros com quem vou trabalhar.

As malas estão quase prontas, claro o computador e o mail atrelado (faz-me falta para entrar em contacto com a equipa de retaguarda! O Luís Graça tem razão, vocês são a equipa de retaguarda.)

Mas lembrei-me agora: a minha Paula, filha com trinta anos, quase doutora investigadora em Oxford (ainda dizia aquela senhora que esta era uma juventudo rasca!), e que fez o 11.º ano em Bissau. E como ela é importante para mim. Quando vou visitá-la a Oxford, estamos no paleio até às 3 da matina... Como é bom aprender com os jovens; o namorado entra na conversa, mas o puto nunca esteve em Bissau, bolas. Ela é amiga...é diferente...

Estou meio tonto a escrever, porque me sabe bem estar a falar convosco. Ainda há momentos falei com a Dr.ª Maria Lopes Cardoso, da Universidade Católica, por causa de um puto, filho de um senhor (na altura ele era puto em Nhacra) que queria vir estudar para cá; mas é difícil... Todavia, como a Dr.ª Maria Lopes Cardoso me encantou com a sua amizade e sentido de justiça...

Tenho que meter alguma filosofia - ajuda a descontrair. Poesia, muita. Policiais é com minha mulher. Meto também a Antologia Poética da Guiné-Bissau (edição de 90...) e o dicionário de crioulo. Alguns ditus são notáveis.

Já me esquecia que tenho que dar um palpite sobre o discurso de um camarada e amigo olossatense que é candidato a uma junta de freguesia para os lados da Póvoa, ele que foi pescador - quer a minha opinião. Eu bem lhe disse:
- Tu é que conheces bem o Povo, o teu Povo, bolas. Tu é que lhes podes transmitir, com as tuas palavras, o que desejas para a freguesia... - Mas ele insistiu...

Já sei o que nos espera, quando aterrarmos: aquela lufada de ar quente que vem das bolanhas de Brá e de Safim batendo nas ventas e no corpo - parece que a Máfrica entra em nós.

E os putos:
- Patim, um euro! Misti taxi?- Acotovelamo-nos, suados.

E depois o Sr. João, motorista. Solícito mas firme; educado, mas sem baixar a cerviz:
- Kumma di biaje? Família sta diritu?
- Io, Sr. João.

Estou a imaginar. A conversar. Já passa da meia noite e o sono não vem. A Maria da Conceição já me chamou, mas eu, moita carrasco. Quero estar aqui. Um acto de solidão - mas partilhada.

Gostava de fazer um poema
feito de luzes e de sombras
em louvor
à camaradagem

Gostava de fazer um poema
feito de saudades e abraços
em louvor
ao amor

Gostava de fazer um poema
feito de madrugadas serenas
em louvor
aos que amam a esperança

Como vedes, amigos e camaradas (ainda não consigo dizer caramigos - hei-de conseguir...), estou a sonhar acordado.

Estou de novo no meu quarto-escritório. Já me esquecia da Espuma dos Dias (o Mário Tomé emprestou-me o livrinho naqueles idos anos de 70...) (1), tenho que relê-lo. Certamente vamos pagar peso a mais no aeroporto de Sá Carneiro:
- Já meteste lá umas garrafas, não sei como vai ser -... As cautelas de mulher sábia...

Olha, Luís, ao menos estive convosco, antes de partir...

Amanhã ainda tenho que ir ao SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras], regularizar a situação de uma miúda que sofreu queimaduras numa mão- e nós vamos levá-la...a M'ma Baboura!

Até sempre, camaradas.
Paulo Salgado
____________

Nota de L.G.

(1) Romance do escritor francês Boris Vian (1920-1959), um enfant terrible, ligado ao existencialismo, amigo de Sartre e de Beauvoir. Publicado em 1947, foi um livro que marcou muito a geração que fez a guerra colonial, ou pelo menos aqueles de nós mais dados às coisas da literatura.

Curioso, também foi um dos muitos livros que eu levei na minha mala, no N/M Niassa, convencido de que ia passar umas férias tropicais... Boris Vian, boémio, iconoclasta, príncipe de Saint Germain des Près, trompetista de jazz, poeta, é autor de poemas e letras de canções, eternas, como Le déserteur [ O desertor] (1954). Cliquem neste link para ler o poema e a ouvir a música...

quarta-feira, 28 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P197: Para uma tertúlia eticamente correcta (João Tunes)

1. Texto do João Tunes:

Camarigos,

Mais que justa esta mensagem-homenagem ao Jorge Neto. Aliás, já o disse, foi o blogue do Jorge Neto a quem devo ter repudiado a estúpida e impulsiva jura que fizera em 1971 de não voltar a meter os pés na Guiné. Lá quero voltar, e se o fizer grande parte da culpa será dele.

No entanto, o Luís que permita uma correcção ao texto editado no "nosso" blogue - o Jorge não é cooperante (digo-o porque ele em tempos teve o cuidado de fazer essa corecção). Ganha a vida em Guiné-Bissau por sua conta e risco. Isto é, não está lá alapado há anos com ordenado garantido e depositado pelo Santo Estado. O que lhe dá autonomia para se exprimir sobre o que vê e sente sem as amarras de respeito patronal e conveniências políticamente correctas. Tornando-se, a meu ver, num caso mais que interessante de um jovem que, por prisão ao sortilégio das terras africanas, ali vai ficando e não conseguindo arredar pé.

Confirmo que sugeri que se analisasse a hipótese de darmos um salto à Guiné e que, para isso, se solicitasse os apoios orientadores do Jorge e do Paulo. Mantenho a sugestão apresentada à Mesa para discussão e deliberação. Mas fica um aviso desde já - o Jorge que não se lembre de sugerir que a malta "velhinha" se meta numa traquitana rodoviária e vá por aí abaixo aos trambolhões por Algarve, Marrocos, Mauritânia, e tal mais Senegal, até chegar a Bissau.Ou seja, fazer o que ele costuma fazer nas suas idas e vindas da Guiné (usar um automóvel para ir e vir da Guiné, acampando pelo caminho, é coisa da idade dele, já não para a nossa). Nem com médica, enfermeira e massagista assistentes, nem mesmo que se desencantasse uma antiga enfermeira-paraquedista e camariga para nos acompanhar e ir consertando colunas e metendo almofadinhas por baixo dos veteranos rabos de militares retirados.

Termino o correio de hoje com um pedido-sugestão: Li na legenda de uma fotografia publicada no blogue esta indicação "soldado Pucha (era turra e foi capturado e ficou no nosso exército)". O termo "turra" (uma abreviatura de "terrorista") era de facto usada e incentivado o seu uso durante a guerra no sentido de estimular o ódio pelo IN.

Hoje, com o devido respeito a opiniões diferentes, não me parece que faça qualquer sentido continuar a utilizá-la (este e qualquer termo depreciativo, como não permitiríamos o inverso, ou seja, que um guinéu ofendesse com generalizações Portugal e os soldados portugueses). E é uma contradição, pelo menos em termos de cortesia devida, usar expressões destas e dizer-se que se continua a amar aquela terra, se lhe deseja um bom futuro, gostava de lá se voltar, tratando assim os que lutaram e arriscaram a vida pela independência da sua terra. Finalizando, fica, se me é permitido, o apelo à contenção no uso de termos de conotação desrespeitosa ou ofensiva. Obrigado.
Abraços.
João Tunes

2. Resposta do Luís Graça:

João (e restantes tertulianios:

Fica feita a correcção... Aumenta assim, ainda mais, o meu respeito pelo Jorge Neto. Quanto ao reparo em relação ao uso de termos racistas, xenófobos mas... também do calão castrense, lisboeta ou nortenho (de carvalho para cima!), o João tem toda a razão: (i) os tertulianos devem ser eticamente irrepreensíveis e não apenas "politicamente correctos"; (ii) temos de ter mais tento na língua (eu às vezes, esqueço-me que o blogue é um espaço público)...

Grupo de soldados do PEL CAÇ NAT 54 (Missirá, 1969/70). O segundo a contar da esquerda para a direita é o soldado Pucha (ex-guerrilheiro do PAIGC, capturado e integrado nas NT) © Mário Armas de Sousa (2005)

Vou retirar, de imediato, os termos que podem ser (ou são) insultuosos ou, no mínimo, deselegantes, usados recentemente no nosso blogue e nas nossas páginas... Com esta história, vamos criando o nosso próprio livro de estilo... Mais uma vez, aprecio a frontalidade e a franqueza do João. Espero que sejam, uma e outra, replicadas por todos vós... Quatro olhos e duas cabeças vêem sempre mais e melhor do que dois olhos e uma cabeça...

Vou proceder às correcções: estou certo que o Mário Armas de Sousa (foi ele que usou a expressão na legenda da foto do Pel Caç Nat 54) também concorda que o termo "turra" é hoje mesquinho, infeliz, racista, obsoleto... Podemos usá-lo em excertos literários, em documentos da época, etc. ... Ou até de uma maneira afectiva, tal como dizemos checa (em Moçambique) ou periquito (na Guiné), em relação aos militares mais novos que nos vinham substituir...

Por exemplo, há uma das canções do Niassa (1) , que se chama precisamente o "turra das minas" e outras o "fado do turra" (2). Transcrevo uma das letras:


O Turra das Minas

I

O turra das minas,
Pequeno e traquinas,
Lá vai na picada
E a malta escondida,
Na mata batida
Monta a emboscada.
O turra passou,
A malta esperou,
Já toda estafada,
E a Berliet
Sempre foi estoirada.

II

Ó turra das minas,
A tua vida agora
É pôr as marmitas
Pela estrada fora.
Oh turra das minas,
Tua arma soa
Por léguas e léguas,
Aqui no Niassa,
Onde a Guerra entoa [ecoa].

III

Há mortos e feridos
E os mais comidos
Somos sempre nós,
Vamos pelos ares,
Gritando por todos,
Até pelos avós.
Ó turra bairrista,
Mas pouco fadista,
Já é tradição
Ser paraquedista
Sem tirar o curso,
Ai isso é que não.

Refrão:

Oh turra das minas,
A tua vida agora... (2)


Neste contexto (que era o de guerra), não me parece totalmente ofensivo (nas guerras, incluindo nas guerras civis, o IN, o adversário, quem está do outro lado é sempre tratado em termos depreciativos: boche, rojo, comuna...) mas deve sempre pôr-se o termo em itálico ou entre aspas... Nesta canção do Niassa pode até dizer-se que o turra é (quase) um igual a nós, um combatente, temido e até certo ponto respeitado... Daí a própria existência da canção: não se faz uma canção de guerra a quem não é temido nem respeitado...

No meu tempo, o termo tuga era usado pelos próprios soldados africanos (os nossos nharros) quando me queriam criticar ou insultar, em crioulo ou em fula... Aliás, não sei qual deles é mais racista: tuga ou nharro... A única diferença é que o primeiro era usado pelos oprimidos e o segundo pelos opressores.

PS - Pergunto ao próprio (e aos tertulianso) se podemos incluir o Jorge Neto na nossa lista de endereços, passando desse modo a considerá-lo um novo tertuliano... Eu proponho o seu nome... Não sei se ele foi militar da tropa... Nem isso para o caso interessa... Para nós, ele é um amigo da Guiné, logo nosso, tal como o Zé Carlos Mussá Biai e o Leopoldo Amado, os dois paisanos do nosso grupo.
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. post de 11 de Maio de 2004 > Blogantologia(s) - XI: Guerra Colonial: Cancioneiro do Niassa

(2) Eu na altura não conhecia o Jorge Santos, mas a página dele foi muita valiosa para eu elaborar este texto:

Comentário de Jorge Santos: Fado de humor em que, como o nome indica, é o turra ou terrorista que põe as marmitas, as minas, nas picadas, os sejam, os caminhos através do mato.

Comentário de L.G.: Música de Joaquim Pimentel, fado "A Júlia Florista", uma das muitas criações de Amália. A Berliet era uma das viaturas mais usadas no transporte de tropas: de origem francesa, eram montadas no Tramagal.

Guiné 63/74 - P196: Good moooooooorning, Guinea-Bissau!


Blogue Africanidades
© Jorge Neto (2005)

Texto de Luís Graça:

Meu caro tuga, Jorge Neto:

Não tenho o prazer de te conhecer pessoalmente, mas o teu blogue fala por ti. Para já os meus parabéns pelas tuas Africanidades. Tu mantens a ponte (tensa e frágil) com estes gajos que por enquanto estão, trabalham, vivem, comem e dormem, neste lado do bem-bom do mundo, com vistas largas para o resto do universo... Alguns dormem mal, porque ainda são capazes de pensar nos dois mil milhões de homens, mulheres e crianças que (sobre)vivem nos subterrâneos do planeta, com menos de dois dólares de rendimento por dia...

Ontem reencaminhei para os meus colegas da saúde pública, umas chapas, daquelas de encher o olho do turista globalizado, sobre o nosso planeta, a nossa casa, lindíssima. Eu fico sempre de pé atrás com estas coisas, sobretudo pelo branqueamento que é feito, escondendo o sujo e o feio que é o outro lado da nossa casa. Daí ter escrito, em nota de pé de página, a acompanhar o reencaminhamento do ficheiro com as ditas imagens:

- Não sei se a nossa casa, o nosso planeta azul, é lindíssimo ou apenas lindo… De dentro, é difícil ser imparcial e objectivo. Há partes da casa que são deslumbrantes. Outras são vulgares … e muitas delas transfomaram-se em salas dos horrores, sem esquecer o sótão dos pesadelos… Dito isto, desfrutem destas paisagens da nossa casa. Há poetas e fotógrafos que cuidam do nosso bem-estar. Alguns deles são peritos em dar um toque especial às coisas. It’s magic!... Cada vez precisamos mais de magia… até para construir uma nova cultura da saúde pública. Eu sei que estas coisas roubam tempo (o vosso, o meu) e espaço (dos nossos já obsoletos PC) mas isto também ajuda, espero, a limpar a vista, parafraseando um melómano, meu conhecido, que tem o saudável hábito de ir ouvir ao vivo, todos os anos, a orquestra filarmónica de Berlim… “para limpar o ouvido” (sic).

Nas tuas Africanidades não fazes batota: a tua Guiné não é só o postal ilustrado dos rápidos do Saltinho ou do paraíso perdido dos Bijagós... Também és capaz de nos tirar o sono!

Escrevo-te também pela simples razão de que o teu nome apareceu num blogue que eu animo, o Blogue-Fora-Nada, pensado originalmente para eu cultivar as minhas blogarias de luxo e matar o vício da escrita e da comunicação... E que acabou por transformar-se num jornal de caserna de uns tantos pobres diabos, como eu e outros camaradas (literalmente camaradas, no sentido etimológico do termo), que ainda não conseguiram exorcizar os fantasmas da guerra (colonial) da Guiné (ou da guerra do ultramar, para manter o pluralismo ideológico e semântico)...

Convenhamos que o caso é de psiquiatria, mas como eu costumo dizer fica mais barato blogar do que ir à consulta do stresse pós-traumático de guerra do meu amigo Afonso de Albuquerque, no Hospital Psiquiátrico Júlio de Matos. Em resumo, puseram-te ao barulho e vão-te mandar um emissário, de seu nome Paulo Salgado, que por acaso foi meu aluno, por uns dias, de um curso de especialização em administração hospitalar nos já idos anos de 1982, quando eu ainda era um simples prelector convidado da Escola Nacional de Saúde Pública...

Sem te conhecer (e conhecendo os teus escritos e as tuas fotos só de relance), escrevi sobre ti uma pequena nota d pé de página: "[Jorge Neto:] O autor do blogue Africanidades, cooperante em Bissau. Possível contacto em Bissau, de acordo com uma sugestão do João Tunes, para uma possível viagem de retorno àquelas terras, para matar saudades e não só... Este blogue é obrigatório para quem quiser conhecer a realidade da África de hoje, e em particular a Guiné-Bissau. Excelente documentação fotográfica. Um tuga que conhece e ama a África. Podem contactá-lo, ao Jorge Neto, por e-mail. Façam uma primeira visita ao seu blogue".

Sei que não tens nada para vender, no sentido material e mercantil do termo, pelo que não entendas este paleio como publicidade comercial (e muito menos enganosa), feita por interposta pessoa. Trocando amabilidades, ficas convidado a visitar o nosso Blogue-Fora-Nada e, inclusive, a escrever para ele.

É que infelizmente, para nós e para os nossos amigos da Guiné-Bissau, a guerra não acabou em 1974... Ainda não acabou. Nós temos contas a ajustar com aquela guerra. E para os guineenses, há outras batalhas a travar e outra guerra, ainda mais importante, para ganhar. Uma guerra que tem de ser ganha por todos, eles e nós. E sobretudo por estes djubis, estas crianças, que tu nos mostras na foto que eu tomei a liberdade de aqui reproduzir, com a devida vénia.

Boa saúde, bom trabalho, Jorge!

terça-feira, 27 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P195: O 'adeus e até ao meu regresso' do Paulo Salgado

1. Camarigos (... tenho pena de ainda não poder dizer camarigos & camarigas, por enquanto ainda não apareceu nenhuma enfermeira-paraquedista, mas eu vou tentar arranjar uma):

O barco está de saída... Despeçam-se do Paulo Salgado, que vai partir dia 30 como cooperante para a Guiné-Bissau.... Metam-lhe uma cunha que é para aquela terra, que nos é muito querida, dar um salto... para o futuro! L.G.

Bissau > Cais do Pidjiguiti
© Paulo Salgado (2005)

2. Mensagem do Humberto Reis:

Camarigo Paulo: Leva-me contigo!... Já não vou àquela terra desde 1996 (há mais de 9 anos). São mais que pobres, paupérrimos, mas continuamos a gostar daquilo, da terra e das gentes. Já sei que o voo é às 09,10 de 6ª feira.

Um grande abraço e FELICIDADES no desempenho da tua HUMANITÁRIA MISSÃO. Pelo que percebi já não é a 1ª vez que voltas à NOSSA Guiné. Não te posso ser de grande utilidade mas conheço um comerciante português, cuja família é de origem libanesa (é filho da D. Rosa de Bafatá ex-ten.cor paraquedista) e que passa a maior parte do tempo lá em Bissau no negócio da castanha de cajú. Ele mora aqui perto de Lisboa, em Linda A Velha, encontrando-se cá neste momento mas em breve vai voltar a Bissau.

Se precisares de alguma coisa que ele possa levar é só dizeres-me que eu tenho confiança com ele para lhe pedir. É ele normalmente que me leva as canetas, borrachas, lápis, etc. com que eu costumo abastecer a escola de Bambadinca.
Dá notícias, não te desligues desta malta.

Humberto

3. O Marques Lopes também vem desejar "boa estadia" ao Paulo:

Amigo Paulo :

Os meus desejos de uma boa viagem e óptima estadia e bom trabalho naquela terra das saudades. Não sei quando, mas pode ser que eu um dia apareça por lá.

Se tiveres oportunidade dá um abraço meu a este meu amigo que está em Bissau há anos (e que muito me apoiou quando lá estive em 1998): Manuel Pires Nabais - Av. 3 de Agosto - Cx. Postal 611 - telefone 201661.

É um homem bem conhecedor de Bissau, conhecedor daquela gente (sabe bem de todos os mandantes...). Era (não sei se ainda é) Administrador Delegado da GUIPORT (a empresa gestora do porto de Bissau) e de uma empresa de camionagem sedeada na cidade. É primo de um ex-alferes, o António Moreira, que esteve comigo em Geba.


© Paulo Salgado (2005)

O Alf. Mil. Salgado, da CCAV 2712, no Olossato, prestando ajuda como voluntário ao Fur. Enf. Carvalho.

Ele já tinha vocação, na época, para a administração de serviços de saúde. E particular motivação e sensibiliddae para as questões da cooperação e da solidariedade (LG).



Ele, o Manuel Pires Nabais, que te apresente outro amigo meu, o Luciano. Um bom amigo, embora com feitio próprio, ex-comando que se sedeou em Bissau há anos, depois de ter passado como mercenário na zona dos diamantes de Angola. É dos poucos que sempre lá se aguentou durante todas as convulsões na Guiné-Bissau. Conhece o Cupilon como eu conheço a minha casa.

Um e outro estão por dentro de tudo, conhecem todos os meandros, de baixo acima.
Um abraço

A. Marques Lopes

4. Comentário final do Paulo:

(i) O Luís é assim: põe-nos a todos loucos! É a camaradagem, a solidariedade, o companheirismo. Agradeço a todos e prometo-vos que cumprirei com lealdade as funções que vou desempenhar...! Por isso, o que for mandando, o Luís Graça fará o favor de remeter a TODOS!

(ii) Luís e Todos!

Vou prás terras quentes durante um ano - com intervalos. Em 1970 não dava só tiros! Ajudei o furriel Enfermeiro Carvalho no registo dos doentes. Agora a minha missão (e de mais quatro parceiros, 35 anos depois) é muito semelhante a esta...

O branco loiro que está nesta foto é um "louco" de um holandês!!! Como ele trabalha!

(iii) Amigo e camarada Humberto

Como é bom ler esta mensagem! Fica descansado: irei cumprir o que me pedes - sempre são meses a cumprir nesta missão, agora de paz.

(iv) Grande Marques, camarada,

Farei o que me mandas, com muito orgulho em pertencer a esta tertúlia - mais uma vez vem ao de cima a camaradagem. É belo ter camaradas e amigos assim.

Vou mandar para o Luís (o nosso "mensageiro") as mensagens e fotos e textos que for fazendo - sempre é um ano! - embora venha cá três ou quatro vezes. Uma espécie de comissão: já conto dezenas de vezes a idas a Bissau! Conheço de Norte a Sul quase tudo, embora me falhem algumas tabancas de que os camaradas falam...

(v) João Camaradão [João Tunes],

Estás "desculpado".

Já recebi mails de camaradas a desejarem boa estadia - e a ti também agradeço com muita amizade.

Vou tentar dar o litro na missão de paz que envolve quatro parceiros - qual nave de loucos - e também tentar dar um contributo forte ao teu blogue e ao "nosso" blogue.

Comigo podes contar com o contacto que farei em Bissau com o Jorge Neto (*). Ele tem que me contactar no [Hospital] Simão Mendes - lá junto da Administração...

Em Bissau, programarei uma estadia de uma semana e mandarei notícias breves. Acho que já dei provas: vós não me conheceis (eu vivo em Gaia, mas sou transmontano - de MONCORVO), mas o que prometo ... tento não falhar.

Como já disse, embarco a 30 e, apesar de muito trabalho que me espera, agora tenho esta "emboscada" com a equipa de segurança de retaguarda - que sois vós.

Mantenhas do
Paulo Salgado
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Nota de L.G.

(*) O autor do blogue Africanidades, cooperante em Bissau. Possível contacto em Bissau, de acordo com uma sugestão do João Tunes, para uma possível viagem de retorno àquelas terras, para matar saudades e não só...

Este blogue é obrigatório para quem quiser conhecer a realidade da África de hoje, e em particular a Guiné-Bissau. Excelente documentação fotográfica. Um tuga que conhece e ama a África. Podem contactá-lo, ao Jorge Neto, por e-mail. Façam uma primeira visita ao seu blogue.

Guiné 63/74 - P194: Dos Unimog 404 e 411 ao Alf Mil Correia, do Pel Cac Nat 54 (Humberto Reis)


© Manuel Ferreira (2005)

Guiné > Região Leste > Xime > 1972: O Manuel Ferreira, soldado condutor auto, dos "Fantasmas do Xime" (CART 3494), ali aquartelados (1972/73).

A viatura é um famoso "burrinho" (Unimog 404).

Texto do Humberto Reis (CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71):

1. No álbum de fotografias referentes ao Xime aparece o Manuel Ferreira, condutor auto, empoleirado no capô de um Unimog 404, chamado "burrinho".

"Se bem me lembro", o 404 era o Unimog grande a gasolina e o Unimog pequeno, era o 411, movido a gasóleo, e chamado "burrinho do mato". Esta alcunha derivava do facto de ter uma suspensão mais dura que o 404 e naquelas auto estradas (IP's, IC', etc.) saltar tanto que parecia dar coices como um burro.

Como terminam os pareceres dos advogados, "é esta a nossa opinião se outra melhor não houver".

2. Também já está esclarecido que o Mário Armas de Sousa era do Pel Caç Nat 54 e não de uma companhia de Porto Gole.

Não me lembro dele mas recordo perfeitamente o [Alf. Mil.] Correia, magro e seco como um pau. Estou a olhar para ele há 35 anos, não me lembro do dia mas até era possível saber, em que regressámos de uma operação na zona do Xime, julgo que foi aquela em que tivemos os 5 mortos na mesma emboscada, e o Correia encostado ao arame farpado, quase com as lágrimas nos olhos, à nossa espera (1).

O 54 deve ter ficado a reforçar o aquartelamento do Xime (foi a sorte deles nesse dia) enquanto alguns dos pelotões desta companhia foram com a nossa CCAÇ 12 nessa operação.

Memórias já passadas que nos ajudam a viver os dias de hoje.

Um abraço
Humberto
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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 25 de Abril de 2004 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970). Nome de código da Operação: Op Abencerragem Candente (25-26 de Novembro de 1970). Envolveu cerca de 250 homens: (i) a CCAÇ 12 (sedeada em Bambadinca, ao serviço do BART 2917), a 3 Gr Comb; (ii) a CART 2715 (aquartelada no Xime), também a 3 Gr Comb; e a (iii) a CART 2714 (aquartelada em Mansambo), a 2 Gr Comb. O Pel Caç Nat 54 deve ter ficado em reforço ao Xime. Baixas das NT: 6 mortos e 7 feridos.

segunda-feira, 26 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P193: Tabanca Grande: O açoriano Mário Armas de Sousa (Pel Caç Nat 54: Missirá, 1969/70)

© Humberto Reis (2005)

Malta da CCAÇ 12 (à direita), pousando junto a uma parede bidões com areia (que serviam de protecção em caso de ataque) juntamente com comaradas do Xime, à esquerda (1970).

1. Bom, camarigos (=camaradas & amigos de tertúlia), ainda não chegámos à Madeira, mas já estamos nos Açores... Graças a esta jigajoga da Internet...

Pois é, lá nas Ilha das Flores, nas Lajes das Flores, há um camarada que andou connosco no Sector L1, Zona Leste, nos idos tempos de 1968/70 e que se reconheceu num das fotos publicadas na página do Xime. Apresento-vos o novo tertuliano, o ex-Furriel Miliciano Mário Armas de Sousa, do Pel Caç Nat 54 (Missirá, 1969/70).

Caro colega:

Sou ex-furriel miliciano e estive na Guiné de 1968 a 1970, em Porto Gole, Enxalé, Xime e Missirá. Também estou na fotografia da vossa página, tirada no quartel do Xime, junto dos bidões.

Tenho alguma informação e fotografias do meu grupo de combate para acrescentar à vossa página se possível; é favor confirmar o seu endereço electrónico.

© Mário Armas de Sousa (2005)

Guiné-Bissau > Região Leste > Bambadinca > Missirá : Pelotão de Caçadores Nativos nº 54, em 1970.

1ª fila da direita para esquerda: do pessoal metropolitano, o primeiro sou eu, furriel miliciano Mário Armas de Sousa; o terceiro é o 1º cabo Capitão.

2ª fila da direita para a esquerda: o primeiro é o soldado Amarante; o segundo é o soldado Bulo; o quinto é o furriel miliciano Inácio; o sexto é o 1º cabo Tomé; o nono é o soldado Samba.

3ª fila da direita para a esquerda: do pessoal metropolitano, o primeiro é o furriel miliciano Sousa Pereira; o quinto é o alferes miliciano Correia (comandante de pelotão); o sétimo é o 1º cabo Monteiro; o oitavo, africano, é o soldado Pucha (era turra e foi capturado e ficou no nosso exército)

Cumprimentos, Mário Armas de Sousa, Açores (O Mário utilizou o e-mail dos Serviços de Ambiente das Flores e Corvo, onde presumivelmente trabalha)


2. Eis a minha resposta (com correcçõe posteriores):

Meu caro Mário:

Fico muito contente (e o resto dos camaradas também) por este feliz reencontro, ao fim de tantos anos. Andámos juntos, no mesmo sector, e na mesma altura (mais tarde conhecido como o Sector L1, Zona Leste, com sede em Bambadinca e que incluía entre outros aquartelamentos e destacamentos, além da sede, o Xime, o Enxalé, Mansambo, o Xitole, Missirá...

No meu tempo, Portogole (b) creio que já pertencia a Mansoa (e não a Bambadinca). Esta povoação ficava na estrada Bafáta-Mansoa-Bissau (interdita no meu tempo).

Podes contactar-me através de qualquer um dos dois e-mails (...). Tens também os endereços de e-mail dos nossos restantes amigos e camaradas de tertúlia, na respectiva página.

Se tiveres fotografias, procura mandá-las digitalizadas, em formato.jpg. Vou dar esta boa notícia aos nossos tertulianos e passar a incluir-te na nossa lista de endereços, se for esse o teu desejo.

Se quiseres, manda também uma foto actual (não é obrigatório). (...) Um grande abraço. Luís Graça (ex- Fur. Mil. Henriques, da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

3. Volta a publicar-se, desta vez neste blogue, a fotografia onde o Mário Armas Sousa se reconheceu. Eu não consigo identificá-lo. Pode ser que outros o consigam, com a preciosa ajuda do Humberto Reis cuja memória (de elefante) já é lendária... Sigo os seus apontamentos:

"Começando da esquerda para a direita e de cima para baixo temos: o de boina já não me lembro quem era, o 2º julgo que era o fur. mil. vagomestre, os 3º, 4º e 5º também não me lembro, o 6º é o Sousa, ex-fur. mil. da CCAÇ 12 e o último sou eu (ainda com algum cabelo e sem barriga). [O 5º julgo ser o Sousa, o Mário Armas de Sousa, do Pel Caça Nat 54; ou não será ? L.G.].

"Na 1ª fila não me lembro quem é o 1º; o 2º, meio careca, era o fur. mil. dos obuses (da BAC de Bissau); os 3º e 4º também não me recordo; o 5º julgo que era o fur. mil. mecânico e o 6º é o Fernandes, ex-fur. mil. da CCAÇ 12 e actual Engenheiro Civil na antiga CUF (já nesse tempo o Fernandes tinha jeito para as obras, pois foi ele que acompanhou todo o Reordenamento dos Nhabijões (a), por isso, quando cá chegou foi acabar o curso, o que muitos fizeram pois tinham-nos deixado a meio e até aldrabado nas habilitações literárias para ver se se baldavam de ir bater com os costados no Ultramar".

Em suma, o Mário Armas Sousa é decerto um deles, mas eu não sei qual... Tenho dúvidas é (i) quanto ao mês e ano em que foi tirada a foto e (ii) quanto à companhia a que pertenciam os camaradas que não eram da CCAÇ 12. Se a foto tiver sido tirada antes de Julho de 1970, o pessoal do Xime deveria pertencer à CART 2520 (1969/1971); em meados de 1970, eles foram rendidos pela CART 2715 (1970/72).

O Mário Armas de Sousa, que além do Xime esteve em Portogole, Enxalé e Missirá, era do PEL CAÇ NAT 54 (c) que, em Novembro d1969, foi render o PEL CAÇ NAT 52 (transferido para Bmabadinca, e que era comandado pelo Alf. Mil Beja Santos).

Com o PEL CAÇ NAT 52 (e julgo que também com o 54) fizémos (a CCAÇ 12 + CCAÇ 2636 + 1 Esq. Morteiros do Pel Mort 2106) talvez a mais dramática, temerária e penosa operação de que eu me lembre: Op Tigre Vadio (Março de 1970), na pensínsula de Madina/Belel, a norte do Rio Geba, no regulado do Cuor, na extremidade sul do famoso corredor do Morès...

Haveremos de falar dessa operação: tenho aqui extractos do relatório e notas do meu diário... A tal operação em que alguns de nós tiveram que beber o próprio mijo para sobreviverem e não morrererem desidratados...

A propósito: alguém tem o contacto do Beja Santos, que era Alf Mil, comandante do Pel Caç Nat 52 ? Já nos encontrámos uma vez, num almoço de confraternização do BCAÇ 2852 (1968/70).

O Alf Mil Cabral, o António Cabral, do Pel Caç Nat 63 (que estava em Fá, a Fá Mandinga onde foi formada e treinada a 1º Companhia de Comandos Africanos e onde Amílcar Cabral trabalhou como engenheiro agrónomo, nos anos 50) é advogado e é também professor no Instituto Superior de Serviço Social de Lisboa. Ando há anos para me encontrar com ele. O Humberto é capaz de ter o contacto dos dois.

Mantenhas. Luís
____________

Notas de L.G.

(a) Vd post de 21 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCII: O reordenamento de Nhabijões (1969/70)

(b) A grafia correcta será Porto Gole.

(c) Havia vários. Por exemplo, em Maio de 1970, já no final da comissão do BCAÇ 2852 (1968/70), havia três Pel Caç Nat no sector: 52 (Bambadinca), 54 (Missirá) e 63 (Fá). Estas unidades não se confundiam com os Pelotões de Milícias: nesta altura, havia já duas Companhias de Milícias... As mílicias tinham uma função de auto-defesa e eram constituídas apenas por elementos da população guineense (neste caso, predominante ou exclusivamente fulas).

domingo, 25 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P192: Antologia (21): Choro manjaco, lá no Canchungo (Luís Graça)

Selecção de Luís Graça:

1. Etnopoema sobre um choro em Canchungo

CHORO

por Jan Muá

"A mim vai na tchoro"
Lá no Canchungo
Eh Batassa
Eh parente
Tam-tam
Eh bombolom...

Eh barro branco da bolanha
Eh máscara cinza

Eh Batassa
Eh irmão
A bó muita mantenha
Eh tripa de vaca
Eh dança
Eh inselência
Eh morto
Eh silêncio
Eh Barsi
Eh irã da morte
Eh vida
Eh vós verdadeiros
Que estais ainda chorando
A parentela
Eh Batassa
Tam-tam...
Am...am...

Jan Muá
Canchungo 1964
______

Glossário (elaborado pelo autor do poema):

Choro - Conjunto de rituais celebrados por ocasião do falecimento de uma pessoa na etnia dos povos animistas na Guiné-Bissau.

Batassa - Uma das famílias principais entre os manjacos, do grupo brame.

Bombolom - Intrumento musical, espécie de tamborim tirado do côncavo do tronco de uma árvore. (É também um instrumento tradicional de comunicação entre aldeias no chão manjaco e no chão balanta. É também o nome da mais célebre - e incómoda, para o poder político - rádio de Bissau, a Rádio Bombolom. L.G.)

Inselência - Era uma parte dos rituais do choro em que se lembravam os nomes dos falecidos da família, quase uma ladainha.

Barsi - Deus entre os Brames.

Bolanha - Várzea para arroz, arrozal.

Irã - Demiurgo ou intermediário entre a divindade superior e os humanos entre os povos animistas da Guiné.

Mantenha - Saudação, em crioulo.

Canchungo - Cidade da região dos manjacos, conhecida entre os portugueses pelo nome de Teixeira Pinto.

Fonte: Usina das Letras


2. Sobre o autor:

Jan Muá é um pseudónimo de João Ferreira, poeta, escritor, ensaísta, crítico literário e jornalista, nascido em Portugal e naturalizado brasileiro em 1977.

João Ferreira é ainda professor universitário e investihgador literário. Co-autor e coordenador da tradução do Dicionário de Política de Norberto Bobbio.

Publicou os seguintes livros: (i) Uaná. São Paulo: Global Editora, 1987; (ii) A Questão do Pré-Modernismo na Literatura Portuguesa. Brasília: Núcleo de Estudos Portugueses da Universidade de Brasília, 1996;

Com o pseudónoimo de Jan Juá editou A Alma das Coisas (s/l: Editora Papel Virtual, 2004).

Fonte: João Ferreira - Jan Muá

Guiné 63/74 - P191: Coisas sobre Canchungo (antiga Teixeira Pinto)

Texto de Afonso M.F. Sousa:

1. Coisas sobre Teixeira Pinto...atrás do objectivo de descobrir algo que nos possa levar à data em que foi atribuido aquele nome à antiga vila do Canchungo, nome que foi reposto com a independência da Guiné-Bissau.

Para já parece estar difícil. Talvez seja melhor interrogar directamente o municipio !...

2. Leio no sítio do Departamento de Estado Norte-Americano > Departamento de Assuntos Africanos > Guiné-Bissau (Agotso de 2005, em inglês):

Antes da 1ª Guerra Mundial, as forças portuguesas sob o comando do major Teixeira Pinto, com algum auxílio da população muçulmana, dominou tribos animistas e estabeleceram eventualmente as fronteiras do território. O interior do Guiné Portuguesa ficou sob controlo após mais de 30 anos de luta; a subjugação final das ilhas de Bijagós não ocorreu senão até 1936. A capital administrativa foi transferida de Bolama para Bissau em 1941, e em 1952, pela emenda constitucional, a colónia da Guiné Portuguesa transformou-se numa província ultramarina de Portugal.

3. De acordo com a Enciclopédia Britância, fico a sabe que Canchungo é actualmente o maior centro guineense de produção de óleo de palma e grande produtor de arroz e de óleo de coconote. Canchungo : "formerly Teixeira Pinto, town, Cacheu region, northwestern Guinea-Bissau, West Africa. The town lies between the Rio Cacheu and the Rio Mansôa in an area of coastal lowlands and is a major producer of oil-palm vegetable oil for export. It is also a market centre for rice and coconuts grown nearby. The town is connected by road to Bissau, the national capital. Pop. (1979) mun., 36,766.)".

4. Leio, no sítio Bolanha - Associação Guineense de Quadros e Estudantes,a notícia de que a Fábrica Sicaju é "um exemplo sucesso de investimento português no país", indo abrir em breve, nos primeiros meses do próximo ano, "uma nova unidade na região de Canchungo, interior norte da Guiné-Bissau". Passo a transcrever, a seguir, a notícia na íntegra (que é da Lusa, 15 de Julho de 2005).
________

Bissau, 15 Jul (Lusa) - A Sicaju, fábrica de transformação da castanha de caju do grupo português MCI Caju, é uma das poucas unidades fabris da Guiné-Bissau, emprega 200 jovens guineenses e é considerada um exemplo de sucesso de investimento português no país.

Hoje de manhã, e já em plena actividade laboral, a Sicaju recebeu a visita do presidente guineense, Henrique Rosa, que após uma visita guiada às instalações da fábrica, construídas de raiz, disse à agência Lusa que estava "encantado" com aquilo que viu.

"Se nós conseguíssemos ter, pelo menos, mais uma dezena de iniciativas como esta poderíamos resolver muitos dos graves problemas sociais que afectam a Guiné-Bissau e, consequentemente, melhorar o preço do caju ao produtor", frisou Henrique Rosa.

O caju, exportado em bruto, essencialmente para a Índia, é, a par da pesca, um dos principais produtos que fazem entrar divisas no Tesouro Público guineense, chegando a gerar receitas na ordem dos 55 milhões de dólares (45,8 milhões de euros).

Laborando a partir de Julho de 2004, a Sicaju tem capacidade para transformar cerca de 16 toneladas de castanha bruta em amêndoa de "primeira qualidade", tendo o mercado holandês como destino principal.

António Mota, gerente e representante da MCI Caju, que detém 60 por cento da fábrica, explicou à agência Lusa que ainda não tem pronta a "encomenda", mas assegurou já ter garantido "comprador" para toda a produção até Maio de 2006.

Levantando um pouco a ponta do véu, António Mota adiantou à Lusa que a sua empresa está "satisfeita" pelo retorno do investimento que fez, uma vez que, com "pouco dinheiro", 1,2 milhões de dólares (cerca de um milhão de euros), tem garantida "uma boa margem de lucro".

Daí o apelo aos empresários portugueses que queiram iniciar ou estejam com dúvidas sobre desenvolver um negocio na Guiné-Bissau.

"Invistam no sector do caju. Há muitas potencialidades nesse sector. O investimento até nem é grande e permite um retorno rápido do capital. Permite ainda uma actividade sustentável e durante todo o ano e enquadrada no próprio país", explicou o gerente da Sicaju.

António Mota adiantou ainda que o sector do caju é a "primeira actividade de negócio" na Guiné-Bissau, pelo que a sua empresa conta alargar horizontes.

Brevemente, o grupo conta receber novos equipamentos de Portugal, o que vai permitir, explicou, que a empresa aumente para 300 o número de funcionários, tendo também garantido a castanha bruta para a produção até Fevereiro de 2006.

Se tudo correr como previsto, a Sicaju vai abrir uma nova unidade na região de Canchungo, interior norte da Guiné-Bissau, nos primeiros meses do próximo ano, afirmou António Mota.

Explicou ainda que a amêndoa produzida pela Sicaju não chega ao mercado português por "manifesta falta de capacidade de resposta" às encomendas que recebe, mas também porque, seguindo as leis da globalização, o mercado holandês "oferece melhores condições de preço".

Ainda a justificar as "vantagens" de um negócio no sector de transformação do caju na Guiné-Bissau, António Mota destacou a "facilidade" na obtenção da matéria-prima e a "disponibilidade" da mão- de-obra local.

"Aqui, nesta unidade de Bissau, temos, neste momento, 200 trabalhadores, todos guineenses. Sou o único estrangeiro aqui. Isso diz tudo das potencialidades deste sector", frisou.

António Mota contou ainda que o salário mínimo praticado na fábrica ronda os 45 mil francos CFA (68,70 euros), sem contar com o almoço e o transporte que a empresa oferece gratuitamente aos trabalhadores.

Questionado pela Lusa, em plena actividade de corte da castanha bruta, o jovem Uié Gomes disse que o trabalho na Sicaju é a "melhor coisa" que já lhe aconteceu.

A razão é, afinal, bem simples: "Tenho um salário mensal e deixei para trás o tédio de ficar em casa sem fazer nada".

O mesmo sucede com a maioria dos 200 trabalhadores, quase todos jovens como Uié Gomes.


5. Filhos ilustres de Canchungo / Teixeira Pinto:

Já referi aqui, noutro post, o nome de Carlos Lopes, um prestigiado sociólogo guineense e quadro superior da ONU, nascido no Canchungo em 1960.

Mas também é do Canchungo o poeta António Baticã Ferreira (Nascido em 1939,
é licenciado em Medicina pela Universidade de Lausana, Suíça. Colaborou em diversas publicações como poeta).

Um dos mais conhecidos e prestigiados jornalistas da Guiné-Bissau, Carlos Batic Ferreira, também era do Canchungo, onde de resto morreu, em 2002, aos 45 anos. jornalismo da Guiné-Bissau.

Aristides Gomes, 1º vice-presidente do PAIGC, também é do Canchungo. Professor primário, ingressou nas fileiras do PAIGC em 18 de Dezembro de 1973, em Cobiana, na Região de Cacheu.

Os nossos amigos e cmaradas de tertúlia ficam ainda a saber que a Câmara Municipal do Porto tem um protocolod e cooperação com o Canchungo, podendo originar uma futura geminação.

É tudo, por agora. Falamos das terras guineenses do passado mas também será giro constatar o que são no presente.

sábado, 24 de setembro de 2005

Guiné 63/74 - P190: Oficial do Estado Maior do 'Caco'... por duas horas (João Tunes)

António Spínola (Estremoz, 1910- Lisboa, 1996), presidente da República (de 15 de Maio de a 30 de Setembro de 1974).

Retrato a óleo pelo pintor Jacinto Luís. Presidência da Repúblcsa Portuguesa.

Texto do João Tunes:

Por onde andei, o Spínola só era tratado por "caco" (por causa do vidrinho que ele segurava no olho e que estávamos sempre à espera quando é que se escaqueirava no meio do chão mas o sacana tinha artes de ginástica facial e nunca nos deu esse gozo). (...) Embora mesnos usado, também ouvi chamar-lhe o "gajo do pingalim" mas isso foi em Bissau que era malta mais finaça e quando estive no Estado Maior General (EMG).

Um, reparo agora que na minha apresentação curricular não vos disse que fui Oficial do Estado Maior General do Comando Territorial Militar da Guiné. Fui, sim senhor. Por duas horas, mas fui.

Esta conta-se depressa. Quando levei a porrada no Pelundo (1) mandaram-me seguir para Bissau à espera de destino de colocação. Por lá estive uns dias a coçar o cú e os tomates pela Messe e Caserna de Oficiais em Santa Luzia mais tomar banho na bruta piscina para a oficialada.

Um dia de manhã, recebo ordem para me apresentar no EMG, na Repartição de Operações, onde tinha sido colocado. Apresentei-me a pensar para comigo "estes gajos tiveram pena, viram que meteram a pata na poça com a porrada que me deram e agora querem compensar a coisa dando-me vida de elite aqui ao pé do General, ora, ainda bem, isto afinal está-se a compôr e há males que vêm por bem" e outras filosofices de basófia (até já me estava a ver com mordomias e coisas que tais).

Apresentei-me e disseram-me para ler umas coisas para me identificar com o serviço, aquilo eram só mapas, mais mensagens e informações confidenciais e secretas sobre o IN, dicas dos pides, combinações em voz baixa, coisa e tal, mais uma data de majores e capitães cagões (por serem da elite do Spínola) e não me esqueço que encontrei lá pessoal que depois foi célebre como o Eanes, o Otelo, o Monge, o Lemos Pires e outros mais, e eu ali na nata das NT.

Ainda não tinha a manhã acabado aparece um dos majores, todo esbaforido (julgo que foi o Lemos Pires que esteve em Timor na descolonização), a dizer que tinha havido engano e que aquele lugar era para outro alferes (pelo nome, filho de boas famílias) e que eu tinha era que arrumar o saco e seguir de Dornier no outro dia pela fresquinha para Catió (2) que ali é que era o sítio certo para oficiais corrécios e punidos.

E desandei dali para fora com as minhas duas horas de serviço de Oficial de Estado Maior com Catió, Cacine, Guileje e Gadamael à minha espera. Lixaram-me o resto da comissão mas não me limpam o currículo. Pois foi aí que eles falavam do "pingalim" quando se referiam ao General (deviam achar que "caco" não era próprio do lugar).
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Notas de L.G.

(1) Vd. post de 15 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CXC: João Tunes, o novo tertuliano.

Vd. também post de 11 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLIX: Antologia (15): Lembranças do chão manjaco (Do Pelundo ao Canchungo)

(2) Vd. post de 12 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXXVI: No "reino do Nino": Catió, Cacine, Gadamael, Guileje (1970)

Guiné 63/74 - P189: Luís Moreira, de alferes sapador a professor de matemática

Luís Moreira, Alf. Mili. Sapador, no Batalhão de Engenharia, em Bissau, já recuperado do acidente com a mina A/C, em Nhabijões (Bambadinca), a 13 de Janeiro de 1971

© Luís Moreira (2005)

Texto do Luís Moreira:

Depois de ler a prosa do João Tunes, dei-me conta de que, também eu, me não apresentei convenientemente aos camarigas que não me conheceram.

Nasci numa vila para os lados de Viseu, mais proprimente em Torredeita, que até vem em alguns mapas e tem uma Escola Superior de Agricultura (Politécnica), muito falada nos telejornais do Verão por o pessoal acampar à sua volta para garantir uma das poucas vagas que são postas à disposição.

Em 1969, com 25 anos e o curso de engenharia interrompido, entrei em Mafra para o curso de oficiais para canhão, onde terminei a especialidade em minas e armadilhas (éramos 16 no pelotão), curso que não terminámos sem que 15 de nós fossemos contemplados com 19 dias de detenção e 45 de dispensas cortadas por, segundo reza a ordem de serviço [texto incompleto] (Como percebem tive de ocultar os nomes dos restantes 15 ex-camaradas por motivos óbvios).

E a punição não foi mais severa porque com 20 dias iríamos todos parar ao contingente geral e não teriam oficiais sapadores para enviarem para os teatros de guerra. Se o pudessem fazer estavam-se a borrifar para a oportunidade de reorientarmos o nosso comportamento.

Já como aspirante miliciano fui para Bragança instruir soldados que iriam para a as ex-colónias. Terminada a instrução fiz uma passagem por Tancos onde, pretensamente, deveria aprender mais alguma coisa sobre minas e armadilhas mas fiquei convencido de que, com o que aprendemos em Mafra, sabíamos mais que os oficiais e sargentos nossos instrutores em Tancos.

Finalmente fui para Viana do Castelo onde me encontrei com todos os ex-camaradas de infortúnio e formámos o BART 2917.

Em princípios de Maio de 1970 embarcámos naquela que foi a última viagem do velho Carvalho Araújo e desembarcámos em Bissau a 17 do mesmo mês. Ainda me recordo da expressão do Capitão que foi o meu comandante de Companhia e de que não me recordo do nome (ajude-me quem souber - seria o Passos Marques ou esse foi o do Batalhão de Engemharia ?) quando viu um pequeno furo à proa do navio, cerca de um metro acima da linha de àgua, por onde saía um fio de óleo e que o deixou preocupado desconfiando que não chegaria ao destino. Mas chegou e nós também naquela que até foi uma viagem calma.

O resto foi igual ao que já todos sabem. Desembarque, alojamento no Quartel de Adidos em Brá, saída uns dias depois e embarque na LDG que nos levou ao Xime e daí para os outros destinos em coluna.

Em 13 de janeiro do ano seguinte, 1971, foi o acidente com a mina anticarro de que já se falou e se voltará a falar, precedida, na altura do Natal, por uma visita do "homem do caco" ao reordenamento dos Nhabijões, onde esperou 20 minutos pelo alferes sapador, eu, que tinha ido à lenha com umas bajudas, mas que foi encoberto pelo David Guimarães e restantes ex-camaradas que lhe disseram que tinha ido buscar bidões de água para oas obras que estávamos a fazer. A peta pegou pois quando fui almoçar a Bambadinca ninguém me perguntou por onde andei.

Luís Moreira, aos 59 anos, professor de matemática (hoje tem 61 e está à beira da reforma).

© Luís Moreira (2005)

Após o acidente e consequente evacuação para o Hospital de Bissau, fui logo no dia seguinte visitado pelo dito Senhor Comandante que me desejou as rápidas melhoras. Devia estar a fazer falta no reordenamento que, diziam, era a menina dos olhos dele. Mas os médicos trocaram-lhe as voltas pois passaram-me aos serviços auxiliares e depois de uma breve passagem por Bambadinca vim fazer mais 15 ou 16 meses de serviço até 7 de Junho de 1972, mas no Batalhão de Engenharia, com direito a ar condicionado e tudo na messe e no bar de oficiais.

Regressei, terminei a minha licenciatura em Matemática (resolvi mudar de curso) e passei a ser mais um dos tão criticados professores do ensino secundário que todos acusam de nada fazer a não ser martirizar as ciancinhas. Gostava de ver esses críticos a dar aulas a algumas das turmas que me passaram pelas mãos. Iam parar mais depressa à psiquiatria do que os Bravos que sofreram morteiradas todos os dias na Guiné. Mas esta é outra história. Felizmente vou pedir a reforma para o mês que vem embora, por decisão desta ministra, tenha de aguentar a dar aulas todo o ano lectivo.

Como já vi as fotos de alguns camarigas no antes e no depois, junto também as minhas, uma aos 26 anos já no ar condicionado do BENG 447, e outra mais recente, teria os meus 59 anos (hoje estou com 61).

Mantenhas.
Luís Moreira