Guiné > Guileje > 1967 > Foto aérea do aquartelamento e tabanca.
© José Neto (2005) (1)
O Zé Neto é o patriarca da nossa tertúlia. Pela sua idade e pela sua experiência como homem e como militar (que andou por Macau, Cabinda, Guiné, outra vez Angola...) merece o nosso respeito e, mais do que isso, um tratamento carinhoso.
Há dias escreveu-me um e-mail muito bonito mas que eu interpreto como sendo também uma homenagem aos demais amigos e camaradas desta tertúlia. É um homem, de resto, com um forte sentido de lealdade mas também de bom senso, que o impede, por exemplo, de identificar camaradas que ainda hoje estão vivos e cujo comportamento, em 1967/68, deixava muito a desejar... Diz ele: "Eu sei que, a partir do momento em que me dispus a fazer parte da nossa tertúlia, é meu dever partilhar com todos as minhas recordações da Guiné. Sei também que alguns dos meus estimados Furriéis, Cabos e Soldados que têm Internet visitam regularmente o blogue (fui eu que os induzi a tal)(...)". Há, porém, "comparsas da história" que limitam a divulgação, de um ou outro ponto, do texto do Zé Neto...
Vamos ter em linha de conta esta louvável preocupação do Zé Neto em não transformnar este blogue num tribunal de opinião pública sobre a guerra colonial (que, de facto, não é nem pretende ser):
Meu caro Luis:
Depois de muito meditar cheguei à conclusão de que, pelo menos tu, mereces a minha confiança para partillhar contigo uma parte "muito significativa" das memórias da minha vida militar. São trinta e três páginas retiradas (e ampliadas) das 265 que fui escrevendo ao correr da pena para responder a milhentas perguntas que o meu neto Afonso, um jovem de 17 anos, que pensava que o avô materno andou em África só "a matar pretos" enquanto que o paterno, médico branco de Angola, matava leões sentado numa esplanada de Nova Lisboa (Huambo). Coisas de família...
Já cedi este modesto trabalho à AD do Pepito e conto não o fazer mais, por enquanto. É, como já te disse, uma perspectiva um tanto diferente dos relatos do blogue, mas é assim que sei contar as minhas angústias e sucessos.
Diz qualquer coisa. Até breve.
Um abraço do "patriarca" Zé Neto
O capitão, reformado, José Neto. Há dias tinha-lhe pedido duas 'chapas', uma dos gloriosos tempos de Guiné e outra mais recente, mais condizente com o dolce far niente do repouso do guerreiro.... Eis a resposta dele, sempre bem-humorada:
"Falaste em eu 'não ficar mal na fotografia' e lembrei-me que ainda minguém, no blogue, conhece a minha cara. Do tempo da Guiné não tenho, por enquanto, porque, como já disse, estão todas em Leiria para digitalizar. Das recentes tenho para aqui umas, mais engravatado, menos retocado, mas escolhi esta que é mais 'retrato' do que 'foto', que a minha neta Leonor captou e usa no ecrã do 'télélé'. Guarda aí até virem as outras". Não há dúvida que o Zé Neto, com estes netos (a Leonor, o Afonso...), é um avô babado e sortudo... E nós também ficámos a ganhar: temos o privilégio de sermos, depois do Afonso e do Pepito, os primeiros leitores das suas memórias de Guileje... A propósito: escrevo Guileje, e não Guilege, como o Zé (ou Guiledje, como o Pepito), de acordo com a grafia usada pelos Serviços Cartográficos do Exército... Não me levem a mal, nem um nem outro. L.G.
Extracto das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613, o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado).
I Parte - Anotações prévias
Nas páginas que deixo para trás, respeitantes à Guiné, descrevo a maneira atribulada, para não dizer trapalhona, como o meu Batalhão, e por arrasto a minha Companhia, CART 1613, foi parar àquela Província Ultramarina e os remendos que se seguiram.
Resumindo:
O Batalhão de Artilharia nº 1896 (BART 1896) foi formado no RAP 2, Vila Nova de Gaia, com destino a Angola.
Depois da instrução dos recrutas foi confirmado esse destino, em 29 de Julho de 1966, e, como havia de se fazer a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO) em Viana do Castelo, tal não foi possível porque tinha sido adiado o embarque ao batalhão que ocupava as instalações militares daquela cidade minhota.
Ao mesmo tempo o RAP 2 deu início à formação de mais um batalhão, pelo que o pessoal da Unidade foi distribuído por quartéis velhos, alguns já desactivados, na área do grande Porto.
A minha Companhia foi aquartelar nas antigas e quase desmanteladas instalações do GACA 3, em Espinho.
No fim de Agosto solucionou-se o “engarrafamento de batalhões” e seguimos para Viana do Castelo.
Já a IAO ia a meio quando, em 24 de Setembro de 1966, foi alterado o destino do Batalhão para Moçambique.
Depois de introduzidas algumas alterações no planeamento da IAO (derivado à diferença da morfologia do terreno…?) continuou a referida instrução. Estava a IAO terminada e o Batalhão pronto para seguir quando, em 6 de Outubro de 1966, chegou a ordem para demandarmos a Guiné.
Iniciou-se nova IAO, com temas mais virados para terrenos alagadiços, mas, em fim de Verão as nossas "bolanhas" estavam secas. Fez-se o que foi possível… Embarcámos em Lisboa no dia 12 de Novembro e desembarcamos em Bissau em 18 do mesmo mês.
Como batalhão de reforço seguiu em "ordem de marcha" o que significa que, desde a esferográfica, passando pelos lençóis, até à mais pesada viatura auto, tudo foi connosco.
Aquartelamos no campo militar de Brá e… a trapalhada continuou. As três companhias operacionais (CART 1612, 1613 e 1614) foram desligadas do comando do Batalhão e as primeira e terceira seguiram para reforço doutros batalhões enquanto que a segunda (CART 1613) foi destinada a Unidade de Intervenção à ordem do Comando-chefe, continuando aquartelada em Brá.
Mais treino operacional para a 1613, desta vez na área de Tite, mais propriamente em São João e treino de saltos de helicóptero para um grupo de combate de voluntários de entre o efectivo da companhia.
De Janeiro a Maio de 1967 a CART 1613 andou de colchão pneumático às costas e tendo por caserna a copa das árvores, a “biscatar” pelo território da Província, com maior incidência nas zonas de Pelundo e Jolmete.
Com a atribuição da responsabilidade do Sector S 2, com sede em Buba, ao BART 1896, este reagrupou-se e a CART 1613 foi instalar-se nas povoações de Colibuia e Cumbijã, onde nunca tinha estado qualquer unidade militar.
Por ali andou em trabalhos de construção de cobertos e abrigos para a imensa tralha de materiais que levara da Metrópole.
Menos de dois meses depois, em 17 de Junho de 1967, um Gr Comb deslocou-se para o futuro destino de quadrícula, ou seja, área de ocupação definida, e duas semanas depois seguiu-se a transferência para Guileje.
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Notas de L.G.
(1) Sobre a história desta foto, vd post de 5 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXXIX: José Neto, outro senhor de Guileje (CART 1613, 1967/68)
(2) Região de Quínara, no sul
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 10 de janeiro de 2006
Guiné 63/74 - P416: Um bigrupo, quantos homens eram? (Marques Lopes)
Guiné > Região de Quínara > Buba > 1968
Tropas do PAIGC atacam o aquartelamento de Buba, na "Frente Sul", em Fevereiro de 1968. À direita, Lando Mane, comandante do grupo-B 30.
Foto: World in Action, Granada TV. Fonte: DAVIDSON, Basil. The liberation of Guiné: aspects of an African revolution. (With a foreword by Amilcar Cabral). Harmondsworth, G.B.: Penguin Books, (Penguin African Library; 27), 1969 (Imagem gentilmente cedida à tertúlia por Jorge Santos, 2005)
1. Há dias, na tertúlia, houve uma saudável e amigável discussão sobre o tamanho de um bigrupo. O Zé Neto comentava, com muito interesse, o diário do Zé Teixeira (1): "Hoje deu-me para revisor. São manias!!! Tenho acompanhado com interesse especial o Diário do José Teixeira por uma simples razão: Eu estava em Buba, com a CART 1613 (Os lenços verdes) quando a companhia dele lá desembarcou"....Mas mais adiante faz um reparo: "Só que ele [José Teixeira] não era obrigado a conhecer a orgânica do IN e escreve (...) que foram emboscados 'por dois bigrupos'. Dois bigrupos eram quatrocentos homens. É muita fruta, não achas?"...
No meu tempo e na zona leste, um bigrupo não ultrapassava os 50/60 homens. Foi isso que transmiti ao Zé Neto. Mas antes disso consultei o meu especialista militar, o nosso coronel (DFA), reformado, A. Marque Lopes... A resposta que ele me deu e que levou o Zé Neto a reconhecer o seu lapso (motivado por pura distracção), merece ser inserida no blogue e conhecida por todos. O nosso blogue também prima pela cultura do rigor... Aqui vai. L.G.
2. Texto do A. Marques Lopes (que foi alferes milicano da CART 1690, em Geba; e da CCAÇ 3, em Barro, entre 1967/68; desmobilizado como tenente miliciano, acabou por fazer a carreira militar, tendo-se reformado com o posto de coronel, DFA):
Não sou propriamente um especialista, é apenas uma reflexão ditada pela experiência vivida. Nem pensar em 400 o número de combatentes de dois bigrupos. Os efectivos variavam entre 50/60. Dois bigrupos iam aos 100, mais ou menos. Podendo variar conforme o número de elementos recrutados em cada sector. São esses os números que aparecem nos relatórios de operações.
O bigrupo era aquilo que podemos chamar a companhia no exército do PAIGC, quando decidiu dar um passo na organização da guerrilha em termos formais, com estrutura de comando, com armamento distribuído uniformemente por cada unidade (o bigrupo), onde cada um tinha a sua função: havia os apontadores de RPG, os de metralhadora pesada, os de morteiro, os atiradores de kalash... quando avançaram para a organização de operações.
Guiné > "Frente Sul" > s/d >
O secretário-geral do PAIGC Amilcar Cabral, à direita, com Nino (Bernardo Vieira), à esquerda, "no comando da Frente Sul".
Foto: PAIGC. Fonte: DAVIDSON, Basil. The liberation of Guiné: aspects of an African revolution. (With a foreword by Amilcar Cabral). Harmondsworth, G.B.: Penguin Books, (Penguin African Library; 27), 1969 (Imagem gentilmente cedida à tertúlia por Jorge Santos, 2005).
A necessidade de dispersão da guerrilha, para ocupação de território e também para fazer face à dispersão das NT por quartéis e destacamentos, com a consequente táctica de ataques dispersos, rápidos e variados, não se coadunava com a existência de unidades daquelas dimensões.
Penso que nem em Guidage os usaram: aí tiveram a vantagem dos apoios e abastecimentos vindos directamente da fronteira com o Senegal. Além de que, se as tivessem, não acredito que, por exemplo, os ataques feitos aos destacamentos da CART 1690 não tivessem tido o mesmo sucesso que aquele de Cantacunda...
Também não me parece, nem conheço exemplo nenhum, que as bases do PAIGC tivessem tão grande número de combatentes. Se assim fosse, não teria sido possível que duas companhias nossas e um grupo de combate (o meu) conseguissem destruir a base de Samba Culo (2)... O PAIGC não tinha, aliás, efectivos em número suficiente para constituir unidades dessa dimensão. Como sucedeu noutros casos também. O caso de Sinchã Jobel (3) foi especial, devido à sua localização geográfica privilegiada, onde nem os comandos conseguiram entrar. Daquela dimensão, ou maiores, só na guerra do Vietnam, mas aí eram unidades formadas na base de toda a população de um país, o Vietnam do Norte. Não era a mesma situação na Guiné (...).
_________
Notas de L.G.
(1) Vd post de 1 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXI: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (2): Buba/Aldeia Formosa, Julho de 1968
(2) Vd. post de A. Marques Lopes > 8d e Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLIX: Samba Culo II
(3) Vd. posts de A. Marques Lopes:
30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXV: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)
5 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLV: Sinchã Jobel VII
Tropas do PAIGC atacam o aquartelamento de Buba, na "Frente Sul", em Fevereiro de 1968. À direita, Lando Mane, comandante do grupo-B 30.
Foto: World in Action, Granada TV. Fonte: DAVIDSON, Basil. The liberation of Guiné: aspects of an African revolution. (With a foreword by Amilcar Cabral). Harmondsworth, G.B.: Penguin Books, (Penguin African Library; 27), 1969 (Imagem gentilmente cedida à tertúlia por Jorge Santos, 2005)
1. Há dias, na tertúlia, houve uma saudável e amigável discussão sobre o tamanho de um bigrupo. O Zé Neto comentava, com muito interesse, o diário do Zé Teixeira (1): "Hoje deu-me para revisor. São manias!!! Tenho acompanhado com interesse especial o Diário do José Teixeira por uma simples razão: Eu estava em Buba, com a CART 1613 (Os lenços verdes) quando a companhia dele lá desembarcou"....Mas mais adiante faz um reparo: "Só que ele [José Teixeira] não era obrigado a conhecer a orgânica do IN e escreve (...) que foram emboscados 'por dois bigrupos'. Dois bigrupos eram quatrocentos homens. É muita fruta, não achas?"...
No meu tempo e na zona leste, um bigrupo não ultrapassava os 50/60 homens. Foi isso que transmiti ao Zé Neto. Mas antes disso consultei o meu especialista militar, o nosso coronel (DFA), reformado, A. Marque Lopes... A resposta que ele me deu e que levou o Zé Neto a reconhecer o seu lapso (motivado por pura distracção), merece ser inserida no blogue e conhecida por todos. O nosso blogue também prima pela cultura do rigor... Aqui vai. L.G.
2. Texto do A. Marques Lopes (que foi alferes milicano da CART 1690, em Geba; e da CCAÇ 3, em Barro, entre 1967/68; desmobilizado como tenente miliciano, acabou por fazer a carreira militar, tendo-se reformado com o posto de coronel, DFA):
Não sou propriamente um especialista, é apenas uma reflexão ditada pela experiência vivida. Nem pensar em 400 o número de combatentes de dois bigrupos. Os efectivos variavam entre 50/60. Dois bigrupos iam aos 100, mais ou menos. Podendo variar conforme o número de elementos recrutados em cada sector. São esses os números que aparecem nos relatórios de operações.
O bigrupo era aquilo que podemos chamar a companhia no exército do PAIGC, quando decidiu dar um passo na organização da guerrilha em termos formais, com estrutura de comando, com armamento distribuído uniformemente por cada unidade (o bigrupo), onde cada um tinha a sua função: havia os apontadores de RPG, os de metralhadora pesada, os de morteiro, os atiradores de kalash... quando avançaram para a organização de operações.
Guiné > "Frente Sul" > s/d >
O secretário-geral do PAIGC Amilcar Cabral, à direita, com Nino (Bernardo Vieira), à esquerda, "no comando da Frente Sul".
Foto: PAIGC. Fonte: DAVIDSON, Basil. The liberation of Guiné: aspects of an African revolution. (With a foreword by Amilcar Cabral). Harmondsworth, G.B.: Penguin Books, (Penguin African Library; 27), 1969 (Imagem gentilmente cedida à tertúlia por Jorge Santos, 2005).
A necessidade de dispersão da guerrilha, para ocupação de território e também para fazer face à dispersão das NT por quartéis e destacamentos, com a consequente táctica de ataques dispersos, rápidos e variados, não se coadunava com a existência de unidades daquelas dimensões.
Penso que nem em Guidage os usaram: aí tiveram a vantagem dos apoios e abastecimentos vindos directamente da fronteira com o Senegal. Além de que, se as tivessem, não acredito que, por exemplo, os ataques feitos aos destacamentos da CART 1690 não tivessem tido o mesmo sucesso que aquele de Cantacunda...
Também não me parece, nem conheço exemplo nenhum, que as bases do PAIGC tivessem tão grande número de combatentes. Se assim fosse, não teria sido possível que duas companhias nossas e um grupo de combate (o meu) conseguissem destruir a base de Samba Culo (2)... O PAIGC não tinha, aliás, efectivos em número suficiente para constituir unidades dessa dimensão. Como sucedeu noutros casos também. O caso de Sinchã Jobel (3) foi especial, devido à sua localização geográfica privilegiada, onde nem os comandos conseguiram entrar. Daquela dimensão, ou maiores, só na guerra do Vietnam, mas aí eram unidades formadas na base de toda a população de um país, o Vietnam do Norte. Não era a mesma situação na Guiné (...).
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Notas de L.G.
(1) Vd post de 1 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXI: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (2): Buba/Aldeia Formosa, Julho de 1968
(2) Vd. post de A. Marques Lopes > 8d e Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLIX: Samba Culo II
(3) Vd. posts de A. Marques Lopes:
30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXV: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)
5 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLV: Sinchã Jobel VII
segunda-feira, 9 de janeiro de 2006
Guine 63/74 - P415: O que os outros (blogues) dizem de nós (1): Caminhos por onde andei (Manuela Gonçalves)
Guiné > "Frente Sul" > Fevereiro de 1968 > Carmen Pereira, comissária política do PAIGC
(Foto: John Sheppard, Granada TV. Fonte: DAVIDSON, Basil. The liberation of Guiné: aspects of an African revolution. (With a foreword by Amilcar Cabral). Harmondsworth, G.B.: Penguin Books, (Penguin African Library; 27), 1969 (Imagem gentilmente cedida à tertúlia por Jorge Santos, 2005)
1. Manuela Gonçalves (Nela) mandou-nos a seguinte mensagem, que nos honra e que eu agradeço vivamente em nome dos amigos e camaradas de tertúlia. Reproduzo, com a devida vénia e para conhecimento de todos, o que ela escreveu sobre nós e a sobre a sua Guiné revisitada, no seu próprio blogue.
Devo sublinhar quão importante é o seu ponto de vista, já que nos faltam testemunhos (escritos) das nossas companheiras, que viveram a guerra de África através das fotos e dos aerogramas que mandávamos pelo SPM, tendo elas aprendido a ler nas entrelinhas. Aliás, faltam-nos também os testemunhos das corajosas mulheres que, do outro lado, nos combateram... como foi o caso, por exemplo, de Carmen Pereira (n. 1937), cuja foto publicamos, como um pequeno gesto de homenagem à única mulher que, na sua qualidade de comissária política da Frente Sul, pertencia ao Comité Executivo da Luta.
Cópia da mensagem:
Não posso deixar de enviar os meus parabéns pela excelente ideia deste blog! Também nós temos muitas recordações de Bissau! Vou recordar alguns desses momentos no meu blog. Continuem o vosso blog!
Blog: Caminhos por onde andeiPost: Guiné- Bissau (1)
Manuel Gonçalves (Nela)
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Sábado, Janeiro 7, 2006
Guiné- Bissau (1)
Esta noite, ao navegar pelos blogs que visito habitualmente, fui parar , através de hiperligações de posts, ao Blogue Fora-Nada, que reúne documentos e memórias de ex-combatentes da Guiné-Bissau!
Não fui combatente na Guiné, mas esses caminhos foram percorridos por mim de modo e tempo diferentes... Tornaram-se mesmo decisivos na minha vida de jovem estudante universitária rebelde , namorada de um alferes miliciano que para ali fora enviado para a guerra , mais tarde meu companheiro de vida (já lá vão 35 anos) e de mulher e mãe, que considerou importante ir para Bissau, como cooperante!
A Guiné dos aerogramas despertara um desejo imenso de conhecer a Guiné das bolanhas, das tabancas, dos mosquitos, dos rios e pântanos e das gentes que ali viviam, dos felupes, dos mandingas, dos papéis, de Amílcar Cabral, dos guerrilheiros do PAIGC...
Nunca tinha aceite a Guerra Colonial, mas uma vez que ela tinha entrado nas nossas vidas abruptamente e deixado incapacidades físicas ao maridão, senti uma vontade imensa de viajar para aquele pequeno país e conhecê-lo bem!
Era como que uma necessidade intrínseca de compreender bem uma etapa importante da vida vivida pelo companheiro de route!
Bissau, Bafatá, Mansoa, São Domingos, Ingoré eram locais que precisávamos (re)visitar.
E fomos lá! Também os nossos filhos nos acompanharam , crianças ainda, viram e pisaram as picadas que, anos antes, o pai cruzara, sempre alerta! Agora podíamos circular livremente, apesar do mau estado das estradas, mas em paz e liberdade!
Gostei da Guiné-Bissau! Voltar lá foi um modo de "exorcizar" fantasmas de guerra que habitavam a nossa casa!
Hei-de voltar ao tema!
Manuela Gonçalves
Blog > Caminhos por onde andei
Hei-de voltar ao tema!
Manuela Gonçalves
Blog > Caminhos por onde andei
Guiné 63/74 - P414: As mesmas andanças (A. Marques Lopes)
Guiné > Zona Leste > Subsector de Geba > CART 1690 > Destacamento de Cantacunda > 1968 > Caminho para Cantacunda. A sede da Companhia, em Geba, ficava a 50 Km.
© A. Marques Lopes (2005)
1. Há um bocado telefonou-me o Jorge Cabral, o único de nós que não levou a guerra a sério e que se divertiu (à grande e à fula...) com a sua (co)missão... como comandante do famoso Pelotão de Caçadores Nativos nº 63... Já temos um almoço mais ou menos marcado para inícios de Fevereiro próximo. Dizia-me ele que se sente honrado por pertencer à nossa tertúlia; em contrapartida, acha que somos todos muitos sérios, que temos uma postura dramática, que ainda fizemos o luto da Guiné e que ele, pelo seu lado, gostaria de contar mais umas estórias divertidas, só que algumas são impublicáveis... Desafiei-o a pô-las em letra de forma, pelo que à volta cá o espero... Entertanto acabo de receber uma prosa, bem-humorada, do nosso coronel A. Marques Lopes que, espero, apreciem e tomem como exemplo e referência... Saibamos também recordar e reconstituir as peripécias, mais ou menos divertidas, por que passámos... Nem tudo foi sangue, suor e lágrimas... Ou foi ?
2. Texto do A. Marques Lopes:
Amigo Marques do Santos, caro camarada das mesmas andanças:
Fico contente por ter encontrado alguém que, como eu, também participou num dos maravilhosos cruzeiros daquele magnífico paquete de luxo que era o Ana Mafalda. Hás-de lembrar-te - eu nunca me hei-de esquecer! - daquela calma e serena saída da barra do Tejo (não sei se tu encontraste o Gregório, eu não, apesar de me fartar de chamar por ele durante a viagem), dos dias de gozo no imenso oceano Atlântico, antes de chegar à entrada do Geba. Comida farta, instalações maravilhosas, gente feliz, momentos inesquecíveis!
E também passaste, como eu, umas ricas férias naquela estância de Cantacunda. Quando eu lá estive as instalações não eram grande coisa, e parece que tu também tens algumas queixas a apresentar, mas, olha, não havia livro de reclamações (só agora o governo do Sócrates é que pensou nisso, mas nem o Salazar nem o Marcelo tinham pensado...).
Desculpa este sarcasmo logo de entrada. Mas o facto de (r)estarmos vivos depois daqueles tormentos passados é que nos dá a capacidade de conseguirmos relevar alguns aspectos irónicos que também tiveram (muitos dos nossos camaradas infelizmente não o podem fazer, porque morreram). São maravilhosos, por exemplo, os relatos do Cabral no nosso blogue.
Quanto ao Ana Mafalda, tu sabes do martírio daquela estadia, e eu também já contei.
Falando a sério de Cantacunda: Depois do ataque IN a este destacamento (na noite fatídica de 10/11 de Abril de 1968), o qual ficou quase totalmente destruído, teve de se proceder a construção do mesmo, com a ajuda do Pelotão de Sapadores da CCS/BCAV 1905:
- Reparação das fiadas de arame farpado;
- Início da construção da pista para DO ficando quase concluída, quando a CART 1690 de lá saíu;
- Reparação de abrigos;
- Construção de 3 abrigos-caserna;
- Construção de abrigo para metralhadora Breda;
- Construção de abrigo para morteiro;
- Reparação do celeiro e cozinha;
- Colocação de duas fiadas de arame farpado;
- Desmatação de uma densa zona arborizada com árvores de grande porte;
- Limpeza e capinagem do aquartelamento;
(Fonte: "História da Unidade - CART 1690")
Mas, como constataste, não terá sido suficiente. Mas penso que terão valido alguma coisa estas obras, dado que, em 26 de Outubro de 1971, já com outra companhia, portanto (ainda não descobri qual era), o destacamento foi atacado, tendo o IN ultrapassado a primeira linha de arame farpado, mas não conseguindo ir mais além; o destacamento aguentou-se e uma coluna que foi em seu auxílio, no dia seguinte, foi emboscada na estrada para Cantacunda (a tal da fotografia já colocada no blogue) e teve 7 mortos e 12 feridos.
"Delila", do Tom Jones, "Puppet on a string", da Sandy Shaw, e "O vento mudou", do Eduardo Nascimento, mas com outra letra (O vento mudou e ela não voltou, e ela partiu, puta qua pariu, nunca mais ninguém a viu...)... também cantámos disso com o giradisco roufenho, ligado ao frigorífico a petróleo! Mais que surrealista, acompanhadas do emborcamento das latas mandadas pelos americanos, de cerveja com cocacola, rum com cocacola, gin com cocacola... Tudo isto dava um filme (também nesta área, não temos aproveitado a fabulosa matéria-prima, burlesca, trágico-cómica, que temos).
Um abraço amigo e até sempre.
A. Marques Lopes
© A. Marques Lopes (2005)
1. Há um bocado telefonou-me o Jorge Cabral, o único de nós que não levou a guerra a sério e que se divertiu (à grande e à fula...) com a sua (co)missão... como comandante do famoso Pelotão de Caçadores Nativos nº 63... Já temos um almoço mais ou menos marcado para inícios de Fevereiro próximo. Dizia-me ele que se sente honrado por pertencer à nossa tertúlia; em contrapartida, acha que somos todos muitos sérios, que temos uma postura dramática, que ainda fizemos o luto da Guiné e que ele, pelo seu lado, gostaria de contar mais umas estórias divertidas, só que algumas são impublicáveis... Desafiei-o a pô-las em letra de forma, pelo que à volta cá o espero... Entertanto acabo de receber uma prosa, bem-humorada, do nosso coronel A. Marques Lopes que, espero, apreciem e tomem como exemplo e referência... Saibamos também recordar e reconstituir as peripécias, mais ou menos divertidas, por que passámos... Nem tudo foi sangue, suor e lágrimas... Ou foi ?
2. Texto do A. Marques Lopes:
Amigo Marques do Santos, caro camarada das mesmas andanças:
Fico contente por ter encontrado alguém que, como eu, também participou num dos maravilhosos cruzeiros daquele magnífico paquete de luxo que era o Ana Mafalda. Hás-de lembrar-te - eu nunca me hei-de esquecer! - daquela calma e serena saída da barra do Tejo (não sei se tu encontraste o Gregório, eu não, apesar de me fartar de chamar por ele durante a viagem), dos dias de gozo no imenso oceano Atlântico, antes de chegar à entrada do Geba. Comida farta, instalações maravilhosas, gente feliz, momentos inesquecíveis!
E também passaste, como eu, umas ricas férias naquela estância de Cantacunda. Quando eu lá estive as instalações não eram grande coisa, e parece que tu também tens algumas queixas a apresentar, mas, olha, não havia livro de reclamações (só agora o governo do Sócrates é que pensou nisso, mas nem o Salazar nem o Marcelo tinham pensado...).
Desculpa este sarcasmo logo de entrada. Mas o facto de (r)estarmos vivos depois daqueles tormentos passados é que nos dá a capacidade de conseguirmos relevar alguns aspectos irónicos que também tiveram (muitos dos nossos camaradas infelizmente não o podem fazer, porque morreram). São maravilhosos, por exemplo, os relatos do Cabral no nosso blogue.
Quanto ao Ana Mafalda, tu sabes do martírio daquela estadia, e eu também já contei.
Falando a sério de Cantacunda: Depois do ataque IN a este destacamento (na noite fatídica de 10/11 de Abril de 1968), o qual ficou quase totalmente destruído, teve de se proceder a construção do mesmo, com a ajuda do Pelotão de Sapadores da CCS/BCAV 1905:
- Reparação das fiadas de arame farpado;
- Início da construção da pista para DO ficando quase concluída, quando a CART 1690 de lá saíu;
- Reparação de abrigos;
- Construção de 3 abrigos-caserna;
- Construção de abrigo para metralhadora Breda;
- Construção de abrigo para morteiro;
- Reparação do celeiro e cozinha;
- Colocação de duas fiadas de arame farpado;
- Desmatação de uma densa zona arborizada com árvores de grande porte;
- Limpeza e capinagem do aquartelamento;
(Fonte: "História da Unidade - CART 1690")
Mas, como constataste, não terá sido suficiente. Mas penso que terão valido alguma coisa estas obras, dado que, em 26 de Outubro de 1971, já com outra companhia, portanto (ainda não descobri qual era), o destacamento foi atacado, tendo o IN ultrapassado a primeira linha de arame farpado, mas não conseguindo ir mais além; o destacamento aguentou-se e uma coluna que foi em seu auxílio, no dia seguinte, foi emboscada na estrada para Cantacunda (a tal da fotografia já colocada no blogue) e teve 7 mortos e 12 feridos.
"Delila", do Tom Jones, "Puppet on a string", da Sandy Shaw, e "O vento mudou", do Eduardo Nascimento, mas com outra letra (O vento mudou e ela não voltou, e ela partiu, puta qua pariu, nunca mais ninguém a viu...)... também cantámos disso com o giradisco roufenho, ligado ao frigorífico a petróleo! Mais que surrealista, acompanhadas do emborcamento das latas mandadas pelos americanos, de cerveja com cocacola, rum com cocacola, gin com cocacola... Tudo isto dava um filme (também nesta área, não temos aproveitado a fabulosa matéria-prima, burlesca, trágico-cómica, que temos).
Um abraço amigo e até sempre.
A. Marques Lopes
domingo, 8 de janeiro de 2006
Guiné 63/74 - P413: Caminhos entrecruzados: Ana Mafalda, Cantacunda...
Guiné > N/M Ana Mafalda >
Foi neste "luxuoso paquete" que companhias como a CART 1690 (Geba, 1967/69), do A. Marques Lopes, ou a CART 2339 (Mansambo, 1968/69), do Carlos Marques dos Santos, partiram de Lisboa com destino à Guiné ...
Fonte: Navios Mercantes Portugueses (2000)
Texto do Carlos Marques dos Santos
Bravo, Marques Lopes:
Afinal os nossos percursos entrecruzaram-se. Tu antes, eu depois. À tua descrição poderia só acrescentar: Faço minhas as tuas palavras e, concerteza, vivências:
(i) Ana Mafalda e vómitos de 5 dias (1);
(ii) Cantacunda e fome de 15 dias, depois de terem levado alguns, não poucos, dos nossos (2);
Guiné > Zona Leste > Subsector de Geba > Cantacunda
1968 > As precárias condições em que se vivia no destacamento
© A. Marques Lopes (2005)
Carne de macaco era o que nos restava para comer se não nos tivessem rendido. O "meu" pelotão esteve lá.
Nos buracos, que eram os dormitórios, tinhamos que dormir com os "ponchos" para não apanharmos água da chuva. As botas, quando acordávmos, boiavam nesses abrigos. Fomos para lá, em coluna, ao som de Delila, a famosa canção do britânico Tom Jones, [muito popular na época]. Surreal!
Um abraço.
Marques dos Santos
Coimbra
_________
Notas de L.G.
(1) vd post do A. Marques Lopes, de 28 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVII: A caminho da Guiné, no "Ana Mafalda" (1967)
(2) Vd. posts de A.Marques Lopes, de 18d e Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXI: "O ataque e assalto do IN ao destacamento de Cantacunda (1968)"
Guiné > Zona Leste > Subsector de Geba > Cantacunda > Um balneário improvisado pelo pessoal da CART 1690, aqui destacado...
Na noite de 10 para 11 de Abril de 1968, o destacamento foi surpreendido por um ataque do PAIGG, seguido de assalto, de que resultaram 1 morto e 11 prisioneiros, levados mais tarde para Conacri...
© A. Marques Lopes (2005)
Foi neste "luxuoso paquete" que companhias como a CART 1690 (Geba, 1967/69), do A. Marques Lopes, ou a CART 2339 (Mansambo, 1968/69), do Carlos Marques dos Santos, partiram de Lisboa com destino à Guiné ...
Fonte: Navios Mercantes Portugueses (2000)
Texto do Carlos Marques dos Santos
Bravo, Marques Lopes:
Afinal os nossos percursos entrecruzaram-se. Tu antes, eu depois. À tua descrição poderia só acrescentar: Faço minhas as tuas palavras e, concerteza, vivências:
(i) Ana Mafalda e vómitos de 5 dias (1);
(ii) Cantacunda e fome de 15 dias, depois de terem levado alguns, não poucos, dos nossos (2);
Guiné > Zona Leste > Subsector de Geba > Cantacunda
1968 > As precárias condições em que se vivia no destacamento
© A. Marques Lopes (2005)
Carne de macaco era o que nos restava para comer se não nos tivessem rendido. O "meu" pelotão esteve lá.
Nos buracos, que eram os dormitórios, tinhamos que dormir com os "ponchos" para não apanharmos água da chuva. As botas, quando acordávmos, boiavam nesses abrigos. Fomos para lá, em coluna, ao som de Delila, a famosa canção do britânico Tom Jones, [muito popular na época]. Surreal!
Um abraço.
Marques dos Santos
Coimbra
_________
Notas de L.G.
(1) vd post do A. Marques Lopes, de 28 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVII: A caminho da Guiné, no "Ana Mafalda" (1967)
(2) Vd. posts de A.Marques Lopes, de 18d e Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXI: "O ataque e assalto do IN ao destacamento de Cantacunda (1968)"
Guiné > Zona Leste > Subsector de Geba > Cantacunda > Um balneário improvisado pelo pessoal da CART 1690, aqui destacado...
Na noite de 10 para 11 de Abril de 1968, o destacamento foi surpreendido por um ataque do PAIGG, seguido de assalto, de que resultaram 1 morto e 11 prisioneiros, levados mais tarde para Conacri...
© A. Marques Lopes (2005)
Guiné 63/74 - P412: Comentário de Afonso Sousa ao texto sobre a retirada de Madina do Boé
Caro José Martins:
Emociona este seu testemunho. Eu só faço uma pequena ideia do sofrimento de todos vocês, naquele momento trágico, nas horas e nos dias seguintes - em terras de solidão, em paragens dos confins da Guiné.
É por isso que lhe fiz algumas perguntas sobre a sua vivência deste momento tão triste, porque qualquer um se emociona ao recordá-lo e o espírito, quer queiramos ou não, é forçado a deixar-se invadir por esta ou aquela interrogação.
Aqueles homens, tão martirizados pelo fogo constante do opositor, meses e meses, quase ininterruptamente, quase isolados do resto da Guiné, estariam certamente a viver momentos de alívio e de alegria quando se encaminhavam para a margem esquerda do rio Corubal.
Num ápice, esses semblantes toldaram-se no fundo do rio. Que triste fim para quem, generosamente, tanto tinha dado já ao seu país. É como diz Iero Camará, antigo guerrilheiro e actual tenente-coronel do exército guineense : "Todos aqueles que combateram em Madina do Boé podem ser considerados heróis !"...
Também o coronel Aliú Camará, ex-comandante da unidade de artilharia que regularmente bombardeava o quartel do Boé, falando por si e pelos seus antigos camaradas, afirmou: "Nós rendemos homenagem aos ocupantes de Madina, porque era muito difícil viver naquelas circunstâncias. Sempre à espera dos bombardeamentos, em horas alternadas, às vezes à meia-noite, às vezes ao meio-dia, às vezes no período da tarde, tantas vezes que ninguém pode imaginar aquele sacrifício".
E estes bravos, à altura dos melhores da nossa história, ficaram ali para sempre, não mais voltaram à sua terra, nem ao menos para uma singela homenagem de despedida. Mas eles hão-de permanecer para sempre como exemplo de abnegação em favor da Pátria. Cabe-nos a nós fazer com que a História não os esqueça. O seu tão precioso testemunho escrito e outros (como o de José Pimenta) não o vão permitir.
O meu muito obrigado, José Martins. Tal como o amigo, eu estava lá por essa altura [1968], também sobre uma linha de fronteira, mas a Norte, em Guidage que, em 1973, também haveria de ser palco de momentos difíceis.
O meu obrigado mais uma vez. Haveremos de voltar ao contacto. Receba, caro José, um grande abraço.
Afonso Sousa
(ex-Furriel Miliciano de Transmissões da CART 2412,
Bigene, Binta, Guidage e Barro, 1968/70).
Emociona este seu testemunho. Eu só faço uma pequena ideia do sofrimento de todos vocês, naquele momento trágico, nas horas e nos dias seguintes - em terras de solidão, em paragens dos confins da Guiné.
É por isso que lhe fiz algumas perguntas sobre a sua vivência deste momento tão triste, porque qualquer um se emociona ao recordá-lo e o espírito, quer queiramos ou não, é forçado a deixar-se invadir por esta ou aquela interrogação.
Aqueles homens, tão martirizados pelo fogo constante do opositor, meses e meses, quase ininterruptamente, quase isolados do resto da Guiné, estariam certamente a viver momentos de alívio e de alegria quando se encaminhavam para a margem esquerda do rio Corubal.
Num ápice, esses semblantes toldaram-se no fundo do rio. Que triste fim para quem, generosamente, tanto tinha dado já ao seu país. É como diz Iero Camará, antigo guerrilheiro e actual tenente-coronel do exército guineense : "Todos aqueles que combateram em Madina do Boé podem ser considerados heróis !"...
Também o coronel Aliú Camará, ex-comandante da unidade de artilharia que regularmente bombardeava o quartel do Boé, falando por si e pelos seus antigos camaradas, afirmou: "Nós rendemos homenagem aos ocupantes de Madina, porque era muito difícil viver naquelas circunstâncias. Sempre à espera dos bombardeamentos, em horas alternadas, às vezes à meia-noite, às vezes ao meio-dia, às vezes no período da tarde, tantas vezes que ninguém pode imaginar aquele sacrifício".
E estes bravos, à altura dos melhores da nossa história, ficaram ali para sempre, não mais voltaram à sua terra, nem ao menos para uma singela homenagem de despedida. Mas eles hão-de permanecer para sempre como exemplo de abnegação em favor da Pátria. Cabe-nos a nós fazer com que a História não os esqueça. O seu tão precioso testemunho escrito e outros (como o de José Pimenta) não o vão permitir.
O meu muito obrigado, José Martins. Tal como o amigo, eu estava lá por essa altura [1968], também sobre uma linha de fronteira, mas a Norte, em Guidage que, em 1973, também haveria de ser palco de momentos difíceis.
O meu obrigado mais uma vez. Haveremos de voltar ao contacto. Receba, caro José, um grande abraço.
Afonso Sousa
(ex-Furriel Miliciano de Transmissões da CART 2412,
Bigene, Binta, Guidage e Barro, 1968/70).
Guiné 63/74 - P411: A retirada de Madina do Boé (José Martins)
Texto de José Martins, ex-furriel de transmissões da CCAÇ 5 (Canjadude, 1968/70):
1. Caro Afonso Sousa
Obrigado pelo facto de, sem nos conhecermos e apenas tendo em comum o facto de sermos combatentes, como se não fosse "qualidade" mais do que suficiente, me pedires a opinião sobre a retirada de Madina do Boé.
A minha "ligação" a Madina é pequena mas muito intensa.
Por agora apenas envio um texto escrito em 2000 (trinta anos após o meu regresso)de um livro, não editado, que escrevi e escrevo, pois que todos os dias surgem histórias e estórias que faz desta compilação de emoções um livro nunca acabado.
Um abraço do camarada
José Martins
2. A retirada de Madina do Boé (por José Martins)
O mês de Fevereiro de 1969 tivera inicio há poucos dias quando passou, no aquartelamento de Canjadude (1), uma coluna cuja missão era retirar a Companhia de Caçadores nº 1790 do seu destacamento de Madina do Boé. Paralelamente a guarnição do posto do Cheche, pertencente à Companhia de Caçadores nº 5, também retiraria e juntar-se-ia à nossa companhia em Canjadude.
Esta operação cumpria, da Directriz nº 1/68 do Comandante-Chefe, apenas na retirada desta martirizada e heróica companhia da sua isolada posição. A base inicialmente prevista para a região do Cheche, ficar-se-ia pela reunificação da Companhia de Caçadores nº 5 no seu aquartelamento em Canjadude, ficando esta a ser o posto militar mais avançado, no leste, desde Nova Lamego até á zona do Boé.
Esta operação contava com cinquenta e seis viaturas, uma vez que a retirada de Madina envolvia a recolha e transporte de todo o material que fosse possível recuperar.
Em 6 de Fevereiro, as tropas até então estacionadas em Madina do Boé e as das companhias que tinha escoltado o comboio de viaturas, iniciavam o regresso. Estava, assim, consumado o abandono do local.
Chegados à margem sul do Rio Corubal, do lado oposto ao Cheche, tinha de se utilizar uma jangada constituída por um estrado assente em três grandes canoas e auxiliado, na travessia, por um barco com motor fora de borda.
A operação era perigosa, dado que as viaturas tinham de descer uma rampa em direcção ao rio, entrando na jangada utilizando pranchas e, após a travessia, sair de novo sobre pranchas e subir a ravina que partia do rio.
Eram cerca das seis da tarde quando se iniciou a travessia, que se estendeu por toda a noite e pela manhã do dia seguinte.
As companhias estacionadas em Canjadude (CCAÇ 5 e CART 2338) estavam em alerta e preparadas para prestar todo o apoio necessário e possível a esta operação. Havia que estabelecer um controlo para o parqueamento das viaturas dentro do perímetro do arame farpado e, em conjunto com os comandantes das companhias empenhadas na operação, indicar-lhes os locais em que deviam pernoitar, estas sim, em zonas em redor do destacamento e aldeamento.
Na operação estavam envolvidos dezenas de efectivos e, sendo conhecedores de que na região não havia água, foi destacada, para a estrada entre Canjadude e Cheche, uma viatura com cerca de quinze bidões de água, para que os soldados fossem abastecidos.
Tocou-me o comando da escolta a esta viatura, tendo-me posicionado a cerca de cinco a sete quilómetros de Canjadude. Quando começaram a passar os militares que vinham na frente da coluna, notei que algo de estranho se tinha passado. Os soldados passavam cabisbaixos e praticamente ninguém aproveitou para se abastecer de água. Constatara, também, que havia um silêncio rádio, apesar de ter entrado na frequência da operação.
No regresso ao aquartelamento, soube que tinha havido um desastre na travessia do Rio Corubal, com um elevado número de mortes. As causas ainda eram muito obscuras. O necessário era providenciar apoio aos militares das companhias que tinham sofrido as baixas, alguns dos quais ainda se encontravam em estado de choque.
Fui, na qualidade de furriel de transmissões [da CCAÇ 5], encarregado de saber, interrogando os graduados das companhias atingidas, os nomes e patentes das vítimas, afim de ser dado conhecimento aos escalões superiores, nomeadamente ao Quartel General, em Bissau.
Fui anotando, um a um, os nomes das vítimas. Entrecortados por soluços, os nomes foram sendo recordados pelos camaradas e, terminada a pesquisa, contei quarenta e sete nomes: quarenta e seis militares – dois furriéis, sete cabos, trinta e três soldados metropolitanos, quatro do recrutamento provincial - e um milícia (2).
Era um dia negro. Sentei-me no Centro Cripto, peguei no livro de codificações rápidas e transcrevi, para o impresso de mensagem, o texto cifrado que indicava que os nomes a seguir pertenciam aos militares mortos no acidente.
Procurei o comandante do destacamento, Capitão Pacífico dos Reis e, em silêncio, entreguei-lhe a mensagem para assinar, sendo esta devolvida sem que fosse trocada qualquer palavra.
Momentos depois, no mais profundo silêncio possível, no posto de rádio, a voz pausada e comovida do radiotelefonista lançava ao ar, via VHF, os quarenta e sete nomes, como se fosse um toque a finados.
Pouco tempo depois, como que impulsionados por uma mola, começaram a chegar ao Centro de Mensagens pedidos de envio de telegramas para a Metrópole, em que os remetentes diziam estar de boa saúde, embora cheios de saudade.
Pretendiam com isto serenar os seus familiares, para que ao receberem o telegrama soubessem que estavam bem e de saúde. Esses telegramas não foram emitidos. Não valia a pena. Na metrópole só muito mais tarde se soube deste desastre, e, se os telegramas saíssem da companhia, decerto que os escalões seguintes nunca lhes dariam seguimento.
Mais de vinte e cinco anos depois, o Diário de Notícias editou uma cassete vídeo, com uma reportagem no local, em que intervinham o tenente coronel José Aparício e o jurista Gustavo Pimenta (3), ao tempo capitão e alferes miliciano da CCAÇ 1790.
Já não era o primeiro vídeo que via sobre a Guerra do Ultramar, mas este falava de algo que eu tinha vivido, este reproduzia uma fase da minha própria vida de militar, e não me trazia boas recordações. Só nessa altura soube que a queda desordenada na água de muitos dos militares que se encontravam na jangada estava relacionada com o som de uma saída de morteiro, não identificado nem localizado, que tinha lançado o pânico.
Entretanto o meu filho mais velho, o Tiago, entrou na sala e respeitou o que viu. Eu estava a chorar. As lágrimas corriam-me pela face sem as poder conter. Pelo ecrã corriam os nomes que, anos antes, no desempenho das minhas funções de sargento de transmissões, tinha manuscrito em mensagem.
Os heróis de muitos combates tinham morrido afogados e, ainda hoje, os onze que foram recuperados três semanas depois, descansam lá longe, em país agora estrangeiro, nas ravinas que servem de margem ao Rio Corubal (4).
José Martins, 3 de Setembro de 2000
_____________
Notas de L.G.
(1) A sul de Nova Lamego, na estrada que vai pai Cheche e Madina do Boé (vd. carta geral da Província da Guiné, 1961)
(2) Vd post de 24 de Outubro de 2005 > Guiné 63/64 - CCLVII: A contabilidade dos mortos na operação de retirada de Madina do Boé
(3) Vd post de 17 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIX: Antologia (7): Os bravos de Madina do Boé (CCAÇ 1790)
(4) Vd post de 2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé (6 de Fevereiro de 1969)
1. Caro Afonso Sousa
Obrigado pelo facto de, sem nos conhecermos e apenas tendo em comum o facto de sermos combatentes, como se não fosse "qualidade" mais do que suficiente, me pedires a opinião sobre a retirada de Madina do Boé.
A minha "ligação" a Madina é pequena mas muito intensa.
Por agora apenas envio um texto escrito em 2000 (trinta anos após o meu regresso)de um livro, não editado, que escrevi e escrevo, pois que todos os dias surgem histórias e estórias que faz desta compilação de emoções um livro nunca acabado.
Um abraço do camarada
José Martins
2. A retirada de Madina do Boé (por José Martins)
O mês de Fevereiro de 1969 tivera inicio há poucos dias quando passou, no aquartelamento de Canjadude (1), uma coluna cuja missão era retirar a Companhia de Caçadores nº 1790 do seu destacamento de Madina do Boé. Paralelamente a guarnição do posto do Cheche, pertencente à Companhia de Caçadores nº 5, também retiraria e juntar-se-ia à nossa companhia em Canjadude.
Esta operação cumpria, da Directriz nº 1/68 do Comandante-Chefe, apenas na retirada desta martirizada e heróica companhia da sua isolada posição. A base inicialmente prevista para a região do Cheche, ficar-se-ia pela reunificação da Companhia de Caçadores nº 5 no seu aquartelamento em Canjadude, ficando esta a ser o posto militar mais avançado, no leste, desde Nova Lamego até á zona do Boé.
Esta operação contava com cinquenta e seis viaturas, uma vez que a retirada de Madina envolvia a recolha e transporte de todo o material que fosse possível recuperar.
Em 6 de Fevereiro, as tropas até então estacionadas em Madina do Boé e as das companhias que tinha escoltado o comboio de viaturas, iniciavam o regresso. Estava, assim, consumado o abandono do local.
Chegados à margem sul do Rio Corubal, do lado oposto ao Cheche, tinha de se utilizar uma jangada constituída por um estrado assente em três grandes canoas e auxiliado, na travessia, por um barco com motor fora de borda.
A operação era perigosa, dado que as viaturas tinham de descer uma rampa em direcção ao rio, entrando na jangada utilizando pranchas e, após a travessia, sair de novo sobre pranchas e subir a ravina que partia do rio.
Eram cerca das seis da tarde quando se iniciou a travessia, que se estendeu por toda a noite e pela manhã do dia seguinte.
As companhias estacionadas em Canjadude (CCAÇ 5 e CART 2338) estavam em alerta e preparadas para prestar todo o apoio necessário e possível a esta operação. Havia que estabelecer um controlo para o parqueamento das viaturas dentro do perímetro do arame farpado e, em conjunto com os comandantes das companhias empenhadas na operação, indicar-lhes os locais em que deviam pernoitar, estas sim, em zonas em redor do destacamento e aldeamento.
Na operação estavam envolvidos dezenas de efectivos e, sendo conhecedores de que na região não havia água, foi destacada, para a estrada entre Canjadude e Cheche, uma viatura com cerca de quinze bidões de água, para que os soldados fossem abastecidos.
Tocou-me o comando da escolta a esta viatura, tendo-me posicionado a cerca de cinco a sete quilómetros de Canjadude. Quando começaram a passar os militares que vinham na frente da coluna, notei que algo de estranho se tinha passado. Os soldados passavam cabisbaixos e praticamente ninguém aproveitou para se abastecer de água. Constatara, também, que havia um silêncio rádio, apesar de ter entrado na frequência da operação.
No regresso ao aquartelamento, soube que tinha havido um desastre na travessia do Rio Corubal, com um elevado número de mortes. As causas ainda eram muito obscuras. O necessário era providenciar apoio aos militares das companhias que tinham sofrido as baixas, alguns dos quais ainda se encontravam em estado de choque.
Fui, na qualidade de furriel de transmissões [da CCAÇ 5], encarregado de saber, interrogando os graduados das companhias atingidas, os nomes e patentes das vítimas, afim de ser dado conhecimento aos escalões superiores, nomeadamente ao Quartel General, em Bissau.
Fui anotando, um a um, os nomes das vítimas. Entrecortados por soluços, os nomes foram sendo recordados pelos camaradas e, terminada a pesquisa, contei quarenta e sete nomes: quarenta e seis militares – dois furriéis, sete cabos, trinta e três soldados metropolitanos, quatro do recrutamento provincial - e um milícia (2).
Era um dia negro. Sentei-me no Centro Cripto, peguei no livro de codificações rápidas e transcrevi, para o impresso de mensagem, o texto cifrado que indicava que os nomes a seguir pertenciam aos militares mortos no acidente.
Procurei o comandante do destacamento, Capitão Pacífico dos Reis e, em silêncio, entreguei-lhe a mensagem para assinar, sendo esta devolvida sem que fosse trocada qualquer palavra.
Momentos depois, no mais profundo silêncio possível, no posto de rádio, a voz pausada e comovida do radiotelefonista lançava ao ar, via VHF, os quarenta e sete nomes, como se fosse um toque a finados.
Pouco tempo depois, como que impulsionados por uma mola, começaram a chegar ao Centro de Mensagens pedidos de envio de telegramas para a Metrópole, em que os remetentes diziam estar de boa saúde, embora cheios de saudade.
Pretendiam com isto serenar os seus familiares, para que ao receberem o telegrama soubessem que estavam bem e de saúde. Esses telegramas não foram emitidos. Não valia a pena. Na metrópole só muito mais tarde se soube deste desastre, e, se os telegramas saíssem da companhia, decerto que os escalões seguintes nunca lhes dariam seguimento.
Mais de vinte e cinco anos depois, o Diário de Notícias editou uma cassete vídeo, com uma reportagem no local, em que intervinham o tenente coronel José Aparício e o jurista Gustavo Pimenta (3), ao tempo capitão e alferes miliciano da CCAÇ 1790.
Já não era o primeiro vídeo que via sobre a Guerra do Ultramar, mas este falava de algo que eu tinha vivido, este reproduzia uma fase da minha própria vida de militar, e não me trazia boas recordações. Só nessa altura soube que a queda desordenada na água de muitos dos militares que se encontravam na jangada estava relacionada com o som de uma saída de morteiro, não identificado nem localizado, que tinha lançado o pânico.
Entretanto o meu filho mais velho, o Tiago, entrou na sala e respeitou o que viu. Eu estava a chorar. As lágrimas corriam-me pela face sem as poder conter. Pelo ecrã corriam os nomes que, anos antes, no desempenho das minhas funções de sargento de transmissões, tinha manuscrito em mensagem.
Os heróis de muitos combates tinham morrido afogados e, ainda hoje, os onze que foram recuperados três semanas depois, descansam lá longe, em país agora estrangeiro, nas ravinas que servem de margem ao Rio Corubal (4).
José Martins, 3 de Setembro de 2000
_____________
Notas de L.G.
(1) A sul de Nova Lamego, na estrada que vai pai Cheche e Madina do Boé (vd. carta geral da Província da Guiné, 1961)
(2) Vd post de 24 de Outubro de 2005 > Guiné 63/64 - CCLVII: A contabilidade dos mortos na operação de retirada de Madina do Boé
(3) Vd post de 17 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIX: Antologia (7): Os bravos de Madina do Boé (CCAÇ 1790)
(4) Vd post de 2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé (6 de Fevereiro de 1969)
sábado, 7 de janeiro de 2006
Guiné 63/74 - P410: Estórias cabralianas: O básico apaixonado (Jorge Cabral)
Guiné > Fá Mandinga > Novembro de 1969 > Alguns dos elementos do Pel Caç Nat 63 >
Legenda: Soldado Django, Furriel Branquinho, Soldado Carvalho Atibeti, Soldado Duá, Alferes Cabral, Soldado Preto Turbado, 1º Cabo Rocha, Soldado Samba, 1º Cabo Injai, 1º Cabo Monteiro, 1º Cabo Marçal, Soldado Alfa (?), Soldado Maqueiro Adão, (?), 1º Cabo João, Soldado Alfa.
© Jorge Cabral (2005)
Texto de Jorge Cabral (ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71) (1):
O básico apaixonado
O Pel Caç Nat 63 esteve quase sempre em Destacamentos. Comigo em Fá e Missirá. Antes no Saltinho, e depois no Mato Cão.
Para os Destacamentos eram mandados os "especialistas" que a CCS [do Batalhão sediado em Bambadinca] não queria. Assim, tive maqueiros que não podiam ver sangue, motoristas epilépticos e até um apontador de morteiros cego de um olho. Tudo boa rapaziada, aliás!
Como cozinheiros, eram enviados os básicos, dos quais me lembro especialmente de um, pastor em Trás-os-Montes, semi-analfabeto, de uma ingenuidade tocante. Foi este que me pediu para escrever uma "bonita" carta à namorada. E assim fiz.
Ainda recordo algumas frases: "Beijo-te nos rins desta espingarda, bebendo-te no ventre da bazuca. Contigo celebro o orgasmo do canhão. Serei seta no teu alvo aberto à volúpia do sempre. Nunca mais eu, nunca mais tu, apenas um corpo, o nosso, no êxtase da eternidade...".
Enviada a carta, também eu fiquei à espera da resposta. Quinze dias depois, procurou-me o básico, entristecido:
– O meu Alferes é pecador?
– Eu? Porquê? - Estendeu-me então um aerograma com três linhas:
– Não escrevas mais poucas vergonhas. O Senhor Padre disse-me que pecou não só quem as escreveu, mas também quem as leu… Confessa-te, que eu já me confessei…
Arminda.
Ainda ganharei o céu?
___________
(1) Vd posts anteriores, de 5 de Janeiro de 2006 >
Guiné 63/74 - CDXXII: Rally turra ? (estórias cabralianas)
Guiné 63/74 - CDXXI: Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum...
Legenda: Soldado Django, Furriel Branquinho, Soldado Carvalho Atibeti, Soldado Duá, Alferes Cabral, Soldado Preto Turbado, 1º Cabo Rocha, Soldado Samba, 1º Cabo Injai, 1º Cabo Monteiro, 1º Cabo Marçal, Soldado Alfa (?), Soldado Maqueiro Adão, (?), 1º Cabo João, Soldado Alfa.
© Jorge Cabral (2005)
Texto de Jorge Cabral (ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71) (1):
O básico apaixonado
O Pel Caç Nat 63 esteve quase sempre em Destacamentos. Comigo em Fá e Missirá. Antes no Saltinho, e depois no Mato Cão.
Para os Destacamentos eram mandados os "especialistas" que a CCS [do Batalhão sediado em Bambadinca] não queria. Assim, tive maqueiros que não podiam ver sangue, motoristas epilépticos e até um apontador de morteiros cego de um olho. Tudo boa rapaziada, aliás!
Como cozinheiros, eram enviados os básicos, dos quais me lembro especialmente de um, pastor em Trás-os-Montes, semi-analfabeto, de uma ingenuidade tocante. Foi este que me pediu para escrever uma "bonita" carta à namorada. E assim fiz.
Ainda recordo algumas frases: "Beijo-te nos rins desta espingarda, bebendo-te no ventre da bazuca. Contigo celebro o orgasmo do canhão. Serei seta no teu alvo aberto à volúpia do sempre. Nunca mais eu, nunca mais tu, apenas um corpo, o nosso, no êxtase da eternidade...".
Enviada a carta, também eu fiquei à espera da resposta. Quinze dias depois, procurou-me o básico, entristecido:
– O meu Alferes é pecador?
– Eu? Porquê? - Estendeu-me então um aerograma com três linhas:
– Não escrevas mais poucas vergonhas. O Senhor Padre disse-me que pecou não só quem as escreveu, mas também quem as leu… Confessa-te, que eu já me confessei…
Arminda.
Ainda ganharei o céu?
___________
(1) Vd posts anteriores, de 5 de Janeiro de 2006 >
Guiné 63/74 - CDXXII: Rally turra ? (estórias cabralianas)
Guiné 63/74 - CDXXI: Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum...
Guiné 63/74: P409: Comentário do Zé Neto sobre "O Meu Diário", do José Teixeira
Texto do José Neto, capitão (reformado), o patriarca da nossa tertúlia: era o Sargento da CART 1613, em Guileje, tendo feito uma comissão entre 1967 e 1968.
Tenho acompanhado com interesse especial o Diário do José Teixeira por uma simples razão: Eu estava em Buba, com a CART 1613 (Os Lenços Verdes) quando a companhia dele [a CCAÇ 2381] lá desembarcou. Éramos a companhia de apoio ao novo Batalhão (BCAÇ 2835),"dita" em descanso depois de onze meses em Guileje.
A flagelação de 22 de Julho ao quartel de Buba que ele descreve foi "realmente uma brincadeira", pois foi efectuada a partir do outro lado do rio e dali "até com uma fisga se acertava no cu dum cozinheiro", mas não acertaram uma. Fraca pontaria? Não sei.
Desse evento guardo dois momentos hilariantes: (i) um capitão do comando do Batalhão (morreu há dias,Coronel) envergando um colete anti-balas vermelho que fazia parte do seu enxoval, acachapado numa vala e a guinchar como um desalmado; (ii) e a sessão fotográfica dos "maçaricos" (Comandantes incluídos) junto dos invólucros canelados de transporte das
granadas que o IN lá deixou.
Portanto o Zé Teixeira pisou o mesmo chão e ao mesmo tempo que eu.
Tenho acompanhado com interesse especial o Diário do José Teixeira por uma simples razão: Eu estava em Buba, com a CART 1613 (Os Lenços Verdes) quando a companhia dele [a CCAÇ 2381] lá desembarcou. Éramos a companhia de apoio ao novo Batalhão (BCAÇ 2835),"dita" em descanso depois de onze meses em Guileje.
A flagelação de 22 de Julho ao quartel de Buba que ele descreve foi "realmente uma brincadeira", pois foi efectuada a partir do outro lado do rio e dali "até com uma fisga se acertava no cu dum cozinheiro", mas não acertaram uma. Fraca pontaria? Não sei.
Desse evento guardo dois momentos hilariantes: (i) um capitão do comando do Batalhão (morreu há dias,Coronel) envergando um colete anti-balas vermelho que fazia parte do seu enxoval, acachapado numa vala e a guinchar como um desalmado; (ii) e a sessão fotográfica dos "maçaricos" (Comandantes incluídos) junto dos invólucros canelados de transporte das
granadas que o IN lá deixou.
Portanto o Zé Teixeira pisou o mesmo chão e ao mesmo tempo que eu.
sexta-feira, 6 de janeiro de 2006
Guiné 63/74 - P408: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (5): Mampatá, Agosto-Setembro de 1968
Guiné > Mampatá > 1968
O 1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381
©José Teixeira (2005)
1. Comentário de L.G.
Zé Teixeira:
Olha, estou muito sensibilizado pela leitura do teu diário. Apesar da tua juventude, revelaste na guerra, na Guiné, ser um grande homem, um grande português, um grande profissional e um grande cristão... Como homem e como português, eu também tinha as mesmas angústias éticas do que tu...
O meu diário não era tão detalhado. Só escrevia de tempos a tempos... Tenho aqui publicado alguns excertos... Os meus parabéns pela tua postura… Tu transmites, pela escrita, simples, sincera, a quente, em cima dos acontecimentos, muito do que todos nós sentíamos e pensávamos...
Sei que havia mais jovens, como tu e eu, que passavam para o papel as suas perplexidades e angústias, ao longo da comissão na Guiné... Não era fácil: havia um censor em cada de nós, tínhamos medo de expressar, por escrito, o que víamos, ouvíamos, sentíamos e pensávamos... Houve cartas que nunca cheguei a pôr no correio... Eram tempos de castração mental, de repressão política, de intimidação...
Bom, espero que os nossos camaradas hoje saibam contextualizar a tua escrita, e sobretudo tenham sensibilidade para te ler e compreender, sem preconceitos... Podes mandar mais fotos da época se as tiveres: eu vou publicando o teu diário, por meses e lugares…
2. Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):
Mampatá, 12 de Agosto de 1968
Mais uma vez mudei de sítio. Agora pertenço ao Destacamento de Mampatá, para onde vim ontem de tarde com o meu pelotão. Cerca de 50 tabancas e alguns abrigos para militares. As camas são colchões pneumáticos colocados no chão dos abrigos. A cozinha e a Enfermaria são tipo estrela.
Não sei o tempo que estarei por aqui. Em princípio será por um mês e isto não me desagrada. Pelo menos estamos mais livres do fogo IN pois os abrigos são muito seguros.
Mampatá, 14 de Agosto de 1968
Hoje acordei ao som do Morteiro e das costureirinhas (2). O IN atacou ao amanhecer. Estava a lavar-me quando ouço um rebentamento perto de mim. Dei um salto, entro no abrigo. Aguardei uns minutos e quando acalmou saí para preparar o Posto de Socorros. Felizmente não houve qualquer azar.
Segundo se apurou estavam emboscados no cruzamento à espera da viatura que ia a Aldeia Formosa e no momento de rebentar a emboscada faziam fogo sobre Mampatá para que não fôssemos em socorro dos colegas. Felizmente um africano localizou-os e ao verem-se descobertos atacaram a povoação sem provocar danos.
Mampatá, 19 de Agosto de 1968
Hoje pelas 20 horas, tivemos a segunda visita do IN a Mampatá. Acabava de chegar da Tabanca com o Rodrigues de Torres Novas quando ouvi a primeira saída. Em cerca de 10 minutos mandou-nos 106 granadas de canhão sem recuo, como confirmámos pelos invólucros que deixaram na mata ao pressentirem a nossa perseguição. Queimaram uma Tabanca (3).
De Aldeia Formosa as NT mandaram algumas granadas de obus que assustaram o IN. Mampatá defendeu-se com os Morteiros 81 e 60 e com a Breda. Montei rapidamente o Posto de Socorros, mas não chegou a ser necessário.
Mampatá, 23 de Agosto de 1968
Mais uma etapa díficil para a CCAÇ 2381. Quem diria que, após uma coluna a Gandembel na qual se levantaram 57 minas A/P e quatro fornilhos depois da passagem por Xamarra (4) e sem ninguém contar, surge a terrível emboscada que provoca cinco feridos.
É sempre assim, onde menos se conta, quando a calma e a confiança volta ao espírito, quando se julga que o perigo já passou, surge de entre o arvoredo, traiçoeiramente o inimigo.
Um viver constante em estado de guerra arrasa o espírito. A parte física ressente-se , as conversas entre camaradas tornam-se por tudo ou nada exaltadas, pequenos quezílias, tornam-se problemas.
O homem é fruto do ambiente em que vive. Se o ambiente é de paz, sente-se a vida nos corações, a calma e a confiança no "outro ", vive-se a paz. Quando o troar dos canhões se ouve longe ou perto, quando existe guerra entre os homens, existe guerra no seu espírito. O espírito torna-se selvagem. Trava-se uma luta entre o antigo e o novo, entre o amor e o sangue. Um jovem que ainda ontem só pensava em amar, hoje não vacila em disparar sobre um inimigo, mesmo ferido inofensivo, inutilizado, a precisar de uma mão salvadora...
Antes de ontem e ontem, Buba foi atacada. Os Páras têm tido um trabalho intenso. Hoje bateram a zona de onde costumam atacar Aldeia Formosa. Há alguns dias que patrulham a zona envolvente de Gandembel e com bons resultados. vários mortos, manga de feridos e material apreendido.
Hoje escrevi para a Metrópole. As minhas últimas cartas não me agradam. Será que o meu amor está a diminuir ?... ou a ânsia de amar mais, me faz julgar que não consigo dar a entender quanto amo ?
Mampatá, 26 de Agosto de 1968
Estou preocupado. Seguiu hoje nova coluna para Buba e o Sector continua infestado de IN. Antes de ontem atacaram Aldeia Formosa, Gandembel e Nhala. Desta vez em Aldeia Formosa destruiram o morteiro 120. Nem os roncos dos Páras conseguem acalmar a situação, bem pelo contrário parecem enfurecidos.
Em Mampatá tudo está calmo. Os espíritos estão voltados para a estrada de Buba. Os ouvidos estão atentos a qualquer rebentamento... São camaradas que atravessam o perigo.
Senti uma enorme alegria aquando do ataque a Xamarra: vi os meus camaradas correrem em socorro dos que estavam em perigo.
Ontem recebi uma carta de um amor em férias. Que bem me fez esta carta...
Mostravas preocupação por estar magro, a mim parece-me o contrário, mas o mais importante foi o que escreveste "se precisares de alguma coisa diz, tua mãe ou eu mesmo te mando". ão preciso de nada a não ser voltar, no entanto não calculas quanto fiquei intimamente satisfeito e feliz com a tua atitude.
Parece incrível, desde manhã que há feridos na coluna para Buba, um dos quais sem um pé e só às 17 horas é que o Hélio fez a sua aparição para a evacuação. Não admira que haja mortos na Guiné.
Vivem-se horas angustiantes na guerra.
Mampatá, 27 de Agosto de 1968
A coluna para Buba passou a noite em Nhala. De lá foi feita a evacuação do Alzira que ficou sem um pé numa A/P que pisou quando saltou da viatura ao cair debaixo de fogo, numa emboscada. Acabou a guerra para ele.
Manga de fogo durante o dia de ontem. A coluna de Buba foi atacada na bolanha, os páras estacionados em Gandembel andavam a patrulhar a zona e encontraram um caminho, seguiram-no e penetraram sem saber num acampamento IN, ainda desconhecido. Apanhados de surpresa , o IN reagiu. Mesmo assim sofreram 29 mortos. Os Páras tiveram dois feridos.
O IN atacou Aldeia Formosa, Gandembel (grande ataque), Guileje e Buba.
Mampatá, 31 de Agosto de 1968
Acabaram-se as colunas para Buba e Gandembel durante uns meses e ainda bem. Era um bom quebra cabeças, pois sempre que havia colunas havia emboscadas e minas A/P e A/C para nossa diversão.
Na última coluna a Gandembel foram detectadas 57 minas A/P [antipessoal] e alguns fornilhos num pequeno espaço. A coluna teve de regressar, sem atingir o objectivo (levar mantimentos à Companhia estacionada em Gandembel e Ponte Balana), depois de duas tentativas de encontro com os camaradas que em sentido oposto tinham vindo montar a proteção à minha Companhia.
Na primeira tentativa, há a lamentar seis mortos e um desaparecido na Companhia de Gandembel. Na segunda tentativa rebentou uma A/P que feriu um colega meu. Tudo porque havia minas na estrada, fornilhos nas bermas e a floresta estava armadilhada.
Mampatá, 7 de Setembro de 1968
Tenho que reagir. Estou-me portando pior que os outros. Onde está a minha força de vontade de viver segundo o meu projecto de vida ?
Sinto-me só... recomeço a luta tanta vez... como fugir ?...Eu não quero matar. Eu não quero morrer. Quero viver, mas esta vida, não.
Tenho de encarar as situações com naturalidade. Confiar. Reagir... reagir com todas as minhas forças.
José Teixeira
_____
Notas de L.G.:
(1) Iniciado em 1 de Janeiro de 2006. Vd post > Guiné 63/74 - CDX: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (1): Buba, Julho de 1968
(2) Costureirinha, a célebre pistola-metralhadora PPSH
(3) Julgo que o autor quer dizer uma palhota ou morança (agregado familiar). O conjunto das moranças (diversas palhotas de um agregado familiar) correspondia a uma tabanca (povoação)
(4) Chamarra, a sul de Guebo (Aldeia Formosa), segundo os Serviços Cartográficos do Exército: vd. mapa geral da Província da Guiné (1961)
O 1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381
©José Teixeira (2005)
1. Comentário de L.G.
Zé Teixeira:
Olha, estou muito sensibilizado pela leitura do teu diário. Apesar da tua juventude, revelaste na guerra, na Guiné, ser um grande homem, um grande português, um grande profissional e um grande cristão... Como homem e como português, eu também tinha as mesmas angústias éticas do que tu...
O meu diário não era tão detalhado. Só escrevia de tempos a tempos... Tenho aqui publicado alguns excertos... Os meus parabéns pela tua postura… Tu transmites, pela escrita, simples, sincera, a quente, em cima dos acontecimentos, muito do que todos nós sentíamos e pensávamos...
Sei que havia mais jovens, como tu e eu, que passavam para o papel as suas perplexidades e angústias, ao longo da comissão na Guiné... Não era fácil: havia um censor em cada de nós, tínhamos medo de expressar, por escrito, o que víamos, ouvíamos, sentíamos e pensávamos... Houve cartas que nunca cheguei a pôr no correio... Eram tempos de castração mental, de repressão política, de intimidação...
Bom, espero que os nossos camaradas hoje saibam contextualizar a tua escrita, e sobretudo tenham sensibilidade para te ler e compreender, sem preconceitos... Podes mandar mais fotos da época se as tiveres: eu vou publicando o teu diário, por meses e lugares…
2. Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):
Mampatá, 12 de Agosto de 1968
Mais uma vez mudei de sítio. Agora pertenço ao Destacamento de Mampatá, para onde vim ontem de tarde com o meu pelotão. Cerca de 50 tabancas e alguns abrigos para militares. As camas são colchões pneumáticos colocados no chão dos abrigos. A cozinha e a Enfermaria são tipo estrela.
Não sei o tempo que estarei por aqui. Em princípio será por um mês e isto não me desagrada. Pelo menos estamos mais livres do fogo IN pois os abrigos são muito seguros.
Mampatá, 14 de Agosto de 1968
Hoje acordei ao som do Morteiro e das costureirinhas (2). O IN atacou ao amanhecer. Estava a lavar-me quando ouço um rebentamento perto de mim. Dei um salto, entro no abrigo. Aguardei uns minutos e quando acalmou saí para preparar o Posto de Socorros. Felizmente não houve qualquer azar.
Segundo se apurou estavam emboscados no cruzamento à espera da viatura que ia a Aldeia Formosa e no momento de rebentar a emboscada faziam fogo sobre Mampatá para que não fôssemos em socorro dos colegas. Felizmente um africano localizou-os e ao verem-se descobertos atacaram a povoação sem provocar danos.
Mampatá, 19 de Agosto de 1968
Hoje pelas 20 horas, tivemos a segunda visita do IN a Mampatá. Acabava de chegar da Tabanca com o Rodrigues de Torres Novas quando ouvi a primeira saída. Em cerca de 10 minutos mandou-nos 106 granadas de canhão sem recuo, como confirmámos pelos invólucros que deixaram na mata ao pressentirem a nossa perseguição. Queimaram uma Tabanca (3).
De Aldeia Formosa as NT mandaram algumas granadas de obus que assustaram o IN. Mampatá defendeu-se com os Morteiros 81 e 60 e com a Breda. Montei rapidamente o Posto de Socorros, mas não chegou a ser necessário.
Mampatá, 23 de Agosto de 1968
Mais uma etapa díficil para a CCAÇ 2381. Quem diria que, após uma coluna a Gandembel na qual se levantaram 57 minas A/P e quatro fornilhos depois da passagem por Xamarra (4) e sem ninguém contar, surge a terrível emboscada que provoca cinco feridos.
É sempre assim, onde menos se conta, quando a calma e a confiança volta ao espírito, quando se julga que o perigo já passou, surge de entre o arvoredo, traiçoeiramente o inimigo.
Um viver constante em estado de guerra arrasa o espírito. A parte física ressente-se , as conversas entre camaradas tornam-se por tudo ou nada exaltadas, pequenos quezílias, tornam-se problemas.
O homem é fruto do ambiente em que vive. Se o ambiente é de paz, sente-se a vida nos corações, a calma e a confiança no "outro ", vive-se a paz. Quando o troar dos canhões se ouve longe ou perto, quando existe guerra entre os homens, existe guerra no seu espírito. O espírito torna-se selvagem. Trava-se uma luta entre o antigo e o novo, entre o amor e o sangue. Um jovem que ainda ontem só pensava em amar, hoje não vacila em disparar sobre um inimigo, mesmo ferido inofensivo, inutilizado, a precisar de uma mão salvadora...
Antes de ontem e ontem, Buba foi atacada. Os Páras têm tido um trabalho intenso. Hoje bateram a zona de onde costumam atacar Aldeia Formosa. Há alguns dias que patrulham a zona envolvente de Gandembel e com bons resultados. vários mortos, manga de feridos e material apreendido.
Hoje escrevi para a Metrópole. As minhas últimas cartas não me agradam. Será que o meu amor está a diminuir ?... ou a ânsia de amar mais, me faz julgar que não consigo dar a entender quanto amo ?
Mampatá, 26 de Agosto de 1968
Estou preocupado. Seguiu hoje nova coluna para Buba e o Sector continua infestado de IN. Antes de ontem atacaram Aldeia Formosa, Gandembel e Nhala. Desta vez em Aldeia Formosa destruiram o morteiro 120. Nem os roncos dos Páras conseguem acalmar a situação, bem pelo contrário parecem enfurecidos.
Em Mampatá tudo está calmo. Os espíritos estão voltados para a estrada de Buba. Os ouvidos estão atentos a qualquer rebentamento... São camaradas que atravessam o perigo.
Senti uma enorme alegria aquando do ataque a Xamarra: vi os meus camaradas correrem em socorro dos que estavam em perigo.
Ontem recebi uma carta de um amor em férias. Que bem me fez esta carta...
Mostravas preocupação por estar magro, a mim parece-me o contrário, mas o mais importante foi o que escreveste "se precisares de alguma coisa diz, tua mãe ou eu mesmo te mando". ão preciso de nada a não ser voltar, no entanto não calculas quanto fiquei intimamente satisfeito e feliz com a tua atitude.
Parece incrível, desde manhã que há feridos na coluna para Buba, um dos quais sem um pé e só às 17 horas é que o Hélio fez a sua aparição para a evacuação. Não admira que haja mortos na Guiné.
Vivem-se horas angustiantes na guerra.
Mampatá, 27 de Agosto de 1968
A coluna para Buba passou a noite em Nhala. De lá foi feita a evacuação do Alzira que ficou sem um pé numa A/P que pisou quando saltou da viatura ao cair debaixo de fogo, numa emboscada. Acabou a guerra para ele.
Manga de fogo durante o dia de ontem. A coluna de Buba foi atacada na bolanha, os páras estacionados em Gandembel andavam a patrulhar a zona e encontraram um caminho, seguiram-no e penetraram sem saber num acampamento IN, ainda desconhecido. Apanhados de surpresa , o IN reagiu. Mesmo assim sofreram 29 mortos. Os Páras tiveram dois feridos.
O IN atacou Aldeia Formosa, Gandembel (grande ataque), Guileje e Buba.
Mampatá, 31 de Agosto de 1968
Acabaram-se as colunas para Buba e Gandembel durante uns meses e ainda bem. Era um bom quebra cabeças, pois sempre que havia colunas havia emboscadas e minas A/P e A/C para nossa diversão.
Na última coluna a Gandembel foram detectadas 57 minas A/P [antipessoal] e alguns fornilhos num pequeno espaço. A coluna teve de regressar, sem atingir o objectivo (levar mantimentos à Companhia estacionada em Gandembel e Ponte Balana), depois de duas tentativas de encontro com os camaradas que em sentido oposto tinham vindo montar a proteção à minha Companhia.
Na primeira tentativa, há a lamentar seis mortos e um desaparecido na Companhia de Gandembel. Na segunda tentativa rebentou uma A/P que feriu um colega meu. Tudo porque havia minas na estrada, fornilhos nas bermas e a floresta estava armadilhada.
Mampatá, 7 de Setembro de 1968
Tenho que reagir. Estou-me portando pior que os outros. Onde está a minha força de vontade de viver segundo o meu projecto de vida ?
Sinto-me só... recomeço a luta tanta vez... como fugir ?...Eu não quero matar. Eu não quero morrer. Quero viver, mas esta vida, não.
Tenho de encarar as situações com naturalidade. Confiar. Reagir... reagir com todas as minhas forças.
José Teixeira
_____
Notas de L.G.:
(1) Iniciado em 1 de Janeiro de 2006. Vd post > Guiné 63/74 - CDX: O meu diário (José Teixeira, CCAÇ 2381) (1): Buba, Julho de 1968
(2) Costureirinha, a célebre pistola-metralhadora PPSH
(3) Julgo que o autor quer dizer uma palhota ou morança (agregado familiar). O conjunto das moranças (diversas palhotas de um agregado familiar) correspondia a uma tabanca (povoação)
(4) Chamarra, a sul de Guebo (Aldeia Formosa), segundo os Serviços Cartográficos do Exército: vd. mapa geral da Província da Guiné (1961)
Guiné 63/74 - P407: Curriculum vitae de um atirador de artilharia (Carlos Marques dos Santos)
O Carlos Marques dos Santos, em 2005. Vive em Coimbra, é professor de educação física (reformado).
© Carlos Marques dos Santos (2005)
Curriculum Vitae (abreviado) :
Assentou praça em Mafra (EPI) em Setembro de 1966. Especialidade de Atirador de Artilharia em Vendas Novas.
Iniciou a formação da Companhia (CART 2339) no RAL 3, Évora, em 28 de Agosto de 1967.
É natural de Coimbra, da Freguesia de Santo António dos Olivais; estudou no antigo Liceu Normal de D. João III e no Colégio S. Pedro em Coimbra; foi atleta federado de Basquetebol e Andebol, treinador e dirigente desportivo na modalidade de Basquetebol; presidente da Direcção e da Assembleia Geral do Olivais F. Clube e Vice-Presidente da Associação de Basquetebol de Coimbra.
Diplomado em Educação Física, voltou ao Liceu D. João III como professor (hoje Escola Secundária José Falcão, nome alterado depois do 25 de Abril de 74, fazendo parte da Comissão de Gestão). Efectivou na Esc. Sec. de Avelar Brotero, onde integrou como Vice-Presidente o Conselho Directivo.
Foi professor de Mobilidade (técnicas de Orientação e Bengala) de alunos invisuais durante 32 anos. É actualmente aposentado e reside na Rua Gago Coutinho, 17 A-6.ºA – 3030-326 Coimbra (...).
Na Guiné onde chegou a bordo do navio Ana Mafalda (parecia uma traineira!) (1), em 21 de Janeiro 1968, esteve em Fá Mandinga e Mansambo, onde foi rendido pela CCAÇ 2404.
Regressou a casa, em Dezembro de 1969, no navio Uíge, a 13 desse mês, dois anos após a partida para a Guiné.
Realizou treino operacional com a CART1746 (Xime) , entrando em intervenção no Sector L1 (2) até 22 de Novembro de 1969 .
Em 25 de Fevereiro de 1968, participa pela 1.ª vez numa operação de grande envergadura (Op Grão Mongol), com as CART 1646 e 2338, pelkotões de milícia e Pel Caç Nat. Esta acção foi elogiada pelo BART 1904 (Bambadinca) (1).
Guiné > CART 2339 (1968/69) > Brazão
© Carlos Marques dos Santos (2005)
Em Fevereiro de 1968 inicia-se a construção, de raiz, do futuro aquartelamento sede de Mansambo, com a construção e ocupação programada para operacionais e serviços. O meu Grupo de Combate (o 3º) só em Julho de 1968 se deslocou definitivamente de Fá para este aquartelamento fortificado.
Foi inaugurado oficialmente em 21 de Janeiro de 1969, com a presença de diversas entidades e grande festa. A nova iluminação - até aí era com bazookas [garrfas de cerveja de 0,6 l] e mechas embebidas em óleo – foi inaugurada com "fogo de artifício” – balas tracejantes a serem disparadas de G-3.
O projecto era do BENG [Batalhão de Engenharia] 447.
Mansambo ( a Cart2339)foi atacado em 28 de Junho de 1968, pela primeira de muitas vezes.
Guiné > Mansambo > 1968/69 >
Esquema dos vários abrigos do aquartelamento fortificado, projecto do BENG 447, construído pela CART 2239 ao longo de 1968 e inaugurado oficialmente em 21 de Janeiro de 1969. Baptismo de fogo: 28 de Junho de 1968.
© Carlos Marques dos Santos (2005)
Nota importante:
Em 3 e 4 de Fevereiro de 1968 estivemos envolvidos no cordão de tropas que, à volta de Bafatá, fez segurança ao Presidente da República, Américo Tomaz. Laranjas apanhadas das árvores e bolachas foi a nossa comida, em dia e meio.
Samba Silate, Demba Taco, Taibatá, Galo Corubal, Salicuta, Dando, Nova Lamego, Che-Che, Canjadude, Enxalé, Mato Cão, Geba, Cantacunda (onde os turras levaram 11 dos nossos – Abril de 1968), Sarabanda, Sincha Setu, Camamudo, Sare Gana (4), Banjara, Sambulacunda, Bantajã, Finete, Satecuta, Xitole, Burontoni, Poidão, Ganguiró, Bissaque, Moricanhe, Mussa Iero, Belel, Sinchã Camisa, Sambulacunda, etc., etc., etc.,: pelo menos um terço do Leste da Guiné (hoje Bissau) foi feita a pé. Sem água, sem comida, com abelhas e formigas, com mortos, feridos e desaparecidos.
É a Guerra. É tempo de haver Paz. Só quem lá esteve é que percebe.
Coimbra, 5 de Janeiro de 2006.
________
Notas de L.G.
(1) Vd pots de A. Mareques Lopes > 27 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVII: A caminho da Guiné, no "Ana Mafalda" (1967)
(2) Vd. post de 28 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VIII: O sector L1 (Xime-Bambadinca-Xitole): Caracterização (1);
e post de 3 de maio de 2005 > Guiné 69/71 - XI: O Sector L1 (Xime-Bambadinca-Xitole): Caracterização (2)
(3) Julgo ter sido este Batalhão que construiu o aquartelamento de Bambadinca, tendo sido rendido pelo BCAÇ 2852 (1968/70). O BART 1904 tem feito encontros anuais de convívio do seu pessoal: vd. página da ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas, ponto de encontro
(4) Vd meu post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu
(2) Vd. post de A. Marques Lopes, de 28 de Maio de 1969 > Guiné 69/71 - XXIX: Um ataque a Sare Ganá (1968)
© Carlos Marques dos Santos (2005)
Curriculum Vitae (abreviado) :
Assentou praça em Mafra (EPI) em Setembro de 1966. Especialidade de Atirador de Artilharia em Vendas Novas.
Iniciou a formação da Companhia (CART 2339) no RAL 3, Évora, em 28 de Agosto de 1967.
É natural de Coimbra, da Freguesia de Santo António dos Olivais; estudou no antigo Liceu Normal de D. João III e no Colégio S. Pedro em Coimbra; foi atleta federado de Basquetebol e Andebol, treinador e dirigente desportivo na modalidade de Basquetebol; presidente da Direcção e da Assembleia Geral do Olivais F. Clube e Vice-Presidente da Associação de Basquetebol de Coimbra.
Diplomado em Educação Física, voltou ao Liceu D. João III como professor (hoje Escola Secundária José Falcão, nome alterado depois do 25 de Abril de 74, fazendo parte da Comissão de Gestão). Efectivou na Esc. Sec. de Avelar Brotero, onde integrou como Vice-Presidente o Conselho Directivo.
Foi professor de Mobilidade (técnicas de Orientação e Bengala) de alunos invisuais durante 32 anos. É actualmente aposentado e reside na Rua Gago Coutinho, 17 A-6.ºA – 3030-326 Coimbra (...).
Guiné > Mansambo > 1968 > O Fur Mil Atirador de Artilharia Marques dos Santos junto a um dos abrigos do aquartelamento
© Carlos Marques dos Santos (2005)
Na Guiné onde chegou a bordo do navio Ana Mafalda (parecia uma traineira!) (1), em 21 de Janeiro 1968, esteve em Fá Mandinga e Mansambo, onde foi rendido pela CCAÇ 2404.
Regressou a casa, em Dezembro de 1969, no navio Uíge, a 13 desse mês, dois anos após a partida para a Guiné.
Realizou treino operacional com a CART1746 (Xime) , entrando em intervenção no Sector L1 (2) até 22 de Novembro de 1969 .
Em 25 de Fevereiro de 1968, participa pela 1.ª vez numa operação de grande envergadura (Op Grão Mongol), com as CART 1646 e 2338, pelkotões de milícia e Pel Caç Nat. Esta acção foi elogiada pelo BART 1904 (Bambadinca) (1).
Guiné > CART 2339 (1968/69) > Brazão
© Carlos Marques dos Santos (2005)
Em Fevereiro de 1968 inicia-se a construção, de raiz, do futuro aquartelamento sede de Mansambo, com a construção e ocupação programada para operacionais e serviços. O meu Grupo de Combate (o 3º) só em Julho de 1968 se deslocou definitivamente de Fá para este aquartelamento fortificado.
Foi inaugurado oficialmente em 21 de Janeiro de 1969, com a presença de diversas entidades e grande festa. A nova iluminação - até aí era com bazookas [garrfas de cerveja de 0,6 l] e mechas embebidas em óleo – foi inaugurada com "fogo de artifício” – balas tracejantes a serem disparadas de G-3.
O projecto era do BENG [Batalhão de Engenharia] 447.
Mansambo ( a Cart2339)foi atacado em 28 de Junho de 1968, pela primeira de muitas vezes.
Guiné > Mansambo > 1968/69 >
Esquema dos vários abrigos do aquartelamento fortificado, projecto do BENG 447, construído pela CART 2239 ao longo de 1968 e inaugurado oficialmente em 21 de Janeiro de 1969. Baptismo de fogo: 28 de Junho de 1968.
© Carlos Marques dos Santos (2005)
Nota importante:
Em 3 e 4 de Fevereiro de 1968 estivemos envolvidos no cordão de tropas que, à volta de Bafatá, fez segurança ao Presidente da República, Américo Tomaz. Laranjas apanhadas das árvores e bolachas foi a nossa comida, em dia e meio.
Samba Silate, Demba Taco, Taibatá, Galo Corubal, Salicuta, Dando, Nova Lamego, Che-Che, Canjadude, Enxalé, Mato Cão, Geba, Cantacunda (onde os turras levaram 11 dos nossos – Abril de 1968), Sarabanda, Sincha Setu, Camamudo, Sare Gana (4), Banjara, Sambulacunda, Bantajã, Finete, Satecuta, Xitole, Burontoni, Poidão, Ganguiró, Bissaque, Moricanhe, Mussa Iero, Belel, Sinchã Camisa, Sambulacunda, etc., etc., etc.,: pelo menos um terço do Leste da Guiné (hoje Bissau) foi feita a pé. Sem água, sem comida, com abelhas e formigas, com mortos, feridos e desaparecidos.
É a Guerra. É tempo de haver Paz. Só quem lá esteve é que percebe.
Coimbra, 5 de Janeiro de 2006.
________
Notas de L.G.
(1) Vd pots de A. Mareques Lopes > 27 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXVII: A caminho da Guiné, no "Ana Mafalda" (1967)
(2) Vd. post de 28 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VIII: O sector L1 (Xime-Bambadinca-Xitole): Caracterização (1);
e post de 3 de maio de 2005 > Guiné 69/71 - XI: O Sector L1 (Xime-Bambadinca-Xitole): Caracterização (2)
(3) Julgo ter sido este Batalhão que construiu o aquartelamento de Bambadinca, tendo sido rendido pelo BCAÇ 2852 (1968/70). O BART 1904 tem feito encontros anuais de convívio do seu pessoal: vd. página da ADFA - Associação dos Deficientes das Forças Armadas, ponto de encontro
(4) Vd meu post de 30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXI: Sare Ganá, a última tabanca de Joladu
(2) Vd. post de A. Marques Lopes, de 28 de Maio de 1969 > Guiné 69/71 - XXIX: Um ataque a Sare Ganá (1968)
Guiné 63/74 - P406: A Op Nada Consta vista pelo lado da CART 2339 (Carlos Marques Santos)
Texto do Carlos Marques dos Santos (ex-furriel miliciano da CERT 2339, Fá Mandinga e Mansambo, 1968/70)
Amigo Albano:
Li a mensagem de saudação da minha entrada na tertúlia, mas não estou só para ir buscar memórias ao baú das recordações. Interessa-me mais o encadear dos factos ocorridos na guerra colonial.
Acontece que, ao ler um relato de uma operação realizada em conjunto com Paras - CCP 122 e 123 (1), eu me tenha revisto no "outro lado". O que quero dizer? É simples.
A descrição que li, levou-me a perceber que "alguém" das NT esteve a empurrar o IN para o nosso lado, CART 2339, que tinha uma emboscada montada para esse efeito (Op Nada Consta)(2). As emboscadas servem para isso mesmo.
Eu estava lá, atento, atrás de um baga-baga, de arma na mão. Dois IN aparecem à minha frente, a 30 metros. O carregador da minha G-3 cai e não consegui disparar. Hoje penso: ainda bem.
A bazuca da minha secção é disparada, talvez para a linha de progressão da coluna do bigrupo que viria atrás. Informações posteriores dão conta que Mamadu Indjai, o comandante, tinha sido atingido.
Esta acção foi louvada pelos altos responsáveis. Mas, há que regressar a Mansambo e passar um pontão (rio Bissari), que era vital para atingir a sede da Companhia, sob pena de lá ficarmos todos.
No regresso, rápido, porque o tempo era escasso, tendo em vista uma retaliação do IN, leva-nos a descobrir um campo de minas - 10 antipessoais e uma anticarro(?). Esta era redonda como uma roda de um carro de mão. O relato de operações diz que é uma A/P reforçada. Seria ?
Tínhamos passado por cima delas no caminho de ida para a tal emboscada. No dia seguinte (21 de Agosto de 1969) fomos fazer o reconhecimento. Levantámos todas. Eu próprio levantei uma, com uma faca de mato que andava sempre comigo. Recebi 1.000$ por esse feito (que hoje digo, de grande irresponsabilidade).
Um carregador nativo, depois de levantada a mina A/C (?), transportava-a para a sede da Companhia, à cabeça, depois de ter sido desactivada a espoleta. Mas, havia outra (tal como na canção…) espoleta..... E mina estoirou.
Desapareceu parte do carregador nativo, houve feridos (um soldado do meu pelotão ficou totalmente surdo de um ouvido e, até hoje, ainda não foi ressarcido desse trauma, não psicológico, mas físico).
Em suma, vou continuar a ler e a relacionar factos que tenham a ver com a minha vida "vivida".
Um abraço do Marques dos Santos.
Coimbra
____________
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 21 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXIII: Os anjos da morte
(2)Vd post de 30 de Jukho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969)
Amigo Albano:
Li a mensagem de saudação da minha entrada na tertúlia, mas não estou só para ir buscar memórias ao baú das recordações. Interessa-me mais o encadear dos factos ocorridos na guerra colonial.
Acontece que, ao ler um relato de uma operação realizada em conjunto com Paras - CCP 122 e 123 (1), eu me tenha revisto no "outro lado". O que quero dizer? É simples.
A descrição que li, levou-me a perceber que "alguém" das NT esteve a empurrar o IN para o nosso lado, CART 2339, que tinha uma emboscada montada para esse efeito (Op Nada Consta)(2). As emboscadas servem para isso mesmo.
Eu estava lá, atento, atrás de um baga-baga, de arma na mão. Dois IN aparecem à minha frente, a 30 metros. O carregador da minha G-3 cai e não consegui disparar. Hoje penso: ainda bem.
A bazuca da minha secção é disparada, talvez para a linha de progressão da coluna do bigrupo que viria atrás. Informações posteriores dão conta que Mamadu Indjai, o comandante, tinha sido atingido.
Esta acção foi louvada pelos altos responsáveis. Mas, há que regressar a Mansambo e passar um pontão (rio Bissari), que era vital para atingir a sede da Companhia, sob pena de lá ficarmos todos.
No regresso, rápido, porque o tempo era escasso, tendo em vista uma retaliação do IN, leva-nos a descobrir um campo de minas - 10 antipessoais e uma anticarro(?). Esta era redonda como uma roda de um carro de mão. O relato de operações diz que é uma A/P reforçada. Seria ?
Tínhamos passado por cima delas no caminho de ida para a tal emboscada. No dia seguinte (21 de Agosto de 1969) fomos fazer o reconhecimento. Levantámos todas. Eu próprio levantei uma, com uma faca de mato que andava sempre comigo. Recebi 1.000$ por esse feito (que hoje digo, de grande irresponsabilidade).
Um carregador nativo, depois de levantada a mina A/C (?), transportava-a para a sede da Companhia, à cabeça, depois de ter sido desactivada a espoleta. Mas, havia outra (tal como na canção…) espoleta..... E mina estoirou.
Desapareceu parte do carregador nativo, houve feridos (um soldado do meu pelotão ficou totalmente surdo de um ouvido e, até hoje, ainda não foi ressarcido desse trauma, não psicológico, mas físico).
Em suma, vou continuar a ler e a relacionar factos que tenham a ver com a minha vida "vivida".
Um abraço do Marques dos Santos.
Coimbra
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Notas de L.G.
(1) Vd. post de 21 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXIII: Os anjos da morte
(2)Vd post de 30 de Jukho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969)
Guiné 63/74 - P405: Capelão, precisa-se, para tertúlia de ex-combatentes (Sousa de Castro)
Mensagem do Sousa de Castro:
Pe. Costa Pereira:
Temos uma tertúlia virtual formada na Net que escreve estórias reais, passadas por cada um de nós, do tempo da guerra colonial na Guiné (e só na Guiné). Somos mais de quarenta ex-combatentes, desde 1963 a 1974, que vai escrevendo e digitalizando fotos da época para publicação no Blogue-fora-nada que é da autoria do ex-Furriel Luís Graça que pertenceu à CCAÇ 12 sediada em Bambadinca [169/71].
Já temos um Cmdt (Coronel), já temos alferes, furriéis, cabos e soldados, precisamos de um Alferes Capelão, função que o Pe. Costa Pereira desempenhou (e bem) no BART 3873 em Bambadinca, de 1972 a 1974.
Por isso, em nome da tertúlia, venho convidá-lo a visitar o nosso blogue e a participar no nosso grupo virtual.
Aproveito para lhe dizer que sou o António Manuel Sousa de Castro da CART 3494 (Xime) que viveu em Baroselas.
Pe. Costa Pereira:
Temos uma tertúlia virtual formada na Net que escreve estórias reais, passadas por cada um de nós, do tempo da guerra colonial na Guiné (e só na Guiné). Somos mais de quarenta ex-combatentes, desde 1963 a 1974, que vai escrevendo e digitalizando fotos da época para publicação no Blogue-fora-nada que é da autoria do ex-Furriel Luís Graça que pertenceu à CCAÇ 12 sediada em Bambadinca [169/71].
Já temos um Cmdt (Coronel), já temos alferes, furriéis, cabos e soldados, precisamos de um Alferes Capelão, função que o Pe. Costa Pereira desempenhou (e bem) no BART 3873 em Bambadinca, de 1972 a 1974.
Por isso, em nome da tertúlia, venho convidá-lo a visitar o nosso blogue e a participar no nosso grupo virtual.
Aproveito para lhe dizer que sou o António Manuel Sousa de Castro da CART 3494 (Xime) que viveu em Baroselas.
quinta-feira, 5 de janeiro de 2006
Guiné 63/74 - P404: Mansambo revisitado (Novembro de 2000) (Albano Costa)
Texto do Albano Costa, o nosso homem de Guidage e de... Guifões!
1. Amigo Luís Graça:
Quero deixar aqui a minha satisfação em termos estado juntos, nas vésperas de Natal, com o Marques Lopes, o José Teixeira, o Allen e o Hugo Costa, numa amena cavaqueira em casa dos teus estimados cunhados (o meu muito obrigado pela simpatia com que eles nos receberam, assim como a tua esposa), mas isto é mesmo assim, a «nossa» Guiné tem destas coisas.
Aquilo que muitos dos nossos camaradas que por lá passaram, e que ainda hoje não conseguem esquecer, aqueles tempos muito difíceis, espero que este blogue (em que és, e muito bem o seu comandante) sirva para fazer com que esses mesmos camaradas ao ter o conhecimento deste invento - cada vez maior - os faça mudar de opinião e possam, a partir do dia em que entrem nele, ver a Guiné, outrora muito má (por causa dos políticos da época), agora com outros olhos, e que sintam o povo guineense e português um só povo. Acho que vale a pena transmitir esta mensagem.
Quem tiver possibilidades em lá ir, e puder passar pela zona aonde esteve, que vá porque vale a pena. Luís, como dizes no blogue e muito bem, em Março o Allen vai à Guiné com o seu jipe e eu, claro, gostava muito de lá voltar, que estas coisas o que custa é a primeira vez, porque depois o «bichinho» está sempre cá dentro e quer lá voltar. Que o digam o Casimiro do Porto, o Armindo de Moreira de Cónegos, o Camilo (algarvio): estes são alguns dos que foram «mordidos», assim como o Hugo Costa que me disse:
- Pai, gostava de fazer uma viagem de jipe à Guiné. - E eu não resisti e já estou a preparar-me para o deixar ir, o Hugo Costa também foi daqueles que ficou apaixonado por aquele povo.
2. Agora para o nosso novo tertuliano Marques dos Santos [ex-furriel miliciano da CART 2339, Mansambo, 1968/70, afecta ao BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70].
Em primeiro de tudo estou a escrever estas letrinhas para te felicitar pela tua entrada neste blogue. É que estas coisas estão a fazer com que nós possamos desabafar aquilo que tem andando dentro de nós e que procuramos esquecer, mas não conseguimos. Foram momentos passados e com o andar da idade mais vai saltando para a nossa mente e, tirando as nossas «caras metades» que lá vão fazendo um esforço para nos aturar, mais ninguém quer saber de nós. E aqui que eu vou encontrando um bom passatempo para relembrar aqueles tempos de menino e moço.
Tenho lido as [tuas] memórias, e fiquei a pensar como está a fazer tão bem ao Marques dos Santos a ir ao fundo do baú buscar todas aquelas recordações. Eu por mim quando vou ao fundo do meu, sinto-me bem.
Agora eu quero informar que quando voltei à Guiné - foram das coisas maravilhosas por que passei na minha vida, e adorava lá voltar, quem sabe - quando estive em Mansambo, andámos atrás do dito quartel e só encontrámos um pequeno monumento à entrada do mesmo.
Só agora é que dá para entender porque não existiam as casernas, é que pela tua descrição eram abrigos, claro, esses ficaram com o tempo todos tapados, e não se via nada. Mas não desanimes, que agora existe lá muita população e muito hospitaleira como vai demonstrada nas fotos que envio, do quartel, e as outras, quem sabe se ainda recordas alguém, os meninos esses são filhos de guineenses do teu tempo. Há imagens muito interessantes, quem sabe talvez um dia as possas ver.
Se tiveres possibilidades de ir à Guiné vai sem qualquer receio: aquele povo adora-nos, eu aqui falo por aquilo que senti. Foi um dilema muito grande dentro de mim para me decidir a ir e confesso que mesmo quando lá cheguei ainda tinha um certo receio mas ao fim de umas horas apercebi-me que aquele povo gosta mesmo dos «irmãos» portugueses.
Albano Costa
Legendas das fotos de Mansambo
Lúcio, Casimiro, Armindo e Carlos [quatro dos camaradas que fizeram a viagem à Guiné com o Albano e mais outros tantos em Novembro de 2000], posando ao lado da placa que indica a povoação de Mansambo, do lado do antigo quartel
A pequena picada que dá, pelo meio das belas tabancas, em direcção ao antigo quartel
A entrada do quartel de Mansambo também tem este monumento, o brazão da CART 2714 ("Bravos e Leais"), pertencente ao BART 2917 (1970/1972). Já em 1996, era o único que restava de pé.
População de Mansambo. Em 1969/71, apenas existia meia dúzia de famílias, ad dos guias e picadores que trabalhavam para as NT.
Um camião avariado na estrada Mansambo-Xitole... Isto faz-te lembrar alguma coisa, ó Marques dos Santos ? Sim, as colunas logístics Bambadinca - Mansambo - Xitole - Saltinho...
Créditos fotográficos : © Albano Costa (2006)
3. Comentário de Carlos Marques dos Santos, depois de visualizar estas imagens:
Mansambo, antes e agora. Até eu fiquei de boca aberta. Mansambo, aquilo??? Mas está explicado. No meu tempo só havia uma tabanca com meia dúzia de pessoas. O Leonardo era o chefe. O Lali Baló - ou Baldé (?) - e uma mulher lindíssima mais um filho pequenino.
Um Abraço,
Marques dos Santos
(Cart 2339, 1968/69)
1. Amigo Luís Graça:
Quero deixar aqui a minha satisfação em termos estado juntos, nas vésperas de Natal, com o Marques Lopes, o José Teixeira, o Allen e o Hugo Costa, numa amena cavaqueira em casa dos teus estimados cunhados (o meu muito obrigado pela simpatia com que eles nos receberam, assim como a tua esposa), mas isto é mesmo assim, a «nossa» Guiné tem destas coisas.
Aquilo que muitos dos nossos camaradas que por lá passaram, e que ainda hoje não conseguem esquecer, aqueles tempos muito difíceis, espero que este blogue (em que és, e muito bem o seu comandante) sirva para fazer com que esses mesmos camaradas ao ter o conhecimento deste invento - cada vez maior - os faça mudar de opinião e possam, a partir do dia em que entrem nele, ver a Guiné, outrora muito má (por causa dos políticos da época), agora com outros olhos, e que sintam o povo guineense e português um só povo. Acho que vale a pena transmitir esta mensagem.
Quem tiver possibilidades em lá ir, e puder passar pela zona aonde esteve, que vá porque vale a pena. Luís, como dizes no blogue e muito bem, em Março o Allen vai à Guiné com o seu jipe e eu, claro, gostava muito de lá voltar, que estas coisas o que custa é a primeira vez, porque depois o «bichinho» está sempre cá dentro e quer lá voltar. Que o digam o Casimiro do Porto, o Armindo de Moreira de Cónegos, o Camilo (algarvio): estes são alguns dos que foram «mordidos», assim como o Hugo Costa que me disse:
- Pai, gostava de fazer uma viagem de jipe à Guiné. - E eu não resisti e já estou a preparar-me para o deixar ir, o Hugo Costa também foi daqueles que ficou apaixonado por aquele povo.
2. Agora para o nosso novo tertuliano Marques dos Santos [ex-furriel miliciano da CART 2339, Mansambo, 1968/70, afecta ao BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70].
Em primeiro de tudo estou a escrever estas letrinhas para te felicitar pela tua entrada neste blogue. É que estas coisas estão a fazer com que nós possamos desabafar aquilo que tem andando dentro de nós e que procuramos esquecer, mas não conseguimos. Foram momentos passados e com o andar da idade mais vai saltando para a nossa mente e, tirando as nossas «caras metades» que lá vão fazendo um esforço para nos aturar, mais ninguém quer saber de nós. E aqui que eu vou encontrando um bom passatempo para relembrar aqueles tempos de menino e moço.
Tenho lido as [tuas] memórias, e fiquei a pensar como está a fazer tão bem ao Marques dos Santos a ir ao fundo do baú buscar todas aquelas recordações. Eu por mim quando vou ao fundo do meu, sinto-me bem.
Agora eu quero informar que quando voltei à Guiné - foram das coisas maravilhosas por que passei na minha vida, e adorava lá voltar, quem sabe - quando estive em Mansambo, andámos atrás do dito quartel e só encontrámos um pequeno monumento à entrada do mesmo.
Só agora é que dá para entender porque não existiam as casernas, é que pela tua descrição eram abrigos, claro, esses ficaram com o tempo todos tapados, e não se via nada. Mas não desanimes, que agora existe lá muita população e muito hospitaleira como vai demonstrada nas fotos que envio, do quartel, e as outras, quem sabe se ainda recordas alguém, os meninos esses são filhos de guineenses do teu tempo. Há imagens muito interessantes, quem sabe talvez um dia as possas ver.
Se tiveres possibilidades de ir à Guiné vai sem qualquer receio: aquele povo adora-nos, eu aqui falo por aquilo que senti. Foi um dilema muito grande dentro de mim para me decidir a ir e confesso que mesmo quando lá cheguei ainda tinha um certo receio mas ao fim de umas horas apercebi-me que aquele povo gosta mesmo dos «irmãos» portugueses.
Albano Costa
Legendas das fotos de Mansambo
Lúcio, Casimiro, Armindo e Carlos [quatro dos camaradas que fizeram a viagem à Guiné com o Albano e mais outros tantos em Novembro de 2000], posando ao lado da placa que indica a povoação de Mansambo, do lado do antigo quartel
A pequena picada que dá, pelo meio das belas tabancas, em direcção ao antigo quartel
A entrada do quartel de Mansambo também tem este monumento, o brazão da CART 2714 ("Bravos e Leais"), pertencente ao BART 2917 (1970/1972). Já em 1996, era o único que restava de pé.
População de Mansambo. Em 1969/71, apenas existia meia dúzia de famílias, ad dos guias e picadores que trabalhavam para as NT.
Na despedida da população de Mansambo... Era sempre o momento mais triste sentido por todos nós...
Um camião avariado na estrada Mansambo-Xitole... Isto faz-te lembrar alguma coisa, ó Marques dos Santos ? Sim, as colunas logístics Bambadinca - Mansambo - Xitole - Saltinho...
Créditos fotográficos : © Albano Costa (2006)
3. Comentário de Carlos Marques dos Santos, depois de visualizar estas imagens:
Mansambo, antes e agora. Até eu fiquei de boca aberta. Mansambo, aquilo??? Mas está explicado. No meu tempo só havia uma tabanca com meia dúzia de pessoas. O Leonardo era o chefe. O Lali Baló - ou Baldé (?) - e uma mulher lindíssima mais um filho pequenino.
Um Abraço,
Marques dos Santos
(Cart 2339, 1968/69)
Guiné 63/74 - P403: Estórias cabralianas: Rally turra ? (Jorge Cabral)
Numa tarde de tédio convenci o motorista da viatura existente em Missirá, um humilde Unimog, a dar um passeio. Pretendia visitar o Enxalé, seguindo pela estrada de Mato Cão, pela qual não passava qualquer veículo há muito tempo.
Progredimos alguns quilómetros, e perto de S. Belchior, ouvimos tiros, pelo que retrocedemos, perdendo no regresso um jericã.
E o caso teria ficado por aqui, se oito dias depois não fosse chamado ao Batalhão, onde o Major das Operações me deu conta de uma inquietante informação: os turras possuíam viaturas, com as quais efectuavam abastecimentos, talvez de Mero. Até um jericã tinha sido encontrado. Fiz um ar preocupado como me competia, e afirmei que iria averiguar e fazer explodir o tal jericã, que devia estar minado.
Logo no dia seguinte fui buscar o jericã, e não pensei mais no assunto. Porém, o Major não se esqueceu, e através de mensagem ordenou-me que informasse qual a origem dos indícios encontrados. Lá lhe respondi:
- “Viatura ligeira, presumivelmente soviética, detectados restos de aguardente de cana no jericã destruído”.
Tudo isto se passou a curtos dias do meu regresso pelo que desconheço as consequências da minha tão sábia informação…
Será que ordenaram aos turras que soprassem o balão?
Jorge Cabral
(ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71)
Progredimos alguns quilómetros, e perto de S. Belchior, ouvimos tiros, pelo que retrocedemos, perdendo no regresso um jericã.
E o caso teria ficado por aqui, se oito dias depois não fosse chamado ao Batalhão, onde o Major das Operações me deu conta de uma inquietante informação: os turras possuíam viaturas, com as quais efectuavam abastecimentos, talvez de Mero. Até um jericã tinha sido encontrado. Fiz um ar preocupado como me competia, e afirmei que iria averiguar e fazer explodir o tal jericã, que devia estar minado.
Logo no dia seguinte fui buscar o jericã, e não pensei mais no assunto. Porém, o Major não se esqueceu, e através de mensagem ordenou-me que informasse qual a origem dos indícios encontrados. Lá lhe respondi:
- “Viatura ligeira, presumivelmente soviética, detectados restos de aguardente de cana no jericã destruído”.
Tudo isto se passou a curtos dias do meu regresso pelo que desconheço as consequências da minha tão sábia informação…
Será que ordenaram aos turras que soprassem o balão?
Jorge Cabral
(ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71)
Guiné 63/74 - P402: Estórias cabralianas: Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum...
Guiné > Fá Mandinga > Novembro de 1969 > O Alf Mil Art Cabral e parte dos seus feros guerreiros do Pel Caç Nat 63, incluindo a cabra e o cão.
© Jorge Cabral (2005)
1. Amigo Luís,
Continuo diariamente a acompanhar o teu/nosso blogue, o qual me propícia um fantástico manancial de recordações. Agradeço que corrijas a "arma" a que pertencia, a fim de não suscitar a ira dos homens dos obuses. Era Alferes Miliciano de Artilharia, especialidade sofrida em Vendas Novas, onde fui aspirante durante largos meses, sendo então amigo de alguns jovens Tenentes que mais tarde tiveram papel determinante na Revolução de Abril. Foi nessa altura que convivi com o Agordela e com o Passos Marques, os quais na Guiné voltei a encontrar.
Envio três "histórias" e duas fotos, e um grande abraço, extensivo ao Humberto [Reis], magnífico fornecedor das imagens dos caminhos e trilhos, os quais ainda percorro na busca das bajudas...
Até sempre em todos os dias.
Jorge
(ex-Alf Mil Art, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71)
2. A grande história da guerra da Guiné nunca se fará sem a petite histoire do Cabral, do Jorge Cabral... Ele acaba de me mandar três estórias, qual delas a mais deliciosa, e que eu vou servir como slow food... Meus amigos, isto são pequenas obras-primas de nosso humor castrense, da irreverência e do non-sense que aprendemos a cultivar na Guiné, longe do Vietname, e que nos ajudou a resistir a tudo (sem esquecer o uísque, com ou sem água de Perrier). O absurdo (daquela guerra, do nosso quotidiano, das patéticas figuras de alguns dos nossos comandantes...) só se podia combater com o absurdo do nosso (quase sempre bom) humor...
Aqui vai a primeira estória. Estou grato ao Jorge, por ter arranjado um bocadinho do seu escasso tempo para nós e de se ter lembrado destes gourmands da Guiné...
A mulher do Major e o castigo do Cabral
Quando de Missirá me deslocava a Bambadinca, seguia sempre a mesma rotina. Primeiro visitava o Bar do Soldado, até porque aí tinha que liquidar as despesas alcoólicas efectuadas pelo meu Soldado Ocamari Nanque, que se encontrava preso.
Desta personagem, que depois passou a ordenança do Polidoro Monteiro (1), papel gordo do Biombo, ex-soldado na Índia, falarei um dia.
Feitas as contas, bem acompanhadas de várias libações e seguindo uma hierarquia ascendente, passava ao Bar dos Sargentos, onde continuava a "matar a sede" e só por fim aterrava no Bar dos Oficiais.
Naquele dia quando entrei fiquei surpreendido. Além do simpático e solícito barman, apenas uma branca jovem senhora ali se encontrava. Desconhecendo em absoluto de quem se tratava, reparei que a mesma ficou espantada com a minha aparição. (Na verdade o meu aspecto não era muito civilizado. Enlameado até ao peito – havia atravessado a bolanha de Finete, ostentava um estrambólico bigode e amparava-me num pingalim-bengala prateado).
Logo da porta encomendei:
- Rapaz, uma sandes de chocolate e um whisky quádruplo - e, vendo pelo canto do olho a reacção da dama, iniciei um absurdo monólogo sobre a minha dieta alimentar:
- Ando cheio de fome, os presuntos de macaco não me sabem a nada, a sopa de formigas causa-me azia, até a vinagrada de orelhas de turra me provoca urticária...
O espanto da jovem dera lugar ao pânico, até que entrou o Major, que vendo a mulher pálida e aterrada, se afligiu:
– Que tens querida? Estás mal disposta? Olha, apresento-te o Alferes Cabral, de Missirá.
Não me estendeu a mão, nada balbuciou, saiu quase a correr…
Logo nessa noite recebi uma mensagem:
- Alferes Cabral proibido de se deslocar a Bambadinca, durante sessenta dias.
Cumprido o "castigo" voltei, mas nunca mais vi a mulher do Major. Contaram-me que a avisavam logo que eu entrava no quartel...
_______
Nota de L.G.
(1) Tenente-coronel, spinolista, último comandante do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) na altura em que os quadros metropolitanos da CCAÇ 12 foram rendiidos individualmente (Fevereiro/Março de 1971).
Esta figura já aqui foi evocada, neste blogue, duas ou três vezes, pelo David Guimarães e por mim:
Vd post de 26 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXVI: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (6)
Vd post de 29d e Abril de 2005 > Guiné 69/71 - IX: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (1)
© Jorge Cabral (2005)
1. Amigo Luís,
Continuo diariamente a acompanhar o teu/nosso blogue, o qual me propícia um fantástico manancial de recordações. Agradeço que corrijas a "arma" a que pertencia, a fim de não suscitar a ira dos homens dos obuses. Era Alferes Miliciano de Artilharia, especialidade sofrida em Vendas Novas, onde fui aspirante durante largos meses, sendo então amigo de alguns jovens Tenentes que mais tarde tiveram papel determinante na Revolução de Abril. Foi nessa altura que convivi com o Agordela e com o Passos Marques, os quais na Guiné voltei a encontrar.
Envio três "histórias" e duas fotos, e um grande abraço, extensivo ao Humberto [Reis], magnífico fornecedor das imagens dos caminhos e trilhos, os quais ainda percorro na busca das bajudas...
Até sempre em todos os dias.
Jorge
(ex-Alf Mil Art, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71)
2. A grande história da guerra da Guiné nunca se fará sem a petite histoire do Cabral, do Jorge Cabral... Ele acaba de me mandar três estórias, qual delas a mais deliciosa, e que eu vou servir como slow food... Meus amigos, isto são pequenas obras-primas de nosso humor castrense, da irreverência e do non-sense que aprendemos a cultivar na Guiné, longe do Vietname, e que nos ajudou a resistir a tudo (sem esquecer o uísque, com ou sem água de Perrier). O absurdo (daquela guerra, do nosso quotidiano, das patéticas figuras de alguns dos nossos comandantes...) só se podia combater com o absurdo do nosso (quase sempre bom) humor...
Aqui vai a primeira estória. Estou grato ao Jorge, por ter arranjado um bocadinho do seu escasso tempo para nós e de se ter lembrado destes gourmands da Guiné...
A mulher do Major e o castigo do Cabral
Quando de Missirá me deslocava a Bambadinca, seguia sempre a mesma rotina. Primeiro visitava o Bar do Soldado, até porque aí tinha que liquidar as despesas alcoólicas efectuadas pelo meu Soldado Ocamari Nanque, que se encontrava preso.
Desta personagem, que depois passou a ordenança do Polidoro Monteiro (1), papel gordo do Biombo, ex-soldado na Índia, falarei um dia.
Feitas as contas, bem acompanhadas de várias libações e seguindo uma hierarquia ascendente, passava ao Bar dos Sargentos, onde continuava a "matar a sede" e só por fim aterrava no Bar dos Oficiais.
Naquele dia quando entrei fiquei surpreendido. Além do simpático e solícito barman, apenas uma branca jovem senhora ali se encontrava. Desconhecendo em absoluto de quem se tratava, reparei que a mesma ficou espantada com a minha aparição. (Na verdade o meu aspecto não era muito civilizado. Enlameado até ao peito – havia atravessado a bolanha de Finete, ostentava um estrambólico bigode e amparava-me num pingalim-bengala prateado).
Logo da porta encomendei:
- Rapaz, uma sandes de chocolate e um whisky quádruplo - e, vendo pelo canto do olho a reacção da dama, iniciei um absurdo monólogo sobre a minha dieta alimentar:
- Ando cheio de fome, os presuntos de macaco não me sabem a nada, a sopa de formigas causa-me azia, até a vinagrada de orelhas de turra me provoca urticária...
O espanto da jovem dera lugar ao pânico, até que entrou o Major, que vendo a mulher pálida e aterrada, se afligiu:
– Que tens querida? Estás mal disposta? Olha, apresento-te o Alferes Cabral, de Missirá.
Não me estendeu a mão, nada balbuciou, saiu quase a correr…
Logo nessa noite recebi uma mensagem:
- Alferes Cabral proibido de se deslocar a Bambadinca, durante sessenta dias.
Cumprido o "castigo" voltei, mas nunca mais vi a mulher do Major. Contaram-me que a avisavam logo que eu entrava no quartel...
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Nota de L.G.
(1) Tenente-coronel, spinolista, último comandante do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) na altura em que os quadros metropolitanos da CCAÇ 12 foram rendiidos individualmente (Fevereiro/Março de 1971).
Esta figura já aqui foi evocada, neste blogue, duas ou três vezes, pelo David Guimarães e por mim:
Vd post de 26 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXVI: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (6)
Vd post de 29d e Abril de 2005 > Guiné 69/71 - IX: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (1)
quarta-feira, 4 de janeiro de 2006
Guiné 63/74 - P401: Pensando... A Guiné que em (re)(vi)vi (2005) (José Teixeira)
Guiné > Mampatá Foreá > Rescaldo de ataque do IN à hora do almoço (3 de Novembro de 1968)
© José Teixeira (2005)
Texto, em duas partes, do José Teixeira, ex-1º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381 que esteve em Ingoré (no norte, em treino operacional) e foi depois colocada no sul (Bula, Aldeia Borbosa, Mampatá, Empada) (Maio de 1968 / Maio de 1970).
Em Março de 2005, o Teixeira volta à Guiné-Bissau... por terra (Lisboa-Bissau). O que viu e sentiu, um quarto de século depois, é relatado nesta II parte... A Guiné que eu re(vi)vi (2005) (*):
Durante estes anos passados era esta a imagem que eu retinha da Guiné. Devorava todas as notícias que foram marcando aquela terra vermelha. Mas o sonho mantinha-se.
Precisava de voltar e apreciar as mudanças. Família e amigos apelidavam-me de "doido". Rompi barreiras, aceitei o desafio de um amigo e voltei.
Atravessei Espanha, Marrocos, Mauritânia e Senegal para entrar na Guiné por Pirada (1) e ser recebido como um amigo que volta a sua casa. De facto, senti-me em Portugal.
É verdade que hoje continuo a sonhar acordado e a dormir, com a Guiné, mas uma visão muito mais sadia. Pensava que uma ida aos locais onde vivi, me curaria da sodade ... a Guiné sair-me-ia do pensamento.
Se antes, sentia necessidade de ir buscar "paz" para o meu espírito, agora sinto uma vontade ainda maior de voltar, voltar sempre. Hoje, continuo a sonhar, mas com a outra Guiné. A de 2005 com o mesmo povo, franco, aberto, comunicativo e sobretudo alegre e acolhedor.
Os tempos da guerra passaram e, se deixaram marcas negativas, estas foram abafadas pelo que de bom lhe levamos. Formas de estar, de pensar e agir diferentes. Apesar de levarmos a guerra e o sofrimento, também levámos uma nobreza de alma.
Guiné-Bissau > Buba > 2005 > Chefe da Tabanca Lisboa, a 5 Km de Buba, um antigo centro de treino do IN...
O chefe da tabanca, onde vivem vários antigos combatentes do PAIGC, é por sua vez um antigo paraquedista, formado em Tancos, e que lutou ao lado dos portugueses...
© José Teixeira (2005)
A maior parte dos portugueses que foram chamados à Guiné, eram oriundos do interior de Portugal. Gente humilde e honrada. Gente que soube separar as águas e não ver nos Guineenses um inimigo a abater, mas pessoas que apenas tinham outra cor, outras culturas e hábitos, outra forma de vestir.
A simbiose fez-se naturalmente, sem dificuldades e a imagem que ficou, mantem-se. Somos queridos e bem vindos:
– Tu Português de Portugal, eu Português de Guiné - ouvi dizer algures na nova Guiné que visitei em 2005. Ou:
- Branco ê na volta ! Branco ê na volta mesmo – como me dizia a velhinha mulher do falecido Sambel, Homem Grande de Contabane (1) quando comovida me abraçava.
A visão panorâmica das aldeias locais (tabancas) mudou completamente e também mudou, felizmente, na minha mente.
Vi pistas de aviação foram transformadas em locais de habitação e de produção de Caju, vi casernas transformadas em escolas, por todas as tabancas por onde passei. Os espaços que mantínhamos capinados à voltas das tabancas por questões de segurança, são zonas de habitação e produção de cajueiros (2). As tabancas cresceram, romperam as barreiras de arame farpado, aproximaram-se umas das outras. Não há medos nem silêncios, há vida.
A estrada de Quebo a Mampatá Forea, outrora deserta e minada, quantas vezes, onde havia duas tabancas, Afia e Bacardado, esta última abandonada no meu tempo depois de incendiada pelo IN, é hoje uma passerelle contínua de pessoas em movimento, que se alonga por Uane, Sare Donhã e Samba Sábali. A estrada de Saltinho, Contabane a Quebo, fechada, após a destruição de Contabane(2), é outro corredor de interligação de pessoas.
Guiné-Bissau > 2005
... "Em Abril de 2005 tal como em 1968"...
© José Teixeira (2005)
Buba voltou a ter a vida que nos anais da história retratam como cidade comercial (transformada no tempo da guerra numa pequena povoação com um forte contingente militar – duas Companhias da tropa macaca, uma de Comandos ou Páras e uma de Fuzileiros). Banhada pelo Rio Grande Buba, braço de mar. Porto de ligação com a zona de Tombali. Centro comercial pela sua posição estratégica, cresceu imenso, gerando uma grande avenida que ultrapassa o fim da pista de aviação, actualmente transformada em zona habitacional e de comércio.
A picada para Fulacunda foi activada, dando acesso à tabanca de Sare Tuto, a cerca de 5 Km de Buba, conhecida por Tabanca Lisboa. Outrora base e centro de treino IN. Daí partiam para nos "incomodar" na estrada em construção, nas colunas para Quebo e nas tabancas onde estacionávamos (Buba, Nhala, Samba Sábali, etc.).
Insólito é que o Chefe de Tabanca actual é um antigo paraquedista das FAP [Força Aérea Portuguesa], talvez mais português que qualquer um de nós, até no português que fala sem sotaque local.
Os seus habitantes são ainda, na sua maioria antigos IN. O nosso amigo que se orgulha de ter servido Portugal tirou o Curso em Tancos e seguiu para a sua terra onde durante anos serviu Portugal nos Paras. No fim da guerra viveu clandestinamente durante dois anos e depois voltou... para a mulher que tinha do outro lado da barreira e vivia nesta linda tabanca de Sare Tuto (ou Lisboa), onde ainda hoje, quase só se fala Crioulo ou francês. As suas bases culturais depressa o guindaram ao lugar de Chefe de Tabanca. Tem em funcionamento uma escola de Português e está a criar outra no outro extremo da Tabanca. Conhecedor da mata como ninguém, é um excelente pisteiro, procurado pelos caçadores brancos que vão à Guiné e se instalam no Saltinho.
Aqui neste cantinho escondido da Guiné, tive o meu reencontro oficial com o IN. Quatro homens e mulheres, manga delas, observavam-nos à distância de 2 a 3 metros. Perguntei quem eram e tive como resposta:
- Turras!- Dirigi-me a eles:
- A bó bandido qui taka Buba, tempo di guera ? - Começaram se a rir e um deles retorquiu:
- A bó turra branco qui firma na Buba ? djobe. Manga di tempo qui guera na kaba. Parte mantanhas.
Demos um abraço e eu senti-me um homem feliz!
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Notas do autor:
(1) História que também merece ser contada, mais tarde.
(2) Contabane é uma tabanca que fica entre Quebo e Saltinho (Sinchã Shambel).
O Régulo Shambel teve a visita do IN na noite de São João de 1968. A tabanca foi incendiada e destruída, o Pelotão da CCAÇ 2382 teve de retirar com a roupa que trazia no corpo e a população refugiou-se em Quebo.
Actualmente a sua mulher vive em Sinchã Sambel do outro lado da ponte do Saltinho, cujo chefe é seu filho. Este era milícia em Mampatá Forea e casou com a Nana, filha do Alferes de milícia Aliu Baldé, régulo de Mampatá no meu tempo.
Tive o prazer de conviver de novo com esta mulher que era uma das mais belas bajudas que conheci, e continua a sê-lo, a par da sua amiga e futura cunhada Famara Baldé (minha lavandera).
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Nota de L.G.
(*) Vd a I parte > post de 4 de janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXVIII: Pensando... A Guiné que eu (vi)vi (1968/70) (José Teixeira)
Guiné 63/74 - P400: Os Solitários da CART 2339 na Ponte do Rio Undunduma e em Fá (Carlos Marques Santos)
Guiné > Fá Mandinga > 1968 > Depois do ataque a Bambadinca, a 28 de Maio de 1968, o Gr Comb do Fur Mil Santos - Os Solitários - é destacada para defender a Ponte do Rio Undunduma (que o IN tentou dinamitar); lá viveu duas semanas em tendas de campanha; mais tarde é destacado para reforçar Fá Mandinga. Ei-lo aqui, em diligência...
© Carlos Marques Santos (2005)
Texto do Carlos Marques dos Santos, ex-furriel miliciano da CART 2339 (Mansambo, 1968/70), afecta ao BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70) (1).
Sabendo que andámos pelos mesmos caminhos - cruzados, concerteza, sem o sabermos -, é hoje bom ver que aquilo que vivemos não esquecemos. É importante não esquecer!
Li no Blogue (Luís & Camaradas) uma referência ao pontão do Rio Undunduma (2). Eu e os meus camaradas da CART 2339 estivemos lá.
Em 28 de Maio de 1969 ouvimos rebentamentos para aqueles lados e pensámos ser na tabanca Moricanhe. Afinal, para nosso espanto, era mesmo em Bambadinca, sede do Batalhão (3).
Dia 29, pela 05.30 da manhã, seguimos para reforço da sede de Batalhão. 15 dias. Salvo erro com o Pel Caç Nat 63 estivemos em tendas (panos de tenda com botões), em vigília constante, àquela que era uma passagem importante [, a ponte sobre o Rio Undunduma, na estrada Xime-Bambadinca].
Guiné-Bissau > Estrada Bambadinca-Mansambo > Novembro de 2000 > Cruzamento em Bambadinca que dá para Xime e Bafatá, e Mansambo) . Foto tirada já na estrada que dá para Mansambo...
Placa rodoviária: Xime, 10 km; Bafatá, 28 km.
© Albano Costa (2005)
Depois disso, outros, e até da nossa CART 2339, estiveram lá. Nós, CART 2339, abandonámos em 12 de Julho de 1969.
Entretanto dali, e depois de uma série de ataques, em Amedalai, Mansambo e Xime, Bambadinca e outra vez Bambadinca, fomos para reforço a Fá (Mandinga), nosso aquartelamento de acolhimento, pois havia indicações de que poderia ser atacado.
Guiné-Bissau > Mansambo > Novembro de 2000 > A pequena tabanca de Mansambo à beira da estrada (alcatroada) de Bambadinca-Xitole-Saltinho-Quebo... Segundo lo fotógrafo, " estas tabancas ficam mais ou menos a 100 metros da porta do antigo aquartelamento de Mansambo (...) O quartel quase desapareceu, só ficou a entrada do destacamento, o resta (os abrigos) está tudo tapado".
O Albano e os seus amigos foram lá encontrar, na sua viagem à Guiné, em Novembro de 2000, um antigo soldado da CCAÇ 12.
© Albano Costa (2005)
O meu pelotão - e eu era o furriel mais velho e por ausência quase sistemática do Alferes, competia-me o comando - intitulou-se de "Os Solitários", pois por norma estava em diligência. Que palavra tão bonita.
Carlos Marques dos Santos
Coimbra
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Notas de L.G.
(1) Vd. post de 28d e Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXCIX: Mansambo, um sítio que não vinha no mapa (1): a água da vida
(2) Vd. post de 3 de Janeiro de 2005 > Guiné 63/74 - CDXVI: Herr Spínola na ponte do Rio Undunduma
(3) Sobre o célebre ataque a Bambadinca, de 28 de Maio de 1968, vd. post de 14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal
Guiné 63/74 - P399: Pensando... A Guiné que eu (vi)vi (1968/70) (José Teixeira)
Guiné > Ingoré (Cacheu) > Noite de São João > "Cá vai a marcha da tabanca"...
Os alegres dias de Ingoré, com o pessoal da CCAÇ 2381 em treino operacional antes de ser colocado no sul (Buba, Empada, região de Quínara))...
Apenas ensombrados pelo brutal episódio do 1º Cabo S... e do prisioneiro senegalês. Na foto, o enfermeiro Teixeira, de óculos, é o primeiro da direita
© José Teixeira (2005)
Texto, em duas partes, do José Teixeira, ex-1º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381 que esteve em Ingoré (no norte, em treino operacional) e foi depois colocada no sul (Bula, Aldeia Borbosa, Mampatá, Empada) (Maio de 1968 / Maio de 1970) (1).
Em Março de 2005, o Teixeira volta à Guiné-Bissau... por terra (Lisboa-Bissau). O que viu e sentiu nessas duas épocas diferentes (1968/70 e Março de 2005) é objecto deste texto ("Pensando...") que ele faz questão de partilhar connosco:
Pensando ... A Guiné que eu (vi)vi (1968/70) - I Parte (José Teixeira)
Arame farpado a rodear as tabancas (aldeias). Primeira fiada, segunda fiada. Garrafas vazias penduradas duas a duas para com o seu tilitar servir de aviso aos sentinelas nocturnas. Área capinada, armadilhas de fogo . . .. Recolhas ao interior da tabanca, ao pôr do Sol, silêncios...
As festas naturais da comunidade, momentos de alegria, convivências, partilha de amizades, como festas de nascimentos, casamentos, aniversários, convívios, tudo abafado no silêncio aterrador do medo.
Os ataques às tabancas, as correrias para os abrigos, o dormir com as crianças amarradas às costas para poder salvá-las ao mais pequeno sinal de perigo, os feridos, os mortos, as crianças a chorar...
As colunas sem fim, debaixo de sol abrasador, as emboscadas, as balas a assobiar por cima das nossas cabeças, as granadas com o característico som da saída da boca do canhão, que originava o grito: Aí estão eles !... e vida parava...
Saídas temerárias à bolanha (áreas de cultivo) para a labuta do ganha pão, nos arrozais, mancarrais, milheirais ou pesca, com medo de encontros desagradáveis. Os nacionalistas do PAIGC apelidados de Bandido, para os nativos (e Turras para a tropa branca), podiam surpreender com o Ágára ! ágára! é nosso ! (Agarra! Agarra!, que é nosso). Precisavam de alimentar as suas fileiras com combatentes, com transportadores e mão de obra para a produção de riqueza e sobretudo alimentos (trabalho nas bolanhas controladas). De nada servia dizer que tem família, tem minino prá cuidar.
Assim se vivia na Guiné que eu conheci.
O risco tornava-se maior se o encontro se dava com os tuga (tropa portuguesa), se esta os confundisse com bandido. Possivelmente de nada lhe serviria dizer amigo di tropa ou nem tempo teria para o fazer....
Recordo os dois jovens irmãos cuja captura testemunhei em Ingoré (2), suponho que para lá da fronteira, dentro do Senegal, numa das patrulhas que a minha Companhia fez. Recusaram-se ou não sabiam falar Português ou Crioulo, apenas francês que, julgo, ninguém do comando sabia o suficiente para os entender. O mais velho foi metido numa masmorra com a sua altura, dois metros de comprido por um de largo (vergonha nossa). Tinha apenas uma janela, com chapa em lugar de vidros, por onde entrou e depois se fechou.
Assim ficou no escuro alguns dias à espera de ser enviado para Bissau como turra. Apenas via a luz do sol, quando lhe levavam comida, duas vezes ao dia. Para as necessidades fisiológicas, um balde, que lhe possibilitava uns momentos de luz e ar ao ir despejá-lo à retrete, dia sim, dia não. Até que, cansado de tanto sofrer tentou a sua sorte. Quando lhe foram levar comida, atirou-lhes com o conteúdo do balde à cara. Era a última esperança. Liberdade ou morte. Esta vida, não... Foi barbaramente assassinado pelo Cabo S... com um tiro na boca, dentro da masmorra, momentos depois.
O Cabo S... regressou a Lisboa, passado um mês com a sua Companhia. Não houve processo, inquérito. Tudo tão natural. Aconteceu... Eu estava lá a cinco metros. Suponho que no relatório oficial da sua morte, se o houve, devia constar "morto ao tentar fugir".
O irmão, mais novo (17 anos), não cabia na masmorra. Ficou junto ao refeitório amarrado e guardado por dois soldados, até ir habitar o lugar que seu irmão deixou vago.
Tratei-o de um furúnculo que tinha no peito. Tive oportunidade de conversar algumas vezes com ele em francês. Criei alguma relação de amizade e cumplicidade. Continuei a visitá-lo a pretexto do tratamento. Nas conversas que tivemos confrontei-me com um jovem que tinha bases académicas avançadas para um jovem aldeão do interior da Guiné. As conversas que tivemos sobre vários temas, no meu parco francês confundiram-me.
Comecei por ver nele um possível IN que merecia ser tratado como pessoa, pois estava doente. Com o desenrolar dos contactos, comecei a gostar de conversar com ele. Foi como que uma realidade nova para os meus dois meses de Guiné, alguém que se afirma cidadão do Senegal, que rejeita a guerra e não sabe porque foi preso, pois ia para a sua bolanha no Senegal trabalhar com o irmão. Mas alguém que demonstra conhecimentos de geografia e história.
Isto tudo me leva hoje a acreditar na sua versão de estudante em Dakar – Senegal, a passar férias na aldeia. Foi ocupar a masmorra que o irmão deixara livre depois de ser assassinado. Acompanhei-o até à prisão. Despedimo-nos com um caloroso aperto de mão, como sempre o fazíamos quando a pretexto de "dar mezinho ao prisioneiro" o ia visitar. Uma lágrima teimosa percorreu a minha face, o coração comprimui-se. Não tive a coragem de lhe dizer o que aconteceu ao irmão.
No dia seguinte a masmorra estava aberta. Julgo que o levaram para Bissau para ser interrogado pela Pide.
Perdoem-me, os camaradas tertulianos, este relembrar de situações dolorosas que poderão incomodar. São marcas que ficaram e não se podem esconder, para que a verdadeira história se faça (3).
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Notas de L.G.
(1) Vd. post de 15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXIII: CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)
(2) Ingoré: no norte, junto à fronteira com o Senegal, na estrada entre Sedengal e Bigene. Pertence à actual região do Cacheu.
(3) O Teixeira e eu decidimos não identificar o militar português aqui referido. Que fique claro: não era da CCAÇ 2381, era dos "velhinos". Chamámos-lhe apenas S..., que tanto pode ser Silva, como Santos, Sousa ou Silvestre.
Eis a mensagem que mandei ao autor:
"O cabo S... era da tua companhia ? É pseudónimo ? Estará ainda vivo ? Como vão reagir os teus camaradas da CCAÇ 2381 ? O que tu relatas é grave, mas o cabo tinha um furriel acima dele, o furriel um alferes, o alferes um capitão e pró aí fora... Acho bem que estas páginas negras da guerra vejam a luz do dia: julgo que muitos de nós nos comportámos com honra e dignidade, mas também tivemos camaradas que praticaram crimes de guerra e crimes contra a humanidade... O mesmo se terá passado no outro lado... Nem eles nem nós éramos meninos de coro... Louvo a tua coragem ao abordar este assunto delicado, mas não tens que pedir desculpa a ninguém: tu estavas lá. E como homem e como cristão, e até como português e como militar, não podias ficar indiferente...
"Temos,contudo, que ter algum cuidado com a identificação dos camaradas: o cabo S... era apenas uma peça da engrenagem, provavelmente um tipo a quem entregavam os trabalhos sujos... Se S... é pseudónimo temos que dizer isso... Se não é, temos que ver se ainda é fácil a sua identificação... Pode estar vivo, ter mulher e filhos... A solução é não identificar a companhia... Mas tu é que vês qual a melhor solução. O episódio deve ser factualmente relatado e comentado, como tu o fizeste, e bem".
Eis a resposta do José Teixeira:
"O 1º O Cabo S... era da companhia dos velhinhos que fomos substituir. Eu era periquito e não escrevi no Diário com medo de poder ser apanhado.
"Posso informar-te que não [fomos nós], um grupo da minha companhia que estava por perto, junto a mim, não lhe demos um tiro [ao 1º Cabo S...] porque foi logo protegido e afastado, mas houve quem chorasse de raiva.
"(...) Os colegas da CCAÇ 2381, se se lembrarem, concerteza que vão reflectir de novo sobre o assunto, que na altura nos dividiu. Uns diziam "era turra, teve o que merecia". Outros, como eu, interrrogavamo-nos e perguntavamos como se sabia se era turra ou não, dado que não falava português e [fora] capturado sem armas e longe da povoações nativas da Guiné, dentro do Senegal. Aliás, houve outra saída em que também entrámos no Senegal e depois tivemos de fugir a correr, porque o Alferes do meu grupo viu pessoas ao longe e mandou avançar para elas. O capitão mandou regressar ao grupo principal e ...(ouvi eu) disse:
- Você não sabe que estamos dentro do Senegal?! Vamos regressar já à base antes que haja sarilho.
"O Cabo S... acompanhava o soldado que levava comida ao prisioneiro. Iam desarmados, pois a janela estava alta e não era fácil sair.
Os dois apanharam com a penicada e o S... foi buscar a G-3 e disse mais ou menos isto:
- Não queres comer ? Vais comer de qualquer maneira!... - Apontou-lhe a arma à boca e disparou. Creio que o prisioneiro queria dizer qualquer coisa, mas ficou engasgado mortalmente com a bala.
"Pensas bem em não identificarmos a Companhia, que não sei qual era. Podes também [omitir o apelido do cabo], para evitar possíveis dissabores.
"Quanto às consequências possíveis, na altura para o Cabo, tudo foi abafado e fez-se constar que o abatido fora identificado como um perigoso turra.
"Claro que eu, simples cabito enfermeiro, não andava por dentro dos meandros do Comando, pelo que tudo o que possa dizer seria mera especulação. Apenas relato o que vi e senti.
"Há outros casos conhecidos e passados perto de mim, mas que não vivi, logo não posso nem devo falar deles".
Os alegres dias de Ingoré, com o pessoal da CCAÇ 2381 em treino operacional antes de ser colocado no sul (Buba, Empada, região de Quínara))...
Apenas ensombrados pelo brutal episódio do 1º Cabo S... e do prisioneiro senegalês. Na foto, o enfermeiro Teixeira, de óculos, é o primeiro da direita
© José Teixeira (2005)
Texto, em duas partes, do José Teixeira, ex-1º Cabo Enfermeiro da CCAÇ 2381 que esteve em Ingoré (no norte, em treino operacional) e foi depois colocada no sul (Bula, Aldeia Borbosa, Mampatá, Empada) (Maio de 1968 / Maio de 1970) (1).
Em Março de 2005, o Teixeira volta à Guiné-Bissau... por terra (Lisboa-Bissau). O que viu e sentiu nessas duas épocas diferentes (1968/70 e Março de 2005) é objecto deste texto ("Pensando...") que ele faz questão de partilhar connosco:
Pensando ... A Guiné que eu (vi)vi (1968/70) - I Parte (José Teixeira)
Arame farpado a rodear as tabancas (aldeias). Primeira fiada, segunda fiada. Garrafas vazias penduradas duas a duas para com o seu tilitar servir de aviso aos sentinelas nocturnas. Área capinada, armadilhas de fogo . . .. Recolhas ao interior da tabanca, ao pôr do Sol, silêncios...
As festas naturais da comunidade, momentos de alegria, convivências, partilha de amizades, como festas de nascimentos, casamentos, aniversários, convívios, tudo abafado no silêncio aterrador do medo.
Os ataques às tabancas, as correrias para os abrigos, o dormir com as crianças amarradas às costas para poder salvá-las ao mais pequeno sinal de perigo, os feridos, os mortos, as crianças a chorar...
As colunas sem fim, debaixo de sol abrasador, as emboscadas, as balas a assobiar por cima das nossas cabeças, as granadas com o característico som da saída da boca do canhão, que originava o grito: Aí estão eles !... e vida parava...
Saídas temerárias à bolanha (áreas de cultivo) para a labuta do ganha pão, nos arrozais, mancarrais, milheirais ou pesca, com medo de encontros desagradáveis. Os nacionalistas do PAIGC apelidados de Bandido, para os nativos (e Turras para a tropa branca), podiam surpreender com o Ágára ! ágára! é nosso ! (Agarra! Agarra!, que é nosso). Precisavam de alimentar as suas fileiras com combatentes, com transportadores e mão de obra para a produção de riqueza e sobretudo alimentos (trabalho nas bolanhas controladas). De nada servia dizer que tem família, tem minino prá cuidar.
Assim se vivia na Guiné que eu conheci.
O risco tornava-se maior se o encontro se dava com os tuga (tropa portuguesa), se esta os confundisse com bandido. Possivelmente de nada lhe serviria dizer amigo di tropa ou nem tempo teria para o fazer....
Recordo os dois jovens irmãos cuja captura testemunhei em Ingoré (2), suponho que para lá da fronteira, dentro do Senegal, numa das patrulhas que a minha Companhia fez. Recusaram-se ou não sabiam falar Português ou Crioulo, apenas francês que, julgo, ninguém do comando sabia o suficiente para os entender. O mais velho foi metido numa masmorra com a sua altura, dois metros de comprido por um de largo (vergonha nossa). Tinha apenas uma janela, com chapa em lugar de vidros, por onde entrou e depois se fechou.
Assim ficou no escuro alguns dias à espera de ser enviado para Bissau como turra. Apenas via a luz do sol, quando lhe levavam comida, duas vezes ao dia. Para as necessidades fisiológicas, um balde, que lhe possibilitava uns momentos de luz e ar ao ir despejá-lo à retrete, dia sim, dia não. Até que, cansado de tanto sofrer tentou a sua sorte. Quando lhe foram levar comida, atirou-lhes com o conteúdo do balde à cara. Era a última esperança. Liberdade ou morte. Esta vida, não... Foi barbaramente assassinado pelo Cabo S... com um tiro na boca, dentro da masmorra, momentos depois.
O Cabo S... regressou a Lisboa, passado um mês com a sua Companhia. Não houve processo, inquérito. Tudo tão natural. Aconteceu... Eu estava lá a cinco metros. Suponho que no relatório oficial da sua morte, se o houve, devia constar "morto ao tentar fugir".
O irmão, mais novo (17 anos), não cabia na masmorra. Ficou junto ao refeitório amarrado e guardado por dois soldados, até ir habitar o lugar que seu irmão deixou vago.
Tratei-o de um furúnculo que tinha no peito. Tive oportunidade de conversar algumas vezes com ele em francês. Criei alguma relação de amizade e cumplicidade. Continuei a visitá-lo a pretexto do tratamento. Nas conversas que tivemos confrontei-me com um jovem que tinha bases académicas avançadas para um jovem aldeão do interior da Guiné. As conversas que tivemos sobre vários temas, no meu parco francês confundiram-me.
Comecei por ver nele um possível IN que merecia ser tratado como pessoa, pois estava doente. Com o desenrolar dos contactos, comecei a gostar de conversar com ele. Foi como que uma realidade nova para os meus dois meses de Guiné, alguém que se afirma cidadão do Senegal, que rejeita a guerra e não sabe porque foi preso, pois ia para a sua bolanha no Senegal trabalhar com o irmão. Mas alguém que demonstra conhecimentos de geografia e história.
Isto tudo me leva hoje a acreditar na sua versão de estudante em Dakar – Senegal, a passar férias na aldeia. Foi ocupar a masmorra que o irmão deixara livre depois de ser assassinado. Acompanhei-o até à prisão. Despedimo-nos com um caloroso aperto de mão, como sempre o fazíamos quando a pretexto de "dar mezinho ao prisioneiro" o ia visitar. Uma lágrima teimosa percorreu a minha face, o coração comprimui-se. Não tive a coragem de lhe dizer o que aconteceu ao irmão.
No dia seguinte a masmorra estava aberta. Julgo que o levaram para Bissau para ser interrogado pela Pide.
Perdoem-me, os camaradas tertulianos, este relembrar de situações dolorosas que poderão incomodar. São marcas que ficaram e não se podem esconder, para que a verdadeira história se faça (3).
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Notas de L.G.
(1) Vd. post de 15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXIII: CCAÇ 2381 (Buba e Empada, 1968/70)
(2) Ingoré: no norte, junto à fronteira com o Senegal, na estrada entre Sedengal e Bigene. Pertence à actual região do Cacheu.
(3) O Teixeira e eu decidimos não identificar o militar português aqui referido. Que fique claro: não era da CCAÇ 2381, era dos "velhinos". Chamámos-lhe apenas S..., que tanto pode ser Silva, como Santos, Sousa ou Silvestre.
Eis a mensagem que mandei ao autor:
"O cabo S... era da tua companhia ? É pseudónimo ? Estará ainda vivo ? Como vão reagir os teus camaradas da CCAÇ 2381 ? O que tu relatas é grave, mas o cabo tinha um furriel acima dele, o furriel um alferes, o alferes um capitão e pró aí fora... Acho bem que estas páginas negras da guerra vejam a luz do dia: julgo que muitos de nós nos comportámos com honra e dignidade, mas também tivemos camaradas que praticaram crimes de guerra e crimes contra a humanidade... O mesmo se terá passado no outro lado... Nem eles nem nós éramos meninos de coro... Louvo a tua coragem ao abordar este assunto delicado, mas não tens que pedir desculpa a ninguém: tu estavas lá. E como homem e como cristão, e até como português e como militar, não podias ficar indiferente...
"Temos,contudo, que ter algum cuidado com a identificação dos camaradas: o cabo S... era apenas uma peça da engrenagem, provavelmente um tipo a quem entregavam os trabalhos sujos... Se S... é pseudónimo temos que dizer isso... Se não é, temos que ver se ainda é fácil a sua identificação... Pode estar vivo, ter mulher e filhos... A solução é não identificar a companhia... Mas tu é que vês qual a melhor solução. O episódio deve ser factualmente relatado e comentado, como tu o fizeste, e bem".
Eis a resposta do José Teixeira:
"O 1º O Cabo S... era da companhia dos velhinhos que fomos substituir. Eu era periquito e não escrevi no Diário com medo de poder ser apanhado.
"Posso informar-te que não [fomos nós], um grupo da minha companhia que estava por perto, junto a mim, não lhe demos um tiro [ao 1º Cabo S...] porque foi logo protegido e afastado, mas houve quem chorasse de raiva.
"(...) Os colegas da CCAÇ 2381, se se lembrarem, concerteza que vão reflectir de novo sobre o assunto, que na altura nos dividiu. Uns diziam "era turra, teve o que merecia". Outros, como eu, interrrogavamo-nos e perguntavamos como se sabia se era turra ou não, dado que não falava português e [fora] capturado sem armas e longe da povoações nativas da Guiné, dentro do Senegal. Aliás, houve outra saída em que também entrámos no Senegal e depois tivemos de fugir a correr, porque o Alferes do meu grupo viu pessoas ao longe e mandou avançar para elas. O capitão mandou regressar ao grupo principal e ...(ouvi eu) disse:
- Você não sabe que estamos dentro do Senegal?! Vamos regressar já à base antes que haja sarilho.
"O Cabo S... acompanhava o soldado que levava comida ao prisioneiro. Iam desarmados, pois a janela estava alta e não era fácil sair.
Os dois apanharam com a penicada e o S... foi buscar a G-3 e disse mais ou menos isto:
- Não queres comer ? Vais comer de qualquer maneira!... - Apontou-lhe a arma à boca e disparou. Creio que o prisioneiro queria dizer qualquer coisa, mas ficou engasgado mortalmente com a bala.
"Pensas bem em não identificarmos a Companhia, que não sei qual era. Podes também [omitir o apelido do cabo], para evitar possíveis dissabores.
"Quanto às consequências possíveis, na altura para o Cabo, tudo foi abafado e fez-se constar que o abatido fora identificado como um perigoso turra.
"Claro que eu, simples cabito enfermeiro, não andava por dentro dos meandros do Comando, pelo que tudo o que possa dizer seria mera especulação. Apenas relato o que vi e senti.
"Há outros casos conhecidos e passados perto de mim, mas que não vivi, logo não posso nem devo falar deles".
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