Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
quarta-feira, 14 de dezembro de 2005
Guiné 63/74 - P349: Guileje, terra de fé e de coragem
Guiné> Guileje > Capela existente no tempo da CART 1613 (Junho de 1967/Maio de 1968).
Foto de José Neto, capitão reformado, cedida à AD - Acção para o Desenvolvimento, e enviada à nossa tertúlia pelo Pepito (2005).
Amigos & camaradas:
Chegam-nos novos documentos sobre o mítico aquartelamento de Guileje que, já no meu tempo (1969/71), na zona leste, era cantado pelos nossos soldados, a par de Gadamael... Contavam-se estórias, reais ou imaginárias, de fé e de coragem, dos nossos camaradas que aguentavam a frente sul... É pena terem-se perdido as letras dessas canções e o teor dos boatos e das notícias que nos chegavam, a Bissau, a Bambadinca, a Bafatá.
Guiné-Bissau > Guileje > 2004.
Restos de uma lápide, que pertencia à capela do aquartelamento, e onde se faz referência aos gringos açorianos (CCAÇ 3477, Dez 1971/Dez 1972; ou CCAV 8350, Dez 1972/Mai 1973 ?).
"Santo Cristo dos Milagres
Nesta capelinha oramos
Para sempre sorte dares
Aos Gringos Açorianos"
© Francisco Allen (2005)
O Albano Costa, que esteve no norte, em Guidage, mandou-nos fotos do sul, de Guileje:
"Aqui vão mais umas fotos com a devida autorização do autor, foram tiradas em 2004, aquando de mais uma ida, entre muitas, à Guiné pelo nosso amigo Francisco Allen, espero que sejam úteis para a reconstrução do destacamento".
Guiné > Guileje > 2004 > Restos de granadas de obus 14 cm
© Francisco Allen (2005)
O Francisco Allen é amigo do Albano e, pelo que sei, é fã da Guiné-Bissau. Pertenceu à CCAÇ 2381 (Empada, 1968/70). Publicamos hoje algumas das fotos que ele nos mandou, por intermédio do Albano. Faço votos para que ele aceite a minha proposta para percenter à nossa tertúlia, proposta essa que lhe dirigi através do Albano.
O Pepito, por sua vez, envia-nos "uma foto com uma nova placa que desenterrámos junto à antiga capela", a par de "uma foto do Capitão Zé Neto, com a capela [de Guiledje] ainda inteira"... Recorde-se que a unidade do Zé Neto, na altura, 2ºsargento, era a CART 1613 (Jun 1967/Mai 1968).
Guiné > Guileje > 2005 > Lápide encontrada sob os escombros do antigo aquartelamento, e que pertencia à capelinha. Nela há os seguintes dizeres, gravados:
"A Ti, Deus Único E Senhor
Da Terra, Oferecemos Estas
Gotas De Suor Que Nos
Sobrararam da Luta Pela
Tua Palavra Eterna.
Soldados da C.A.R.T. 1613"
© AD - Acção para o Desenvolvimento (2005)
Sobre este famosa lápide acrescenta o Zé Neto, nosso camarada de tertúlia e protagonista deste filme: "A placa da Capela foi feita em cimento forte e não em cobre. A dedicatória é minha e a inscrição em baixo-relevo foi obra do Furriel Miliciano de Transmissões Maurício Mota de Almeida, natural de Fornos de Algodres, mas radicado há muito nos EUA. Este moço veio de propósito a Portugal para estar presente no Almoço/Convívio da CART 1613 que teve lugar em Braga no passado dia 3 de Junho. Aliás é com muito orgulho que acrescento que dos meus 14 "excepcionais Furriéis" compareceram 12 (um falececeu há pouco), portanto só faltou um".
Ao ver estas novas fotos, fico na dúvida sobre quem eram, afinal, os gringos açorianos. A CCAV 8356, a companhia açoriana que lá estava em Maio de 1973, e que o comandante do COP 5, Major Coutinho e Lima, mandou evacuar para Gadamael, também era conhecida por "Piratas de Guileje". E o seu lema, que ficou gravado na pedra, era ironicamente: "Glória com Valor"...
Guiné > Guileje > 2005 > Monumento evocativo da CCAV 8356 (72/74) - "Piratas de Guileje"
© Francisco Allen (2005)
Estes homens, que foram obrigados a retirar de Guileje, sob o feroz cerco dos guerrilheiros do PAIGC, ainda transportam consigo o opróbio do abandono e da derrota...
Como é que eles sobreviveram a isto ? Não sei, um dia gostaria de ouvir o testemunho do valoroso combatente que foi o Casimiro Carvalho, ex-furriel miliciano "ranger", desta unidade, trazido a esta tertúlia pela mão de outro "ranger", o Magalhães Ribeiro (1)...
Também não sei como terão sidos os últimos destes valorosos acorianos, em Gadamael. Sabemos que tiveram 9 mortos e muitos feridos.
O Pepipo já identificou, até agora, muitos sítios, tais como (da esquerda para a direita): (i) abrigo subterrâneo da população; (ii) casa de fotos (?); (iii) paiol; (iv) gerador; (v) posto de sentinela; (vi) casa de sargentos (?) / geral; (vii) messe de sargentos/residência; (viii) messe de oficiais / residência; (ix) posto de socorros; (x) capela; (xi) administração (?); (xii) refeitório de soldados / cozinha
Guiné - Bissau > Guileje > 2005 >
Projecto de reconstrução do antigo aquartelamento (2)
O Pepito diz-me que, se tudo correr bem, estamos todos convidados para ir inauguar o seu projecto de ecoturismo e de museologia daqui a um ano. E se lá formos, todos ou alguns de nós, iremos certamente prestar uma homenagem a todos os combatentes, de um lado e de ouro, que em Guileje foram um exemplo de fé e de coragem: fé e confiança nos valores por que lutavam; coragem e valor nas acções em que estiveram empenhados...
__________
(1) Vd. post de 2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVIII: No corredor da morte (CCAV 8350, Guileje e Gadamael, 1972/73)
(2) Vd. post de 10 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLV: Projecto Guileje (7): recuperação do quartel
Guiné 63/74 - P348: A Nossa Foto de Natal 2005
Guiné > Guiné > 2005 > Apropriações...
Foto de Carlos Schwrz (Pepito) (2005)
1. Olá, Luís
Há dias falava-te de apropriação da língua portuguesa (1).
Depois de vir ontem de Guiledje, onde tirei esta fotografia, posso-te falar de apropriação pela natureza: uma carcaça de camião com mais de 30 anos, envolvida por uma árvore que entretanto por lá nasceu. Nem que se queira, não se pode tirar o esqueleto de lá....
abraços
pepito
2. Comentário de L.G.
Amigos & Camaradas: É simplesmente fabuloso!... Vejam só!... Já agradeci, mais uma vez, ao Pepito (ou Carlos Schwarz, da AD, do Projecto Guiledje)… Mas ele também está à espera de contributos nossos: quanto mais não seja irmos lá inaugurar o ecoturismo de Guiledje/Cantanhez daqui a dois anos (?) (2).
Vamos fazer um concurso para a melhor legenda para esta foto. O Pepito já deu o mote: Apropriações… Eu acrescentei outra: A Mãe Natureza não perdoa nem desperdiça… Mas também podia ser: O abraço da paz…
3. Respostas / mensagens que têm chegado:
João Tunes > "Uma árvore vingou-nos do absurdo ao rir-se da guerra feita ferrugem"
Humberto Reis > "Íntima Cooperação Portugal/Guiné-Bissau"
António Levezinho > Contributo para a legenda da impressionante foto : "Naturalmente fez-se História"... Com um abraço e votos de uma Quadra Feliz.
______________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de Pepito, de 6 Dezembro 2005 > Guiné 63/74 - CCCXL: O melhor que Portugal nos deixou foi a língua (Pepito)
(2) "Se correr tudo bem, espero-vos cá daqui a um ano" (manda dizer o Pepito, na volta do correio)
terça-feira, 13 de dezembro de 2005
Guiné 63/74 - P347: Brá, SPM 0418 (3): memórias de um comando (Virgínio Briote)
Guiné > 1966 > Comandos a caminho de Bafatá, junto ao Dakota para operações na região do Xitole. Nessa época, o helicóptero ainda era um luxo...
© Virgínio Briote (2005)
Caro Luís,
A minha memória desses tempos foi passada a escrito com base em diários incompletos e muitas vezes interrompidos. Recorri a relatórios oficiais de operações feitas pelo grupo e a documentos escritos, depoimentos e diários de camaradas de outros grupos. Concluí-a dois meses depois de ter chegado e com a intenção de não voltar a pensar no assunto.
Depois dos episódios de Barro (*) fiquei convencido que a guerra na Guiné ia mesmo ter uma saída, aquele bravo povo ia tornar-se independente.
Mas fiz questão de respeitar o espírito que na altura vigorava entre nós, em Brá. A razão da nossa missão era fazer a guerra com eficácia, procurando trazer para o nosso lado a população que vivia entre os dois fogos.
Seguem mais 3 episódios.
Um abraço,
vb
7. DORNIER COM CHEIRO A COCÓ
Campo de aviação de Cuntima (**). O DO 27 aterrara há pouco numa nuvem de pó. Negros e brancos rodearam a avioneta, apalparam-lhe as asas, fizeram festas na fuselagem, o Magrinho a destacar-se com uma cerveja gelada na mão para o piloto.
Capitão novo, pele muito branca, a escorrer suor, mala do correio, grades de cerveja, caixas de uísque, medicamentos, tudo cá para fora.
Minutos depois, abraços e mais abraços, pista desimpedida, motor a trabalhar, portas fechadas. O Dornier a dar a volta devagar para o topo do campo, a roncar com mais força, na cabeça do Gil a imagem, não sabe como, do touro a raspar as patas, para os forcados. De repente aí vai o aviãosinho, a tremer todo, aos saltinhos, a ganhar velocidade, gás no máximo, campo de futebol fora, manobra apertada a evitar as balizas e as árvores. Não ouvira a salva de palmas mas vira da janela, não foi golo mas quase. E, pronto, adeus Cuntima, direcção de Farim.
Tinham pousado há minutos, a mesma cerimónia mas com mais gente e mais graduada. Um alvoroço em Farim, o Coronel, rodeado do seu estado-maior, a trocar impressões sobre as acções em Canjambari.
Então o alferes já vai para Bissau? Safa-se de boa.
Ouvira-o ainda falar sobre a resistência que a companhia de Jumbembem (**) estava a sofrer, combatia-se duramente na zona, até aí santuário do PAIGC. No caminho da fronteira para o Oio, uma autêntica auto-estrada, para todo o tipo de reabastecimentos. Canjambari morocunda, um km ou nem isso para o interior e Canjambari porto, junto ao rio.
As NT foram muito bem até Canjambari morocunda, para entrar em Canjambari porto (***) é que está mais difícil. Levantam a cabeça para lá, aí vai prémio de morteiro. Às 6 da matina, não precisam de corneteiro para nada, duas morteiradas em cima, o suficiente para abrirem os olhos, ponham-se a pé, tugas preguiçosos, toca a tentar mais uma vez. No final do dia também fazem questão de assinalar.
Esta merda para fim da comissão, estás a ver, o Medalha todo suado.
O avião estava com a carga no limite, o capelão, com um saco de pão fresco em cima das pernas, sentara-se à frente, ao lado do piloto. Atrás, encostado à janela um sargento enfermeiro segurava um frasco de vidro com um líquido qualquer a escorrer às gotas para o braço de um preto, com uma perna toda entrapada. Do outro lado, o Gil com o saco do correio na mão. Tudo OK ? O piloto, tenente Melo, apresentara-se, pelos auscultadores. Que no trajecto para Bissau faria um desvio para a área de Canjambari, a pedido do Coronel, largar os dois sacos às nossas tropas e que, quando levantasse o polegar, e repetira, só quando o polegar estivesse virado para cima, deveriam lançá-los pela janela.
Dornier no ar para Canjambari, fumos aqui e ali a subir das matas, charcos de água a espelharem. O preto ferido, medo estampado nos olhos muito abertos, a farda nova ainda, verde azeitona, seria do PAIGC? O enfermeiro, a fazer ginástica com o frasco e com a cabeça a dizer que sim. O capelão à frente, suor a escorrer, a cara muito branca, mãos amarradas ao saco com pão fresco. O Sol ainda alto. O piloto a falar com a base, olho num lado e noutro. Estavam na zona, iriam baixar.
A planar, quase parado, como um milhafre, a descer lentamente, os olhos deles arregalados para a mata. Onde é que está a nossa malta? Mais uma volta. Estão ali, debaixo daquela árvore, não? O tenente Melo não estava certo.
Desceram mais, até alguns metros acima das copas das árvores, são eles, não são? Os outros não responderam, não paravam de olhar. São eles, não são? Força, abrir janelas, mãos nos sacos, como se já não estivessem, a turbulência a sentir-se.
Nova passagem, agora é mesmo, olhem para a minha mão, polegar para cima janela fora com os sacos, o piloto.
Gil num segundo viu a árvore, viu-os lá em baixo a correr, àquela altura as fardas deles pareceram-lhe iguais à do ferido que ia com eles. Quando o piloto levantou o polegar, hesitou, ficou com o saco do correio na mão, o do pão já tinha saído.
Mesmo mais tarde, tentando rever a sucessão dos acontecimentos, não era capaz de dizer o que sentiu primeiro. Tudo ao mesmo tempo, uma rajada longa, os gritos dentro da avioneta, um ciclone lá dentro, um barulho como uma câmara-de-ar imensa a esvaziar-se, o Dornier a balançar para cima e para baixo, para a esquerda, para a direita…
No voo para Bissau, o guerrilheiro ferido gritou o tempo todo, atingido na mesma perna, mais um tiro, soube-se depois, o DO dançou sempre, a turbulência aumentou e um cheiro a cocó borrou-os a todos.
Na pista, finalmente! De costas no chão, Agfa na mão, os buracos das balas na barriga do Dornier. E uma grande roda escura também, nas calças do capelão.
8. CAPITÃO MANILHA
Grupos em sentido na parada. Porta fechada! A que horas estava marcada a instrução dos grupos? Às 21? E que horas têm? 21h02? Às 21h00, 1 ou 2 minutos depois são outras horas, ou não? Um minuto, meu capitão, desabafa um! Uns bardamerdas, é o que vocês são, os gajos fazem o que querem de vocês!
Não faço parte desta peça, meu capitão, o meu grupo estava pronto às 5 para as nove, protesta-lhe nos olhos outro! O capitão, a fisgá-lo de lado, ainda mamam da mamã, o que me calhou, porra! Já não me lembro de mamar, outra vez o outro.
Manilha pára, vira-se de frente, olha-o de baixo para cima, dispara, ouça lá seu alferesinho de merda, você acha que não sou capaz de o pôr daqui para fora ao murro e pontapé? Vamos, meu capitão, avança o tal, preparado para tudo.
Manilha tira a boina, passa a mão pelo cabelo, três a olharem para o lado, o outro à espera. Esta, suas meninas, esta, martela o capitão, com a mão virada para o tal, é a única, a única resposta que um comando pode dar! Todos à minha frente, 20 flexões para todos, grupos incluídos.
O capitão Manilha, promovido a capitão por distinção, até então o único vivo com a medalha de valor militar em ouro, mais duas cruzes de guerra, tinha metido o chico (1) , estava em Lisboa na Academia Militar. Aproveitara as férias, viera a Bissau dar-lhes instrução operacional, e saíra com eles para o mato durante o curso de comandos para oficiais e sargentos na Guiné.
Foi um dos fundadores dos comandos da Guiné. Tinha estado em Angola, com o alferes Justo dos Camaleões, os irmãos R. Dias, o Mirandela e outros. Depois formou o grupo dos Fantasmas e com ele percorreu a Guiné de lés a lés. Ficou famoso pela forma como encarava a guerra, como se fosse uma brincadeira de garotos. Fazia que retirava, dava às vezes até sinais de fuga descontrolada, como se quisesse animar o IN a mostrar-se confiante. Escondia-se com o grupo, paciente, uma ou duas horas se fosse preciso. E depois, Fantasmas ao ataque! Uma série de êxitos coroavam-no e era objecto de mal disfarçada homenagem, numa altura em que a regra era ver as NT recolhidas a posições defensivas.
Mas nem sempre as coisas correram bem. Tanta intrepidez e desafio também lhe trouxeram problemas.
Novembro de 64, dia 28. Na estrada de Madina do Boé para Contabane, a uma escassa centena de metros do pontão sobre o rio Gobige, os Fantasmas detectaram uma mina anti-carro. Levantaram a mina e simularam o rebentamento. Ficaram emboscados nas proximidades cerca de 2 horas. Viram um grupo IN aproximar-se e afastar-se logo que deram pela presença de mulheres na estrada. Uma hora depois viram um elemento IN a fugir. Afinal, estavam em igualdade de circunstância, todos sabiam da presença uns dos outros.
No dia seguinte voltou com o grupo ao local. Meteu-se com alguns soldados no Unimog mais pequeno à frente, e encaixou dezasseis militares no Unimog maior atrás. A 1ª viatura passou, a outra, uma dezena de metros atrás, não. Pisou uma mina. Ao mesmo tempo que em cima deles caía uma chuva de balas de armas automáticas, o Unimog incendiou-se e as munições explodiram como foguetes num arraial minhoto. Quase todos os homens foram projectados a arder. 7 mortos logo ali e três feridos graves. Tinham partido 22 de Bissau, regressaram doze. Com o grupo dizimado, poucos dias depois arrancou com os restantes para uma operação.
Já quase no final da comissão, em Cameconde, lá para o sul. No diário do furriel Uva, um deles, podia ler-se.
“6 Maio 65. Saímos às 15h00 para a operação 'Ciao'.
"Num Dakota até Cacine e depois em viaturas até Cameconde, onde já se encontrava um pelotão à nossa espera. O Capitão Varela foi connosco.
"Saímos às 19h00 em direcção ao objectivo. Segundo as informações que nos foram fornecidas, a base IN era composta por cerca de 80 homens bem armados, comandados por Pansau Na Ina, chefe militar, adjunto do João Bernardo Vieira, de etnia Papel, mais conhecido pelo 'Comandante Nino'.
"Já na madrugada do dia 7, a poucos kms do objectivo demos indicações ao pelotão para permanecer ali e esperar pelo nosso regresso, com a missão de proteger a nossa retirada ou dar-nos apoio, caso fosse necessário.
"Assim, seguimos silenciosamente até perto do acampamento, situado na mata a sw de Catunco. Apesar de termos feito uma aproximação cuidadosa, fomos detectados por uma sentinela. Tentámos assaltar o acampamento. Mas eles estavam bem preparados, reagiram ao nosso fogo e o tiroteio prolongou-se. Quando o fogo deles abrandou, entrámos por ali dentro e vimos material abandonado durante a fuga.
"8 armas, cunhetes de munições, granadas, petardos, equipamentos, minas, fardas, e muitos documentos, entre os quais um caderno que pertencia a um tal Armindo Pedro Rodrigues, com elementos importantes da Ordem de Batalha do PAIGC.
"Carregados com o nosso material e com o que tínhamos capturado, regressámos para junto do pelotão. Juntámo-lo e começamos a vê-lo em pormenor. Faltava o aparelho de pontaria de um morteiro de 88 (?), até então ainda não apreendido na Guiné!
"O Morais afiançava tê-lo visto lá. O tenente Manilha chamou o Amadu e o Morais e disse-lhes para voltarem ao acampamento. Embora estivéssemos conscientes do perigo, arriscámos, partindo do princípio que o IN se tinha retirado após as baixas sofridas. O Morais perguntou quem é que queria ir com ele e com o Amadu. Ofereci-me bem assim como o capitão Varela, o furriel Matos e mais 7 camarada, 10 no total.
"De novo no interior do acampamento a arder. Vi uma árvore gigante, com umas cavidades enormes. Espreitei para dentro de uma, o Morais para a outra, à procura de material, e o restante pessoal, por ali perto, fazia o mesmo.
Subitamente, rajadas de metralhadora e granadas de bazuca caíram-nos em cima. Uma destas rebentou entre nós. Um pequeno estilhaço partiu a coluna do Morais, que caiu sobre uma fogueira. Eu fui atingido no lado direito das costas, mas na altura nem localizei o ferimento.
"Vi o Morais a morrer quando o olhei de relance. Um vago murmúrio, depois mais nada, um ar sereno no rosto, pareceu-me.
"Deitei-me e reagi ao fogo, mas passado pouco tempo fiquei sem força no braço, a G-3 ficou muito pesada, e depois já nem o gatilho conseguia apertar. Passei a espingarda para o braço esquerdo e fiz fogo, mas julgo que não fui nada eficaz.
"Os outros 8 camaradas, embora ligeiramente, foram todos atingidos. Depois os restantes elementos do Grupo foram lá buscar-nos. Junto do pelotão de apoio, injectaram-me morfina. Tinha perdido muito sangue. Prestaram-me os primeiros socorros em Cacine.
"Fomos evacuados para Bissau. Eu de barriga para baixo, bem atado, com mais uma injecção de morfina, e o Morais, morto, cada um em macas de lona, encaixados no exterior do heli.
"Durante o trajecto, e em duas localidades diferentes, na minha sonolência ouvi rajadas de metralhadora que me pareceram passar rente ao helicóptero. Pareceu-me uma eternidade a viagem até ao hospital de Bissau, onde, depois de me terem operado, fiquei internado.
"8 Maio. O Marcolino foi o primeiro a vir ver-me ao Hospital. O crucifixo que eu trazia ao peito era uma crosta, uma grande cruz de sangue seco. Pedi-lhe que o lavasse.
"9 Maio. Muitos camaradas me visitaram hoje, o major M. Dias, o tenente Manilha, o alferes Rola, os furriéis Matos, o Moita e o Mirandela, claro. Da parte da tarde vieram a D. Beatriz Sá Carneiro, mulher do Comandante Militar e a D. Mariana do MNF.”
O Morais era órfão de pai. No caso dele correu tudo no mesmo sentido. Mal. Não era necessário a presença dele nesta operação. Aliás, já tinha acabado a comissão. Em Brá tentámos persuadi-lo, mais que uma vez, a não ir. Tantas vezes, que diferença vai fazer sair mais uma, insistiu.
Não embarcou com o Batalhão a que pertencia, por ter combinado que esperava que o Ten. Manilha e os furriéis Matos, Moita e Ilídio acabassem a comissão. A estes faltavam-lhes apenas 15 dias. Imaginava o regresso à Metrópole, todos juntos num navio, como se regressassem de um cruzeiro de férias.
Guiné > Cemitério de Bissau > 1965/66 > Os militares portugueses tinham de se quotizar, entre si, para comprar um caixa de chumbo e enviar os seus camarados mortos para a Metrópole... Como foi o caso do furriel milicano comando Morais, morto em combate.
© Virgínio Briote (2005)
O Mirandela recebeu o corpo no Hospital. Foi ele com o M. Dias, o Fabião e o Ilídio que o lavaram, vestiram e o deitaram no caixão. Fizeram uma colecta para a compra do caixão de chumbo. E coincidência, morreu no mesmo dia em que o seu Batalhão desfilava em Lisboa, com a missão cumprida.
Claro que, fosse para onde fosse, o Manilha trazia com ele esses e outros acontecimentos, como se uma auréola o enfeitasse.
Quando o capitão Manilha entrou em Brá apresentaram-lhe os novos que estavam a frequentar o curso e pessoal já bem conhecido dele, o capitão Varela, o sargento M. Dias, os furriéis Mirandela, Moita, Matos, Fabião, o João Uva, o cabo Marcolino, os soldados, Mássimo, Camará, Mamadú... Dos novos conhecia alguns, e aos outros tinha algum tempo à frente para os ver trabalhar no mato e depois veria se lhes entregaria o crachá.
Passava a vida a pô-los em sentido. Uma volta na conversa e lá vinha o Nino (2) à baila. O Nino, estão a olhar para mim? O Nino, que porra, estes gajos são todos surdos? O Nino , ele a insistir e os alferes com falta de entendimento. Sentido, porra! Aqui nos comandos quando se fala no Nino, toda a macacada, vocês também, saltam como uma mola, estejam onde estiverem, não interessa, põem-se a pé! Em sentido, porra!
E foi assim que se fez escola, dali para a frente, sempre que alguém pronunciava o nome do Nino, os outros punham-se em sentido.
Uma vez, em Biambi, na zona do Oio, uma tempestade como não havia na memória deles, tinha partido o grupo em dois, aí pela uma da madrugada, noite negra como só em África quando o céu está todo tapado. Um, sozinho, lá encontrou o trilho depois de andar a tactear o chão. Daqui não saio, vou-me mas é sentar!
A chuva não parava, pareciam pedras grossas, faziam tanto barulho no camuflado que até sentiu medo que o denunciassem. Ainda bem que só tinha as cuecas debaixo, menos peso para carregar. Nada de sinais, nem de trás nem da frente.
Esta é boa, onde é que os gajos se meteram, que…assobiou baixo, a imitar o pássaro que afinaram no curso. Nada de respostas, minutos a passar, chuva em barda. Estou frito, estou mesmo perdido, o coração como um cavalo a galope, até sentia calor, olhava para todo o lado não via nada, nem pirilampos, nada, só ouvia o barulho da água a bater-lhe. E agora, o que faço?
Eles hão-de dar pela minha falta, não me vão deixar aqui. E se não derem? Calma, esperas pelo nascer do dia, viras as costas ao Sol, a corta mato, sempre em frente, até á estrada Mansoa-Bissorã, escondes-te, há-de aparecer uma coluna um dia destes, quase todos os dias passam. Depois é só saltar para a estrada e pronto. E se a guerrilha te vê, o que é que fazes? Minutos a durarem horas, o coração outra vez.
Um pequeno som, pareceu-lhe, serão eles, ou estarei a sonhar? Um assobiar baixinho. É isso, são eles, nunca mais vinham, assobia também, assobios cada vez mais próximos, uma mão, o Mássimo, o Manilha atrás. Então e os outros? O Manilha, danado, a bufar, e os outros? Mássimo à frente a assobiar, dentro do trilho, foram andando para trás, mãos no cinturão do da frente. Encontraram o capitão Varela e o Vidraças, os dois sentados, costas com costas. Nabos, a dormir na forma, ah?
No outro sábado o Manilha encontrou-os todos sentados, tinham acabado de almoçar na messe de Brá. E o programa para hoje, qual é? Um a dizer vou até Bissau espairecer, outro vou mas é dormir com a cama, a correspondência a preocupar o Duque, o outro, sei lá? Ele arranjava um melhor! Que se preparassem. Levou-os para o aeroporto, os motores já quentes do Dakota pronto para descolar.
Foram para leste, Nova Lamego, Canquelifá (****). Chegaram o Sol a ir-se. Esperaram fechados dentro do avião, os motores parados. Abriram-lhes as portas, entraram directos para uma GMC com a lona corrida. Meteram-lhes lá dentro queijo partido aos bocados e pão. O Manilha, gargalhada baixa, a pedir os cantis, para encher de água fresca.
O meu não precisa, está cheio até cima, nem se ouve, mesmo que o abane, diz um. Passa, o Manilha a insistir. Que a marcha ia ser longa, cerca de 20 km, e a água vai ser decisiva. Ouçam bem, só bebem quando eu der sinal, todos a beber ao mesmo tempo.
Carvão negro na cara e nos braços, pareciam manjacos e mandingas. Pôs-se o sol, meteram-se no mato, dois a dois, trilhos fora, quilómetros e quilómetros, a noite toda.
Comandos ao ataque, o Manilha desalmado a gritar, como gostava de começar o dia! Fizeram-se a eles, por ali dentro, as casas de mato com 2 ou 3 gajos que nunca lhes tinham sido apresentados, a pisgarem-se. Depois, um deles passou à história. Da gargalhada. Quando sentiu os projécteis de uma metralhadora pesada inimiga a bater na árvores, até disse para os outros, olha a NT a apoiar (3) ! Os outros a rirem-se, uma força danada dentro deles. No caminho do regresso lembraram-se da genica que sentiram, estamos numa forma do caraças, não estamos?
Nunca souberam donde tinha vindo tanta gana, se calhar tinha sido quando o Manilha, finalmente, autorizou meterem água, devia ter vitaminas. A certa altura do caminho de retirada, começaram a ficar sem forças. Estranharam, nunca lhes tinha acontecido, não acertavam com o trilho, não era só um, eram todos. Menos o Manilha. Alguns paravam, encostavam-se às árvores, queriam sentar-se, os olhos para cima. Quem parar fica para trás, o Manilha lá à frente, na esgalha.
Em Canquelifá, uma cerveja gelada, boca abaixo, duma vez só. Alguns só acordaram com os motores do Dakota e um ou dois nem assim. A caminho do avião, pareciam zombies, em coluna por um, pelo campo fora.
Da outra vez, mandou tapar-lhes os olhos com algodão, fita adesiva e um lenço negro por cima. Só tiram os lenços e o adesivo quando eu mandar! É para ver se adivinham para onde vamos passar o fim-de-semana!
Viaturas pela estrada fora, para onde havia de ser, para o Oio. Quando entraram em Mansoa, pararam. Então, quem é amigo? Para onde vamos então? Toca a tirar os lenços, olhos e ouvidos bem abertos agora! Foram por ali fora até Bissorã. A mesma história do queijo e do pão, uma cerveja para cada um, cantis cheios de água, por aqueles trilhos, a noite toda.
Um cigarro agora é que sabia bem! Pois, também a mim me apetecia estar na praia de Carcavelos, ao sol com a miúda, os ouvidos dele em todo o lado! Fumas no fim do fogo! O dia clareou, estavam no sítio certo, as casas deles em frente. Os guerrilheiros é que faltaram à chamada naquela altura. Não saímos daqui enquanto os gajos não aparecerem, o Manilha a provocá-los.
Vieram mais tarde, quando já não dava muito jeito, mas arranja-se sempre qualquer coisa, que remédio. Um daqueles alferes integrado na equipa do furriel Moita, apanhado num campo de mancarra, pouca coisa para se abrigar, ou estava com pressa de regressar a Bissau, ou tinha visto no cinema uma cena parecida, chateou-se, aqui vou eu, quem quiser que venha. Quis lá saber da parelha e da equipa, meteu-se por aquelas casas de mato dentro. Depois ficou lá dentro sozinho, sem saber bem o que fazer. Os companheiros daquele fim-de-semana encontraram-no a olhar para o ar, para os ramos das árvores a abanarem com as balas. Estes gajos nunca mais aprendem, porra! 20 flexões aí já, o Manilha oportuno como sempre!
Agora sim, podem fazer fogo com o isqueiro, toca a fumar!
9. ESTREIA NO OIO
Final de tarde em Mansoa, o grupo pronto para a estreia. Dentro das Mercedes tapadas com as lonas, aguardaram que o capitão Manilha e o comandante do grupo acertassem os pormenores com o comandante do batalhão. Para matar a espera, meteram-lhes lá dentro pão, queijo, marmelada e cerveja.
As viaturas da coluna para Bissorã já se tinham posto em movimento quando as deles arrancaram rápidas até se chegarem às outras. Andaram uns quilómetros, poucos, até receberem a indicação para se aprontarem para saltar. Teria que ser muito rápido, as viaturas em que iam abrandariam só, as da frente continuariam no sentido de Bissorã.
Internados no mato esperaram o reagrupamento, a noite a fechar-se não lhes prometia tempo seco. Puseram-se em movimento, como lhes ensinaram. O capitão, uma vez ou outra saía do trilho, ficava-se a vê-los passar, surgia-lhes por trás, G3 apontada, era uma vez um comando, assim não vais longe, pá, vai antes para a manutenção.
À frente o Marcolino segurava o guia, apanhado há mais de um mês, rédea curta nos pés, braços esticados nas costas, bem atados com uma corda preta de nylon, lenço preto entre os dentes, que todos os cuidados eram poucos.
A companhia de apoio seguiu atrás do grupo até o trilho bifurcar, emboscou-se aí a aguardar o desenrolar dos acontecimentos. No caso de lhes ser pedido, veriam a melhor maneira de os recolher. Estes deveriam progredir até Biambe, procurar as casas de mato, tentar apanhar uma sentinela, explorar rápido e retirar a seguir. Noite escura, sempre a chover, progressão lenta, paragens e mais paragens, guia a dizer que é lá, aonde, ali já, e nunca mais era.
Dois tiros! Detectados num trilho, mesmo junto à tabanca de Iusse. Responderam à voz do Manilha, atiraram e atiraram-se lá para dentro. 4 casas de mato, ninguém lá dentro!
O Manilha não queria sair da zona, nem a tiro. A primeira operação a seco, nem pensar! Vamos aguentar aqui, dentro da mata, até o dia clarear. Os gajos sabem que nós estamos cá e nós sabemos que eles estão na mata aqui à volta. Vão acabar por se mostrar.
Não foi preciso esperarem que fosse dia. De um momento para o outro, começaram a ser alvejados. Fogo alto, a bater nas copas das árvores. Uns minutos depois, começaram a ser flagelados com fogo de morteiro, do lado de onde tinham vindo. Das matas em redor, flagelavam-nos com tiros de armas automáticas e, para compensar, recebiam morteiradas, do lado da bolanha.
O Manilha ao AN PRC/10 (4), queria saber o que era feito da companhia de apoio, esta não dava sinal. Chegou uma parelha de T6.
Um espectáculo seguido com expectativa e interesse. Pelo AVF (5) o Manilha ficou a saber que era verdade o pressentimento. Da companhia de apoio subiam granadas, viam o fumo atrás, confirmavam os dois pilotos, a trajectória delas quase a pique, o estardalhaço a cair-lhes quase em cima, com a chuva. Estavam bem abrigados, dali não sairiam tão cedo a não ser que os morteiros da tropa amiga se calassem.
A parelha dos T6 tinha sido reforçada com outra, despejavam rockets e rajadas de metralhadora sempre que viam fumos a sair da mata. O fogo IN abrandou e os morteiros da companhia silenciaram-se.
O apoio aéreo ajudou-os, pareceu-lhes mais demorado que o que deveria ser, mas, por fim, retiraram em ordem, com o fogo inimigo, disperso mas mais ajustado, a dar-lhes algum trabalho, obrigando-os a percorrer, curvados, as centenas de metros da bolanha., largamente distanciados uns dos outros.
Respiraram fundo quando alcançaram a mata. Nem bom dia nem boa tarde, passaram pela companhia, deixada para trás como se tivesse lepra, o capitão deles junto ao Manilha, desculpas e explicações.
Que regressassem sozinhos, connosco não, que temos pressa. A esgalhar, no goss-goss (6) como diziam a imitar os indígenas, pelas margens do trilho.
_________
(1) Passar ao quadro permanente
(2) Famoso Chefe da guerrilha, na altura responsável militar da zona sul
(3) “Sábado, 21Ago65, descemos em Nova Lamego, embarcámos os guias e depois fomos para Canquelifá. Daí seguimos para o objectivo.Já dentro do acampamento IN cairam-nos várias rajadas em cima e o Marcolino que devia estar distante de mim pois não dei por isso foi ferido com uma bala nas costas, e eu como estava perto de uma árvore várias lascas bateram-me na cara de raspão. João Uva, do diário”
(4) Rádio normalmente usado para comunicações em terra
(5) Rádio para comunicação terra-ar
(6) Termo indígena, andar depressa
(*) Vd. posts anteripores:
28 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXVIII: Brá, SPM 0418 (1): as minhas memórias de Cuntima (Virgínio Briote)
8 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLVII: Brá, SPM 0418 (2): Memórias de Colina do Norte (Virgínio Briote)
(**) "Cuntima era uma rua, uma recta de 200 ou 300 metros, a estrada de terra a atravessá-la, entre a saída para Jumbembem e Farim e a entrada da fronteira com o Senegal. Casas de um lado e doutro, pintadas com a cor de muitos sóis em cima, casitas de adobe atrás, da população nativa".
(***) A leste de Farim
(****) Canquelifá: No nordeste da Guiné, junto à fronteira
Guiné 63/74 - P346: Chicorações para o nosso Pai Natal
Mensagens dos nossos amigos e camaradas de tertúlia, a propósito das prendas do nosso Pai Natal:
1. Luís Graça.
O Pai Natal do Humberto Reis fez-me chegar mais umas cartas (militares) da "nossa" Guiné... com alta resolução, de modo a permitir localizar os sítios por onde andámos no mato... No cabaz de Natal vinham as seguintes cartas: Mansoa (que inclui também Bissorã), Cadoca/Gadamael, Guileje, Binta, Bula, Pelundo...
(...) Temos mais mapas disponíveis "on line"... Oferta gentil do nosso camarada Humberto Reis... Faltam ainda os de Guileje e de Binta... O mapa do Pelundo saiu cortado, na digitalização: só aparece a povoação de Có, na parte direita...
Divirtam-se, sobretudo aqueles de vós que aprenderam na tropa a orientar-se só com bússola e mapa... Deixem-me dizer-vos que, apesar dos nossos excelentes mapas (chegámos a ser os melhores cartógrafos do mundo, na épcoa dos Descobrimentos!), nunca vi comandante de operação, no meu tempo, dispensar o guia das milícias...
2. Vitor Junqueira
De facto, a oportunidade de olhar de novo para estes mapas, alguns dos quais se passearam nos meus "acagaçados" bolsos, dobradinhos em avos, com uma grelha (quadrícula) desenhada por cima e protegidos por uma saqueta de plástico transparente... representa para mim um autêntico presente de Natal.
Por uns instantes, revivi como numa espécie de encantamento mágico, uma ligação quase física com um passado distante ao qual dediquei, talvez, os dois dos melhores anos da minha vida. As cartas do Humberto, são viçoso pasto para a minha saudade. E que saudade! Por isso aqui vai, para ele um abraço de gratidão e o pedido de publicação da carta que integra a região de Mansabá, Olossato e Farim, por ser esta a minha principal ZA (onde não conheci guias nem tropas de milícia!).
Para todos os amigos da Tertúlia, um abraço do Vítor Junqueira devidamente guarnecido com votos de Boas Festas.
3. Virgínio Briote:
Obrigado, Luís e Humberto Reis, pelas vistas de locais por onde andei. Cambajo, Iarom, a mata de Sinre, as bolanhas de Benifo, a tabanca de Inchula, Talicó. E Morés, esse lugar que perseguíamos e que nos perseguia como um fantasma.
Acabo de chegar e vejo que os ex-combatentes aparecem agora na imprensa como há uns anos apareciam os ciganos, cabo-verdianos e outras raças de "baixa extracção"...
Um abraço, vb
4. Humberto Reis
(...) Se vocês soubessem o prazer que me dá olhar para aquelas cartas compreendiam o gosto que tenho em as partilhar convosco. Imagino a cara de alguns de vocês a recordarem as picadas e os trilhos que lá estão assinalados e a recuarem 30, 35 e 40 anos atrás. A mim não me faz sentir velho, mas apenas saudoso de alguns tempos bons que passei naquela terra, apesar dos muito maus. Se não fossem esses tempos estaríamos agora aqui a conversar uns com os outros? (...)
5. Rogério Freire:
Um obrigado especial de "Os Falcões" (CART 1525) ao Humberto Reis pela carta de Mansoa/Bissorã que colocou no nosso sapatinho.
A carta vem-nos permitir identificar todos os locais que "visitamos" desde Quenhaque a Morés, passando por Cambajo e Dando, e tantos outros.
Colocamos a carta no nosso site com uma referência e agradecimento ao Humberto.
Esperamos pela vossa visita ao nosso site e com votos de Boas Festas "partimos mantanhas" com todos.
Rogerio Freire
6. Luís Graça:
Pessoalmente confesso que, com estas cartas militares (que temos vindo a disponibilizar no nosso blogue) e com as estórias que vocês têm contado (para não falar do valiosíssimo álbum de fotografias e de outros documentos...), conheço melhor hoje a Guiné de 1969/71 do que naquela época, quando eu lá estava...
7. Carlos Fortunato:
Luis/Humberto:
Excelente carta militar, permite-me poder precisar muito melhor algumas das zonas referidas na região de Bissorã, quer nos textos que tenho escrito no meu site, quer no nosso blogue, vou usá-la para melhorar ambos.
Parabéns, obrigado e bom Natal.
8. João Parreira:
Luís Graça e Humberto Reis,
Quero agradecer a Prenda de Natal que foi enviada pelo Humberto Reis, na forma de mapas da Guiné, e que são umas autênticas relíquias para tantos de nós que palmilhámos aquelas matas, trilhos, tarrafos e bolanhas.
Creio que nenhum dos nossos ex-combatentes que passaram pela Guiné poderá ficar insensível, pois basta simplesmente olhar comodamente para a localização de certas zonas para nos ajudar ainda mais a reviver um passado tão turbulento.
Parabéns.
1. Luís Graça.
O Pai Natal do Humberto Reis fez-me chegar mais umas cartas (militares) da "nossa" Guiné... com alta resolução, de modo a permitir localizar os sítios por onde andámos no mato... No cabaz de Natal vinham as seguintes cartas: Mansoa (que inclui também Bissorã), Cadoca/Gadamael, Guileje, Binta, Bula, Pelundo...
(...) Temos mais mapas disponíveis "on line"... Oferta gentil do nosso camarada Humberto Reis... Faltam ainda os de Guileje e de Binta... O mapa do Pelundo saiu cortado, na digitalização: só aparece a povoação de Có, na parte direita...
Divirtam-se, sobretudo aqueles de vós que aprenderam na tropa a orientar-se só com bússola e mapa... Deixem-me dizer-vos que, apesar dos nossos excelentes mapas (chegámos a ser os melhores cartógrafos do mundo, na épcoa dos Descobrimentos!), nunca vi comandante de operação, no meu tempo, dispensar o guia das milícias...
2. Vitor Junqueira
De facto, a oportunidade de olhar de novo para estes mapas, alguns dos quais se passearam nos meus "acagaçados" bolsos, dobradinhos em avos, com uma grelha (quadrícula) desenhada por cima e protegidos por uma saqueta de plástico transparente... representa para mim um autêntico presente de Natal.
Por uns instantes, revivi como numa espécie de encantamento mágico, uma ligação quase física com um passado distante ao qual dediquei, talvez, os dois dos melhores anos da minha vida. As cartas do Humberto, são viçoso pasto para a minha saudade. E que saudade! Por isso aqui vai, para ele um abraço de gratidão e o pedido de publicação da carta que integra a região de Mansabá, Olossato e Farim, por ser esta a minha principal ZA (onde não conheci guias nem tropas de milícia!).
Para todos os amigos da Tertúlia, um abraço do Vítor Junqueira devidamente guarnecido com votos de Boas Festas.
3. Virgínio Briote:
Obrigado, Luís e Humberto Reis, pelas vistas de locais por onde andei. Cambajo, Iarom, a mata de Sinre, as bolanhas de Benifo, a tabanca de Inchula, Talicó. E Morés, esse lugar que perseguíamos e que nos perseguia como um fantasma.
Acabo de chegar e vejo que os ex-combatentes aparecem agora na imprensa como há uns anos apareciam os ciganos, cabo-verdianos e outras raças de "baixa extracção"...
Um abraço, vb
4. Humberto Reis
(...) Se vocês soubessem o prazer que me dá olhar para aquelas cartas compreendiam o gosto que tenho em as partilhar convosco. Imagino a cara de alguns de vocês a recordarem as picadas e os trilhos que lá estão assinalados e a recuarem 30, 35 e 40 anos atrás. A mim não me faz sentir velho, mas apenas saudoso de alguns tempos bons que passei naquela terra, apesar dos muito maus. Se não fossem esses tempos estaríamos agora aqui a conversar uns com os outros? (...)
5. Rogério Freire:
Um obrigado especial de "Os Falcões" (CART 1525) ao Humberto Reis pela carta de Mansoa/Bissorã que colocou no nosso sapatinho.
A carta vem-nos permitir identificar todos os locais que "visitamos" desde Quenhaque a Morés, passando por Cambajo e Dando, e tantos outros.
Colocamos a carta no nosso site com uma referência e agradecimento ao Humberto.
Esperamos pela vossa visita ao nosso site e com votos de Boas Festas "partimos mantanhas" com todos.
Rogerio Freire
6. Luís Graça:
Pessoalmente confesso que, com estas cartas militares (que temos vindo a disponibilizar no nosso blogue) e com as estórias que vocês têm contado (para não falar do valiosíssimo álbum de fotografias e de outros documentos...), conheço melhor hoje a Guiné de 1969/71 do que naquela época, quando eu lá estava...
7. Carlos Fortunato:
Luis/Humberto:
Excelente carta militar, permite-me poder precisar muito melhor algumas das zonas referidas na região de Bissorã, quer nos textos que tenho escrito no meu site, quer no nosso blogue, vou usá-la para melhorar ambos.
Parabéns, obrigado e bom Natal.
8. João Parreira:
Luís Graça e Humberto Reis,
Quero agradecer a Prenda de Natal que foi enviada pelo Humberto Reis, na forma de mapas da Guiné, e que são umas autênticas relíquias para tantos de nós que palmilhámos aquelas matas, trilhos, tarrafos e bolanhas.
Creio que nenhum dos nossos ex-combatentes que passaram pela Guiné poderá ficar insensível, pois basta simplesmente olhar comodamente para a localização de certas zonas para nos ajudar ainda mais a reviver um passado tão turbulento.
Parabéns.
Guiné 63/74 - P345: O baile dos finalistas do Liceu de Bissau de 1965 (João Parreira)
Guiné > Bissau > Palácio do Governador, na Praça do Império > 1965:
Um palácio que Amílcar Cabral nunca chegaria a habitar... e que foi testemunha silenciosa de uma guerra que também se travava, com palavras, murros e cinturão de comandos, fuzos, paras, tropa-macaca e jovens africanos, simpatizantes do PAIGC. A pretexto da bela Helena ou da entrada, à má fila, num simples baile de finalistas do liceu.
© Virgínio Briote (2005).
Texto do João S.Parreira (ex-furriel miliciano comando, Brá, 1965/66)(1)
Conforme o prometido, passo a descrever a minha participação e os acontecimentos que deram origem à narração do V. Briote em 13/11/05 sobre o baile dos Finalistas da Escola Secundária [Liceu, na altura] realizado em Bissau, no Sábado, em 5 de Junho de 1965 (2).
Na manhã daquele dia para me descontrair tinha ido com alguns camaradas para Quinhamel, uma vez que estava com grandes projectos para aquela noite. Semanas antes tinha conhecido a Helena uma moça cabo-verdeana, que era o que se costuma dizer uma “brasa” e andava todo entusiasmado.
Na véspera do baile, a Helena que era finalista, disse-me que me ia arranjar um convite para assim poder ir com ela .
No próprio dia encontrei-me com ela da parte da tarde e ela disse-me que não tinha conseguido obter um convite, mas que me tinha comprado um bilhete. Assim dei-lhe os 100 pesos correspondentes ao preço do bilhete.
Estava a dançar com ela, já devia ser madrugada quando ouvi um grande borburinho, virei-me e reparei que o motivo era a entrada sem bilhete de vários militares desconhecidos e logo a seguir uma cara conhecida.
A música não parava de tocar e os pares continuavam a dançar. Várias finalistas e familiares encontravam-se sentadas em cadeiras que tinham sido colocadas junto às paredes.
Alguns dos recém-chegados dirigiram-se de imediato a estas finalistas a pedir para dançar, mas não tiveram sorte.
No salão enorme, junto a uma das janelas encontrava-se uma mesa rectangular bastante comprida que dominava todo o salão e que estava totalmente ocupada com africanos e cabo-verdeanos que presumi serem os professores e o Principal da Escola Secundária.
Notava-se que os ocupantes desta mesa ficaram furibundos com a intrusão. O Alf. Godinho, um dos “velhinhos”, foi um dos últimos a entrar, pelo que dirigiu-se logo para essa mesa e foi falar calmamente com um dos que se encontravam sentados no centro da mesa.
Desconheço o teor da conversa, mas o certo, pois eu estava a dançar perto, é que um deles lhe atirou com uma garrafa à cabeça.
De imediato vindo da mesma mesa ouviu-se um deles gritar e logo a seguir outros a fazerem coro: "Se o nosso chefe estivesse aqui, e não em Conacri, nada disto acontecia” (3).
Com esta agressão e com as palavras insultuosas o ambiente ficou desde logo muito tenso.
Com todo este reboliço entraram de rompante 2 ou 3 camaradas que tinham ficado à porta do edifício, já que o porteiro não os tinha deixado entrar.
O Furriel V. Miranda alheio à situação e que na altura andava a passear o seu inseparável whisky, deixou-o ficar no hall de entrada à guarda de um porteiro, e também entrou.
Guiné > Bissau > Fins de Fevereiro de 1965 > O Furriel Miliciano Comando João Parreira... "Esta foto foi tirada numa esplanada em frente ao Hotel Portugal, creio que se chamava Café Universal".
© João Parreira (2005).
O contacto físico em vários pontos do salão, não muito distante da pista de dança, começou já passava das 03h00 e prolongou-se por bastante tempo.
Apesar do que se estava a passar, a música não parava de tocar e parecia que todos os pares queriam estar alheios à situação.
Como não podia deixar de ser, parei de dançar e pedi à Helena para não sair da pista pois ia ajudar os meus camaradas, e depois voltava.
Ela, que foi fantástica, disse-me para não ir pois podia ficar magoado, mas eu tranquilizei-a dizendo-lhe que em Lisboa tinha praticado boxe em clubes e tinha entrado em vários combates públicos.
Assim , por 3 ou 4 vezes, dava um pezinho de dança, atravessava a pista por entre os pares, ia a uma das zonas da pancadaria, envolvia-me como podia no meio de um dos grupos em contenda dava uns bons pares de murros e quando me sentia satisfeito lá voltava novamente para junto da moça para continuar a dançar.
Dado o reboliço que se gerou também entraram no salão vários paraquedistas para darem uma ajuda aos que se encontravam em minoria.
Entretanto alguém deve ter chamado a P.M. que entrou mais tarde e começou logo a tirar os nomes à rapaziada.
Tive mais sorte que o VB e os outros camaradas pois logo que vi a P.M. entrar na nossa direcção apressei-me, sorrateiramente, a atravessar o salão pelo meio dos pares, a fim de ir ter com a Helena (a minha tábua de salvação) que estava a dançar sòzinha e agarrei-me logo a ela, pelo que a P.M. não deve ter percebido que eu também tinha andado no barulho.
Acabado o baile fui levar a Helena a casa, mas depois destes acontecimentos o ambiente não era propício pelo que vi gorados os projectos que tinha idealizado em Quinhamel.
Ao fim e ao cabo, feitas as contas tive sorte a dobrar pois livrei-me de ser punido e como tal de ter que ir passar uns tempos ao mato.
Domingo, 6 de Junho de 1965, às 19h00 dirigi-me com o V.Miranda e alguns fuzileiros para a Praça do Império onde se encontravam vários grupos de africanos em atitudes provocadoras e hostis, para tentarem tirar, talvez, ainda mais dividendos dos acontecimentos daquela madrugada.
Não sei bem como tudo começou, mas um deles apanhou o Miranda distraído e aplicou-lhe um tremendo murro que fez com que ele vacilasse, e depois fugiu.
Corremos atrás dele mas não o apanhámos na rua pois foi refugiar-se no cinema UDIB.
O porteiro, cabo-verdeano, que estava já a correr a porta de lagartas para o proteger não o conseguiu fazer, já que, com a ajuda do meu cinturão foi persuadido a não a fechar, e assim o Miranda entrou e ficou a sós com o seu agressor.
Voltámos para a Praça do Império onde o número de africanos tinha aumentado de uma forma incrível e notavam-se as mesmas atitudes agressivas.
Como estávamos, mais uma vez, em grande desvantagem numérica, e com o intuito de os intimidar e evitar o confronto, mandei pedir a Brá para quem nessa altura estivesse disponível viesse ao nosso encontro.
Passada meia-hora chegou um jeep com o condutor e um Alferes (o único que vinha armado para o que desse e viesse) e logo atrás uma Mercedes com mais pessoal.
Infelizmente a intenção não deu resultado pois ao aperceberem-se da chegada os africanos atiraram-se a nós à tareia usando os punhos e os pés.
Assim cada um de nós estava a ser agredido por 3 ou 4 pelo que, para evitar o pior, decidimos resolver o assunto com a máxima rapidez, e para esse fim usámos os nossos cinturões a torto e a direito, o que teve o condão de os obrigar a fugir. Com a Praça vazia usámos os mesmos veículos e regressámos a Brá.
JP
_____________
Notas de L.G.
(1) vd. post de 3 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74- CCCXXX: Velhos comandos de Brá: Parreira, o últimos dos três mosqueteiros
(2) Post de Virgínio Briote, de 11 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVII: O 'baile dos comandos' na Associação Comercial
(3) Referência óbvia a Amílcar Cabral, secretário-geral do PAIGC.
(4) Vd. localização da antiga Praça do Império, no mapa (actual) de Bissau.
Um palácio que Amílcar Cabral nunca chegaria a habitar... e que foi testemunha silenciosa de uma guerra que também se travava, com palavras, murros e cinturão de comandos, fuzos, paras, tropa-macaca e jovens africanos, simpatizantes do PAIGC. A pretexto da bela Helena ou da entrada, à má fila, num simples baile de finalistas do liceu.
© Virgínio Briote (2005).
Texto do João S.Parreira (ex-furriel miliciano comando, Brá, 1965/66)(1)
Conforme o prometido, passo a descrever a minha participação e os acontecimentos que deram origem à narração do V. Briote em 13/11/05 sobre o baile dos Finalistas da Escola Secundária [Liceu, na altura] realizado em Bissau, no Sábado, em 5 de Junho de 1965 (2).
Na manhã daquele dia para me descontrair tinha ido com alguns camaradas para Quinhamel, uma vez que estava com grandes projectos para aquela noite. Semanas antes tinha conhecido a Helena uma moça cabo-verdeana, que era o que se costuma dizer uma “brasa” e andava todo entusiasmado.
Na véspera do baile, a Helena que era finalista, disse-me que me ia arranjar um convite para assim poder ir com ela .
No próprio dia encontrei-me com ela da parte da tarde e ela disse-me que não tinha conseguido obter um convite, mas que me tinha comprado um bilhete. Assim dei-lhe os 100 pesos correspondentes ao preço do bilhete.
Estava a dançar com ela, já devia ser madrugada quando ouvi um grande borburinho, virei-me e reparei que o motivo era a entrada sem bilhete de vários militares desconhecidos e logo a seguir uma cara conhecida.
A música não parava de tocar e os pares continuavam a dançar. Várias finalistas e familiares encontravam-se sentadas em cadeiras que tinham sido colocadas junto às paredes.
Alguns dos recém-chegados dirigiram-se de imediato a estas finalistas a pedir para dançar, mas não tiveram sorte.
No salão enorme, junto a uma das janelas encontrava-se uma mesa rectangular bastante comprida que dominava todo o salão e que estava totalmente ocupada com africanos e cabo-verdeanos que presumi serem os professores e o Principal da Escola Secundária.
Notava-se que os ocupantes desta mesa ficaram furibundos com a intrusão. O Alf. Godinho, um dos “velhinhos”, foi um dos últimos a entrar, pelo que dirigiu-se logo para essa mesa e foi falar calmamente com um dos que se encontravam sentados no centro da mesa.
Desconheço o teor da conversa, mas o certo, pois eu estava a dançar perto, é que um deles lhe atirou com uma garrafa à cabeça.
De imediato vindo da mesma mesa ouviu-se um deles gritar e logo a seguir outros a fazerem coro: "Se o nosso chefe estivesse aqui, e não em Conacri, nada disto acontecia” (3).
Com esta agressão e com as palavras insultuosas o ambiente ficou desde logo muito tenso.
Com todo este reboliço entraram de rompante 2 ou 3 camaradas que tinham ficado à porta do edifício, já que o porteiro não os tinha deixado entrar.
O Furriel V. Miranda alheio à situação e que na altura andava a passear o seu inseparável whisky, deixou-o ficar no hall de entrada à guarda de um porteiro, e também entrou.
Guiné > Bissau > Fins de Fevereiro de 1965 > O Furriel Miliciano Comando João Parreira... "Esta foto foi tirada numa esplanada em frente ao Hotel Portugal, creio que se chamava Café Universal".
© João Parreira (2005).
O contacto físico em vários pontos do salão, não muito distante da pista de dança, começou já passava das 03h00 e prolongou-se por bastante tempo.
Apesar do que se estava a passar, a música não parava de tocar e parecia que todos os pares queriam estar alheios à situação.
Como não podia deixar de ser, parei de dançar e pedi à Helena para não sair da pista pois ia ajudar os meus camaradas, e depois voltava.
Ela, que foi fantástica, disse-me para não ir pois podia ficar magoado, mas eu tranquilizei-a dizendo-lhe que em Lisboa tinha praticado boxe em clubes e tinha entrado em vários combates públicos.
Assim , por 3 ou 4 vezes, dava um pezinho de dança, atravessava a pista por entre os pares, ia a uma das zonas da pancadaria, envolvia-me como podia no meio de um dos grupos em contenda dava uns bons pares de murros e quando me sentia satisfeito lá voltava novamente para junto da moça para continuar a dançar.
Dado o reboliço que se gerou também entraram no salão vários paraquedistas para darem uma ajuda aos que se encontravam em minoria.
Entretanto alguém deve ter chamado a P.M. que entrou mais tarde e começou logo a tirar os nomes à rapaziada.
Tive mais sorte que o VB e os outros camaradas pois logo que vi a P.M. entrar na nossa direcção apressei-me, sorrateiramente, a atravessar o salão pelo meio dos pares, a fim de ir ter com a Helena (a minha tábua de salvação) que estava a dançar sòzinha e agarrei-me logo a ela, pelo que a P.M. não deve ter percebido que eu também tinha andado no barulho.
Acabado o baile fui levar a Helena a casa, mas depois destes acontecimentos o ambiente não era propício pelo que vi gorados os projectos que tinha idealizado em Quinhamel.
Ao fim e ao cabo, feitas as contas tive sorte a dobrar pois livrei-me de ser punido e como tal de ter que ir passar uns tempos ao mato.
Domingo, 6 de Junho de 1965, às 19h00 dirigi-me com o V.Miranda e alguns fuzileiros para a Praça do Império onde se encontravam vários grupos de africanos em atitudes provocadoras e hostis, para tentarem tirar, talvez, ainda mais dividendos dos acontecimentos daquela madrugada.
Não sei bem como tudo começou, mas um deles apanhou o Miranda distraído e aplicou-lhe um tremendo murro que fez com que ele vacilasse, e depois fugiu.
Corremos atrás dele mas não o apanhámos na rua pois foi refugiar-se no cinema UDIB.
O porteiro, cabo-verdeano, que estava já a correr a porta de lagartas para o proteger não o conseguiu fazer, já que, com a ajuda do meu cinturão foi persuadido a não a fechar, e assim o Miranda entrou e ficou a sós com o seu agressor.
Voltámos para a Praça do Império onde o número de africanos tinha aumentado de uma forma incrível e notavam-se as mesmas atitudes agressivas.
Como estávamos, mais uma vez, em grande desvantagem numérica, e com o intuito de os intimidar e evitar o confronto, mandei pedir a Brá para quem nessa altura estivesse disponível viesse ao nosso encontro.
Passada meia-hora chegou um jeep com o condutor e um Alferes (o único que vinha armado para o que desse e viesse) e logo atrás uma Mercedes com mais pessoal.
Infelizmente a intenção não deu resultado pois ao aperceberem-se da chegada os africanos atiraram-se a nós à tareia usando os punhos e os pés.
Assim cada um de nós estava a ser agredido por 3 ou 4 pelo que, para evitar o pior, decidimos resolver o assunto com a máxima rapidez, e para esse fim usámos os nossos cinturões a torto e a direito, o que teve o condão de os obrigar a fugir. Com a Praça vazia usámos os mesmos veículos e regressámos a Brá.
JP
_____________
Notas de L.G.
(1) vd. post de 3 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74- CCCXXX: Velhos comandos de Brá: Parreira, o últimos dos três mosqueteiros
(2) Post de Virgínio Briote, de 11 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVII: O 'baile dos comandos' na Associação Comercial
(3) Referência óbvia a Amílcar Cabral, secretário-geral do PAIGC.
(4) Vd. localização da antiga Praça do Império, no mapa (actual) de Bissau.
Guiné 63/74 - P344: O meu primeiro contacto com um leproso (Rui Esteves)
1. Texto do Rui Esteves
Amigo Luís Graça,
Desta vez envio um texto sobre a minha prática como enfermeiro topa-a-tudo na Guiné.
Trabalhei sempre sem médico – médico só havia na sede do Batalhão – e portanto tive sempre que me virar sozinho.
No meio de uma tragédia particular (o meu pai morreu quando estava na Guiné), a minha fuga foi trabalhar muito para não chorar.
Um abraço do
Rui Esteves
O meu primeiro contacto com um leproso
Em Outubro de 1971, vivi um dos piores períodos da minha comissão na Guiné Bissau.
Tinha vindo de férias em Agosto, viajando até à Metrópole, e encontrei o meu pai muito doente: quando cheguei ainda andava pelo seu pé; em 5 de Setembro de 1971, quando fui embora, já estava acamado e eu sabia que não voltaria a vê-lo e que morreria dentro de pouco tempo.
O cancro matou o meu pai a 9 de Outubro e eu recebi a notícia – um telegrama da minha mãe – no dia 11, data do meu 23.º aniversário. O meu pai tinha 48 anos.
Os primeiros tempos foram muito difíceis e a minha fuga foi dedicar-me ainda mais ao trabalho.
Começava bem cedo e, enquanto houvesse gente para tratar, não parava.
Aparecia-me de tudo: a população era a larga maioria, homens, mulheres e crianças com paludismo, com conjuntivite, com sarna, com tuberculose, elefantíase, matacanhas…
À medida que os dias passavam, cada vez me aparecia mais gente: já não eram só os manjacos de Chulame.
Ajudado por um homem de Chulame com quem falava mais facilmente em francês do que em português, atendia toda a gente e ia aprendendo a falar um pouco de crioulo.
(Quinhentos anos de colonização portuguesa e o meu interprete quase não falava português mas desenrascava-se muito bem em francês do tempo que esteve emigrado em Dakar, Senegal. Curiosamente, ele dizia ter estado em Paris mas depois de longas conversas cheguei à conclusão que o Paris dele era, afinal, Dakar.).
Um dia, no meio daquela gente que aguardava a sua vez, vejo um homem alto, de cabelos brancos, apoiado a um pau, olhando para mim.
Nunca tinha visto nada assim: a cara já não tinha o nariz nem os lábios e aqueles olhos olhavam para mim do fundo da caveira em que ele se tinha transformado.
Era um leproso em fase muito avançada da doença (1).
Estremeci, cheio de compaixão por aquele pobre homem e sem saber o que fazer, dei-lhe de tudo um pouco, vitaminas, xaropes fortificantes, o que havia ali à mão que pudesse ajudar.
Nessa tarde fui a Teixeira Pinto (2) falar com um médico a quem pedi orientação para poder ajudar aquela pobre gente.
Não voltei a ver aquele homem: provavelmente desiludi-o e ele desistiu.
Soube que havia mais gente como ele, com lepra e com tuberculose, famílias em que a miséria era tanta que, aos poucos e poucos, todos ficavam contagiados.
Lavadores, 13 de Dezembro de 2005.
Rui Esteves
Ex-furriel enfermeiro miliciano
CCAÇ 3327 (companhia açoriana independente)
Guiné, 1971-1973 (Teixeira Pinto/Cacheu, Bissássema/Tite)
___________
Nota de L.G.
(1) Sobre a lepra ou mal de Hansen, vd. a respectiva entrada na enciclopédia livre Wikipédia
(2) Hoje Canchungo, na região do Cacheu.
Vd. post de 7 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXX: Teixeira Pinto ou Canchungo ?
25 Setembro 2005 > Guiné 63/74 - CCXI: Coisas sobre Canchungo (antiga Teixeira Pinto)
Amigo Luís Graça,
Desta vez envio um texto sobre a minha prática como enfermeiro topa-a-tudo na Guiné.
Trabalhei sempre sem médico – médico só havia na sede do Batalhão – e portanto tive sempre que me virar sozinho.
No meio de uma tragédia particular (o meu pai morreu quando estava na Guiné), a minha fuga foi trabalhar muito para não chorar.
Um abraço do
Rui Esteves
O meu primeiro contacto com um leproso
Em Outubro de 1971, vivi um dos piores períodos da minha comissão na Guiné Bissau.
Tinha vindo de férias em Agosto, viajando até à Metrópole, e encontrei o meu pai muito doente: quando cheguei ainda andava pelo seu pé; em 5 de Setembro de 1971, quando fui embora, já estava acamado e eu sabia que não voltaria a vê-lo e que morreria dentro de pouco tempo.
O cancro matou o meu pai a 9 de Outubro e eu recebi a notícia – um telegrama da minha mãe – no dia 11, data do meu 23.º aniversário. O meu pai tinha 48 anos.
Os primeiros tempos foram muito difíceis e a minha fuga foi dedicar-me ainda mais ao trabalho.
Começava bem cedo e, enquanto houvesse gente para tratar, não parava.
Aparecia-me de tudo: a população era a larga maioria, homens, mulheres e crianças com paludismo, com conjuntivite, com sarna, com tuberculose, elefantíase, matacanhas…
À medida que os dias passavam, cada vez me aparecia mais gente: já não eram só os manjacos de Chulame.
Ajudado por um homem de Chulame com quem falava mais facilmente em francês do que em português, atendia toda a gente e ia aprendendo a falar um pouco de crioulo.
(Quinhentos anos de colonização portuguesa e o meu interprete quase não falava português mas desenrascava-se muito bem em francês do tempo que esteve emigrado em Dakar, Senegal. Curiosamente, ele dizia ter estado em Paris mas depois de longas conversas cheguei à conclusão que o Paris dele era, afinal, Dakar.).
Um dia, no meio daquela gente que aguardava a sua vez, vejo um homem alto, de cabelos brancos, apoiado a um pau, olhando para mim.
Nunca tinha visto nada assim: a cara já não tinha o nariz nem os lábios e aqueles olhos olhavam para mim do fundo da caveira em que ele se tinha transformado.
Era um leproso em fase muito avançada da doença (1).
Estremeci, cheio de compaixão por aquele pobre homem e sem saber o que fazer, dei-lhe de tudo um pouco, vitaminas, xaropes fortificantes, o que havia ali à mão que pudesse ajudar.
Nessa tarde fui a Teixeira Pinto (2) falar com um médico a quem pedi orientação para poder ajudar aquela pobre gente.
Não voltei a ver aquele homem: provavelmente desiludi-o e ele desistiu.
Soube que havia mais gente como ele, com lepra e com tuberculose, famílias em que a miséria era tanta que, aos poucos e poucos, todos ficavam contagiados.
Lavadores, 13 de Dezembro de 2005.
Rui Esteves
Ex-furriel enfermeiro miliciano
CCAÇ 3327 (companhia açoriana independente)
Guiné, 1971-1973 (Teixeira Pinto/Cacheu, Bissássema/Tite)
___________
Nota de L.G.
(1) Sobre a lepra ou mal de Hansen, vd. a respectiva entrada na enciclopédia livre Wikipédia
(2) Hoje Canchungo, na região do Cacheu.
Vd. post de 7 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CLXXX: Teixeira Pinto ou Canchungo ?
25 Setembro 2005 > Guiné 63/74 - CCXI: Coisas sobre Canchungo (antiga Teixeira Pinto)
segunda-feira, 12 de dezembro de 2005
Guiné 63/74 - P343: O avô da velhice (S. Domingos e Teixeira Pinto, 1961)
Guiné > Teixeira Pinto > 1961 >
O corneteiro Marques, mano do Américo Marques, nosso camarada de tertúlia.
© Américo Marques (2005)
Já aqui falámos do Américo Marques e do seu mano, mais velho. Ambos estiveram na Guiné: O Américo foi soldado de transmissões, na 3ª CART do BART 6523 (Nova Lamego), entre Junho de 1973 e Setembro de 1974. Ele foi do contingente dos últimos soldados do Império...
Já publicámos a sua foto com a malta de Cansissé a celebrar, com os guerrilheiros do PAIGC, o fim da guerra e a promessa da tão desejada paz (1)...
Guiné > Teixeira Pinto > 1961 > Na época, não havia ainda guerra. E a farda dos expedicionários era a amarelinha...
© Américo Marques (2005)
O outro mano Marques esteve na Guiné entre 1961 e 1963, na região do Cacheu (S. Domingos e Teixeira Pinto). Era corneteiro, mas o Américo não disse a companhia ou o batalhão a que ele pertencia. Fez a a viagem no Ana Mafalda. E pode-se dizer, com propriedade, que ele é o avô da velhice. Na época ainda se usava a farda amarela. Em contraprtida, não ainda guerra. Em homenagem ao nosso avozinho, publicamos aqui duas as fotos dele, dessa época. Depois da peluda, ele emigrou para França, onde viveu cerca de 40 anos!
Como é sabido, a "guerra de libertação" da Guiné só começou, oficialmente para o PAIGC, em 23 de Janeiro de 1963, com o ataque ao aquartelamento de Tite, no sul. Em Julho desse ano é, entretanto, aberta a "frente norte"... Não sei se o mano Marques mais velho ainda chegou a cheirar a pólvora...
De qualquer modo, não deixa de ser irónica a história destes dois irmãos. Pertencentes a duas gerações diferentes, acabam por ser mobilizados para o mesmo território ultramarino, para a mesma guerra: o mais velho em 1961, o mais novo em 1973, doze anos depois… Um está no princípio dos acontecmentos, na 1ª cena do 1º acto; o outro representa a último cena do último acto... Não serão caso único: a guerra colonial tocou quase todas as famílias e algumas delas viram ser mobilizados para o distante Ultramar mais do que um filho... No caso dos manos Marques, só faltou terem estado exactamente do mesmo sítio, para fazerem o pleno!
_______
(1) Vd. post de 12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVI: Américo Marques, o último soldado do Império (Cansissé, 1974)
O corneteiro Marques, mano do Américo Marques, nosso camarada de tertúlia.
© Américo Marques (2005)
Já aqui falámos do Américo Marques e do seu mano, mais velho. Ambos estiveram na Guiné: O Américo foi soldado de transmissões, na 3ª CART do BART 6523 (Nova Lamego), entre Junho de 1973 e Setembro de 1974. Ele foi do contingente dos últimos soldados do Império...
Já publicámos a sua foto com a malta de Cansissé a celebrar, com os guerrilheiros do PAIGC, o fim da guerra e a promessa da tão desejada paz (1)...
Guiné > Teixeira Pinto > 1961 > Na época, não havia ainda guerra. E a farda dos expedicionários era a amarelinha...
© Américo Marques (2005)
O outro mano Marques esteve na Guiné entre 1961 e 1963, na região do Cacheu (S. Domingos e Teixeira Pinto). Era corneteiro, mas o Américo não disse a companhia ou o batalhão a que ele pertencia. Fez a a viagem no Ana Mafalda. E pode-se dizer, com propriedade, que ele é o avô da velhice. Na época ainda se usava a farda amarela. Em contraprtida, não ainda guerra. Em homenagem ao nosso avozinho, publicamos aqui duas as fotos dele, dessa época. Depois da peluda, ele emigrou para França, onde viveu cerca de 40 anos!
Como é sabido, a "guerra de libertação" da Guiné só começou, oficialmente para o PAIGC, em 23 de Janeiro de 1963, com o ataque ao aquartelamento de Tite, no sul. Em Julho desse ano é, entretanto, aberta a "frente norte"... Não sei se o mano Marques mais velho ainda chegou a cheirar a pólvora...
De qualquer modo, não deixa de ser irónica a história destes dois irmãos. Pertencentes a duas gerações diferentes, acabam por ser mobilizados para o mesmo território ultramarino, para a mesma guerra: o mais velho em 1961, o mais novo em 1973, doze anos depois… Um está no princípio dos acontecmentos, na 1ª cena do 1º acto; o outro representa a último cena do último acto... Não serão caso único: a guerra colonial tocou quase todas as famílias e algumas delas viram ser mobilizados para o distante Ultramar mais do que um filho... No caso dos manos Marques, só faltou terem estado exactamente do mesmo sítio, para fazerem o pleno!
_______
(1) Vd. post de 12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXVI: Américo Marques, o último soldado do Império (Cansissé, 1974)
Guiné 63/74 - P342: Projecto Guileje (8): 'Quem não tem mãe, mama na avó' (provérbio guineense)
"Já temos uma lista inicial de uma dúzia de militantes envolvidos no assalto final [ao quartel de Guiledje] e que irão ser entrevistados (som e imagem) para o nosso arquivo histórico" (Pepito).
© AD - Acção para o Desenvolvimento > Projecto Guiledje (2005)
Caro Luis:
Em referência ao que saiu hoje no nosso blogue [ Guiné 63/74 - CCCLVI: Antologia (33): os 'gringos açorianos' de Guileje (CCAV 8350, 1972/73)] , gostaria de dar as seguintes informações:
1. O texto que apresentas do jornalista Eduardo Dâmaso (Público) sobre o abandono de Guiledje, mereceu uma "resposta" do Comandante do PAIGC, Osvaldo Lopes da Silva, encarregue por Amílcar Cabral para fazer o reconhecimento e preparar as condições do assalto final a Guiledje (Cabral dizia: "se este quartel cai, tudo à volta também cai").
Trata-se de um documento histórico relevante (Público, 26 de Julho de 2004) com informações muito detalhadas de todos os preparativos militares então realizados.
2. Tem sido para nós mais fácil identificar e envolver nesta iniciativa as antigas milícias e população que vivia no quartel de Guiledje, porque continuaram a viver na zona e arredores. O mesmo não se passa com os guerrilheiros do PAIGC que, pelas características próprias da luta, vinham de diversas regiões do país para onde regressaram no fim da guerra. No entanto, já temos uma lista inicial de uma dúzia de militantes envolvidos no assalto final e que irão ser entrevistados (som e imagem) para o nosso arquivo histórico.
Por curiosidade, refiro-te que o topógrafo que vês na foto a fazer o levantamento topográfico do quartel, era um muito jovem militante do PAIGC que entrou no quartel dois dias depois de ele ter sido abandonado. Tem-nos prestado informações interessantíssimas em relação aos corredores de circulação da guerrilha e da população.
3. Paralelamente, já estão identificados os acampamentos do PAIGC na zona de Cantanhez, os quais irão igualmente ser reabilitados para permitir a todos ter uma ideia exacta dos contornos geográficos da guerra e aperceberem-se das condições de vida e luta da guerrilha. Entre eles situa-se o importante acampamento de Candjafra (e não Canjifara, como vem escrito no blogue), que irá ser integrado no percurso histórico do ecoturismo.
4. Sentimos clara e conscientemente que nesta iniciativa nos falta um historiador que organize e trabalhe a informação, que conduza o processo de recolha da "história". Mas como dizemos aqui na Guiné-Bissau, "quem não tem mãe, mama na avó". O que é preciso é salvar a memória, mesmo que com limitações, antes que ela desapareça à espera dos historiadores...
abraços
pepito
© AD - Acção para o Desenvolvimento > Projecto Guiledje (2005)
Caro Luis:
Em referência ao que saiu hoje no nosso blogue [ Guiné 63/74 - CCCLVI: Antologia (33): os 'gringos açorianos' de Guileje (CCAV 8350, 1972/73)] , gostaria de dar as seguintes informações:
1. O texto que apresentas do jornalista Eduardo Dâmaso (Público) sobre o abandono de Guiledje, mereceu uma "resposta" do Comandante do PAIGC, Osvaldo Lopes da Silva, encarregue por Amílcar Cabral para fazer o reconhecimento e preparar as condições do assalto final a Guiledje (Cabral dizia: "se este quartel cai, tudo à volta também cai").
Trata-se de um documento histórico relevante (Público, 26 de Julho de 2004) com informações muito detalhadas de todos os preparativos militares então realizados.
2. Tem sido para nós mais fácil identificar e envolver nesta iniciativa as antigas milícias e população que vivia no quartel de Guiledje, porque continuaram a viver na zona e arredores. O mesmo não se passa com os guerrilheiros do PAIGC que, pelas características próprias da luta, vinham de diversas regiões do país para onde regressaram no fim da guerra. No entanto, já temos uma lista inicial de uma dúzia de militantes envolvidos no assalto final e que irão ser entrevistados (som e imagem) para o nosso arquivo histórico.
Por curiosidade, refiro-te que o topógrafo que vês na foto a fazer o levantamento topográfico do quartel, era um muito jovem militante do PAIGC que entrou no quartel dois dias depois de ele ter sido abandonado. Tem-nos prestado informações interessantíssimas em relação aos corredores de circulação da guerrilha e da população.
3. Paralelamente, já estão identificados os acampamentos do PAIGC na zona de Cantanhez, os quais irão igualmente ser reabilitados para permitir a todos ter uma ideia exacta dos contornos geográficos da guerra e aperceberem-se das condições de vida e luta da guerrilha. Entre eles situa-se o importante acampamento de Candjafra (e não Canjifara, como vem escrito no blogue), que irá ser integrado no percurso histórico do ecoturismo.
4. Sentimos clara e conscientemente que nesta iniciativa nos falta um historiador que organize e trabalhe a informação, que conduza o processo de recolha da "história". Mas como dizemos aqui na Guiné-Bissau, "quem não tem mãe, mama na avó". O que é preciso é salvar a memória, mesmo que com limitações, antes que ela desapareça à espera dos historiadores...
abraços
pepito
Guiné 63/74 - P341: A retirada de Guileje (José Neto)
Amigo:
Voltei a recordar, através do nosso blogue, a dramática retirada de Guileje, com as palavras do senhor Coronel Coutinho e Lima. Nessa altura andava eu muito atarefado com o meu curso em Águeda e só li "as gordas" que noticiavam o acontecimento.
Não foi surpresa para mim porque eu tinha a intuição de que, a partir dos "Strella", as aeronaves da FAP perdiam a liberdade dos céus, essencial para a hipotética sobrevivência daquele "martírio".
Estranho é que não haja alusão à Reportagem da SIC de 1996, "De Guileje a Gadamael - O Corredor da Morte", em que o senhor Coronel, acompanhado do ex-Alferes Manuel dos Reis, foram ao terreno explicar os factos e conversar com os "então inimigos" entre os quais o General "Nino" Vieira.
Eu tenho a gravação dessa reportagem em VHS e DVD. Se estiver interessado, posso enviar-lhe pelo correio uma cópia (2ª geração, mais fraquita,talvez).
É só mandar-me por este meio o endereço postal (1).
Cumprimentos do
Zé Neto
__________
(1) Nota de L.G.:
Caro camarada: Obrigado pela informação. Lembro-me de ter visto esse documentário da SIC, mas não tenho cópia em suporte digital. Se não for muita maçada, aceitarei a oferta de uma cópia em DVD, que passará a ficar disponível para consulta do resto do pessoal. A minha morada é a seguinte:
Prof Luís Graça,
Grupo de Disciplinas de Saúde Ocupacional,
Gabinete 2 A 47
Escola Nacional de Saúde Pública
Universidade Nova de Lisboa
Av Padre Cruz
1600-560 LISBOA
Também seria interessante o Zé Neto preparar um pequeno texto sobre este documentário da SIC, resumindo o essencial do que se viu e se disse. Seria muito útil para os nossos amigos e camaradas de tertúlia. O Zé Neto tem a vantagem, em relação à maior parte de nós, de ter conhecido Guileje, embora muito antes dos acontecimentos de Maio de 1973.
Voltei a recordar, através do nosso blogue, a dramática retirada de Guileje, com as palavras do senhor Coronel Coutinho e Lima. Nessa altura andava eu muito atarefado com o meu curso em Águeda e só li "as gordas" que noticiavam o acontecimento.
Não foi surpresa para mim porque eu tinha a intuição de que, a partir dos "Strella", as aeronaves da FAP perdiam a liberdade dos céus, essencial para a hipotética sobrevivência daquele "martírio".
Estranho é que não haja alusão à Reportagem da SIC de 1996, "De Guileje a Gadamael - O Corredor da Morte", em que o senhor Coronel, acompanhado do ex-Alferes Manuel dos Reis, foram ao terreno explicar os factos e conversar com os "então inimigos" entre os quais o General "Nino" Vieira.
Eu tenho a gravação dessa reportagem em VHS e DVD. Se estiver interessado, posso enviar-lhe pelo correio uma cópia (2ª geração, mais fraquita,talvez).
É só mandar-me por este meio o endereço postal (1).
Cumprimentos do
Zé Neto
__________
(1) Nota de L.G.:
Caro camarada: Obrigado pela informação. Lembro-me de ter visto esse documentário da SIC, mas não tenho cópia em suporte digital. Se não for muita maçada, aceitarei a oferta de uma cópia em DVD, que passará a ficar disponível para consulta do resto do pessoal. A minha morada é a seguinte:
Prof Luís Graça,
Grupo de Disciplinas de Saúde Ocupacional,
Gabinete 2 A 47
Escola Nacional de Saúde Pública
Universidade Nova de Lisboa
Av Padre Cruz
1600-560 LISBOA
Também seria interessante o Zé Neto preparar um pequeno texto sobre este documentário da SIC, resumindo o essencial do que se viu e se disse. Seria muito útil para os nossos amigos e camaradas de tertúlia. O Zé Neto tem a vantagem, em relação à maior parte de nós, de ter conhecido Guileje, embora muito antes dos acontecimentos de Maio de 1973.
Guiné 63/74 - P340: Diversidade e unidade do povo da Guiné-Bissau (3) (José Neto / A. Marques Lopes)
1. Caro amigo A. Marques Lopes
Aceito a sua divergência de opinião quanto ao que escrevi sobre aquilo que vem sendo tratado por alguns por "o demónio das Etnias" da Guiné-Bissau.
Prometo não voltar a "meter o pé na poça", porém, como última intervenção neste escaldante tema quero dizer-lhe (e a todos os bloguistas) que o meu escrito, muito ligeiro, foi motivado pelo post "Guiné 63/74 - CCCXLIII: Respeito pelos manjacos, se faz favor", subscrito por João Tunes.
É minha convicção que uma das ajudas que podemos dar aos nossos "ex-amigos e inimigos" não será propriamente "estar de fora" a enaltecer esta ou aquela etnia. A Internet também chega à Guiné-Bissau... E, muito ao contário que o mesmo senhor diz, "nós portugueses temos MUITO para ajudar os guineenses".
Cumprimentos do
Zé Neto
2. Amigo José Neto
Não me parece que tenha havido qualquer divergência entre as nossas duas posições sobre os povos da Guiné. Pessoalmente apenas tentei dar uma explicação sobre os objectivos que, na altura, teria aquele memorando do EME - Estado Maior do Exército, o qual, pelos vistos, como diz o Sousa de Castro, foi distribuído profusamente às NT em 1971.
Com mais este dado, acrescentarei que, dada a escalada da guerra, havia mesmo necessidade de cavar divergências entre os guineenses. Foi essa estratégia, "sabiamente" delineada, que terá contribuído, juntamente com o papel inestimável (ou inestimado ainda) da PIDE, para o assassinato de Amilcar Cabral; e que terá igualmente levado à desastrada manobra spinolista causadora da morte dos majores (e do esquecido alferes) em chão manjaco.
De resto, estou completamente de acordo consigo.
Um abraço
A. Marques Lopes
Aceito a sua divergência de opinião quanto ao que escrevi sobre aquilo que vem sendo tratado por alguns por "o demónio das Etnias" da Guiné-Bissau.
Prometo não voltar a "meter o pé na poça", porém, como última intervenção neste escaldante tema quero dizer-lhe (e a todos os bloguistas) que o meu escrito, muito ligeiro, foi motivado pelo post "Guiné 63/74 - CCCXLIII: Respeito pelos manjacos, se faz favor", subscrito por João Tunes.
É minha convicção que uma das ajudas que podemos dar aos nossos "ex-amigos e inimigos" não será propriamente "estar de fora" a enaltecer esta ou aquela etnia. A Internet também chega à Guiné-Bissau... E, muito ao contário que o mesmo senhor diz, "nós portugueses temos MUITO para ajudar os guineenses".
Cumprimentos do
Zé Neto
2. Amigo José Neto
Não me parece que tenha havido qualquer divergência entre as nossas duas posições sobre os povos da Guiné. Pessoalmente apenas tentei dar uma explicação sobre os objectivos que, na altura, teria aquele memorando do EME - Estado Maior do Exército, o qual, pelos vistos, como diz o Sousa de Castro, foi distribuído profusamente às NT em 1971.
Com mais este dado, acrescentarei que, dada a escalada da guerra, havia mesmo necessidade de cavar divergências entre os guineenses. Foi essa estratégia, "sabiamente" delineada, que terá contribuído, juntamente com o papel inestimável (ou inestimado ainda) da PIDE, para o assassinato de Amilcar Cabral; e que terá igualmente levado à desastrada manobra spinolista causadora da morte dos majores (e do esquecido alferes) em chão manjaco.
De resto, estou completamente de acordo consigo.
Um abraço
A. Marques Lopes
domingo, 11 de dezembro de 2005
Guiné 63/74 - P339: Digitalização de mapas e de diapositivos (Humberto Reis / Carlos Fortunato)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > c. 1969/70 > O nosso Humberto Reis, furriel miliciano de operações especiais, o ranger da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71).
Sempre descontraído e prestável, ontem como hoje...
© Humberto Reis (2005)
Mensagem do Humberto Reis:
Mandem o Luís para o mato, que é o que ele está a precisar (1). Não quero agradecimentos de ninguém pois ninguém me encomendou este sermão.
Sou possuidor da totalidade das cartas da Guiné-Bissau porque as comprei, por "carolice e saudades", em 1995 e 96 no tempo em que não sonhávamos em vir a ter este "Programa Espectacular" que o Luís arranjou e continua a acarinhar.
Se vocês soubessem o prazer que me dá olhar para aquelas cartas compreendiam o gosto que tenho em as partilhar convosco. Imagino a cara de alguns de vocês a recordarem as picadas e os trilhos que lá estão assinalados e a recuarem 30, 35 e 40 anos atrás.
A mim não me faz sentir velho, mas apenas saudoso de alguns tempos bons que passei naquela terra, apesar dos muito maus. Se não fossem esses tempos estaríamos agora aqui a conversar uns com os outros?
É engraçado que, se repararem na identificação dos Tertulianos, são mais os operacionais do que os outros, os que fizeram a guerra dentro do arame farpado. Atenção, não façamos distinções, pois sem o pessoal da manutenção, não tínhamos as rações de combate para levar para aqueles piqueniques que por vezes fazíamos algures; sem os maqueiros não tínhamos o mezinho para nos tapar o buraco parvo do raio de uma 7,62 que a Kalash do outro lado nos tinha feito na pele; sem o pessoal da ferrugem não tínhamos Unimog ou GMC para nos levar e, de preferência, trazer inteiros; sem o pessoal de transmissões não havia rádio nem para falar com o vizinho do mesmo Grupo de Combate. Todos precisavam de todos por isso, como sei que vocês precisam ABSOLUTAMENTE de mim.
Agora faço aqui uma pergunta para os entendidos em informática: tal como vocês também eu tenho um bom par de diapositivos daquele tempo; como se faz para digitalizar isso pois possuo um par deles de vistas aéreas de algumas zonas que devem ser agradáveis de rever (2).
Uma última questão antes de me ir embora: na passada sexta feira, dia 9, sabia que o nosso amigo Paulo Salgado regressava da Guiné para vir passar a época natalícia. Como tenho facilidade de acesso às áreas reservadas do aeroporto de Lisboa estive desde as 8,10 até às 09,00 na saída da sala de desembarque, após os controles de passaportes, à espera de o ver passar e fiquei a chuchar no dedo. Ainda fui à sala de embarque do voo das 9,55 para o Porto mas não o consegui ver. Se ele aparecer digam-me alguma coisa.
Um abraço
Humberto Reis
_____
Nota do L.G.
(1) Tinha mandado no dia 9 de Dezembro, ao pessoal da tertúlia, a seguinte mensagem:
Amigos & Camaradas de Tertúlia:
O Pai Natal do Humberto Reis fez-me chegar mais umas cartas (militares) da “nossa” Guiné… com alta resolução, de modo a permitir localizar os sítios por onde andámos no mato… No cabaz de Natal vinham as seguintes cartas: Mansoa (que inclui também Bissorã e Encheia), Cadoca, Guileje, Binta, Buba, Pelundo… Para já, podem consultar a carta de Mansoa e Bissorã.
Pessoalmente confesso que, com estas cartas militares (que temos vindo a disponibilizar no nosso blogue) e com as estórias que vocês têm contado (para não falar do valiosíssimo álbum de fotografias e de outros documentos…), conheço agora melhor a Guiné de 1969/71 do que naquela época em que lá estive…
Não se esqueçam de mandar um palavrinha de agradecimento ao Nosso Pai Natal…
(2) O Carlos Fortunato deu logo, a seguir, uma sugestão:
Humberto:
Sobre a digitalização dos diapositivos, aqui vai alguma informação. Os diapositivos que aparecem na nossa página sobre Bissorã, e no site sobre a minha companhia (CCAÇ 13 - Os Leões Negros) são 90% retirados de diapositivos, a sua qualidade é razoavel, e nalguns casos mesmo boa.
Depois de algumas tentativas por outros processos que não deram um mínimo de qualidade (scanner com adptador para esse efeito e fotografar), acabei por seleccionar os 100 melhores e levar a uma loja da Kodak para os converter em formato digital, dado possuirem equipamento para o efeito, e também por fazerem uma pequena limpeza ao diapositivo para retirarem manchas. O custo foi cerca de 200 euros, mas eles convertem quantidades mais pequenas.
Um abraço e bom Natal para todos.
Carlos Fortunato
Sempre descontraído e prestável, ontem como hoje...
© Humberto Reis (2005)
Mensagem do Humberto Reis:
Mandem o Luís para o mato, que é o que ele está a precisar (1). Não quero agradecimentos de ninguém pois ninguém me encomendou este sermão.
Sou possuidor da totalidade das cartas da Guiné-Bissau porque as comprei, por "carolice e saudades", em 1995 e 96 no tempo em que não sonhávamos em vir a ter este "Programa Espectacular" que o Luís arranjou e continua a acarinhar.
Se vocês soubessem o prazer que me dá olhar para aquelas cartas compreendiam o gosto que tenho em as partilhar convosco. Imagino a cara de alguns de vocês a recordarem as picadas e os trilhos que lá estão assinalados e a recuarem 30, 35 e 40 anos atrás.
A mim não me faz sentir velho, mas apenas saudoso de alguns tempos bons que passei naquela terra, apesar dos muito maus. Se não fossem esses tempos estaríamos agora aqui a conversar uns com os outros?
É engraçado que, se repararem na identificação dos Tertulianos, são mais os operacionais do que os outros, os que fizeram a guerra dentro do arame farpado. Atenção, não façamos distinções, pois sem o pessoal da manutenção, não tínhamos as rações de combate para levar para aqueles piqueniques que por vezes fazíamos algures; sem os maqueiros não tínhamos o mezinho para nos tapar o buraco parvo do raio de uma 7,62 que a Kalash do outro lado nos tinha feito na pele; sem o pessoal da ferrugem não tínhamos Unimog ou GMC para nos levar e, de preferência, trazer inteiros; sem o pessoal de transmissões não havia rádio nem para falar com o vizinho do mesmo Grupo de Combate. Todos precisavam de todos por isso, como sei que vocês precisam ABSOLUTAMENTE de mim.
Agora faço aqui uma pergunta para os entendidos em informática: tal como vocês também eu tenho um bom par de diapositivos daquele tempo; como se faz para digitalizar isso pois possuo um par deles de vistas aéreas de algumas zonas que devem ser agradáveis de rever (2).
Uma última questão antes de me ir embora: na passada sexta feira, dia 9, sabia que o nosso amigo Paulo Salgado regressava da Guiné para vir passar a época natalícia. Como tenho facilidade de acesso às áreas reservadas do aeroporto de Lisboa estive desde as 8,10 até às 09,00 na saída da sala de desembarque, após os controles de passaportes, à espera de o ver passar e fiquei a chuchar no dedo. Ainda fui à sala de embarque do voo das 9,55 para o Porto mas não o consegui ver. Se ele aparecer digam-me alguma coisa.
Um abraço
Humberto Reis
_____
Nota do L.G.
(1) Tinha mandado no dia 9 de Dezembro, ao pessoal da tertúlia, a seguinte mensagem:
Amigos & Camaradas de Tertúlia:
O Pai Natal do Humberto Reis fez-me chegar mais umas cartas (militares) da “nossa” Guiné… com alta resolução, de modo a permitir localizar os sítios por onde andámos no mato… No cabaz de Natal vinham as seguintes cartas: Mansoa (que inclui também Bissorã e Encheia), Cadoca, Guileje, Binta, Buba, Pelundo… Para já, podem consultar a carta de Mansoa e Bissorã.
Pessoalmente confesso que, com estas cartas militares (que temos vindo a disponibilizar no nosso blogue) e com as estórias que vocês têm contado (para não falar do valiosíssimo álbum de fotografias e de outros documentos…), conheço agora melhor a Guiné de 1969/71 do que naquela época em que lá estive…
Não se esqueçam de mandar um palavrinha de agradecimento ao Nosso Pai Natal…
(2) O Carlos Fortunato deu logo, a seguir, uma sugestão:
Humberto:
Sobre a digitalização dos diapositivos, aqui vai alguma informação. Os diapositivos que aparecem na nossa página sobre Bissorã, e no site sobre a minha companhia (CCAÇ 13 - Os Leões Negros) são 90% retirados de diapositivos, a sua qualidade é razoavel, e nalguns casos mesmo boa.
Depois de algumas tentativas por outros processos que não deram um mínimo de qualidade (scanner com adptador para esse efeito e fotografar), acabei por seleccionar os 100 melhores e levar a uma loja da Kodak para os converter em formato digital, dado possuirem equipamento para o efeito, e também por fazerem uma pequena limpeza ao diapositivo para retirarem manchas. O custo foi cerca de 200 euros, mas eles convertem quantidades mais pequenas.
Um abraço e bom Natal para todos.
Carlos Fortunato
Guiné 63/74 - P338: Antologia (33): os 'gringos açorianos' de Guileje (CCAV 8350, 1972/73)
Guine > Guileje > c. 1970/71> Dois militares portugueses, junto ao Obus 140.
Segundo informação do Carlos Schwarz (mais conhecido por Pepito), fundador e director executivo da AD, "a fotografia junto do Obus 140 foi-me dada por um militar português que lá esteve entre 70 e 71, na CCAÇ 2617, de nome Abílio Alberto Pimentel da Assunção, que é um dos dosi militares".
A esta companhia, seguiram-se ainda outras duas: a CCAÇ 3477 (Dez 1971/Dez 1972) e a CCAV 8350 (1972/73).
© AD - Acção para o Desenvolvimento > Projecto Guileje (2005)
Segundo o comandante do COP 5, o então major de artilharia Coutinho e Lima, a base do PAIGC era em Canjifara, na Guiné-Conacri, o que permitia aos guerrilheiros uma grande actividade na região, "que se intensificou a partir do momento em que a artilharia portuguesa, até aí a utilizar morteiros de 11,4 milímetros, mudou para os obuses de 14 milímetros".
"A regulação de tiro com os de 11,4 milímetros tinha sido comprovadamente mais eficaz, mas estes morteiros acabaram e não foram substituídos por outros de características idênticas. Portanto, para lá do fogo de artilharia dos RPG 7, os guerrilheiros passaram a fazer emboscadas nas proximidades do quartel. O que foi uma machadada no moral das tropas, que andavam há meses a acumular a realização de obras imprescindíveis no aquartelamento - criado em 1964, mas nunca chegou a ter sequer uma segunda protecção de arame farpado - com a actividade operacional, acabando esta por se ressentir".
___________________________________________________________________
1. Guileje continua a estar rodeado de mistério e de polémica. Faltam-nos trabalhos de investigação historiográfica séria, tanto de um lado como de outro. Por enquanto temos só ouvido o testemunho de alguns dos seus (poucos) protagonistas. É urgente que apareçam testemunhos (escritos) de guerrilheiros do PAIGC que estiveram no cerco de Guileje. A geração que fez a guerrilha está a envelhecer e a desaparecer. Segundo creio saber, o Pepito tem sobretudo contactos com antigas milícias, provavelmente de etnia fula, que estiveram do nosso lado. Não sei se há guineenses a tentar preservar essa memória.
O Pepito que, segundo creio, não foi combatente, será uma das poucas excepções na Guiné-Bissau, com o Projecto Guiledje, da sua ONG (AD - Acção para o Desenvolvimento). Por ouro lado, estamos a aguardar, com curiosidade, a dissertação de mestrado do nosso amigo guineense Leopoldo Amado, a defender na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Um dos testemunhos sobre os acontecimentos de Guileje, entre 18 e 22 de Maio de 1973, é o de Alexandre Coutinho e Lima, na altura major, à frente do Comando Operacional 5 (COP 5), baseado em Cacine. Foi este ficial quem, à revelia de Spínola, seu comandante-chefe, decidiu, de motu proprio, abandonar Guileje, retirando a CCAV 8350 para Gadamael-Porto, mais as milícias locais e mais meio milhar de civis. Essa decisão (corajosa, para uns; cobarde, para outros) custou-lhe a carreira militar.
Essa história foi recentemente contada pelo jornalista Eduardo Dâmaso, no suplemento dominical do Público, de 21 de Maio de 2004. Vale a pena seleccionar e divulgar esse texto, pelo seu valor documental, já que muitos dos nossos tertulianos e outros visitantes o não conhecem. A versão que encontrámos disponível na Net vem no Blogue Moçambique para Todos, e em particular numa secção dedicada ao 25 de Abril - O antes e o agora.
Agradecemos a estas duas fontes (O Público e o Blogue Moçambique para Todos) a possibilidade de fazer chegar aos membros da nossa tertúlia e a outros cibernautas a versão dos factos na pessoa do entrevistado, o hoje coronel na reforma Alexandre Coutinho e Lima. Parece que esta questão ainda hoje incomoda as chefias militares do Exército e até os homens que fizeram o 25 de Abril. O abandono de Guileje, sem honra nem glória, foi sempre considerado inaceitável por Spínola e os spinolistas.
O velho general, metido no atoleiro da Guiné, quereria muito provavelmente que Coutinho e Lima e os homens defendessem Guileje até ao último cartucho de G-3... À semelhança de Salazar, em relação ao pobre do General Vassalo e Silva, que comandava as NT aquando da invasão indiana de Goa, Damão e Diu, em 18/19 de Dezembro de 1961.
Outra questão, mais anedótica, tem a ver com a expressão "gringos açorianos". Segundo o post anterior, com data de ontem (Guiné 63/74 - CCCLV: Projecto Guileje (7): recuperação do quartel), e o artigo que agora publicamos, de Eduardo Dâmaso, haveria duas companhias cujos militares se intitulavam "gringos": a CCAÇ 3477 (Dez 1971/Dez 1972), os "Gringos de Guileje"; e a CCAV 8350 (1972/73), a os "Gringos Açorianos", os que abandonaram Guileje em 22 de Maio de 1973, tendo-se refugiado em Gadamael (1). L.G.
___________________________________________________________________
Coronel Coutinho e Lima: Salvou 600 vidas mas foi castigado por Spínola
PÚBLICA, Domingo, 16 de Maio de 2004
Eduardo Dâmaso
Auto de corpo de delito
Acusação: ordenou a retirada de forças sob o seu comando do quartel de Guileje para Gadamael sem que para tal estivesse autorizado; mandou destruir edifícios e inutilizar obras de defesa do referido quartel, bem como material de guerra e munições; não cumpriu a missão que lhe foi atribuída.
Nessa luminosa madrugada de 22 de Maio de 1973, a sorte dava ares de voltar a sorrir aos "gringos açorianos" e a todos os outros "gringos" que faziam a guerra em Guileje, Sul da Guiné, contra o PAIGC (Partido Africano pela Independência da Guiné-Bissau e Cabo-Verde). Eram quase seis da manhã e os "gringos" iam carregados que nem burros pelo trilho do mato que ligava o quartel de Guileje ao de Gadamael, uns oito ou nove quilómetros bem medidos na retaguarda do primeiro, mas a manhã levava-os para longe daquele buraco que já viam como cemitério dos seus próprios cadáveres trespassados pela metralha do inimigo.
Os soldados sedentos, famintos e, alguns, doentes, abandonavam Guileje em passo lento e levavam malas de viagem, sacos militares, armas, mochilas. Transportavam tudo o que era imprescindível para refazer a vida da tropa noutro quartel qualquer. Entre eles marchavam 600 guineenses, igualmente cheios de fome, sede e doenças, que recuavam também para a zona do aquartelamento de Gadamael, alguns dos quais já muito idosos e um deles paralítico, que teve de ser transportado às costas por soldados. A população da tabanca de Guileje levava a casa na trouxa e a família pela mão sem olhar para trás. Na retaguarda, num qualquer ponto fixo no horizonte da densa mata do Sul, só ficavam os canhões do PAIGC que, por aqueles dias, não escolhiam entre soldados portugueses e civis guineenses.
Uns e outros compunham uma coluna de gente que protagonizava um episódio histórico na guerra colonial portuguesa: as Forças Armadas comandadas na Guiné por António Spínola batiam em retirada do quartel de Guileje, o único que a tropa portuguesa deixou livre à ocupação pelo inimigo em toda a guerra colonial. O PAIGC, tolhido pela surpresa, só viria a ocupar a guarnição militar três dias depois da retirada.
A retirada de Guileje foi o culminar de um complexo processo político-militar que começou a desenhar-se na Guiné após o assassinato de Amílcar Cabral, em Janeiro de 1973. O PAIGC desencadeou então uma ofensiva simultânea no Norte e no Sul da Guiné cercando os quartéis de Guidage, junto à fronteira com o Senegal, e de Guileje, encostado à Guiné-Conacri.
Essa operação, a que chamaram "Amílcar Cabral", foi um momento decisivo na guerra que coincidiu com a utilização dos mísseis Strella, de fabrico soviético, que abateram pela primeira vez um Fiat G-91 da Força Aérea a 25 de Março desse ano. Nessa semana a "arma desconhecida, tipo foguete", como foi qualificada no relatório da ocorrência, atingiu seis aeronaves portuguesas e num dos casos morreu mesmo o piloto, tenente-coronel Brito. A maior parte destas acções aconteceu precisamente na zona de Guileje, área do Comando Operacional 5 (COP5) criado menos de seis meses antes para fazer face ao previsível agravamento da guerra na frente sul, mas para onde não foram enviados mais do que 108 homens.
A partir deste novo dado da guerra, os mísseis terra-ar, ficou muito condicionada a utilização de meios aéreos no apoio de fogo às tropas terrestres, na deslocação de feridos, no transporte logístico e na regulação de tiro da artilharia. Os efeitos do conflito passaram a ser devastadores nas fileiras portuguesas. Segundo números oficiais das Forças Armadas, só entre 13 e 27 de Maio morreram 38 soldados e 155 foram feridos na frente sul da guerra. Em todo o primeiro semestre de 1973 registaram-se 135 mortes de militares portugueses em todo o território guineense. Foram as semanas da viragem da guerra a favor de um inimigo mais numeroso, mais bem armado e preparado.
Nesse Maio de chumbo, Bissau não evacuava feridos há semanas lá das bandas do Sul. Os aviões não se arriscavam a um voo que podia ser o último. Em Guileje, com a moral arrasada, os soldados não tinham nem água, nem comida, nem munições, o inimigo atacava a 500 metros, ou menos, do quartel. Ficar ali para cativeiro ou morte certa nem pensar, antes marchar em retirada. Ainda por cima, naquela época do ano, o Sul da Guiné submergia com a intensidade das chuvas e uma parte do território estava intransitável.
Nos dias anteriores à retirada, as bombas do inimigo abatiam-se sobre o quartel e dele quase nada restou de pé. Ficaram as orações dos "gringos açorianos" inscritas nas poucas pedras que sobravam: "Santo Cristo dos Milagres nesta capelinha oramos para sempre sorte dares aos gringos açorianos." Ou as dos "Piratas de Guileje", uns e outros da companhia de cavalaria 8350, estacionada no Sul entre 72 e 74.
Os RPG7 da guerrilha rebentavam no ar e caíam em chuveiro sobre o quartel, deixando marcas de destruição em todo o lado. Nos seis abrigos amontoavam-se soldados e população. Do dia 18 em diante, até à evacuação, muita fome ali se passou porque os flagelamentos do PAIGC foram praticamente incessantes.
Minhas declarações em 28 de Maio de 1973
"Durante a manhã [21 de Maio] tinha havido um ataque próximo em que predominaram os rebentamentos de RPG. Ao princípio da tarde, as mulheres, desesperadas com falta de água, foram à bolanha (cerca de 500 metros do quartel), tendo sido flageladas pelo IN com RPG e imediatamente recolhidas pelas NT que foram em seu socorro. A Força Aérea que apareceu a apoiar, após o ataque das 15h15 às 16h30, o mais intenso de todos e o que provocou o morto e muitos danos materiais, foi informada que o quartel estava sem transmissões, tendo prometido ir lá de noite, se possível, e no dia seguinte, logo de manhã."
A base dos guerrilheiros era em Canjifara, Conacri, o que permitia ao PAIGC uma grande actividade na região, que se intensificou a partir do momento em que a artilharia portuguesa, até aí a utilizar morteiros de 11,4 milímetros, mudou para os obuses de 14 milímetros. A regulação de tiro com os de 11,4 milímetros tinha sido comprovadamente mais eficaz, mas estes morteiros acabaram e não foram substituídos por outros de características idênticas. Portanto, para lá do fogo de artilharia dos RPG7, os guerrilheiros passaram a fazer emboscadas nas proximidades do quartel. O que foi uma machadada no moral das tropas, que andavam há meses a acumular a realização de obras imprescindíveis no aquartelamento - criado em 1964, mas nunca chegou a ter sequer uma segunda protecção de arame farpado - com a actividade operacional, acabando esta por se ressentir.
É neste cenário que o então major Alexandre Coutinho e Lima decide bater em retirada, depois de intensas movimentações nos últimos dias a pedir reforços de tropas especiais que nunca chegaram. Assim que chegou a Gadamael, nessa manhã de 22 de Maio, foi imediatamente preso e acusado de ter cometido um crime militar ao ordenar a retirada de forças sob o seu comando sem autorização superior. Também mandou destruir edifícios e inutilizar obras de defesa do quartel que comandava, material de guerra e munições. A justiça militar imputou ao major uma falta grave: não ter cumprido a missão que lhe foi atribuída pelo comandante-chefe das tropas portuguesas na Guiné, António Spínola, e pagou por isso com um ano de prisão, que só viria a ser interrompido por uma amnistia nos primeiros dias a seguir ao 25 de abril de 1974.
Na versão seca do formalismo da linguagem militar, o major não cumpriu a missão que lhe foi atribuída. Mas, para as mais de 600 pessoas cercadas pelo fogo dos guerrilheiros independentistas, a decisão do agora coronel reformado Coutinho e Lima salvou-os de morrer no inferno de Guileje.
Para essas pessoas e para milhares de soldados que viam a derrota e a morte a aproximar-se nas frentes de guerra da Guiné, o coronel Coutinho e Lima foi um herói, que teve a coragem de decidir de acordo com a sua consciência. Mas ainda hoje é um homem perplexo com a actuação de Spínola neste processo e, em concreto, pela diferença de tratamento que deu às duas situações mais dramáticas naquela guerra.
Ao cerco de Guidage, a norte, Spínola respondeu com reforços imediatos e um ataque de comandos à base do PAIGC em Kumbamory, em território senegalês, uma acção que veio aliviar a pressão do PAIGC sobre Guidage. Já em relação a Guileje, Spínola nunca autorizou um reforço de homens e meios operacionais, deixando a guarnição abandonada à sua sorte, acabando também por não conseguir evitar a desgraça de Gadamael, onde o PAIGC atacou entre as 14h00 e as 18h00 do dia 31 de Maio, bombardeando o quartel com mais de 700 granadas e provocando cinco mortos e 14 feridos, numa acção que foi apenas o início de intensos flagelamentos que prosseguiram nos dias seguintes, causando um total de 24 mortos e 147 feridos.
Trinta e um anos depois da retirada do quartel de Guileje, as Forças Armadas ainda lidam mal com o episódio. O único quartel português abandonado pelas tropas coloniais é um episódio que representa uma espécie de pedra no sapato do Exército e das Forças Armadas em geral, que transformou o seu principal protagonista num rosto incómodo tanto para as hierarquias como, aparentemente, para os próprios militares do Movimento das Forças Armadas (MFA).
Para os militares de Guileje, o pesadelo começou a desenhar-se a partir do dia 10 de Maio, ainda sem o perceberem. A melhor descrição da situação militar ali vivida é feita pelo próprio Spínola, que a 11 de Maio se desloca de helicóptero a Guileje e, numa comunicação às tropas, fez saber que se esperava um agravamento da situação. Ficou claro que a Força Aérea não faria operações de rotina como até aí. Deixou, porém, a garantia de que, em momentos de combate mais sérios, os aviões voariam mais alto e utilizariam bombas mais potentes no apoio de fogo. O transporte de feridos muito graves seria também assegurado. Palavras vãs, tal nunca aconteceu.
Um dia antes da visita, a vida corria com alguma normalidade no aquartelamento de Guileje. O único facto anormal era dado pelo desaparecimento do miliciano [ milícia ] Aliu Bari, que saíra de espingarda às costas dizendo que ia à caça, mas não voltou mais. Ao fim de um par de horas, começaram a sair grupos de patrulhamento na estrada de Mejo com o objectivo de tentar encontrar o miliciano [ milícia ] Bari, que, admitia-se, podia ter-se perdido ou sido mordido por uma cobra.
Alguns patrulhamentos depois, já a 12 de Maio, porém, uma mina rebenta na estrada do Mejo e morrem dois comandantes de secção da milícia, o que afecta as tropas, sobretudo do contingente guineense e da população, onde os dois homens eram vistos como líderes.
No dia 18, dois grupos de combate que realizavam trabalhos de detecção de minas e instalação de um sistema de segurança para uma nova operação de reabastecimento, junto ao cruzamento da estrada Guileje-Gadamael, foram atacados por mais de 100 guerrilheiros emboscados. Das sete às oito da manhã os soldados portugueses e os milicianos [ milícias ] guineenses ao seu serviço estiveram debaixo de intenso fogo de metralhadora, armas automáticas e morteiros RPG. O balanço final foi dramático: dois mortos, nove feridos graves. Mais tarde, um destes feridos, um cabo, veio a morrer.
Tinha sido pedido apoio de fogo aéreo a Bissau, que não foi concedido por falta de condições meteorológicas. Aos pedidos de deslocação dos feridos foi respondido que as baixas deveriam ser levadas para Gadamael e daí para Cacine por via fluvial, o que não aconteceu por já não haver maré que permitisse o transporte.
Adivinhava-se um mortícinio. Os soldados começaram a perceber que estavam entregues à sua sorte. O major Coutinho Lima enviou uma mensagem para Bissau a pedir a deslocação de um delegado a Guileje para analisar o problema dos apoios e efectivos para as colunas de reabastecimento. A resposta é negativa.
Às 16h00 ainda do dia 18 colocou-se a necessidade de reabastecer a unidade de água, num local situado a quatro quilómetros do quartel. O grupo de combate que habitualmente fazia segurança a esta saída manifestou-se relutante em sair do quartel. Só o fez quando o próprio Coutinho e Lima saiu à frente do grupo.
A operação decorreu sem problemas mas durante essa noite regressou o fogo inimigo. O quartel foi bombardeado pela noite dentro, em oito momentos diferentes; todos os rebentamentos de obuses ocorreram dentro zona de arame farpado. Compreenderam então que a regulação de tiro da artilharia do PAIGC era feita a partir de informações prestadas pelo miliciano [ milícia ] Bari, que tinha desertado para o inimigo. Era a primeira vez que o inimigo acertava no quartel.
Na manhã seguinte, os militares portugueses contaram 85 rebentamentos no interior do quartel. Coutinho Lima parte nessa manhã com um grupo de combate para Gadamael e daí para Cacine, para assegurar o transporte dos feridos e do morto, mas também na esperança de "encontrar alguém" do Comando-Chefe a quem pudesse expor a situação. Ao mesmo tempo, o drama adensava-se em Guileje: o inimigo passou todo o dia 19 a bombardear o quartel.
Coutinho Lima só consegue falar com a Repartição Operacional na madrugada de 20 e pede que Bissau envie para Guileje uma companhia de tropa especial (comandos ou pára-quedistas), viaturas e estivadores para assegurar o reabastecimento. Volta a pedir autorização para se deslocar a Bissau, o que acontece no dia 21. Aí, expõe a situação a Spínola e pede, de novo, reforços. O comandante-chefe dá-lhe uma resposta negativa quanto ao reforço de uma companhia de tropas especiais, retira-lhe o comando e entrega-o ao coronel Rafael Durão.
Coutinho e Lima é mandado de regresso a Guileje na qualidade de 2º comandante do COP5. Chega a Guileje ao fim da tarde do dia 21 e o quadro com que se depara é devastador: um furriel morto, depósitos alimentares destruídos, celeiros de arroz a arder, população refugiada dentro do quartel, falta de água e medicamentos, antenas de transmissões de rádio destruídas, poucas munições, abrigos e valas de defesa atingidos, centenas de rebentamentos dentro do quartel.
Minhas declarações em 24 de Agosto de 1973
"A estadia nos abrigos era praticamente insuportável, pois neles se encontravam, além das NT, toda a população (homens, mulheres e crianças, cerca de 500 pessoas). Houve vários desmaios, onde o calor era imenso e o cheiro nauseabundo. Após as saídas do fogo IN [Inimigo], os rebentamentos demoravam cerca de 3 segundos só dando tempo ao pessoal para se deitar. De algumas vezes não se ouviram as saídas e houve vários rebentamentos no ar, que não eram de RPG; muitas granadas eram também perfurantes, devendo ter sido uma destas que provocou a morte do furriel, bem como outra que abriu uma brecha, de lado, num dos abrigos, ficando a armação de ferro à mostra. Todo o pessoal estava arrasadíssimo, não só física como psiquicamente, pois há cerca de 72 horas que o quartel estava a ser continuamente flagelado. Com a deserção do miliciano [ milícia ] Aliu Bari, a população estava alarmadíssima porque até aí o Inimigo não sabia onde eram os campos de arroz do pessoal de Guileje, não conhecia o trilho da população entre Gadamael e Guileje, nem tão-pouco sabia onde era o poço da água onde se fazia o reabastecimento, mas agora passava a ter conhecimento, através do referido desertor, de tudo isto."
O medo estava instalado nos abrigos de Guileje. Mas também a fome, a sede, a doença. O inimigo estava a menos de 500 metros do quartel a acertar o fogo com homens empoleirados nas árvores. A descrença era total e já ninguém esperava reforços de lado nenhum. Batiam as 21 horas do dia 21 de Maio quando Coutinho e Lima mandou reunir todos os oficiais e, depois de analisada a situação, decidiu retirar de madrugada para Gadamael pelo trilho da população. De imediato elaborou uma mensagem em que pedia autorização para retirar. Foram improvisadas umas antenas, mas a mensagem nunca chegou a seguir, apesar das tentativas que duraram toda a noite. A última que seguira fora no dia 21, às 14h15, a dizer "Estamos cercados por todos os lados."
Três décadas depois, Coutinho e Lima pergunta-se a si próprio que outra coisa poderia fazer: "Tinha-se perdido muito tempo. Mesmo que tivéssemos conseguido comunicar para Bissau naquele dia e tivessem decidido enviar reforços, as tropas não chegariam antes de três ou quatro dias, espaço de tempo que nunca conseguiríamos aguentar naquelas condições. Antes disso, o inimigo completaria o cerco poderosíssimo que estava a fazer com a consequente captura ou aniquilamento de toda a guarnição militar e população."
Ou ficava e a sua companhia era chacinada e o que restasse dela apanhado à mão pelo PAIGC ou, pelo contrário, recuava para Gadamael de imediato, jogando no efeito surpresa.Tomada a decisão de partir, foi elaborado um plano de destruições e inutilizações de material que não pudesse ser utilizado pelo PAIGC: minas Claymore, material de criptografia, incluindo as máquinas, arquivos, equipamento de transmissões, obuses, viaturas e armamento pesado. "Não fui pressionado por ninguém para retirar e parti do princípio que a minha vida militar acabava ali", diz Coutinho e Lima.
Minhas declarações em 24 de Agosto de 1973
"Entre todos os factores que me levaram a decidir pela retirada, avulta a missão de defesa da população, cerca de 500 pessoas (...) [que] aceitou de bom grado a ordem para se preparar para seguir para Gadamael, não tendo havido nenhuma manifestação de pesar - 'choro' -, quer quando foi iniciada a retirada, quer na chegada a Gadamael."
Deviam ser umas quatro da tarde quando a coluna entrou na parada do quartel de Gadamael-Porto. Coutinho e Lima é preso e enviado para Bissau, para a fortaleza de Amura, comando militar da Guiné. Não iria esperar muito até sentir a ira de Spínola, que o transfere para o depósito de adidos no aquartelamento de Bra com ordens inabaláveis: encerramento num quarto em regime de incomunicabilidade total e o vencimento reduzido a metade. Ali fica um mês e só uma consulta de psiquiatria altera as condições da sua prisão: passa a receber visitas, tem licença para se entreter na horta da guarnição e ler jornais.
Todos os requerimentos que fez para poder dar explicações e aulas de Educação Física foram indeferidos pelo punho do próprio Spínola. Nessa fase, lia, fazia paciências com cartas, escrevia. Começou a perceber então que a sua situação gerava entre os militares um grande movimento de solidariedade. Não tinha dinheiro para contratar um advogado e houve uma quotização entre os oficiais, que asseguraram os 50 contos necessários para pagar a sua defesa ao advogado Manuel João da Palma Carlos. como é assegurado o subestabelecimento da causa num conjunto de mais quatro advogados, todos eles oficiais milicianos a prestar serviço na Guiné: Barros Moura, Correia Pinto, Sacadura Bote e Maia Costa. Estes oficiais chegaram a ser ameaçados por Spínola com o envio para a frente de combate por se terem disponibilizado a defender o "presumido delinquente".
Depois de libertado em Maio de 1974 é colocado na Academia Militar, no gabinete de estudos, e recebeu a metade do vencimento que lhe tinha sido retirado. Nunca chegou a ser julgado, mas não requereu qualquer reparação por danos morais, já que era sua profunda convicção a inutilidade da acção enquanto Spínola liderasse a JSN [Junta de Salvação Nacional].
"Acho que nunca fui prejudicado na progressão militar, mas na parte final, quando tinha de fazer um ano de comando para a promoção - devia comandar uma unidade de artilharia -, fiquei com a sensação de que andaram a passar a bola de um lado para outro", diz hoje, passados 30 anos.
Minhas declarações em 24 de Agosto de 1973
"Relativamente à acusação de não ter cumprido a missão que me foi atribuída, solicito informação sobre qual parte da missão deixou de ser cumprida. Se se pretende referir à alínea 'garante a defesa eficiente dos aglomerados populacionais e o socorro em tempo oportuno dos reordenamentos da sua zona', declaro que defendi o estacionamento de Guileje até à altura da retirada, por considerar a posição absolutamente insustentável."
O tempo foi passando na vida de Alexandre Coutinho e Lima e as más memórias desvanecendo-se. Mas o mistério da recusa de conceder um reforço militar a Guileje permanece. "Nunca mais falei com Spínola sobre isso!" De há 31 anos para cá só ficou o silêncio.
Recordo-me de me terem perguntado num dos interrogatórios se tinha pensado nas consequências do meu acto para a Pátria. Limitei-me a responder que a minha preocupação era mais com a vida dos meus homens e da população do que com os altos valores da Pátria.
____
(1) Vd. também post de 2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael Transcrição do artigo de Serafim Lobato - "Estamos Cercados por Todos Os Lados" -, publicado na Pública, suplemento dominical do Público (28 de Dezembro de 2003).
Segundo informação do Carlos Schwarz (mais conhecido por Pepito), fundador e director executivo da AD, "a fotografia junto do Obus 140 foi-me dada por um militar português que lá esteve entre 70 e 71, na CCAÇ 2617, de nome Abílio Alberto Pimentel da Assunção, que é um dos dosi militares".
A esta companhia, seguiram-se ainda outras duas: a CCAÇ 3477 (Dez 1971/Dez 1972) e a CCAV 8350 (1972/73).
© AD - Acção para o Desenvolvimento > Projecto Guileje (2005)
Segundo o comandante do COP 5, o então major de artilharia Coutinho e Lima, a base do PAIGC era em Canjifara, na Guiné-Conacri, o que permitia aos guerrilheiros uma grande actividade na região, "que se intensificou a partir do momento em que a artilharia portuguesa, até aí a utilizar morteiros de 11,4 milímetros, mudou para os obuses de 14 milímetros".
"A regulação de tiro com os de 11,4 milímetros tinha sido comprovadamente mais eficaz, mas estes morteiros acabaram e não foram substituídos por outros de características idênticas. Portanto, para lá do fogo de artilharia dos RPG 7, os guerrilheiros passaram a fazer emboscadas nas proximidades do quartel. O que foi uma machadada no moral das tropas, que andavam há meses a acumular a realização de obras imprescindíveis no aquartelamento - criado em 1964, mas nunca chegou a ter sequer uma segunda protecção de arame farpado - com a actividade operacional, acabando esta por se ressentir".
___________________________________________________________________
1. Guileje continua a estar rodeado de mistério e de polémica. Faltam-nos trabalhos de investigação historiográfica séria, tanto de um lado como de outro. Por enquanto temos só ouvido o testemunho de alguns dos seus (poucos) protagonistas. É urgente que apareçam testemunhos (escritos) de guerrilheiros do PAIGC que estiveram no cerco de Guileje. A geração que fez a guerrilha está a envelhecer e a desaparecer. Segundo creio saber, o Pepito tem sobretudo contactos com antigas milícias, provavelmente de etnia fula, que estiveram do nosso lado. Não sei se há guineenses a tentar preservar essa memória.
O Pepito que, segundo creio, não foi combatente, será uma das poucas excepções na Guiné-Bissau, com o Projecto Guiledje, da sua ONG (AD - Acção para o Desenvolvimento). Por ouro lado, estamos a aguardar, com curiosidade, a dissertação de mestrado do nosso amigo guineense Leopoldo Amado, a defender na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Um dos testemunhos sobre os acontecimentos de Guileje, entre 18 e 22 de Maio de 1973, é o de Alexandre Coutinho e Lima, na altura major, à frente do Comando Operacional 5 (COP 5), baseado em Cacine. Foi este ficial quem, à revelia de Spínola, seu comandante-chefe, decidiu, de motu proprio, abandonar Guileje, retirando a CCAV 8350 para Gadamael-Porto, mais as milícias locais e mais meio milhar de civis. Essa decisão (corajosa, para uns; cobarde, para outros) custou-lhe a carreira militar.
Essa história foi recentemente contada pelo jornalista Eduardo Dâmaso, no suplemento dominical do Público, de 21 de Maio de 2004. Vale a pena seleccionar e divulgar esse texto, pelo seu valor documental, já que muitos dos nossos tertulianos e outros visitantes o não conhecem. A versão que encontrámos disponível na Net vem no Blogue Moçambique para Todos, e em particular numa secção dedicada ao 25 de Abril - O antes e o agora.
Agradecemos a estas duas fontes (O Público e o Blogue Moçambique para Todos) a possibilidade de fazer chegar aos membros da nossa tertúlia e a outros cibernautas a versão dos factos na pessoa do entrevistado, o hoje coronel na reforma Alexandre Coutinho e Lima. Parece que esta questão ainda hoje incomoda as chefias militares do Exército e até os homens que fizeram o 25 de Abril. O abandono de Guileje, sem honra nem glória, foi sempre considerado inaceitável por Spínola e os spinolistas.
O velho general, metido no atoleiro da Guiné, quereria muito provavelmente que Coutinho e Lima e os homens defendessem Guileje até ao último cartucho de G-3... À semelhança de Salazar, em relação ao pobre do General Vassalo e Silva, que comandava as NT aquando da invasão indiana de Goa, Damão e Diu, em 18/19 de Dezembro de 1961.
Outra questão, mais anedótica, tem a ver com a expressão "gringos açorianos". Segundo o post anterior, com data de ontem (Guiné 63/74 - CCCLV: Projecto Guileje (7): recuperação do quartel), e o artigo que agora publicamos, de Eduardo Dâmaso, haveria duas companhias cujos militares se intitulavam "gringos": a CCAÇ 3477 (Dez 1971/Dez 1972), os "Gringos de Guileje"; e a CCAV 8350 (1972/73), a os "Gringos Açorianos", os que abandonaram Guileje em 22 de Maio de 1973, tendo-se refugiado em Gadamael (1). L.G.
___________________________________________________________________
Coronel Coutinho e Lima: Salvou 600 vidas mas foi castigado por Spínola
PÚBLICA, Domingo, 16 de Maio de 2004
Eduardo Dâmaso
Auto de corpo de delito
Acusação: ordenou a retirada de forças sob o seu comando do quartel de Guileje para Gadamael sem que para tal estivesse autorizado; mandou destruir edifícios e inutilizar obras de defesa do referido quartel, bem como material de guerra e munições; não cumpriu a missão que lhe foi atribuída.
Nessa luminosa madrugada de 22 de Maio de 1973, a sorte dava ares de voltar a sorrir aos "gringos açorianos" e a todos os outros "gringos" que faziam a guerra em Guileje, Sul da Guiné, contra o PAIGC (Partido Africano pela Independência da Guiné-Bissau e Cabo-Verde). Eram quase seis da manhã e os "gringos" iam carregados que nem burros pelo trilho do mato que ligava o quartel de Guileje ao de Gadamael, uns oito ou nove quilómetros bem medidos na retaguarda do primeiro, mas a manhã levava-os para longe daquele buraco que já viam como cemitério dos seus próprios cadáveres trespassados pela metralha do inimigo.
Os soldados sedentos, famintos e, alguns, doentes, abandonavam Guileje em passo lento e levavam malas de viagem, sacos militares, armas, mochilas. Transportavam tudo o que era imprescindível para refazer a vida da tropa noutro quartel qualquer. Entre eles marchavam 600 guineenses, igualmente cheios de fome, sede e doenças, que recuavam também para a zona do aquartelamento de Gadamael, alguns dos quais já muito idosos e um deles paralítico, que teve de ser transportado às costas por soldados. A população da tabanca de Guileje levava a casa na trouxa e a família pela mão sem olhar para trás. Na retaguarda, num qualquer ponto fixo no horizonte da densa mata do Sul, só ficavam os canhões do PAIGC que, por aqueles dias, não escolhiam entre soldados portugueses e civis guineenses.
Uns e outros compunham uma coluna de gente que protagonizava um episódio histórico na guerra colonial portuguesa: as Forças Armadas comandadas na Guiné por António Spínola batiam em retirada do quartel de Guileje, o único que a tropa portuguesa deixou livre à ocupação pelo inimigo em toda a guerra colonial. O PAIGC, tolhido pela surpresa, só viria a ocupar a guarnição militar três dias depois da retirada.
A retirada de Guileje foi o culminar de um complexo processo político-militar que começou a desenhar-se na Guiné após o assassinato de Amílcar Cabral, em Janeiro de 1973. O PAIGC desencadeou então uma ofensiva simultânea no Norte e no Sul da Guiné cercando os quartéis de Guidage, junto à fronteira com o Senegal, e de Guileje, encostado à Guiné-Conacri.
Essa operação, a que chamaram "Amílcar Cabral", foi um momento decisivo na guerra que coincidiu com a utilização dos mísseis Strella, de fabrico soviético, que abateram pela primeira vez um Fiat G-91 da Força Aérea a 25 de Março desse ano. Nessa semana a "arma desconhecida, tipo foguete", como foi qualificada no relatório da ocorrência, atingiu seis aeronaves portuguesas e num dos casos morreu mesmo o piloto, tenente-coronel Brito. A maior parte destas acções aconteceu precisamente na zona de Guileje, área do Comando Operacional 5 (COP5) criado menos de seis meses antes para fazer face ao previsível agravamento da guerra na frente sul, mas para onde não foram enviados mais do que 108 homens.
A partir deste novo dado da guerra, os mísseis terra-ar, ficou muito condicionada a utilização de meios aéreos no apoio de fogo às tropas terrestres, na deslocação de feridos, no transporte logístico e na regulação de tiro da artilharia. Os efeitos do conflito passaram a ser devastadores nas fileiras portuguesas. Segundo números oficiais das Forças Armadas, só entre 13 e 27 de Maio morreram 38 soldados e 155 foram feridos na frente sul da guerra. Em todo o primeiro semestre de 1973 registaram-se 135 mortes de militares portugueses em todo o território guineense. Foram as semanas da viragem da guerra a favor de um inimigo mais numeroso, mais bem armado e preparado.
Nesse Maio de chumbo, Bissau não evacuava feridos há semanas lá das bandas do Sul. Os aviões não se arriscavam a um voo que podia ser o último. Em Guileje, com a moral arrasada, os soldados não tinham nem água, nem comida, nem munições, o inimigo atacava a 500 metros, ou menos, do quartel. Ficar ali para cativeiro ou morte certa nem pensar, antes marchar em retirada. Ainda por cima, naquela época do ano, o Sul da Guiné submergia com a intensidade das chuvas e uma parte do território estava intransitável.
Nos dias anteriores à retirada, as bombas do inimigo abatiam-se sobre o quartel e dele quase nada restou de pé. Ficaram as orações dos "gringos açorianos" inscritas nas poucas pedras que sobravam: "Santo Cristo dos Milagres nesta capelinha oramos para sempre sorte dares aos gringos açorianos." Ou as dos "Piratas de Guileje", uns e outros da companhia de cavalaria 8350, estacionada no Sul entre 72 e 74.
Os RPG7 da guerrilha rebentavam no ar e caíam em chuveiro sobre o quartel, deixando marcas de destruição em todo o lado. Nos seis abrigos amontoavam-se soldados e população. Do dia 18 em diante, até à evacuação, muita fome ali se passou porque os flagelamentos do PAIGC foram praticamente incessantes.
Minhas declarações em 28 de Maio de 1973
"Durante a manhã [21 de Maio] tinha havido um ataque próximo em que predominaram os rebentamentos de RPG. Ao princípio da tarde, as mulheres, desesperadas com falta de água, foram à bolanha (cerca de 500 metros do quartel), tendo sido flageladas pelo IN com RPG e imediatamente recolhidas pelas NT que foram em seu socorro. A Força Aérea que apareceu a apoiar, após o ataque das 15h15 às 16h30, o mais intenso de todos e o que provocou o morto e muitos danos materiais, foi informada que o quartel estava sem transmissões, tendo prometido ir lá de noite, se possível, e no dia seguinte, logo de manhã."
A base dos guerrilheiros era em Canjifara, Conacri, o que permitia ao PAIGC uma grande actividade na região, que se intensificou a partir do momento em que a artilharia portuguesa, até aí a utilizar morteiros de 11,4 milímetros, mudou para os obuses de 14 milímetros. A regulação de tiro com os de 11,4 milímetros tinha sido comprovadamente mais eficaz, mas estes morteiros acabaram e não foram substituídos por outros de características idênticas. Portanto, para lá do fogo de artilharia dos RPG7, os guerrilheiros passaram a fazer emboscadas nas proximidades do quartel. O que foi uma machadada no moral das tropas, que andavam há meses a acumular a realização de obras imprescindíveis no aquartelamento - criado em 1964, mas nunca chegou a ter sequer uma segunda protecção de arame farpado - com a actividade operacional, acabando esta por se ressentir.
É neste cenário que o então major Alexandre Coutinho e Lima decide bater em retirada, depois de intensas movimentações nos últimos dias a pedir reforços de tropas especiais que nunca chegaram. Assim que chegou a Gadamael, nessa manhã de 22 de Maio, foi imediatamente preso e acusado de ter cometido um crime militar ao ordenar a retirada de forças sob o seu comando sem autorização superior. Também mandou destruir edifícios e inutilizar obras de defesa do quartel que comandava, material de guerra e munições. A justiça militar imputou ao major uma falta grave: não ter cumprido a missão que lhe foi atribuída pelo comandante-chefe das tropas portuguesas na Guiné, António Spínola, e pagou por isso com um ano de prisão, que só viria a ser interrompido por uma amnistia nos primeiros dias a seguir ao 25 de abril de 1974.
Na versão seca do formalismo da linguagem militar, o major não cumpriu a missão que lhe foi atribuída. Mas, para as mais de 600 pessoas cercadas pelo fogo dos guerrilheiros independentistas, a decisão do agora coronel reformado Coutinho e Lima salvou-os de morrer no inferno de Guileje.
Para essas pessoas e para milhares de soldados que viam a derrota e a morte a aproximar-se nas frentes de guerra da Guiné, o coronel Coutinho e Lima foi um herói, que teve a coragem de decidir de acordo com a sua consciência. Mas ainda hoje é um homem perplexo com a actuação de Spínola neste processo e, em concreto, pela diferença de tratamento que deu às duas situações mais dramáticas naquela guerra.
Ao cerco de Guidage, a norte, Spínola respondeu com reforços imediatos e um ataque de comandos à base do PAIGC em Kumbamory, em território senegalês, uma acção que veio aliviar a pressão do PAIGC sobre Guidage. Já em relação a Guileje, Spínola nunca autorizou um reforço de homens e meios operacionais, deixando a guarnição abandonada à sua sorte, acabando também por não conseguir evitar a desgraça de Gadamael, onde o PAIGC atacou entre as 14h00 e as 18h00 do dia 31 de Maio, bombardeando o quartel com mais de 700 granadas e provocando cinco mortos e 14 feridos, numa acção que foi apenas o início de intensos flagelamentos que prosseguiram nos dias seguintes, causando um total de 24 mortos e 147 feridos.
Trinta e um anos depois da retirada do quartel de Guileje, as Forças Armadas ainda lidam mal com o episódio. O único quartel português abandonado pelas tropas coloniais é um episódio que representa uma espécie de pedra no sapato do Exército e das Forças Armadas em geral, que transformou o seu principal protagonista num rosto incómodo tanto para as hierarquias como, aparentemente, para os próprios militares do Movimento das Forças Armadas (MFA).
Para os militares de Guileje, o pesadelo começou a desenhar-se a partir do dia 10 de Maio, ainda sem o perceberem. A melhor descrição da situação militar ali vivida é feita pelo próprio Spínola, que a 11 de Maio se desloca de helicóptero a Guileje e, numa comunicação às tropas, fez saber que se esperava um agravamento da situação. Ficou claro que a Força Aérea não faria operações de rotina como até aí. Deixou, porém, a garantia de que, em momentos de combate mais sérios, os aviões voariam mais alto e utilizariam bombas mais potentes no apoio de fogo. O transporte de feridos muito graves seria também assegurado. Palavras vãs, tal nunca aconteceu.
Um dia antes da visita, a vida corria com alguma normalidade no aquartelamento de Guileje. O único facto anormal era dado pelo desaparecimento do miliciano [ milícia ] Aliu Bari, que saíra de espingarda às costas dizendo que ia à caça, mas não voltou mais. Ao fim de um par de horas, começaram a sair grupos de patrulhamento na estrada de Mejo com o objectivo de tentar encontrar o miliciano [ milícia ] Bari, que, admitia-se, podia ter-se perdido ou sido mordido por uma cobra.
Alguns patrulhamentos depois, já a 12 de Maio, porém, uma mina rebenta na estrada do Mejo e morrem dois comandantes de secção da milícia, o que afecta as tropas, sobretudo do contingente guineense e da população, onde os dois homens eram vistos como líderes.
No dia 18, dois grupos de combate que realizavam trabalhos de detecção de minas e instalação de um sistema de segurança para uma nova operação de reabastecimento, junto ao cruzamento da estrada Guileje-Gadamael, foram atacados por mais de 100 guerrilheiros emboscados. Das sete às oito da manhã os soldados portugueses e os milicianos [ milícias ] guineenses ao seu serviço estiveram debaixo de intenso fogo de metralhadora, armas automáticas e morteiros RPG. O balanço final foi dramático: dois mortos, nove feridos graves. Mais tarde, um destes feridos, um cabo, veio a morrer.
Tinha sido pedido apoio de fogo aéreo a Bissau, que não foi concedido por falta de condições meteorológicas. Aos pedidos de deslocação dos feridos foi respondido que as baixas deveriam ser levadas para Gadamael e daí para Cacine por via fluvial, o que não aconteceu por já não haver maré que permitisse o transporte.
Adivinhava-se um mortícinio. Os soldados começaram a perceber que estavam entregues à sua sorte. O major Coutinho Lima enviou uma mensagem para Bissau a pedir a deslocação de um delegado a Guileje para analisar o problema dos apoios e efectivos para as colunas de reabastecimento. A resposta é negativa.
Às 16h00 ainda do dia 18 colocou-se a necessidade de reabastecer a unidade de água, num local situado a quatro quilómetros do quartel. O grupo de combate que habitualmente fazia segurança a esta saída manifestou-se relutante em sair do quartel. Só o fez quando o próprio Coutinho e Lima saiu à frente do grupo.
A operação decorreu sem problemas mas durante essa noite regressou o fogo inimigo. O quartel foi bombardeado pela noite dentro, em oito momentos diferentes; todos os rebentamentos de obuses ocorreram dentro zona de arame farpado. Compreenderam então que a regulação de tiro da artilharia do PAIGC era feita a partir de informações prestadas pelo miliciano [ milícia ] Bari, que tinha desertado para o inimigo. Era a primeira vez que o inimigo acertava no quartel.
Na manhã seguinte, os militares portugueses contaram 85 rebentamentos no interior do quartel. Coutinho Lima parte nessa manhã com um grupo de combate para Gadamael e daí para Cacine, para assegurar o transporte dos feridos e do morto, mas também na esperança de "encontrar alguém" do Comando-Chefe a quem pudesse expor a situação. Ao mesmo tempo, o drama adensava-se em Guileje: o inimigo passou todo o dia 19 a bombardear o quartel.
Coutinho Lima só consegue falar com a Repartição Operacional na madrugada de 20 e pede que Bissau envie para Guileje uma companhia de tropa especial (comandos ou pára-quedistas), viaturas e estivadores para assegurar o reabastecimento. Volta a pedir autorização para se deslocar a Bissau, o que acontece no dia 21. Aí, expõe a situação a Spínola e pede, de novo, reforços. O comandante-chefe dá-lhe uma resposta negativa quanto ao reforço de uma companhia de tropas especiais, retira-lhe o comando e entrega-o ao coronel Rafael Durão.
Coutinho e Lima é mandado de regresso a Guileje na qualidade de 2º comandante do COP5. Chega a Guileje ao fim da tarde do dia 21 e o quadro com que se depara é devastador: um furriel morto, depósitos alimentares destruídos, celeiros de arroz a arder, população refugiada dentro do quartel, falta de água e medicamentos, antenas de transmissões de rádio destruídas, poucas munições, abrigos e valas de defesa atingidos, centenas de rebentamentos dentro do quartel.
Minhas declarações em 24 de Agosto de 1973
"A estadia nos abrigos era praticamente insuportável, pois neles se encontravam, além das NT, toda a população (homens, mulheres e crianças, cerca de 500 pessoas). Houve vários desmaios, onde o calor era imenso e o cheiro nauseabundo. Após as saídas do fogo IN [Inimigo], os rebentamentos demoravam cerca de 3 segundos só dando tempo ao pessoal para se deitar. De algumas vezes não se ouviram as saídas e houve vários rebentamentos no ar, que não eram de RPG; muitas granadas eram também perfurantes, devendo ter sido uma destas que provocou a morte do furriel, bem como outra que abriu uma brecha, de lado, num dos abrigos, ficando a armação de ferro à mostra. Todo o pessoal estava arrasadíssimo, não só física como psiquicamente, pois há cerca de 72 horas que o quartel estava a ser continuamente flagelado. Com a deserção do miliciano [ milícia ] Aliu Bari, a população estava alarmadíssima porque até aí o Inimigo não sabia onde eram os campos de arroz do pessoal de Guileje, não conhecia o trilho da população entre Gadamael e Guileje, nem tão-pouco sabia onde era o poço da água onde se fazia o reabastecimento, mas agora passava a ter conhecimento, através do referido desertor, de tudo isto."
O medo estava instalado nos abrigos de Guileje. Mas também a fome, a sede, a doença. O inimigo estava a menos de 500 metros do quartel a acertar o fogo com homens empoleirados nas árvores. A descrença era total e já ninguém esperava reforços de lado nenhum. Batiam as 21 horas do dia 21 de Maio quando Coutinho e Lima mandou reunir todos os oficiais e, depois de analisada a situação, decidiu retirar de madrugada para Gadamael pelo trilho da população. De imediato elaborou uma mensagem em que pedia autorização para retirar. Foram improvisadas umas antenas, mas a mensagem nunca chegou a seguir, apesar das tentativas que duraram toda a noite. A última que seguira fora no dia 21, às 14h15, a dizer "Estamos cercados por todos os lados."
Três décadas depois, Coutinho e Lima pergunta-se a si próprio que outra coisa poderia fazer: "Tinha-se perdido muito tempo. Mesmo que tivéssemos conseguido comunicar para Bissau naquele dia e tivessem decidido enviar reforços, as tropas não chegariam antes de três ou quatro dias, espaço de tempo que nunca conseguiríamos aguentar naquelas condições. Antes disso, o inimigo completaria o cerco poderosíssimo que estava a fazer com a consequente captura ou aniquilamento de toda a guarnição militar e população."
Ou ficava e a sua companhia era chacinada e o que restasse dela apanhado à mão pelo PAIGC ou, pelo contrário, recuava para Gadamael de imediato, jogando no efeito surpresa.Tomada a decisão de partir, foi elaborado um plano de destruições e inutilizações de material que não pudesse ser utilizado pelo PAIGC: minas Claymore, material de criptografia, incluindo as máquinas, arquivos, equipamento de transmissões, obuses, viaturas e armamento pesado. "Não fui pressionado por ninguém para retirar e parti do princípio que a minha vida militar acabava ali", diz Coutinho e Lima.
Minhas declarações em 24 de Agosto de 1973
"Entre todos os factores que me levaram a decidir pela retirada, avulta a missão de defesa da população, cerca de 500 pessoas (...) [que] aceitou de bom grado a ordem para se preparar para seguir para Gadamael, não tendo havido nenhuma manifestação de pesar - 'choro' -, quer quando foi iniciada a retirada, quer na chegada a Gadamael."
Deviam ser umas quatro da tarde quando a coluna entrou na parada do quartel de Gadamael-Porto. Coutinho e Lima é preso e enviado para Bissau, para a fortaleza de Amura, comando militar da Guiné. Não iria esperar muito até sentir a ira de Spínola, que o transfere para o depósito de adidos no aquartelamento de Bra com ordens inabaláveis: encerramento num quarto em regime de incomunicabilidade total e o vencimento reduzido a metade. Ali fica um mês e só uma consulta de psiquiatria altera as condições da sua prisão: passa a receber visitas, tem licença para se entreter na horta da guarnição e ler jornais.
Todos os requerimentos que fez para poder dar explicações e aulas de Educação Física foram indeferidos pelo punho do próprio Spínola. Nessa fase, lia, fazia paciências com cartas, escrevia. Começou a perceber então que a sua situação gerava entre os militares um grande movimento de solidariedade. Não tinha dinheiro para contratar um advogado e houve uma quotização entre os oficiais, que asseguraram os 50 contos necessários para pagar a sua defesa ao advogado Manuel João da Palma Carlos. como é assegurado o subestabelecimento da causa num conjunto de mais quatro advogados, todos eles oficiais milicianos a prestar serviço na Guiné: Barros Moura, Correia Pinto, Sacadura Bote e Maia Costa. Estes oficiais chegaram a ser ameaçados por Spínola com o envio para a frente de combate por se terem disponibilizado a defender o "presumido delinquente".
Depois de libertado em Maio de 1974 é colocado na Academia Militar, no gabinete de estudos, e recebeu a metade do vencimento que lhe tinha sido retirado. Nunca chegou a ser julgado, mas não requereu qualquer reparação por danos morais, já que era sua profunda convicção a inutilidade da acção enquanto Spínola liderasse a JSN [Junta de Salvação Nacional].
"Acho que nunca fui prejudicado na progressão militar, mas na parte final, quando tinha de fazer um ano de comando para a promoção - devia comandar uma unidade de artilharia -, fiquei com a sensação de que andaram a passar a bola de um lado para outro", diz hoje, passados 30 anos.
Minhas declarações em 24 de Agosto de 1973
"Relativamente à acusação de não ter cumprido a missão que me foi atribuída, solicito informação sobre qual parte da missão deixou de ser cumprida. Se se pretende referir à alínea 'garante a defesa eficiente dos aglomerados populacionais e o socorro em tempo oportuno dos reordenamentos da sua zona', declaro que defendi o estacionamento de Guileje até à altura da retirada, por considerar a posição absolutamente insustentável."
O tempo foi passando na vida de Alexandre Coutinho e Lima e as más memórias desvanecendo-se. Mas o mistério da recusa de conceder um reforço militar a Guileje permanece. "Nunca mais falei com Spínola sobre isso!" De há 31 anos para cá só ficou o silêncio.
Recordo-me de me terem perguntado num dos interrogatórios se tinha pensado nas consequências do meu acto para a Pátria. Limitei-me a responder que a minha preocupação era mais com a vida dos meus homens e da população do que com os altos valores da Pátria.
____
(1) Vd. também post de 2 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - XCI: Antologia (6): A batalha de Guileje e Gadamael Transcrição do artigo de Serafim Lobato - "Estamos Cercados por Todos Os Lados" -, publicado na Pública, suplemento dominical do Público (28 de Dezembro de 2003).
Subscrever:
Mensagens (Atom)