Capa do romance de Boris Vian (1920-1959), L'écume des jours , que está de resto traduzido em português já há muitos anos, A Espuma dos Dias). Um dos livros de referência da geração do existencialismo. Lido no Olossato no tempo da guerra colonial ... Para levar na bagagem de um tertuliano e reler hoje em Bissau...
Fonte: Le petit cahier du grand BORIS VIAN (29.09.2005)
Texto de Paulo Salgado, que estava com insónias, na penúltima última noite, antes de partir para Bissau:
Luís,
Já escolhemos - a minha mulher e eu. Ela não foi soldado, mas qualquer dia entra como bloguista, juro-vos; ela até me atira:
- E se vivessemos sempre em Bissau?!
Eu fico admirado, palavra; estive 18 anos para ir à República da Guiné-Bissau e ela, sempre na nega:
- Não te chegou a guerra?!
- Bolas, tu não compreendes - ...Até que foi passar comigo o fim de ano de 1990...e depois bebeu a água do Pidjiguiti !
Pois é, já escolhemos os livros e os discos. Lá vão alguns clássicos, para revisitar, um ou outro ensaio:
- Ah, ela meteu as Farpas (parece que vêm a propósito, nesta quadra eleitoral)...
Eu, pela minha parte, pus a Mahalia Jackson, a Areta, o Zeca, o Adriano (porra, então não houvera de ser: no Olossato ouvíamo-los antes de sair para as emboscadas!...quantos de vós não fizeram o mesmo ?!).
Não sei por que razão, o Moura Marques - grande cabo e amigo e camaradão e companheirão - um calmeirão que vive em Tires (carago, ainda não lhe liguei a dizer que vou mais uma vez) lá ia ouvir a 5.ª Sinfonia (não sei bem a razão desta audição, mas pronto).
O pior é a merda dos livros de trabalho. Pensava eu que sabia muito. Pus-me a ver o que me fazia falta: e lá vão coisas sobre recursos humanos, armazéns, procedimentos, processos clínicos, estatística - quando sei que, apesar de tudo, o que é preciso é ouvir os companheiros com quem vou trabalhar.
As malas estão quase prontas, claro o computador e o mail atrelado (faz-me falta para entrar em contacto com a equipa de retaguarda! O Luís Graça tem razão, vocês são a equipa de retaguarda.)
Mas lembrei-me agora: a minha Paula, filha com trinta anos, quase doutora investigadora em Oxford (ainda dizia aquela senhora que esta era uma juventudo rasca!), e que fez o 11.º ano em Bissau. E como ela é importante para mim. Quando vou visitá-la a Oxford, estamos no paleio até às 3 da matina... Como é bom aprender com os jovens; o namorado entra na conversa, mas o puto nunca esteve em Bissau, bolas. Ela é amiga...é diferente...
Estou meio tonto a escrever, porque me sabe bem estar a falar convosco. Ainda há momentos falei com a Dr.ª Maria Lopes Cardoso, da Universidade Católica, por causa de um puto, filho de um senhor (na altura ele era puto em Nhacra) que queria vir estudar para cá; mas é difícil... Todavia, como a Dr.ª Maria Lopes Cardoso me encantou com a sua amizade e sentido de justiça...
Tenho que meter alguma filosofia - ajuda a descontrair. Poesia, muita. Policiais é com minha mulher. Meto também a Antologia Poética da Guiné-Bissau (edição de 90...) e o dicionário de crioulo. Alguns ditus são notáveis.
Já me esquecia que tenho que dar um palpite sobre o discurso de um camarada e amigo olossatense que é candidato a uma junta de freguesia para os lados da Póvoa, ele que foi pescador - quer a minha opinião. Eu bem lhe disse:
- Tu é que conheces bem o Povo, o teu Povo, bolas. Tu é que lhes podes transmitir, com as tuas palavras, o que desejas para a freguesia... - Mas ele insistiu...
Já sei o que nos espera, quando aterrarmos: aquela lufada de ar quente que vem das bolanhas de Brá e de Safim batendo nas ventas e no corpo - parece que a Máfrica entra em nós.
E os putos:
- Patim, um euro! Misti taxi?- Acotovelamo-nos, suados.
E depois o Sr. João, motorista. Solícito mas firme; educado, mas sem baixar a cerviz:
- Kumma di biaje? Família sta diritu?
- Io, Sr. João.
Estou a imaginar. A conversar. Já passa da meia noite e o sono não vem. A Maria da Conceição já me chamou, mas eu, moita carrasco. Quero estar aqui. Um acto de solidão - mas partilhada.
Gostava de fazer um poema
feito de luzes e de sombras
em louvor
à camaradagem
Gostava de fazer um poema
feito de saudades e abraços
em louvor
ao amor
Gostava de fazer um poema
feito de madrugadas serenas
em louvor
aos que amam a esperança
Como vedes, amigos e camaradas (ainda não consigo dizer caramigos - hei-de conseguir...), estou a sonhar acordado.
Estou de novo no meu quarto-escritório. Já me esquecia da Espuma dos Dias (o Mário Tomé emprestou-me o livrinho naqueles idos anos de 70...) (1), tenho que relê-lo. Certamente vamos pagar peso a mais no aeroporto de Sá Carneiro:
- Já meteste lá umas garrafas, não sei como vai ser -... As cautelas de mulher sábia...
Olha, Luís, ao menos estive convosco, antes de partir...
Amanhã ainda tenho que ir ao SEF [Serviço de Estrangeiros e Fronteiras], regularizar a situação de uma miúda que sofreu queimaduras numa mão- e nós vamos levá-la...a M'ma Baboura!
Até sempre, camaradas.
Paulo Salgado
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Nota de L.G.
(1) Romance do escritor francês Boris Vian (1920-1959), um enfant terrible, ligado ao existencialismo, amigo de Sartre e de Beauvoir. Publicado em 1947, foi um livro que marcou muito a geração que fez a guerra colonial, ou pelo menos aqueles de nós mais dados às coisas da literatura.
Curioso, também foi um dos muitos livros que eu levei na minha mala, no N/M Niassa, convencido de que ia passar umas férias tropicais... Boris Vian, boémio, iconoclasta, príncipe de Saint Germain des Près, trompetista de jazz, poeta, é autor de poemas e letras de canções, eternas, como Le déserteur [ O desertor] (1954). Cliquem neste link para ler o poema e a ouvir a música...
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
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