Guiné > Guileje > Dauda... Era a cara do pai... e a mascote da companhia...
© José Neto (2005)
III parte das memórias do primeiro-sargento da Companhia de Artilharia nº 1613 (Guileje, 1967/68), o então 2º Sargento José Afonso da Silva Neto (e hoje, capitão reformado).
Dauda, o Viegas
Como já escrevi, eram todos de etnia fula, de raça negra, com excepção de um menino mestiço.
Este menino, na altura com onze, doze meses de idade, era filho da Sona, uma jovem de Cacine, comprada pelo alfaiate de Guileje para ser a sua terceira esposa.
Tinha o nome de Dauda, mas era tratado por todos nós por Viegas, apelido do pai, capitão que comandara a companhia de Cacine. Ainda hoje, quando revejo as dezenas de fotografias que fiz do garoto, acho que poderíamos anteceder Silva a Viegas…
Foi pela minha mão que o miúdo deu os primeiros passos. E foi por ele que, suponho, arrisquei a vida quando, num ataque bem apontado, as morteiradas atingiram a zona da cozinha, lenheiro e depósito de géneros.
Guiné > Guileje > 1967 > Uma dos dos abrigos enterrados...Na foto vê-se uma bazuca pendurada e, do lado direito, a máquina de costura do alfaiate da tabanca... © José Neto (2005)
Ao correr para o abrigo ouvi o choro duma criança. O Viegas tinha jantado connosco, como de costume, e tive a quase certeza de que era ele. Retrocedi e apanhei-o junto ao coberto que servia de messe de sargentos. Arrastei-o até à entrada do abrigo e, uns instantes depois, uma granada explodiu no monte de lenha a menos de quatro metros de distância, projectando cavacas em todas as direcções.
Dos meus troféus faz parte a empenagem que sobrou dessa granada, que nunca limpei, e que a minha mulher resmunga que só serve para sujar o móvel onde está. Não é que suje, mas também nunca me apeteceu contar-lhe a história desse bocado de ferro com alhetas e terra empastada.
Quanto à actividade militar, a das tropas operacionais era intensa e da minha parte não o era menos.
O Capitão Corvacho, ainda em Brá, dividiu o comando da companhia em duas partes distintas: a parte operacional era dirigida por ele e a administrativa por mim.
Basta referir que o meu Registo Geral (caderno mensal em que são escriturados todos os homens e as suas mais diversas situações) tinha muito perto de trezentos títulos.
Creio que é a terceira vez que o trago a esta história, mas não posso deixar de salientar a enorme ajuda do meu escriturário, o 1º Cabo Ramiro Pais Cardoso, um jovem que antes da tropa era empregado duma sapataria em Viseu, sua terra natal, cuja dedicação e competência me levaram a decidir e recomendar ao nosso Capitão que, durante a minha licença na Metrópole, ele ficasse a exercer as minhas funções, prescindindo da regulamentar substituição pelo 2º Sargento Costa Pinto, que só constou no papel e nos actos imprescindíveis… tais como dispensa de serviço de escala.
E aproveito também para prestar o meu profundo apreço pelo meu ultra zeloso faxina pessoal, o Rochinha, de seu nome completo António Casimiro da Rocha, natural de Passais, freguesia de Fiães, concelho de Vila da Feira.
Dizia-se mal classificado pela tropa, pois era manufactor de calçado e não sapateiro como constava nos seus documentos e roía-se todo por ter sido privado de especialidade, ficando portanto básico, só pelo facto de ter os pés chatos.
Cuidava de mim e dos meus pertences com uma dedicação extrema. Um dos seus cuidados era fazer-me o café às horas certas de acordo com a nossa combinação. Ficou histórica a sua presteza quando, durante os dois dias de viagem marítima de Buba para Gadamael, às horas marcadas me aparecia o Rochinha com o cafezinho fumegante.
E o único convidado para a bica que ele admitia era o nosso Capitão e o Dr. Oliveira Martins quando estava connosco.
Fartou-se de me pedir para o deixar ir a uma operação, mas sempre lhe neguei a vontade, porque, se por um lado lhe estava vedada essa actividade, por outro eu não podia prescindir da sua colaboração.
De parceria com o Ramiro, que o ensinou a escrever à máquina, dava volta à papelada mais trivial com segurança e a contento de todos, pois nunca abusou da sua relativa proximidade com o comando da companhia. Antes pelo contrário. Algumas vezes ajudava um ou outro camarada menos expedito a trazer-me este ou aquele problema que necessitava da minha intervenção.
O resto da estação das chuvas, de Junho a Setembro, foi passada na expectativa das tradicionais boas vindas que os turras costumavam dar às guarnições novas.
Guiné > Guileje > 1967 > Mais um dos abrigos enterrados... e local de brincadeira da criançada... © José Neto (2005)
Havia informações de que o IN tinha deslocado para aquela zona dois bigrupos (*) e possivelmente, tal como nós, andavam a adaptar-se ao terreno. Até que, em meados de Outubro, tivemos o primeiro ataque, muito mal realizado, graças a Deus.
Primeiro, já tínhamos conhecimento dos seus movimentos e da hora provável da flagelação e segundo, acercaram-se demasiado do perímetro fortificado e ficaram expostos ao fogo das nossas armas ligeiras, principalmente dilagramas (1) e bazucas.
Além disso as suas granadas de morteiro, embora tivessem o alvo constituído pelas coberturas de zinco das nossas instalações iluminado pelo luar, caíram todas longe da tabanca, sem causar o mínimo estrago.
Em contrapartida, deixaram no terreno algum armamento, peças de roupa ensanguentada e sinais de uma retirada pouco organizada. Soube-se depois que esta acção foi o baptismo de fogo da maior parte dos atacantes, uma espécie de exercícios finais de recrutas, mas a sério.
E para mim também o foi, já que a campanha do Lap Sap de 1952, em Macau (2), não conta, porque não cheguei a sentir o calafrio provocado pela incerteza de onde irá cair a próxima?
Tínhamos acabado de jantar e cada qual foi para o seu buraco, porque, como já referi, estávamos à espera do ataque. No meu quarto-abrigo a segurança era mais que suficiente e dispus-me a escrever um aerograma para a minha mulher a mentir-lhe, como sempre fiz em relação aos perigos que corria, dizendo-lhe que estava tudo bem comigo, que estivesse descansada e por aí fora.
Ao estrondo da primeira granada de morteiro que caiu lá para o fundo da pista seguiu-se o corte da electricidade, já programado. Acendi a minha lanterna de pilhas e fiz um leve risco no alto da folha para assinalar o acontecimento.
Com o continuar dos rebentamentos, começou a ouvir-se o som característico das costureirinhas e das Kalash, o que pressupunha a intenção de flagelação seguida de tentativa de assalto.
Até essa altura eu tinha a convicção de que a história de medo de pôr os cabelos em pé não passava disso mesmo, um rifão como outro qualquer. Mas a veracidade estava bem presente. Por momentos senti um arrepio de frio na espinha e os cabelos, e pêlos dos braços, a eriçarem-se.
Compreendi rapidamente que estar ali sozinho não me era emocionalmente favorável e arrastei-me até ao abrigo fortificado que ficava por trás do meu quarto onde encontrei os elementos da guarnição muito calmos a fazerem uns disparos tiro-a-tiro pelas seteiras ao mesmo tempo que comentavam:
-Estes gajos são loucos. Se avançam para cá das árvores caiem todos como tordos.
Ao fim de muitas horas, quando o silêncio se consolidou, fiquei pasmado ao olhar para o meu relógio e constatar que a coisa tinha durado menos de quarenta minutos.
Acompanhei o Capitão na volta pelos abrigos e palhotas da tabanca e certificamo-nos de que o ataque nem uma beliscadura causou.
Em conversa sobre o acontecido eu disse-lhe que me tinha arrepiado com medo, embora sabendo que estava em local seguro. Respondeu-me que também ele já tinha passado por isso, mas que, com a continuação, uma pessoa se habitua.
Entramos assim num ciclo de duas campanhas: eles executavam a sua de noite e nós a nossa de dia.
Quanto aos ataques que sofremos daí para o futuro, e foram muitos, apenas quero salientar, para além do que descrevi sobre o Viegas, dois ou três pormenores:
Na gíria das transmissões essas acções do IN eram alcunhadas de festival o que se estendeu ao dia-a-dia do pessoal.
Muitas vezes as nossas sentinelas detectavam o som da saída das granadas do tubo e disparavam uma rajada ao mesmo tempo que gritavam:
-Festival!!!
Quando a primeira granada chegava já estava quase tudo abrigado. Uma ocasião tal não sucedeu e se alguém pode acreditar em milagres, esses são o Capitão Corvacho e o Alferes Michael (3).
Ao correrem para junto da posição do Morteiro de 81 mm, seu posto de combate na circunstância, por pouco não foram atingidos por qualquer coisa que não identificaram de imediato.
Quando acabou a flagelação constatou-se que essa coisa era uma granada de morteiro que não explodiu e estava semi-enterrada no solo.
Tomaram-se as precauções necessárias e no dia seguinte a granada foi puxada por um extenso cabo de aço. Mas antes, como bom artilheiro, o Capitão mediu o ângulo de chegada do projéctil com o qual calculou a direcção e a distância de onde tinha sido disparado, para futuras retribuições (4).
Providencialmente o turra tinha-se esquecido de sacar a cavilha de segurança da espoleta antes de meter a granada no tubo!!!
_________
Notas do Z. N.:
(1) Dispositivo de Lançamento de Granadas de Mão, um engenho português que se adaptava ao cano da espingarda automática G 3. Com uma munição especial, facultava o lançamento de granadas de mão a distâncias consideráveis em tiro curvo. Era terrivelmente eficaz quando lançado sobre as copas das árvores, pois as granadas explodiam e fragmentavam-se em direcção ao solo.
O seu uso exigia do atirador muita perícia e, principalmente, concentração, pois se na confusão fosse utilizada munição normal a granada explodia imediatamente. Deu-se um percalço destes com um atirador da CART 1612 que matou dois soldados.
(2) Incidentes das Portas do Cerco que isolaram Macau durante três semanas, nos quais os chineses mataram o Soldado Moçambicano Jacinto Mundau.
(3) Michael Winston Schnitzer da Silva.
(4) O Morteiro é uma arma de tiro curvo, mas diferente dos obuses ou canhões. Grosso modo pode dizer-se que o projéctil descreve uma trajectória parecida com um V invertido. O alcance da arma (distância para o alvo) é obtido pelas tabelas de inclinação do tubo de lançamento e variação das cargas propulsoras. Assim, identificado o projéctil descobre-se com facilidade a arma que o lançou. Com uma arma igual, ou outra com os ajustes calculados, há muitas probabilidades de fazer um disparo inverso e atingir as redondezas da posição da arma inimiga (**).
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Notas de L.G.:
(*) Originalmente, o Zé Neto estimou os dois bigrupos em 400 homens. Rectificou logo a seguir:
"Luís: Já descobri onde está a confusão que gerei com o raio dos bigrupos. Eu socorro-me amiude da História do BART 1896 para acertar datas e pormenores do que escrevo. E realmente as informações do Batalhão, recolhidas nas unidades de fronteira através do Gilas (comerciantes ambulantes da Guiné-Conacri que vendiam de tudo, até informações) referenciaram a deslocação para a zona de Guileje de quatrocentos guerrilheiros e o algarismo que quantifica os bigrupos está esborratado e mais parece um 2 que um 8. Deficiência do stencil e azar meu. Deste modo quando chegares à descrição, nas Memórias de Guileje, desse facto, emenda para oito onde escrevi dois, quando não cai-me o Carmo e a Trindade em cima outra vez"....
(**) Vd posts anteriores do Zé Neto, respeitantes às Memórias de Guileje:
13 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXLVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (2): Ordem de marcha
10 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXXVII: Memórias de Guileje (1967/68) (Zé Neto) (1): Prelúdio(s)
Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
sábado, 21 de janeiro de 2006
sexta-feira, 20 de janeiro de 2006
Guiné 63/74 - P445: Álbum de fotografias do José Teixeira (1): o Niassa
Guiné > Recordação do Niassa. Lisboa - Guiné - Lisboa.... Missão Cumprida!... Transportando a CCAÇ 2381 (Lisboa, 1 de Maio de 1968 / Bissau, 3 de Abril de 1970), além de outras unidades.
© José Teixeira (2005)
Texto do José Teixeira (1º cabo enfermeiro, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):
Caro Luís: Junto duas fotos. Uma do Niassa connosco lá dentro e outra com o monumento que construimos junto ao porta bandeira de Empada, que infelizmente já lá não está.
Guiné > Empada > 1970 > Brasão da Companhia de Caçadores 2381 , Os Maiorais, "Pela lei, pela Grei"... © José Teixeira (2005)
Sei que a Companhia do Allen também construiu uma coisa do género, a qual foi redescoberta pelo Allen em Abril de 2005 a servir de degrau junto à casa do Chefe da Aldeia. Conseguiu que este o autorizasse a trazê-la de volta para Portugal. Imagina o desgraçado a transpostar um pedaço enorme de cimento, debaixo do braço, a seu lado no avião. Eu estava lá para dar uma ajudinha.
A propósito, falei hoje [17 de Janeiro] com ele. A esposa parece que quer rivalizar comigo em estar todos os dias no Blogue. Diz que ela já tem um livro (?) para te enviar. Até passa noites sem dormir
Um abraço
Guiné 63/74 - P444: PAIGC: Armazéns do Povo (Jorge Santos)
Guiné > s/d > Região sob controlo do PAIGC > Um armazém do povo. Fonte: PAIGC.
Texto do Jorge Santos:
O PAIGC promove a criação dos Armazéns do Povo por decisão tomada no 1º Congresso de 1964.
O objectivo dos Armazéns do Povo, empresa geral de comércio de tipo estatal, era garantir o fornecimento de artigos de primeira necessidade à população das regiões libertadas e, por meio de troca, receber produtos agrícolas que deveriam em seguida escoar-se para o exterior, criando-se e desenvolvendo-se assim, progressivamente, a base de um comércio externo.
O número de Depósitos dos Armazéns do Povo passou de 6, em 1964, para 16, em 1969.
FONTE: PAIGC - História da Guiné e Ilhas de Cabo Verde. Porto: Edições Afrontamento. 1974
Guiné 63/74 - P443: As dificuldades e os encantos do crioulo (Mário Dias)
Guiné > S/d > Documento das NT, em português e em crioulo, incentivando os guerrilheiros do PAIGC e a população sob o seu controlo a apresentarem-se às autoridades portuguesas.
© José Teixeira (2006)
Textod o Mário Dias (ex-sargento comando, Brá, 1963/66)
Caro Luis Graça, caros camardas de tertúlia:
A propósito dos comentários de nosso amigo J. Mussá Biai sobre a forma correcta de escrever o crioulo (criôlo?) é bom que nos vá elucidando. Por mim, que falo razoavelmente bem o criôlo, também se depara a dificuldade de o escrever porque esse dialecto só recentemente tem sido passado à fase de escrita. Pelo menos, que eu saiba, no tempo chamado colonial não existia qualquer gramátia nem textos escritos, com excepção de pequenas frases que alguns estudiosos e pesquisadores transcreviam, cada um o fazendo segundo uma transcrição fonética das palavras tal como elas soavam aos ouvidos. Apenas havia uma tímida tentativa em Cabo Verde, por parte de alguns intelectuais e escritores, de escrever poemas e outros textos -e alguns foram publicados- mas que tinham um forte oposição do regime de então que não admitia o criôlo como língua.
O Mussa Biai que desculpe as nossas deficiências e nos vá elucidando. E aproveito para lhe pedir que me informe onde posso adquirir uma gramática ou compêndio actualizado que me esclarece sobre esta matéria. Sei que recentemente foi publicado um dicionário de português-criolo de Cabo Verde (versão da ilha de Santiago). Iniciativa de louvar, mas que não adianta muito a quem pretende o criôlo (crioulo?) da Guiné, tão diferentes são.
Eu saí da Guiné em 1966. Desde essa altura, muita água correu pelo Pidjiguiti e, sendo as línguas, todas elas, dinâmicas e por isso sujeitas a constantes alterações não só na sua pronúncia como até na semântica, pergunto-lhe se a palavra djila que diz se deve escrever guila deixou de se pronunciar gila passando a guila com o "g" na sua função de consoante gutural.
Também o significado desta palavra era, no meu tempo, tal como diz o José Teixeira, simultaneamente comerciante ambulante e contrabandista, no sentido de que comerciavam produtos que traziam sobretudo do Senegal e passavam a fronteira sem controlo alfandegário. Não havia qualquer espécie de menosprezo nesse julgamente pelo contrário: todos aproveitavamos e apreciavamos os serviços que prestavam.
Recordo-me que, em Farim, todos aguardavamos com alguma ansiedade os djilas que vinham de Kolda e até de Ziguinchor com os seus fornecimentos de artigos franceses (eu era habitual cliente da água de colónia Soir de Paris. Para lá, na volta, levavam tabaco em folha, meadas de algodão e sobretudo nozes de cola produzidas na região de Cacine. Essa actividade era de tal forma importante, que deu origem à expressão djilandade, usada para caracterizar uma acção menos séria.
Como já me alonguei muito, voltarei em breve a este tema que tanto me fascina . Mas antes de terminar atrevo-me a saudar o José Mussa Biai em mandinga, mesmo correndo o risco de não escrever correctamente mas apenas como a frase me soava e soa: Kaera sita?
Um abraço, meus amigos.
Mário Dias
Mais conversas sobre o crioulo
Continuando a divagar sobre o crioulo (criôlo), que tanto me encanta, começo por dizer que não lhe resisto sempre que para tal tenho ocasião. É frequente nas minhas deslocações a Lisboa, ao tomar o barco no Barreiro, ouvir guineenses a falar criôlo. Tenho que meter conversa. É uma surpresa para eles e também motivo de alegria para ambas as partes. E já tem acontecido, durante os nossos diálogos, serem referidas pessoas conhecidas dos participantes na cavaqueira.
O crioulo é uma língua, ou dialecto (deixo a definição para os filólogos) com uma enorme riqueza de expressões idiomáticas que, apenas quem as entenda em toda a sua plenitude e envolvência, consegue captar o seu verdadeiro significado e alcance. Isso só se consegue dominando bem a língua e, sobretudo, conhecendo os hábitos, usos, costumes e filosofia de vida dos naturais da Guiné.
Como exemplo, vou contar uma caso que se passou e que ilustra bem o quanto uma expressão dita em crioulo tem um impacto e uma graça que se perde dita em português.
Aconteceu em Bissau. Na altura, eu trabalhava na NOSOCO, cujo edifício serviu durante a guerra como sede e armazém da Manutenção Militar. Um dos meus colegas, o senhor Martins, respeitável guineense, de veneranda carapinha branca, encarregado do armazém daquela companhia, teve a infelicidade de perder um familiar. Morava no chamado Bissau Velho, próximo da fortaleza da Amura. Eu e mais alguns colegas deslocámo-nos a sua casa a fim de lhe prestarmos a nossa solidariedade. Num dos compartimentos estava a urna do defunto rodeada de muitos familiares e amigos carpindo o infausto acontecimento.
Dirigi-me a ele com as palavras usuais destas ocasiões. Como o vi bastante abatido e ansioso perguntei-lhe como se estava a sentir. Resposta pronta em crioulo que me arrancou uma escandalosa gargalhada que de imediato tentei reprimir, dadas as circunstâncias:
- Casa inchi kum. Nim kau de tira pide ká tem.- Creio que compreendem o significado que é:
- A casa está tão cheia, que nem existe um sítio onde se possa dar um peido.- Esta frase, dita em português, perde todo o impacto que o crioulo lhe dá. É como um poema traduzido para outra língua: esvazia-se grande parte do sentir que o poeta lhe deu.
A tentativa dos ex-militares que serviram na Guiné de usarem o crioulo, só demonstra o quanto foi e é grande a nossa vontade de entender aquele povo. Aliás, isso faz parte da característica dos portugueses que sempre souberem mesclar-se e tenta compreender os povos que foram conhecendo por esse mundo fora.
Essa vontade de comunicar na língua que as populações usavam maioritariamente, ou seja, o crioulo, é disso prova e o prazer que se espelha nas frases que vão partilhando com os restantes tertulianos, mesmo ao fim de todos estes mais de 30 anos (para alguns muito mais), é enternecedora.
Acontece, porém, que a grafia e o próprio significado que pretendem atribuir às palavras não é o mais correcto. Quanto à grafia, nada vou acrescentar pois, também eu, a esse respeito, sou um ignorante. As regras ortográficas, quanto julgo saber, só agora estão a ser objecto de estudo e implementação. Trabalho árduo deverá ser!
No que se refere à semântica, tanto de palavras como de expressões idiomáticas, aí já posso meter a colherada. Constatei ao longo dos anos que os nossos militares foram adulterando o crioulo não só quanto à correcta pronúncia como, até, alterando o real significado das palavras. Muitas vezes acontecia que eram os velhinhos, para alardear a sua sabedoria perante os maçaricos ou periquitos que os iniciavam no conhecimento da língua. O resultado foi que, sendo muitos desses ensinamentos errados, assim permaneceram e se divulgaram criando-se uma variante de crioulo que poderemos chamar crioulo de caserna. Para quem o utiliza, está correcto atendendo a que sabem exactamente o que pretendem dizer; mas, para outros, fora dos meandros desta variante soa estranhamente. Aqui está um tema interessante para estudo dos filólogos. Alguns exemplos:
(i) O José Teixeira, o Pastilhas da CCAÇ 2381, no seu diário que não perco e tanto me encanta - e, por que não confessar?, me comove (parabéns Teixeira, um especial abraço para ti) - usa frequentemente a expressão manga de chocolate. Julgo que ele pretende dizer manga de sakalata que significa muita confusão, muitos sarilhos ou dificuldades. A expressão sakalata é muito utilizada quando se pretende indicar que existe confusão, problemas ou discussão conflituosa. Dessa palavra deriva sakalatado que se aplica a uma coisa esquisita ou insólita.
(ii) Mais exemplos da adulteração do criôlo de caserna: a palavra máfè. E aqui abro um parentesis para dizer que tanto ouvi pronunciar máfe, tónica em má e sílaba fé aberta, como mafé com a tónica em fé. E porquê? Porque a pronúncia das palavras, tal como acontece em Portugal, varia de região para região. Por exemplo, tchora (chorar) se dita por um manjaco soa com um “x” bem carregado; se for um papel, ouviremos “sora”. Regressando a máfe, que já vi no blogue traduzida como peixe, refere-se a qualquer acompanhamento do arroz (quando cozido toma o nome de bianda). É, comparativamente, aquilo que em Portugal chamamos conduto ou presigo. Claro que, por contingência, a maior parte das vezes o máfé era peixe, sobretudo peixe seco a que chamam kasseké. Quando o arroz cozinhado não tem máfé, diz-se rôz kuntango ou simplesmente kuntango.
(iii) Também é frequente a expressão partir mantenha com o sentido de cumprimentar. Começarei por esclarecer que no crioulo não existe o “r” final no infinito dos verbos. Deve dizer-se parte (dar ou oferecer). Parti´m (dá - me). Partíbu (dou-te). A confusão deve-se, suponho, à tentativa de adaptar a maneira como se fala o português ao crioulo. Claro que não funciona porque, enquanto nós dizemos dar os bons dias (daí o partir, dar) em criou não se utiliza o dar cumprimentos, mas sim falar. Desta forma, o correcto será, fala mantenha.
(iv) palavra que surge com frequência com significado errado é djubi, atribuído a menino ou rapaz. Menino diz-se minino e por vezes, de uma forma mais carinhosa, mininozinho ou rapazinho. Djubi, significa olha, vê e é também utilizado como forma de chamamento substituindo o nome da pessoa chamada. Passa-se o mesmo em português quando pretendendo chamar alguém dizemos: - Olha.
Peço desculpa por esta grande seca. A intenção é boa mas acabo por ser quezilento. Reconheço.
Chega. Tenho de ir ao baú desencantar algumas fotos em que está o Domingos Ramos para enviar brevemente com a pequena história da minha vivência com o que foi um dos primeiros e dos mais importantes chefes da guerrilha do PAIGC.
© José Teixeira (2006)
Textod o Mário Dias (ex-sargento comando, Brá, 1963/66)
Caro Luis Graça, caros camardas de tertúlia:
A propósito dos comentários de nosso amigo J. Mussá Biai sobre a forma correcta de escrever o crioulo (criôlo?) é bom que nos vá elucidando. Por mim, que falo razoavelmente bem o criôlo, também se depara a dificuldade de o escrever porque esse dialecto só recentemente tem sido passado à fase de escrita. Pelo menos, que eu saiba, no tempo chamado colonial não existia qualquer gramátia nem textos escritos, com excepção de pequenas frases que alguns estudiosos e pesquisadores transcreviam, cada um o fazendo segundo uma transcrição fonética das palavras tal como elas soavam aos ouvidos. Apenas havia uma tímida tentativa em Cabo Verde, por parte de alguns intelectuais e escritores, de escrever poemas e outros textos -e alguns foram publicados- mas que tinham um forte oposição do regime de então que não admitia o criôlo como língua.
O Mussa Biai que desculpe as nossas deficiências e nos vá elucidando. E aproveito para lhe pedir que me informe onde posso adquirir uma gramática ou compêndio actualizado que me esclarece sobre esta matéria. Sei que recentemente foi publicado um dicionário de português-criolo de Cabo Verde (versão da ilha de Santiago). Iniciativa de louvar, mas que não adianta muito a quem pretende o criôlo (crioulo?) da Guiné, tão diferentes são.
Eu saí da Guiné em 1966. Desde essa altura, muita água correu pelo Pidjiguiti e, sendo as línguas, todas elas, dinâmicas e por isso sujeitas a constantes alterações não só na sua pronúncia como até na semântica, pergunto-lhe se a palavra djila que diz se deve escrever guila deixou de se pronunciar gila passando a guila com o "g" na sua função de consoante gutural.
Também o significado desta palavra era, no meu tempo, tal como diz o José Teixeira, simultaneamente comerciante ambulante e contrabandista, no sentido de que comerciavam produtos que traziam sobretudo do Senegal e passavam a fronteira sem controlo alfandegário. Não havia qualquer espécie de menosprezo nesse julgamente pelo contrário: todos aproveitavamos e apreciavamos os serviços que prestavam.
Recordo-me que, em Farim, todos aguardavamos com alguma ansiedade os djilas que vinham de Kolda e até de Ziguinchor com os seus fornecimentos de artigos franceses (eu era habitual cliente da água de colónia Soir de Paris. Para lá, na volta, levavam tabaco em folha, meadas de algodão e sobretudo nozes de cola produzidas na região de Cacine. Essa actividade era de tal forma importante, que deu origem à expressão djilandade, usada para caracterizar uma acção menos séria.
Como já me alonguei muito, voltarei em breve a este tema que tanto me fascina . Mas antes de terminar atrevo-me a saudar o José Mussa Biai em mandinga, mesmo correndo o risco de não escrever correctamente mas apenas como a frase me soava e soa: Kaera sita?
Um abraço, meus amigos.
Mário Dias
Mais conversas sobre o crioulo
Continuando a divagar sobre o crioulo (criôlo), que tanto me encanta, começo por dizer que não lhe resisto sempre que para tal tenho ocasião. É frequente nas minhas deslocações a Lisboa, ao tomar o barco no Barreiro, ouvir guineenses a falar criôlo. Tenho que meter conversa. É uma surpresa para eles e também motivo de alegria para ambas as partes. E já tem acontecido, durante os nossos diálogos, serem referidas pessoas conhecidas dos participantes na cavaqueira.
O crioulo é uma língua, ou dialecto (deixo a definição para os filólogos) com uma enorme riqueza de expressões idiomáticas que, apenas quem as entenda em toda a sua plenitude e envolvência, consegue captar o seu verdadeiro significado e alcance. Isso só se consegue dominando bem a língua e, sobretudo, conhecendo os hábitos, usos, costumes e filosofia de vida dos naturais da Guiné.
Como exemplo, vou contar uma caso que se passou e que ilustra bem o quanto uma expressão dita em crioulo tem um impacto e uma graça que se perde dita em português.
Aconteceu em Bissau. Na altura, eu trabalhava na NOSOCO, cujo edifício serviu durante a guerra como sede e armazém da Manutenção Militar. Um dos meus colegas, o senhor Martins, respeitável guineense, de veneranda carapinha branca, encarregado do armazém daquela companhia, teve a infelicidade de perder um familiar. Morava no chamado Bissau Velho, próximo da fortaleza da Amura. Eu e mais alguns colegas deslocámo-nos a sua casa a fim de lhe prestarmos a nossa solidariedade. Num dos compartimentos estava a urna do defunto rodeada de muitos familiares e amigos carpindo o infausto acontecimento.
Dirigi-me a ele com as palavras usuais destas ocasiões. Como o vi bastante abatido e ansioso perguntei-lhe como se estava a sentir. Resposta pronta em crioulo que me arrancou uma escandalosa gargalhada que de imediato tentei reprimir, dadas as circunstâncias:
- Casa inchi kum. Nim kau de tira pide ká tem.- Creio que compreendem o significado que é:
- A casa está tão cheia, que nem existe um sítio onde se possa dar um peido.- Esta frase, dita em português, perde todo o impacto que o crioulo lhe dá. É como um poema traduzido para outra língua: esvazia-se grande parte do sentir que o poeta lhe deu.
A tentativa dos ex-militares que serviram na Guiné de usarem o crioulo, só demonstra o quanto foi e é grande a nossa vontade de entender aquele povo. Aliás, isso faz parte da característica dos portugueses que sempre souberem mesclar-se e tenta compreender os povos que foram conhecendo por esse mundo fora.
Essa vontade de comunicar na língua que as populações usavam maioritariamente, ou seja, o crioulo, é disso prova e o prazer que se espelha nas frases que vão partilhando com os restantes tertulianos, mesmo ao fim de todos estes mais de 30 anos (para alguns muito mais), é enternecedora.
Acontece, porém, que a grafia e o próprio significado que pretendem atribuir às palavras não é o mais correcto. Quanto à grafia, nada vou acrescentar pois, também eu, a esse respeito, sou um ignorante. As regras ortográficas, quanto julgo saber, só agora estão a ser objecto de estudo e implementação. Trabalho árduo deverá ser!
No que se refere à semântica, tanto de palavras como de expressões idiomáticas, aí já posso meter a colherada. Constatei ao longo dos anos que os nossos militares foram adulterando o crioulo não só quanto à correcta pronúncia como, até, alterando o real significado das palavras. Muitas vezes acontecia que eram os velhinhos, para alardear a sua sabedoria perante os maçaricos ou periquitos que os iniciavam no conhecimento da língua. O resultado foi que, sendo muitos desses ensinamentos errados, assim permaneceram e se divulgaram criando-se uma variante de crioulo que poderemos chamar crioulo de caserna. Para quem o utiliza, está correcto atendendo a que sabem exactamente o que pretendem dizer; mas, para outros, fora dos meandros desta variante soa estranhamente. Aqui está um tema interessante para estudo dos filólogos. Alguns exemplos:
(i) O José Teixeira, o Pastilhas da CCAÇ 2381, no seu diário que não perco e tanto me encanta - e, por que não confessar?, me comove (parabéns Teixeira, um especial abraço para ti) - usa frequentemente a expressão manga de chocolate. Julgo que ele pretende dizer manga de sakalata que significa muita confusão, muitos sarilhos ou dificuldades. A expressão sakalata é muito utilizada quando se pretende indicar que existe confusão, problemas ou discussão conflituosa. Dessa palavra deriva sakalatado que se aplica a uma coisa esquisita ou insólita.
(ii) Mais exemplos da adulteração do criôlo de caserna: a palavra máfè. E aqui abro um parentesis para dizer que tanto ouvi pronunciar máfe, tónica em má e sílaba fé aberta, como mafé com a tónica em fé. E porquê? Porque a pronúncia das palavras, tal como acontece em Portugal, varia de região para região. Por exemplo, tchora (chorar) se dita por um manjaco soa com um “x” bem carregado; se for um papel, ouviremos “sora”. Regressando a máfe, que já vi no blogue traduzida como peixe, refere-se a qualquer acompanhamento do arroz (quando cozido toma o nome de bianda). É, comparativamente, aquilo que em Portugal chamamos conduto ou presigo. Claro que, por contingência, a maior parte das vezes o máfé era peixe, sobretudo peixe seco a que chamam kasseké. Quando o arroz cozinhado não tem máfé, diz-se rôz kuntango ou simplesmente kuntango.
(iii) Também é frequente a expressão partir mantenha com o sentido de cumprimentar. Começarei por esclarecer que no crioulo não existe o “r” final no infinito dos verbos. Deve dizer-se parte (dar ou oferecer). Parti´m (dá - me). Partíbu (dou-te). A confusão deve-se, suponho, à tentativa de adaptar a maneira como se fala o português ao crioulo. Claro que não funciona porque, enquanto nós dizemos dar os bons dias (daí o partir, dar) em criou não se utiliza o dar cumprimentos, mas sim falar. Desta forma, o correcto será, fala mantenha.
(iv) palavra que surge com frequência com significado errado é djubi, atribuído a menino ou rapaz. Menino diz-se minino e por vezes, de uma forma mais carinhosa, mininozinho ou rapazinho. Djubi, significa olha, vê e é também utilizado como forma de chamamento substituindo o nome da pessoa chamada. Passa-se o mesmo em português quando pretendendo chamar alguém dizemos: - Olha.
Peço desculpa por esta grande seca. A intenção é boa mas acabo por ser quezilento. Reconheço.
Chega. Tenho de ir ao baú desencantar algumas fotos em que está o Domingos Ramos para enviar brevemente com a pequena história da minha vivência com o que foi um dos primeiros e dos mais importantes chefes da guerrilha do PAIGC.
Guiné 63/74 - P442: O Rali Porto-Bissau (1): Jantar em Moreira de Cónegos (Marques Lopes)
Moreira de Cónegos, Guimarães > Janeiro de 2006 > O grupo jantarista e excursionista que vai fazer o Rali Porto-Bissau, no próximo mês de Abril, confraternizando num restaurante nortenho...
© A. Marques Lopes (2006)
Texto do A. Marques Lopes
Camaradas e amigos:
Para saberem quem são estes alegres convivas:
(i) de pé, a contar da esquerda: Franscisco Allen, M. Lopes, Albano Costa, Casimiro e Hugo Costa;
(ii) assentados (nem se conseguiram levantar!), a contar da esquerda - Manuel Costa e Armindo.
Anteontem, 18 de Janeiro, este belo grupo (perdoem a modéstia) juntou-se num jantar num restaurante em Moreira de Cónegos, mesmo pegado ao estádio do valoroso clube Moreirense. Esta iniciativa, do Allen, teve como objectivo juntar os elementos que vão participar no, já anunciado, Rali Porto-Bissau, a fim de afinar alguns aspectos da sua preparação. E os participantes serão: Allen, M. Lopes, Hugo Costa (filho do Albano), Manuel Costa (primo do mesmo Albano) e Armindo.
A data da partida ficou marcada para 5 de Abril às 07H00. A ideia é chegarmos um dia antes dos participantes no Rali por via aérea, que irão a 14 de Abril (ou para podermos estar nessa data em Bissau, no caso de haver algum atraso pelo caminho), e que são:
(i) Carlos Marques dos Santos, de Coimbra,
(ii) Casimiro e Ernesto, do Porto,
(iii) António Almeida e um camarada DFA, o José Clímaco Saagum, soldado do 1.º Pelotão da Cart 2339 ferido, em 19 de Setembro de 1968 (segundo informação do Carlos Marques dos Santos).
O regresso está previsto para todos a 28 de Abril, de avião.
Foi um bonito convívio de ex-combatentes que mostraram ser um grupo coeso, na solidariedade e amor à Guiné, e à volta do pica-miolos que o Armindo encomendou. O Albano, que mostrou ser um sentimentalão, desabafou:
- Apesar de tudo, se não tivesse havido guerra na Guiné não estávamos aqui todos neste convívio... Era bom que a nossa tertúlia se juntasse um dia.
Já devem ter perguntado por aquela pretinha que aparece do lado direito. É a Kombi, uma guineense de 27 anos, que trabalha no Algarve e que decidiu vir visitar o Porto. Como é conhecida do Manuel Costa, este convidou-a para ir ao pica-miolos também.
No futuro haverá certamente mais notícias.
A. Marques Lopes
Guiné 63/74 - P441: Estou emocionado (J.C. Mussá Biai)
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Xime > 2006 > A escola
© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)
Meu caro Luís:
Estou emocionado!...
Já nem deu para ler o texto do Dr. Paulo Salgado.
As fotos falam por si. Os locais por onde brinquei, onde dei alguns mergulhos... Melhor, ainda as pessoas que me viram nascer, que cuidaram de mim e com quem partilhei refeições, angústias e alegrias. Estou a referir-me aos meus irmaõs mais velhos (sim, meus irmãos de sangue) e de um primo-irmão dos quais lhe falei.
Os meus irmãos são, Fodé Biai, o primeiro a contar da direita para a esquerda e Bacar Biai, o segundo na mesma ordem e Malam Mané, o quarto, dos que estão de pé.
O Fodé e o Malam cumpriram o serviço militar em Farim e depois Bissau, sendo o Malam depois transferido para Bambadinca. O Bacar sempre esteve em Xime.
Guiné-Bissau > Região de Baftá > Xime > 2006 > Antigos combatentes que estiveram ao lado dos tugas... Entre eles, dois irmãos e um primo do José Carlos, membro da nossa tertúlia...
© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)
O curioso de tudo isso, quem tirou as fotografias é um colega meu, o Domingos Fonseca, trabalhei junto com ele na Escola do Ensino Básico Preparatório Amizade Guiné Bissau - Suécia, em Bissau. Ele leccionava a língua portuguesa e eu matemática, antes de ele ir tirar o curso de engenheiro técnico agrário na Argélia. Estive com ele no ano 2000 em São Domingos onde ele estava como responsável de AD.
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Xime > 2006 > A rua principal do Xime...
© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)
Um abraço amigo.
José C. Mussá Biai (1)
Engº Florestal
Instituto Geográfico Português (IGP)
Departamento de Conservação Cadastral (DCC)
Tel. 213819600 Ext. 310
Fax. 213819693
____________
Nota de L.G.
(1) vd posts de 9 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XV: No Xime também havia crianças felizes (1); e de 10 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XVI: No Xime também havia crianças felizes (2)
© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)
Meu caro Luís:
Estou emocionado!...
Já nem deu para ler o texto do Dr. Paulo Salgado.
As fotos falam por si. Os locais por onde brinquei, onde dei alguns mergulhos... Melhor, ainda as pessoas que me viram nascer, que cuidaram de mim e com quem partilhei refeições, angústias e alegrias. Estou a referir-me aos meus irmaõs mais velhos (sim, meus irmãos de sangue) e de um primo-irmão dos quais lhe falei.
Os meus irmãos são, Fodé Biai, o primeiro a contar da direita para a esquerda e Bacar Biai, o segundo na mesma ordem e Malam Mané, o quarto, dos que estão de pé.
O Fodé e o Malam cumpriram o serviço militar em Farim e depois Bissau, sendo o Malam depois transferido para Bambadinca. O Bacar sempre esteve em Xime.
Guiné-Bissau > Região de Baftá > Xime > 2006 > Antigos combatentes que estiveram ao lado dos tugas... Entre eles, dois irmãos e um primo do José Carlos, membro da nossa tertúlia...
© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)
O curioso de tudo isso, quem tirou as fotografias é um colega meu, o Domingos Fonseca, trabalhei junto com ele na Escola do Ensino Básico Preparatório Amizade Guiné Bissau - Suécia, em Bissau. Ele leccionava a língua portuguesa e eu matemática, antes de ele ir tirar o curso de engenheiro técnico agrário na Argélia. Estive com ele no ano 2000 em São Domingos onde ele estava como responsável de AD.
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Xime > 2006 > A rua principal do Xime...
© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)
Um abraço amigo.
José C. Mussá Biai (1)
Engº Florestal
Instituto Geográfico Português (IGP)
Departamento de Conservação Cadastral (DCC)
Tel. 213819600 Ext. 310
Fax. 213819693
____________
Nota de L.G.
(1) vd posts de 9 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XV: No Xime também havia crianças felizes (1); e de 10 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XVI: No Xime também havia crianças felizes (2)
quinta-feira, 19 de janeiro de 2006
Guiné 63/74 - P440: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (8): Chamarra, Janeiro de 1969
Guiné-Bissau > Chamarra > Novembro de 2000 > Chamarra, o guineense, menino no tempo da guerra colonial, entre o Albano (à direita) e o Camilo (à esquerda) levou-nos ao local onde era o posto avançado de Chamarra e havia esta placa guardada religiosamente: indicava Gatos Negros, CART 1612 (?)
© Albano Costa (2006)
Guiné-Bissau > Chamarra > Novembro de 2000 > Vestígios da presença dos tugas, a CART 1612 (?), "bravos e leais" ... É espantosa a emoção com que se mostram (os guineenses) e se (re)descobrem (os portugueses) estes toscos marcos da nossa passagem por terras da Guiné...
© Albano Costa (2006)
Curta mensagem do Albano Costa:
Caro Luís Graça: Lembrei-me de enviar estas fotos de Chamarra... o José Teixeira merece ver estas fotos foram tiradas num dos postos avançados da Chamarra, em Novembro de 2000. O diário dele está muito interessante.
Um abraço,
Albano Costa.
__________________
Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):
Mampatá, 5 de Janeiro de 1969
Estou de volta a Mampatá, depois de uma coluna a Buba. Se todas as colunas de abastecimento fossem como esta, não me importava de fazer colunas. Estiveram cerca de 400 homens em movimento e cerca de 30 Km de marcha (60 km em dois dias) por picada e bolanha sem que o IN desse sinal de vida. Tive assim oportunidade de conhecer mais uma tabanca, ou seja Nhala, onde encontrei amigos da CCAÇ 2382.
Admiro esta população de Mampatá. Quando souberam que eu ia de serviço na coluna em substituição do Lemos vieram despedir-se de mim. Fui abraçado, as bajudas beijavam-me e cantavam uma melodia triste. Até dá gosto viver com esta gente.
A mãe da Binta veio trazer-ma para lhe dar um beijinho e fazer um festinha como era meu hábito (Pegava nela e atirava-a ao ar dando a miúda e a mãe uma gargalhada).
A Maimuna tinha oito luas quando cheguei a Mampatá (1)...
Chamarra, 10 de Janeiro de 1969
Chamarra é o meu novo habitat desde ontem. A despedida de Mampatá foi triste, chocante mesmo. Custou-me imenso deixar aquela gente que me ensinou que o Africano, sendo compreendido e ajudado, torna-se um amigo sincero. Alguns membros da comunidade foram pedir ao Chefe de Tabanca, Alferes Aliu Balde, para eu ficar. Este foi a Aldeia Formosa pedir ao Capitão, mas como o meu Pelotão segui para Buba e apenas ficou o 1º Pelotão em Chamarra, o Capitão autorizou que eu ficasse na Chamarra e viesse uma vez por semana a Mampatá dar apoio ao Enfermeiro da Milícia que me vai substituir, dado que a defesa de Mampatá ficou entregue a um Pelotão de milicia (2) A festa de despedida foi mais uma vez chocante para mim.
Chamarra é pequenina. Só meia dúzia de moranças e os habitantes parecem que também são boas pessoas.
Chamarra, 16 de Janeiro de 1969
Gadamael foi teatro de uma das maiores lutas no Ultramar entre a Força Aérea e o IN. O resultado, pelo que dizem demonstra bem o poder da aviação e sobretudo mostra que os homens se matam sem compaixão e mesmo neste caso em que as nossas forças lutam para manter a ordem não há homem, creio eu, que não sinta o coração sangrando, quando vê o inimigo a sofrer, numa luta desigual.
Gadamael estava a ser atacada como nunca qualquer outra população da Guiné. Muitos homens, com as melhores armas, algumas utilizadas pela 1ª vez. Atacavam de longe ao ponto de os colegas de Gadamael pensarem que o ataque se dirigia a um sítio de ninguém, daí pediram à FA [Força Aérea] para bater a zona.
Quando os Fiat sobrevoaram o IN foram metralhados por uma quárupla antiaérea. Deixaram 200 kg da sua carga mortífera e foram buscar mais. Os T 6 (Bombardeiros) apareceram também e durante duas horas foi um descarregar de bombas. Nós só víamos os aviões à distância e ouvíamos o estrondo dos rebentamentos, mas calculamos que tenha sido uma luta terrível, tal a quantidade de chocolate que estourou. Eu imagino o chão juncado de cadáveres, regado com o sangue dos mortos e feridos, imagino os gritos lancinantes dos feridos ao verem a vida a fugir-lhe. Parece-me que estou a ver os que ficaram ilesos carregar os mortos.
Dentro de mim há uma confusão tremenda. A paz consegue-se fazendo a guerra. impondo-a até certo ponto através das armas que matam. É certo que aqueles queriam fazer guerra, estavam a atacar uma população que quer a paz, que quer ir para o seu trabalho na bolanha sem arma, sem medo que alguém lhe surja no caminho com intenções assassinas. Uma população que quer viver na sua tabanca despreocupada, sem precisar de correr a toda a hora para um abrigo e dormir debaixo de terra para não ser surpreendida, uma população que quer viver sem precisar de matar, mas haverá homens com coração de pedra que não sinta tanta morte, homens que foram levados talvez à força ou com uma dose maior de vinho de palma, como consta que acontece muita vez...
Dizem-nos que temos de fazer a guerra para impor a paz, que aqueles que morreram e os que ainda estão vivos, são um perigo para a sociedade guineense. Eu e os meus camaradas, tantos outros, já sofremos muito por sua causa. Arriscamos a nossa vida a todo o momento por causa dessas mãos assassinas, cujo prazer é matar. Um prazer cego ao ponto de verem os seus camaradas morrerem às dúzias e continuarem a luta. Será prazer, ou será a convicção da sua razão que os faz lutar ?
Porque é que estes homens querem a guerra, quando podiam viver em paz, do seu trabalho, na sua Tabanca, no seu lar com os seus filhos ? Que os faz lutar ? Que faço eu no meio disto tudo ? (3)
Chamarra, 23 de Janeiro de 1969
É tremendamente chocante ver morrer um camarada na guerra, mas custa muito mais quando se morre por acidente, por descuido e sobretudo quando a morte é causada por vingança de outrem.
Ontem ao anoitecer, em Aldeia Formosa, alguém, lançou uma granada de mão para a Messe dos sargentos. Não se sabe quem foi. Branco ou negro. Por vingança, por descuido. Os resultados foram tremendos. Dois soldados, meus camaradas, tiveram morte imediata e houve ainda dez Furriéis feridos, alguns com gravidade. As medidas tomadas pelo Comandante para descobrir o assassino ainda não resultaram.
Aqueles dois colegas que casualmente se encontravam à porta encontraram a morte, pela mão de um companheiro cego pela loucura ou pelo ódio, tudo leva a crer.
Chamarra, 25 de Janeiro de 1969
A minha Companhia está de luto. Tantas colunas de abastecimento de Aldeia Formosa para Buba e vice versa, de Aldeia para Gandembel e na última que fazia, quando se retirava para Buba, um soldado que nunca saíra para o mato por estar impedido à Secretaria morreu. Dizem que foi por descuido, pois parece que ia em cima de uma viatura quando rebentou a primeira emboscada, saltou, reagiu com os outros ao IN e saltou novamente para o matador. Alguns metros à frente rebentou uma mina e foi projectado a grande altura, morrendo segundo consta, algumas horas mais tarde no Hospital de Bissau. Fim de Janeiro triste...
Chamarra, 30 de Janeir de 1969
Já segui para Bissau, sob prisão, um soldado branco suspeito de ser o causador dos mortos em Aldeia Formosa no dia 22. Afinal o Russo, impedido à Secretaria, que foi ferido na mina anticarro que destruiu o matador, não morreu, nem ficou sem pernas. De qualquer modo segui para Bissau bastante ferido num braço. A guerra para ele acabou.
_____
Notas de L.G./J.T.
(1) Vd o resto do diário, referente à Maimuna, no post de 31 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDVI: Maimuna, uma história de amor (José Teixeira) (L.G.)
(2) Soube um ano depois, após a queda de Gandembel, que a situação piorou de tal maneira que foi lá colocada um Companhia (J.T.)
(3) Que admiração tenho hoje por este povo, pobre e humilde, puramente selvagem Como eu gostava, hoje, de ser selvagem como eles. Amavam a sua terra, queriam ser donos do seu próprio destino. Lutavam. Sacrificavam-se, palmilhando quilómetros e mais quilómetros, para dizerem:
- Estamos aqui na nossa terra, ide-vos embora! -, como tantas vezes ouvi, através do troar das suas armas, que teimosamente se recusavam acertar no alvo ou mesmo nas populações ditas fiéis, nas Tabancas por onde passei.
Um dia o Raul Fodé de Empada,, meu companheiro na profissão de assistir a população em cuidados de saúde nos seus poucos conhecimentos de enfermagem colhidos no contacto com a tropa portuguesa, em Empada, pessoa culta, teólogo muçulmano, disse-me:
- Tixeira nos queremos que tu firma na Guiné. Deissa arma e vem na Tabanca.- … [Teixeira, queremos que tu fiques aqui. Deixa a tua arma e vem para a nossa tabanca]... Deixa a tua arma, abandona o teu exército!, ele que acompanhava esse mesmo exército com a sua arma igual à minha, a bolsa de Enfermeiro...
© Albano Costa (2006)
Guiné-Bissau > Chamarra > Novembro de 2000 > Vestígios da presença dos tugas, a CART 1612 (?), "bravos e leais" ... É espantosa a emoção com que se mostram (os guineenses) e se (re)descobrem (os portugueses) estes toscos marcos da nossa passagem por terras da Guiné...
© Albano Costa (2006)
Curta mensagem do Albano Costa:
Caro Luís Graça: Lembrei-me de enviar estas fotos de Chamarra... o José Teixeira merece ver estas fotos foram tiradas num dos postos avançados da Chamarra, em Novembro de 2000. O diário dele está muito interessante.
Um abraço,
Albano Costa.
__________________
Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):
Mampatá, 5 de Janeiro de 1969
Estou de volta a Mampatá, depois de uma coluna a Buba. Se todas as colunas de abastecimento fossem como esta, não me importava de fazer colunas. Estiveram cerca de 400 homens em movimento e cerca de 30 Km de marcha (60 km em dois dias) por picada e bolanha sem que o IN desse sinal de vida. Tive assim oportunidade de conhecer mais uma tabanca, ou seja Nhala, onde encontrei amigos da CCAÇ 2382.
Admiro esta população de Mampatá. Quando souberam que eu ia de serviço na coluna em substituição do Lemos vieram despedir-se de mim. Fui abraçado, as bajudas beijavam-me e cantavam uma melodia triste. Até dá gosto viver com esta gente.
A mãe da Binta veio trazer-ma para lhe dar um beijinho e fazer um festinha como era meu hábito (Pegava nela e atirava-a ao ar dando a miúda e a mãe uma gargalhada).
A Maimuna tinha oito luas quando cheguei a Mampatá (1)...
Chamarra, 10 de Janeiro de 1969
Chamarra é o meu novo habitat desde ontem. A despedida de Mampatá foi triste, chocante mesmo. Custou-me imenso deixar aquela gente que me ensinou que o Africano, sendo compreendido e ajudado, torna-se um amigo sincero. Alguns membros da comunidade foram pedir ao Chefe de Tabanca, Alferes Aliu Balde, para eu ficar. Este foi a Aldeia Formosa pedir ao Capitão, mas como o meu Pelotão segui para Buba e apenas ficou o 1º Pelotão em Chamarra, o Capitão autorizou que eu ficasse na Chamarra e viesse uma vez por semana a Mampatá dar apoio ao Enfermeiro da Milícia que me vai substituir, dado que a defesa de Mampatá ficou entregue a um Pelotão de milicia (2) A festa de despedida foi mais uma vez chocante para mim.
Chamarra é pequenina. Só meia dúzia de moranças e os habitantes parecem que também são boas pessoas.
Chamarra, 16 de Janeiro de 1969
Gadamael foi teatro de uma das maiores lutas no Ultramar entre a Força Aérea e o IN. O resultado, pelo que dizem demonstra bem o poder da aviação e sobretudo mostra que os homens se matam sem compaixão e mesmo neste caso em que as nossas forças lutam para manter a ordem não há homem, creio eu, que não sinta o coração sangrando, quando vê o inimigo a sofrer, numa luta desigual.
Gadamael estava a ser atacada como nunca qualquer outra população da Guiné. Muitos homens, com as melhores armas, algumas utilizadas pela 1ª vez. Atacavam de longe ao ponto de os colegas de Gadamael pensarem que o ataque se dirigia a um sítio de ninguém, daí pediram à FA [Força Aérea] para bater a zona.
Quando os Fiat sobrevoaram o IN foram metralhados por uma quárupla antiaérea. Deixaram 200 kg da sua carga mortífera e foram buscar mais. Os T 6 (Bombardeiros) apareceram também e durante duas horas foi um descarregar de bombas. Nós só víamos os aviões à distância e ouvíamos o estrondo dos rebentamentos, mas calculamos que tenha sido uma luta terrível, tal a quantidade de chocolate que estourou. Eu imagino o chão juncado de cadáveres, regado com o sangue dos mortos e feridos, imagino os gritos lancinantes dos feridos ao verem a vida a fugir-lhe. Parece-me que estou a ver os que ficaram ilesos carregar os mortos.
Dentro de mim há uma confusão tremenda. A paz consegue-se fazendo a guerra. impondo-a até certo ponto através das armas que matam. É certo que aqueles queriam fazer guerra, estavam a atacar uma população que quer a paz, que quer ir para o seu trabalho na bolanha sem arma, sem medo que alguém lhe surja no caminho com intenções assassinas. Uma população que quer viver na sua tabanca despreocupada, sem precisar de correr a toda a hora para um abrigo e dormir debaixo de terra para não ser surpreendida, uma população que quer viver sem precisar de matar, mas haverá homens com coração de pedra que não sinta tanta morte, homens que foram levados talvez à força ou com uma dose maior de vinho de palma, como consta que acontece muita vez...
Dizem-nos que temos de fazer a guerra para impor a paz, que aqueles que morreram e os que ainda estão vivos, são um perigo para a sociedade guineense. Eu e os meus camaradas, tantos outros, já sofremos muito por sua causa. Arriscamos a nossa vida a todo o momento por causa dessas mãos assassinas, cujo prazer é matar. Um prazer cego ao ponto de verem os seus camaradas morrerem às dúzias e continuarem a luta. Será prazer, ou será a convicção da sua razão que os faz lutar ?
Porque é que estes homens querem a guerra, quando podiam viver em paz, do seu trabalho, na sua Tabanca, no seu lar com os seus filhos ? Que os faz lutar ? Que faço eu no meio disto tudo ? (3)
Chamarra, 23 de Janeiro de 1969
É tremendamente chocante ver morrer um camarada na guerra, mas custa muito mais quando se morre por acidente, por descuido e sobretudo quando a morte é causada por vingança de outrem.
Ontem ao anoitecer, em Aldeia Formosa, alguém, lançou uma granada de mão para a Messe dos sargentos. Não se sabe quem foi. Branco ou negro. Por vingança, por descuido. Os resultados foram tremendos. Dois soldados, meus camaradas, tiveram morte imediata e houve ainda dez Furriéis feridos, alguns com gravidade. As medidas tomadas pelo Comandante para descobrir o assassino ainda não resultaram.
Aqueles dois colegas que casualmente se encontravam à porta encontraram a morte, pela mão de um companheiro cego pela loucura ou pelo ódio, tudo leva a crer.
Chamarra, 25 de Janeiro de 1969
A minha Companhia está de luto. Tantas colunas de abastecimento de Aldeia Formosa para Buba e vice versa, de Aldeia para Gandembel e na última que fazia, quando se retirava para Buba, um soldado que nunca saíra para o mato por estar impedido à Secretaria morreu. Dizem que foi por descuido, pois parece que ia em cima de uma viatura quando rebentou a primeira emboscada, saltou, reagiu com os outros ao IN e saltou novamente para o matador. Alguns metros à frente rebentou uma mina e foi projectado a grande altura, morrendo segundo consta, algumas horas mais tarde no Hospital de Bissau. Fim de Janeiro triste...
Chamarra, 30 de Janeir de 1969
Já segui para Bissau, sob prisão, um soldado branco suspeito de ser o causador dos mortos em Aldeia Formosa no dia 22. Afinal o Russo, impedido à Secretaria, que foi ferido na mina anticarro que destruiu o matador, não morreu, nem ficou sem pernas. De qualquer modo segui para Bissau bastante ferido num braço. A guerra para ele acabou.
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Notas de L.G./J.T.
(1) Vd o resto do diário, referente à Maimuna, no post de 31 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CDVI: Maimuna, uma história de amor (José Teixeira) (L.G.)
(2) Soube um ano depois, após a queda de Gandembel, que a situação piorou de tal maneira que foi lá colocada um Companhia (J.T.)
(3) Que admiração tenho hoje por este povo, pobre e humilde, puramente selvagem Como eu gostava, hoje, de ser selvagem como eles. Amavam a sua terra, queriam ser donos do seu próprio destino. Lutavam. Sacrificavam-se, palmilhando quilómetros e mais quilómetros, para dizerem:
- Estamos aqui na nossa terra, ide-vos embora! -, como tantas vezes ouvi, através do troar das suas armas, que teimosamente se recusavam acertar no alvo ou mesmo nas populações ditas fiéis, nas Tabancas por onde passei.
Um dia o Raul Fodé de Empada,, meu companheiro na profissão de assistir a população em cuidados de saúde nos seus poucos conhecimentos de enfermagem colhidos no contacto com a tropa portuguesa, em Empada, pessoa culta, teólogo muçulmano, disse-me:
- Tixeira nos queremos que tu firma na Guiné. Deissa arma e vem na Tabanca.- … [Teixeira, queremos que tu fiques aqui. Deixa a tua arma e vem para a nossa tabanca]... Deixa a tua arma, abandona o teu exército!, ele que acompanhava esse mesmo exército com a sua arma igual à minha, a bolsa de Enfermeiro...
Guiné 63/74 - P439: A verdade foi a guerra (A. Marques Lopes)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > 1970 >
A CCAÇ 12 (2º Grupo de Combate) atravessando uma bolanha, perto do Rio Corubal, na região de Mina/Fiofioli (segundo o Humberto Reis) ou na de Baio/Burontoni (segundo a minha interpretação). O ex-furriel mil Humberto Reis, sem quico na cabeça (!), é o primeiro tuga dos três que se vêem na fotografia (os outros dois são cabos).
Esta é uma das espectaculares fotos recuperadas (através de digitalização) de um conjunto inicial de 100 diapositivos (de um lote de mil...), e onde se incluem fotos áreas de diversos aquartelamentos e destacamentos da zona leste. O Humberto Reis, o nosso operações especiais - diga-se, por amor da verdade, que ele tinha o seu feitio mas não os tiques de ranger -, era na época um fã da fotografia, tinha uma excelente máquina e, além disso, sabia criar e manter óptimas relações com a Força Aérea, o que lhe permitia apanhar de vez uma quando umas boleias de heli ou de DO... Os diapostivos eram revelados na Suécia (!), o que explica a qualidade das imagens agora recuperadas, ao fim de 35 anos...
Humberto: Mais uma vez, o meu/nosso muito obrigado por este teu gesto, sem preço, de amigo e camarada de guerra e de tertúlia... Prometo continuar a publicar, com regularidade, uma selecção do teu album de fotografias que me deixou deliciado... L.G.
© Humberto Reis (2006)
Caros camaradas:
O meu grande apreço pelas palavras do Paulo Salgado ontem divulgadas no blogue (1).
As nossas, destes tertulianos, vivências de guerra são a soma das vivências de cada um e a particularidade de cada uma delas, cheias de sentimentos e visões individuais. É isso que tem dado riqueza a todas estas narrativas, é verdade, mas penso que não há que esquecer o que atrás referi.
Em Barro, entrei numa cena idêntica àquela que ele refere, com desencontros de narração e justificações diferentes, de tal modo que, já no aquartelamento, cheguei a estar com a minha G3 apontada para outro alferes, que acusei de me abandonar. Mas deu para reflectir e contive-me.
Aquela noite em que fiquei em Sinchã Jobel (1), teve como consequência, além daquela minha noitada, uma prisão disciplinar, e consequente transferência de companhia, para outro camarada. Mas a este não o acusei de nada nem contribuí pessoal e directamente para a sua prisão.
Porque estou completamente de acordo com o que diz o Paulo Salgado é que não me espalhei em narrativas muito pormenorizadas das minhas situações, daquilo que eu vivi.
Os meus parabéns ao Paulo Salgado. Faço minhas as palavras dele.
Um abraço do
A. Marques Lopes
Coronel (DFA) na situação de reforma, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968)
__________
Notas de L.G.
(1) vd post do Paulo Salgado, de 18 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLVII: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (9): História e estórias
(2) Vd. pots de A. Marques Lopes sobre Sinchã Jobel (vd. localização desta antiga tabanca, mais tarde base do PAIGC, no mapa de Bambadinca, junto ao curso do Geba Estreito, entre Bambadinca e Bafatá:
30 de Maio de 2006 > Guiné 69/71 - XXXVI: Na bolanha dá para pensar...
30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXV: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)
3 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XXXIX: Sinchã Jobel II e III
3 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XL: Sinchã Jobel IV, V e VI
5 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLV: Sinchã Jobel VII
A CCAÇ 12 (2º Grupo de Combate) atravessando uma bolanha, perto do Rio Corubal, na região de Mina/Fiofioli (segundo o Humberto Reis) ou na de Baio/Burontoni (segundo a minha interpretação). O ex-furriel mil Humberto Reis, sem quico na cabeça (!), é o primeiro tuga dos três que se vêem na fotografia (os outros dois são cabos).
Esta é uma das espectaculares fotos recuperadas (através de digitalização) de um conjunto inicial de 100 diapositivos (de um lote de mil...), e onde se incluem fotos áreas de diversos aquartelamentos e destacamentos da zona leste. O Humberto Reis, o nosso operações especiais - diga-se, por amor da verdade, que ele tinha o seu feitio mas não os tiques de ranger -, era na época um fã da fotografia, tinha uma excelente máquina e, além disso, sabia criar e manter óptimas relações com a Força Aérea, o que lhe permitia apanhar de vez uma quando umas boleias de heli ou de DO... Os diapostivos eram revelados na Suécia (!), o que explica a qualidade das imagens agora recuperadas, ao fim de 35 anos...
Humberto: Mais uma vez, o meu/nosso muito obrigado por este teu gesto, sem preço, de amigo e camarada de guerra e de tertúlia... Prometo continuar a publicar, com regularidade, uma selecção do teu album de fotografias que me deixou deliciado... L.G.
© Humberto Reis (2006)
Caros camaradas:
O meu grande apreço pelas palavras do Paulo Salgado ontem divulgadas no blogue (1).
As nossas, destes tertulianos, vivências de guerra são a soma das vivências de cada um e a particularidade de cada uma delas, cheias de sentimentos e visões individuais. É isso que tem dado riqueza a todas estas narrativas, é verdade, mas penso que não há que esquecer o que atrás referi.
Em Barro, entrei numa cena idêntica àquela que ele refere, com desencontros de narração e justificações diferentes, de tal modo que, já no aquartelamento, cheguei a estar com a minha G3 apontada para outro alferes, que acusei de me abandonar. Mas deu para reflectir e contive-me.
Aquela noite em que fiquei em Sinchã Jobel (1), teve como consequência, além daquela minha noitada, uma prisão disciplinar, e consequente transferência de companhia, para outro camarada. Mas a este não o acusei de nada nem contribuí pessoal e directamente para a sua prisão.
Porque estou completamente de acordo com o que diz o Paulo Salgado é que não me espalhei em narrativas muito pormenorizadas das minhas situações, daquilo que eu vivi.
Os meus parabéns ao Paulo Salgado. Faço minhas as palavras dele.
Um abraço do
A. Marques Lopes
Coronel (DFA) na situação de reforma, ex-alferes miliciano da CART 1690 (Geba, 1967) e da CCAÇ 3 (Barro, 1968)
__________
Notas de L.G.
(1) vd post do Paulo Salgado, de 18 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLVII: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (9): História e estórias
(2) Vd. pots de A. Marques Lopes sobre Sinchã Jobel (vd. localização desta antiga tabanca, mais tarde base do PAIGC, no mapa de Bambadinca, junto ao curso do Geba Estreito, entre Bambadinca e Bafatá:
30 de Maio de 2006 > Guiné 69/71 - XXXVI: Na bolanha dá para pensar...
30 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXXV: Uma estória de Sinchã Jobel ou a noite em que o Alferes Lopes dormiu na bolanha (1967)
3 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XXXIX: Sinchã Jobel II e III
3 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XL: Sinchã Jobel IV, V e VI
5 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - XLV: Sinchã Jobel VII
Guiné 63/74 - P438: Cancioneiro de Mansoa (6): O pesadelo das minas (Magalhães Ribeiro)
Guiné > Estrada de Bambadinca - Mansambo - Xitole > 1969 > Efeitos da explosão de uma mina anticarro (I) © Humberto Reis (2006)
Guiné > Estrada Nhabijões-Bambadinca > 1971 > Efeitos da explosão de uma mina anticarro (II)
© Humberto Reis (2006)
Dos cadernos (1) do Eduardo Magalhães Ribeiro, ex-furriel miliciano de operações especiais, da CCS do BCAÇ 4612, que teve o seu momento de glória em Mansoa, em 9 de Setembro de 1974 (2).
POR AÍ NÃO... ESTÁ TUDO MINADO!
A mina era a mãe de todos os pesadelos,
Um temor... quando nos deslocávamos na picada,
Um flagelo constante para a nossa tropa
Qu’assim era traiçoeiramente estropiada.
O progresso na modernidade
Nas sociedades normais e sadias,
Evoluindo em paz e liberdade,
Seria a perfeita das harmonias.
Mas os ódios no mundo radicados,
Racismos, ditaduras, religiões,
Quezílias de terras e políticas
Geram conflitos e confrontações,
Que por vezes degeneram em guerra!
Entram os militares em acção!
Soldados, armas, estratégias...
Até que haja uma rendição!
Por vezes, os fins justificam os meios
E os métodos que são utilizados
Nem sempre respeitam as regras,
Tornando-se mesmo animalizados.
Bem no meio desta salgalhada
Existe uma raça, os guerreiros,
Aqueles que primam pela luta leal
Que no combate são os primeiros.
Formam uma estirpe elitista
A quem dá Honra e Orgulho pertencer
E pautam o seu ser pela divisa…
O firme Antes quebrar que torcer!
Amam a Pátria, a Paz, a Família
E s’algum dos três é posto em perigo
E eles têm que recorrer às armas,
Cuidem-se de tamanho inimigo.
Detestam tudo o que denote
Indícios de cobardia e traição
E esgotam todos os seus recursos
Para atingir a sua supressão.
Uma das traições mais frequentes
Qu’estes audazes querem derrotar
São as armadilhas sujas e desleais!
Das quais as minas são primeiro lugar .
Na Guerra do Ultramar, em África,
De todos os temores, o mais terrível
Era a mina dissimulada no chão,
Traiçoeira... funesta... invisível.
Dizem: - É uma arma de baixo custo!,
Que causava grande devastação
Entre as pessoas e as viaturas,
Podendo ser de sopro ou fragmentação.
Existem no mundo vários modelos
E por todas as Nações são usadas,
Aqui vou falar das antipessoal,
Criminosas e desumanizadas.
Montam-se com bastante facilidade,
Estuda-se no terreno um ponto,
Uma cova... põe-se a mina... tapa-se…
Arma-se o detonador e... pronto!
Disfarça-se a superfície à volta,
Do melhor modo camuflado,
E deixa-se ali ficar, a ratoeira,
Á espera d’um desgraçado.
É que, por incrível que pareça,
O seu objectivo não é matar...
Mas bem mais tenebroso e macabro
Ferir o corpo humano... retalhar!
Assim, a sua face mais infausta
É o medo dos graus de destruição
Tanto físicos como psicológicos
Que nas vítimas provocarão.
Será uma perna atingida... um pé?...
Enfim, que partes do corpo colherá?
Um ou dois olhos... os braços... as mãos?
Só a sorte ou o azar o dirá!
Basta um pé no sítio errado
E... está accionado o detonador!
Uma explosão, terra e pó no ar...
O resto... são os queixumes de dor.
O sangue na terra, a vida por um fio
Quanto sofrimento e agonia,
Corpo dilacerado... pedaço de vida,
Qu’ali deixa morto, sonhos e alegria.
Uma mina!... É o pânico geral!
Onde está uma, podem estar mais!
Quantas, duas, três?... uma incógnita!
Uma incerteza qu’arrasava os demais!
No cuidadoso planeamento das operações
Era tudo extremamente bem delineado,
Nos mapas evidenciavam-se zonas riscadas,
A vermelho, com avisos: - Local Minado! (3)
Ranger Magalhães Ribeiro
Furriel Mil.º da CCS do Batalhão 4612/74 - Mansoa/Guiné
______________
Notas de L.G.:
(1) Vd. posts anteriores:
1 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVI: Cancioneiro de Mansoa (1): o esplendor de Portugal
1 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVII: Cancioneiro de Mansoa (2): Guiné, do Cumeré a Brá
7 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLVI: Cancioneiro de Mansoa (3): um mosquiteiro barato para um pira...
10 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLIV: Cancioneiro de Mansoa (4): a arte de ser 'ranger'
(2) vd. post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)
(3) Alguns dos nossos posts sobre minas e armadilhas:
20 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXII: O inferno das colunas logísticas na estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole-Saltinho (Luís Graça)
23 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXV: Minas e armadilhas (David J. Guimarães)
11 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CLXX: As heróicas GMC e os malucos dos seus condutores (CCAÇ 12, Septembro de 1969) (Luís Graça)
23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971) (Luís Graça)
2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIX: E de súbito uma explosão (Luís Graça)
Guiné > Estrada Nhabijões-Bambadinca > 1971 > Efeitos da explosão de uma mina anticarro (II)
© Humberto Reis (2006)
Dos cadernos (1) do Eduardo Magalhães Ribeiro, ex-furriel miliciano de operações especiais, da CCS do BCAÇ 4612, que teve o seu momento de glória em Mansoa, em 9 de Setembro de 1974 (2).
POR AÍ NÃO... ESTÁ TUDO MINADO!
A mina era a mãe de todos os pesadelos,
Um temor... quando nos deslocávamos na picada,
Um flagelo constante para a nossa tropa
Qu’assim era traiçoeiramente estropiada.
O progresso na modernidade
Nas sociedades normais e sadias,
Evoluindo em paz e liberdade,
Seria a perfeita das harmonias.
Mas os ódios no mundo radicados,
Racismos, ditaduras, religiões,
Quezílias de terras e políticas
Geram conflitos e confrontações,
Que por vezes degeneram em guerra!
Entram os militares em acção!
Soldados, armas, estratégias...
Até que haja uma rendição!
Por vezes, os fins justificam os meios
E os métodos que são utilizados
Nem sempre respeitam as regras,
Tornando-se mesmo animalizados.
Bem no meio desta salgalhada
Existe uma raça, os guerreiros,
Aqueles que primam pela luta leal
Que no combate são os primeiros.
Formam uma estirpe elitista
A quem dá Honra e Orgulho pertencer
E pautam o seu ser pela divisa…
O firme Antes quebrar que torcer!
Amam a Pátria, a Paz, a Família
E s’algum dos três é posto em perigo
E eles têm que recorrer às armas,
Cuidem-se de tamanho inimigo.
Detestam tudo o que denote
Indícios de cobardia e traição
E esgotam todos os seus recursos
Para atingir a sua supressão.
Uma das traições mais frequentes
Qu’estes audazes querem derrotar
São as armadilhas sujas e desleais!
Das quais as minas são primeiro lugar .
Na Guerra do Ultramar, em África,
De todos os temores, o mais terrível
Era a mina dissimulada no chão,
Traiçoeira... funesta... invisível.
Dizem: - É uma arma de baixo custo!,
Que causava grande devastação
Entre as pessoas e as viaturas,
Podendo ser de sopro ou fragmentação.
Existem no mundo vários modelos
E por todas as Nações são usadas,
Aqui vou falar das antipessoal,
Criminosas e desumanizadas.
Montam-se com bastante facilidade,
Estuda-se no terreno um ponto,
Uma cova... põe-se a mina... tapa-se…
Arma-se o detonador e... pronto!
Disfarça-se a superfície à volta,
Do melhor modo camuflado,
E deixa-se ali ficar, a ratoeira,
Á espera d’um desgraçado.
É que, por incrível que pareça,
O seu objectivo não é matar...
Mas bem mais tenebroso e macabro
Ferir o corpo humano... retalhar!
Assim, a sua face mais infausta
É o medo dos graus de destruição
Tanto físicos como psicológicos
Que nas vítimas provocarão.
Será uma perna atingida... um pé?...
Enfim, que partes do corpo colherá?
Um ou dois olhos... os braços... as mãos?
Só a sorte ou o azar o dirá!
Basta um pé no sítio errado
E... está accionado o detonador!
Uma explosão, terra e pó no ar...
O resto... são os queixumes de dor.
O sangue na terra, a vida por um fio
Quanto sofrimento e agonia,
Corpo dilacerado... pedaço de vida,
Qu’ali deixa morto, sonhos e alegria.
Uma mina!... É o pânico geral!
Onde está uma, podem estar mais!
Quantas, duas, três?... uma incógnita!
Uma incerteza qu’arrasava os demais!
No cuidadoso planeamento das operações
Era tudo extremamente bem delineado,
Nos mapas evidenciavam-se zonas riscadas,
A vermelho, com avisos: - Local Minado! (3)
Ranger Magalhães Ribeiro
Furriel Mil.º da CCS do Batalhão 4612/74 - Mansoa/Guiné
______________
Notas de L.G.:
(1) Vd. posts anteriores:
1 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVI: Cancioneiro de Mansoa (1): o esplendor de Portugal
1 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXVII: Cancioneiro de Mansoa (2): Guiné, do Cumeré a Brá
7 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXLVI: Cancioneiro de Mansoa (3): um mosquiteiro barato para um pira...
10 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLIV: Cancioneiro de Mansoa (4): a arte de ser 'ranger'
(2) vd. post de 21 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCIV: Eu estava lá, na entrega simbólica do território (Mansoa, 9 de Setembro de 1974)
(3) Alguns dos nossos posts sobre minas e armadilhas:
20 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXII: O inferno das colunas logísticas na estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole-Saltinho (Luís Graça)
23 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXV: Minas e armadilhas (David J. Guimarães)
11 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CLXX: As heróicas GMC e os malucos dos seus condutores (CCAÇ 12, Septembro de 1969) (Luís Graça)
23 de Setembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCV: 1 morto e 6 feridos graves aos 20 meses (CCAÇ 12, Janeiro de 1971) (Luís Graça)
2 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCXXIX: E de súbito uma explosão (Luís Graça)
quarta-feira, 18 de janeiro de 2006
Guiné 63/74 - P437: Estórias cabralianas (4): o Jagudi de Barcelos
Guiné-Bissau > Saltinho > 2005 > "É uma casa portuguesa, concerteza...". Uma morança com um homem grande e a sua família...
© José Teixeira (2005)
Guiné-Bissau > Saltinho > 2005 > A mulher do régulo e a filha...
© José Teixeira (2005)
Texto de Jorge Cabral (ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71):
Companheiro Luís,
Continuo a acompanhar diariamente o teu/nosso blogue, o qual me tem permitido repescar do sótão da memória inúmeros episódios, alguns sofridos e outros intensamente gozados.
Na Guiné, além da guerra real, havia outra mais absurda – a dos papéis. Como Comandante de um Pelotão Independente, era inundado por um vultoso expediente, quer por via postal, quer através da rádio, o qual ia arquivando debaixo da cama.
A estória que hoje envio foi uma das minhas raras respostas às solicitações de Bissau, e ia tendo um péssimo resultado... Remeto, porque também tive momentos de tristeza, dois poemas, um escrito em Fá e outro em Finete, onde passei quinze dias à espera do "IN".
Um Grande Abraço de até Sempre e em Todos os Dias,
Jorge
O Jagudi de Barcelos (1)
Dos quatro Comandantes de Bambadinca que conheci, apenas o Polidoro Monteiro me mereceu consideração. Dos outros nem vou dizer o nome, e de dois a imagem que guardo é patética (2).
Assim, no rescaldo do ataque ao Batalhão (3), lembro o primeiro, à noite, de G3 em bandoleira, pedir-nos:
- Se houver ataque, acordem-me . - Eu, então periquito, fiquei inteirado…
Do substituto deste, recordo o Xime e o Posto de Socorros, no qual ele resolveu tratar uma fístula anal, cena presenciada por toda a tropa que ali se encontrava, para iniciar uma operação. (Estava lá a CCAÇ 12, foi a do dilagrama)(4).
Quanto ao Polidoro, não sei porquê, meteu na cabeça que eu devia ser louvado pelo Com-Chefe, tendo até, para o efeito, ido a Bissau. Afinal estraguei tudo… Em vez de tal louvor, o que o Tenente-Coronel conseguiu, foi livrar-me de uma porrada.
É que, precisamente nessa altura (meados de Julho de 71, muito após ter completado dois anos de mato), recebi uma mensagem, perguntando-me qual o tipo de habitações que se deviam construir para os soldados africanos. Perante o absurdo, não hesitei, e acto continuo respondi:
Uma casa portuguesa, com certeza.
Não há mesa, mas no chão um alguidar com bianda e peixinho da bolanha... fica bem.
Um raminho de capim. E claro, à entrada, de Barcelos, um Jagudi….
Jorge Cabral (2006)
Molhi Daaba
Molhi Daaba no meu lençol
Fecha o seu corpo
Como Flor
Que teme o sol.
Com medo e dó
Não dá - Empresta
E desta noite
Nada me resta.
“Estou só”
Nov. 69, Fá Mandinga
Jorge Cabral
Sala de Operações
Néscio, burro, o Major aponta
No mapa a linha de Água
(Que é um largo rio). Faço de conta
E gozando, mascaro a minha mágoa.
Claro que sim, meu Major
Golpe de pé, Golpe de mão
De Badora ao Cuor
E penso (Que cabrão…)
O major planeia a promoção
Eu nada planeio. Adio a vida
Até poder dizer que não
Quando não for, a Esperança proibida.
Jorge Cabral
Finete, 19/2/71
_____________
Notas de L.G.
(1) Vd posts de 5 de Janeiro de 2006 >
Guiné 63/74 - CDXXII: Rally turra ? (estórias cabralianas)
Guiné 63/74 - CDXXI: Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum...
Vd. post de 7 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXIX: Estórias cabralianas (3): o básico apaixonado
(2) Algumas destes nossos comandantes já aqui foram evocados, por mim e pelo David Guimarães. Vd posts de:
29 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - IX: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (1)
26 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXVI: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (6)
(3) Em 28 de Maio de 1969. Vd. post de 14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal
(4) Vd post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)
© José Teixeira (2005)
Guiné-Bissau > Saltinho > 2005 > A mulher do régulo e a filha...
© José Teixeira (2005)
Texto de Jorge Cabral (ex-Alferes Miliciano de Artilharia, comandante do Pel Caç Nat 63, destacado em Fá Mandinga e depois em Missirá, Sector L1 - Bambadinca, Zona Leste, 1969/71):
Companheiro Luís,
Continuo a acompanhar diariamente o teu/nosso blogue, o qual me tem permitido repescar do sótão da memória inúmeros episódios, alguns sofridos e outros intensamente gozados.
Na Guiné, além da guerra real, havia outra mais absurda – a dos papéis. Como Comandante de um Pelotão Independente, era inundado por um vultoso expediente, quer por via postal, quer através da rádio, o qual ia arquivando debaixo da cama.
A estória que hoje envio foi uma das minhas raras respostas às solicitações de Bissau, e ia tendo um péssimo resultado... Remeto, porque também tive momentos de tristeza, dois poemas, um escrito em Fá e outro em Finete, onde passei quinze dias à espera do "IN".
Um Grande Abraço de até Sempre e em Todos os Dias,
Jorge
O Jagudi de Barcelos (1)
Dos quatro Comandantes de Bambadinca que conheci, apenas o Polidoro Monteiro me mereceu consideração. Dos outros nem vou dizer o nome, e de dois a imagem que guardo é patética (2).
Assim, no rescaldo do ataque ao Batalhão (3), lembro o primeiro, à noite, de G3 em bandoleira, pedir-nos:
- Se houver ataque, acordem-me . - Eu, então periquito, fiquei inteirado…
Do substituto deste, recordo o Xime e o Posto de Socorros, no qual ele resolveu tratar uma fístula anal, cena presenciada por toda a tropa que ali se encontrava, para iniciar uma operação. (Estava lá a CCAÇ 12, foi a do dilagrama)(4).
Quanto ao Polidoro, não sei porquê, meteu na cabeça que eu devia ser louvado pelo Com-Chefe, tendo até, para o efeito, ido a Bissau. Afinal estraguei tudo… Em vez de tal louvor, o que o Tenente-Coronel conseguiu, foi livrar-me de uma porrada.
É que, precisamente nessa altura (meados de Julho de 71, muito após ter completado dois anos de mato), recebi uma mensagem, perguntando-me qual o tipo de habitações que se deviam construir para os soldados africanos. Perante o absurdo, não hesitei, e acto continuo respondi:
Uma casa portuguesa, com certeza.
Não há mesa, mas no chão um alguidar com bianda e peixinho da bolanha... fica bem.
Um raminho de capim. E claro, à entrada, de Barcelos, um Jagudi….
Jorge Cabral (2006)
Molhi Daaba
Molhi Daaba no meu lençol
Fecha o seu corpo
Como Flor
Que teme o sol.
Com medo e dó
Não dá - Empresta
E desta noite
Nada me resta.
“Estou só”
Nov. 69, Fá Mandinga
Jorge Cabral
Sala de Operações
Néscio, burro, o Major aponta
No mapa a linha de Água
(Que é um largo rio). Faço de conta
E gozando, mascaro a minha mágoa.
Claro que sim, meu Major
Golpe de pé, Golpe de mão
De Badora ao Cuor
E penso (Que cabrão…)
O major planeia a promoção
Eu nada planeio. Adio a vida
Até poder dizer que não
Quando não for, a Esperança proibida.
Jorge Cabral
Finete, 19/2/71
_____________
Notas de L.G.
(1) Vd posts de 5 de Janeiro de 2006 >
Guiné 63/74 - CDXXII: Rally turra ? (estórias cabralianas)
Guiné 63/74 - CDXXI: Cabral só havia um, o de Missirá e mais nenhum...
Vd. post de 7 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXXIX: Estórias cabralianas (3): o básico apaixonado
(2) Algumas destes nossos comandantes já aqui foram evocados, por mim e pelo David Guimarães. Vd posts de:
29 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - IX: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (1)
26 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXVI: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (6)
(3) Em 28 de Maio de 1969. Vd. post de 14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal
(4) Vd post de 25 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - VII: Memórias do inferno do Xime (Novembro de 1970)
Guiné 63/74 - P436: Crónicas de Bissau (ou o 'bombolom' do Paulo Salgado) (9): História e estórias
Guiné-Bissau > Xime > 2006 > Antigos tropas ao serviço dos tugas... Onde está a verdade do colaboraccionismo dos guinéus ? Onde ficou a mentira da missão civilizacional dos tugas ? Que diria hoje Amílcar Cabral, se fosse vivo, dos seus guerrilheiros que estão no poder ?
© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)
Texto do Paulo Salgado:
Camaradas e Amigos:
Tenho andado muito ocupado com o trabalho. O meu bombolom ainda não tocou neste ano da graça (ou da desgraça?) de 2006. Há-de tocar e acerca do que está epigrafado.
Quero dizer-vos, companheiros de uma jornada que está gravada nas nossas cabeças (alguns nem sequer querem tocar no assunto, não esqueçais!), que foi a que fizemos durante quase dois anos (alguns mais, pois eram mal comportados), quero dizer-vos - escrevia - duas coisas muito simples e que para mim fazem muito sentido:
Primeira: aquela foi uma guerra feita de retalhos, de bocados, de solavancos, de conhecimentos muito parciais da realidade global, de ignorância do que se passava noutros pontos da retalhada Guiné. Por isso, a História, a fazer ou a construir, tem que basear-se em factos parciais, parcelarmente conhecidos e narrados com fidelidade ao que se passou. E quem a fizer, se não for um profundo admirador da Verdade (como se defende - e bem - nas palavras do Mário Dias), mas antes um oportunista amigo dos tostões que caem de editoras empenhadas em vender milhares de livros, então nunca se fará História. Será uma História inimiga da Verdade.
Guiné-Bissau > Xime > 2006 > Restos do cais por onde se entrava e saía da Zona Leste...
© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)
Guiné-Bissau > Xime > Ponte de Taliuará (?) > 2006 > É que é que esta imagem pode contribuir para a construção da História da Guerra Colonial na Guiné (Paulo Salgado) ?
© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)
Segunda: Pedaços de estórias vividas por nós, em grupo, podem ser contadas de maneira diferente. Por vezes enviezada, não por sobranceria, não por melhor conhecer os factos, mas pela simples razão de que foram observadas em situações algo distintas mesmo que vividas simultaneamente: será aquilo a que poderíamos chamar o engajamento psicológico face a uma determinada situação. Poderia contar um caso que aconteceu com dois grupos de combate em acção conjunta (sob o comamdo do comandante de companhia), um dos quais comandado por mim, e que fazia a protecção ao outro que executou um golpe de mão (não interessa se teve êxito ou não...).
Pois bem: ainda num recente almoço de confraternização, reparei que aguns camaradas (valentes e amigos, claro) acusavam o grupo que eu comandava de que terá havido negligência na cobertura da sua retirada. Eu limitei-me a sorrir, apesar de o MM tentar contar as coisas de outra maneira - afinal aquela que nós pensávamos ser a verdadeira e que parece ainda hoje - porque estávamos em posições diferentes no mato, porque os turras também sabiam actuar, etc.
Na verdade, a acusação era a de que deixámos passar o IN para ir ter com eles e fazer fogo, o que aconteceu, de facto; ao que nós ripostámos: nada disso é verdade, o IN preferiu atacar o grupos que se retirava e ná se mostrou ao grupo que fazia a protecção...coiasas de táctica...que eles conheciam bem...
Como vedes, esta estória pôde ser contada pelo menos de duas maneiras. Por isso, tenho alguma relutância em falar da História, preferindo contar pedaços vividos: nas casernas, nos patrulhamentos, nas emboscadas, nos contactos com a população, na ternura dos olhos sorridentes dos meninos e meninas, no encanto das bajudas, nas conversas com os homens grandes, na chegada do avião com as cartas e aerogramas, nas batucadas, nas fugas para as valas - e no que isso trouxe de engrandecimento ou de empobrecimento, de solidariedade ou de desconfiança, de amizade ou de reacção negativa. Aí, de certeza, que estaremos de acordo.
O que não poderemos nunca, Amigos, é deixar-nos entusiasmar pelos nossos sucessos, nem permitir que construam uma História falsa. Nunca. Por isso, creio bem, só quem estiver preparado cientificamente, e tiver sabido contar o que viveu localmente, ou saber interpretar o que foi contado, merece trabalhar na construção da História da Guerra Colonial na Guiné.
Viva a verdade dos factos.
Bissau, Paulo Salgado
© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)
Texto do Paulo Salgado:
Camaradas e Amigos:
Tenho andado muito ocupado com o trabalho. O meu bombolom ainda não tocou neste ano da graça (ou da desgraça?) de 2006. Há-de tocar e acerca do que está epigrafado.
Quero dizer-vos, companheiros de uma jornada que está gravada nas nossas cabeças (alguns nem sequer querem tocar no assunto, não esqueçais!), que foi a que fizemos durante quase dois anos (alguns mais, pois eram mal comportados), quero dizer-vos - escrevia - duas coisas muito simples e que para mim fazem muito sentido:
Primeira: aquela foi uma guerra feita de retalhos, de bocados, de solavancos, de conhecimentos muito parciais da realidade global, de ignorância do que se passava noutros pontos da retalhada Guiné. Por isso, a História, a fazer ou a construir, tem que basear-se em factos parciais, parcelarmente conhecidos e narrados com fidelidade ao que se passou. E quem a fizer, se não for um profundo admirador da Verdade (como se defende - e bem - nas palavras do Mário Dias), mas antes um oportunista amigo dos tostões que caem de editoras empenhadas em vender milhares de livros, então nunca se fará História. Será uma História inimiga da Verdade.
Guiné-Bissau > Xime > 2006 > Restos do cais por onde se entrava e saía da Zona Leste...
© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)
Guiné-Bissau > Xime > Ponte de Taliuará (?) > 2006 > É que é que esta imagem pode contribuir para a construção da História da Guerra Colonial na Guiné (Paulo Salgado) ?
© Domingos Fonseca / AD - Acção para o Desenvolvimento (2006)
Segunda: Pedaços de estórias vividas por nós, em grupo, podem ser contadas de maneira diferente. Por vezes enviezada, não por sobranceria, não por melhor conhecer os factos, mas pela simples razão de que foram observadas em situações algo distintas mesmo que vividas simultaneamente: será aquilo a que poderíamos chamar o engajamento psicológico face a uma determinada situação. Poderia contar um caso que aconteceu com dois grupos de combate em acção conjunta (sob o comamdo do comandante de companhia), um dos quais comandado por mim, e que fazia a protecção ao outro que executou um golpe de mão (não interessa se teve êxito ou não...).
Pois bem: ainda num recente almoço de confraternização, reparei que aguns camaradas (valentes e amigos, claro) acusavam o grupo que eu comandava de que terá havido negligência na cobertura da sua retirada. Eu limitei-me a sorrir, apesar de o MM tentar contar as coisas de outra maneira - afinal aquela que nós pensávamos ser a verdadeira e que parece ainda hoje - porque estávamos em posições diferentes no mato, porque os turras também sabiam actuar, etc.
Na verdade, a acusação era a de que deixámos passar o IN para ir ter com eles e fazer fogo, o que aconteceu, de facto; ao que nós ripostámos: nada disso é verdade, o IN preferiu atacar o grupos que se retirava e ná se mostrou ao grupo que fazia a protecção...coiasas de táctica...que eles conheciam bem...
Como vedes, esta estória pôde ser contada pelo menos de duas maneiras. Por isso, tenho alguma relutância em falar da História, preferindo contar pedaços vividos: nas casernas, nos patrulhamentos, nas emboscadas, nos contactos com a população, na ternura dos olhos sorridentes dos meninos e meninas, no encanto das bajudas, nas conversas com os homens grandes, na chegada do avião com as cartas e aerogramas, nas batucadas, nas fugas para as valas - e no que isso trouxe de engrandecimento ou de empobrecimento, de solidariedade ou de desconfiança, de amizade ou de reacção negativa. Aí, de certeza, que estaremos de acordo.
O que não poderemos nunca, Amigos, é deixar-nos entusiasmar pelos nossos sucessos, nem permitir que construam uma História falsa. Nunca. Por isso, creio bem, só quem estiver preparado cientificamente, e tiver sabido contar o que viveu localmente, ou saber interpretar o que foi contado, merece trabalhar na construção da História da Guerra Colonial na Guiné.
Viva a verdade dos factos.
Bissau, Paulo Salgado
terça-feira, 17 de janeiro de 2006
Guiné 63/74 - P435: De Lisboa para o Xitole, com amor (Humberto Reis)
Guiné-Bissau > Zona Leste > Xitole > 2001 > Restos do aquartelamento do Xitole: a a antiga parada e, à direita, a casa dos oficiais.
© David J. Guimarães (2005)
Já aqui evocámos e descrevemos, noutra ocasião, o que era o inferno das colunas logísticas na Guiné, e em particular na estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole (1), que muitos de nós conhecemos tão bem (eu, o Humberto Reis, o David J. Guimarães, o Carlos Marques dos Santos, etc.)...
Recorde-se que desde Novembro de 1968 que o itinerário Mansambo-Xitole estava interdito. Nessa altura, uma coluna logística do BCAÇ 2852, no regresso a Bambadinca, sofrera duas emboscadas (uma das quais, a primeira, com mina comandada), a cerca de 2km da Ponte dos Fulas, na zona de acção da unidade de quadrícula aquartelada no Xitole (CART 2413). A coluna prosseguiu com apoio aéreo.
Nove meses depois, a 4 de Agosto de 1969, a CCAÇ 12 participou na reabertura desse itinerário, que era absolutamente vital para as NT (aquarteladas em Mansambo, Xitole, Saltinho...). Na Op Belo Dia, participou o 2º Gr Comb da CCAÇ 12 (o pelotão do Humberto Reis e do Tony Levezinho) com forças da CART 2339 (Mansambo) - a que pertencia o Carlos Marques dos Santos - formando o Destacamento A. Nessa operação, não foram encontradas minas nem abatizes no itinerário mas o IN emboscou 1 Gr Com do Dest B, constituído por forças da CART 2413 do Xitole, na Ponte dos Fulas, quando as NT estavam a reabastecer-se de água.
Hoje relembramos, através de alguns dos cerca de 100 diapostivos do Humberto Reis (em boa hora recuperados e digitalizados), aspectos menos dramáticos, mais triviais, mais humanos, dessas colunas, periódicas, em que levávamos a bianda aos nossos camaradas de Mansambo, Xitole e também Saltinho...
Guiné > Xitole > 1970 > Uma coluna logística, vinda de Bambadinca, passa pela Ponte dos Fulas, sobre o Rio Pulom, a caminho do Xitole (CART 2716, 1970/72)
© Humberto Reis (2006)
Comentário do David J. Guimarães (ex-furriel miliciano da CART 2716, aquartelada no Xitole (1970/1972), e pertencente ao BART 2917, sediado em Bambadinca.
" (...) Efectivamente lá ao fundo da fotografia vê-se bem o Fortim, junto à ponte, e em cima dela pelo que vejo é a primeira viatura militar que está na foto.
"Esta fotografia foi tirada do ponto mais alto do destacamento da Ponte dos Fulas. Quem tirou a fotografia [o Humberto Reis] tinha um abrigo à sua esquerda e mais atrás o local onde comíamos, reuníamos, limpávamos armas, conversávamos, etc. E ra um coberto ao ar livre...
"Como se verifica a estrada passava pelo meio deste acampamento onde nós só estávamos para guardar a ponte sobre o rio Pulom (Ponte dos Fulas). Era um local isolado. Tínhamos um bem: não saíamos em patrulhamento.
"Tínhamos montadas duas Metralhadoras Pesadas Bredas .. Um dentro do Fortim e outra bem cá em cima junto ao coberto acima referido ... Essa estava apontada para a zona do Xitole, que distava 3 Km dali....
"Foi aqui que comecei a minha comissão no mato, pois o 3º Grupo de Combate a que eu pertencia, foi por sorteio o que calhou ir para ali ao 3º mês... De notar que os Morteiros do Xitole também protegiam aquela zona, estando perfeitamente com orientações para aquela direcção - bem mas isso era com os tipos das armas pesadas. Nunca tivémos ali nenhum ataque e ainda bem, senão tenho a sensação de que estaria aqui a contar outra história ou como ex-prisioneiro ou então... estaria com o Cunha, agora, no outro mundo...
"As colunas para nós eram um espectáculo mesmo... Não mais que isso, pois nada fazíamos senão vermos a passar os carros todos para um lado e, depois ao fim da tarde, para o outro ... Até ao próximo mês... E lá ficavamos nós na Ponte dos Fulas... No meio do silêncio da savana. A beber uns copos, claro...
"Diariamente do Xitole deslocava-se lá um Pelotão que nos ia levar géneros ao almoço e ao jantar... Note-se que tinhamos a noção exacta de que a área circundante e a zona entre o Xitole e a cerca deste destacamento - eram terra de ninguém onde o IN andaria mais ou menos à vontade...
"O único civil que lá recebíamos era o Mamadu, um pescador, bom homem, bem alto ... e que já morreu".
Guiné > Xitole > 1970 > Vista aérea do Xitole (aquartelamento, posto administrativo e tabanca)
© Humberto Reis (2006)
Comentário do David J. Guimarães:
"Esta foto aérea terá se ser comparada com outras, que eu tirei em 2001, já publicadas na página do Xitole, e que identificam os edifícios que ainda existem (ou exitima). Vamos lá descrever o que vejo, possivelmente a bordo de uma DO - não sei, deverá ser...
"Da direita para a esquerda, os edifícios: em primeiro lugar, a cozinha das praças notando-se na esquina um abrigo subterrâneo - era nesse abrigo que dormia parte do 4º Grupo de Combate... Depois andando mais para a esquerda vemos outro abrigo e depois uma casa civil - era a casa do Chefe de Posto, hoje ainda existente... Continuando, vemos uma casinha pequenina e à frente outro abrigo - aí era o ninho de um dos morteiros 81 e o abrigo da secção de armas pesadas que lá se encontrava...
"Depois mais à frente aparece um grande abrigo - sei que lá se instalava parte do 1º Grupo de Combate... Continuando mais à frente vê-se uma casinha pequenina - era a capela da companhia (tenho eu que enviar uma fotografia onde eu estou na frente) Notem agora uma arvore frondosa - é a árvore grande ainda hoje existente - da parte de vê-se outro abrigo: também ele com o resto do 1º Grupo de Combate... Por detrás da capela e debaixo dessa árvore grande verde, é exactamente o bar do soldado, aquele bar onde o Humberto e o Levezinho se encontram a conversar em fotografia que vem mais abaixo, neste post...
"Mais à esquerda vemos outra árvore de bom porte: é o local da porta de armas... Seguindo agora desse modo no sentido da pista, vemos um edifício escuro: é a Oficina Mecânica, o depósito de armamento, enfermaria etc... Caminhamos mais para a direita e novo edifício e abrigo - messe e abrigo dos oficiais... Antes e bem junto nota-se para lá qualquer coisa: ninho da metralhadora Breda e abrigo... Mais para à direita casa dos oficiais, surge então a sala de operações, a messe dos sargentos, a secretaria etc... Deixamos esse edifício comprido e logo vemos outro: depósito de géneros.... Mais à frente e com árvores notam-se edifícios: são casas de banho... Mais um abrigo voltado para a pista e mais uma arrecadação... Enfim, era por ali que se instalou também e já coberto pelas árvores o ninho do morteiro 10.7 ...
"E estamos muito perto do ponto de partida, a cozinha dos soldados.... Aí existia outro abrigo idêntico àquele que se situa ao lado da cozinha... Bem ao fundo nota-se então a pista dos aviões e um quadrado bem definido que é o heliporto....
"Toda a área circundante ao quartel antes da pista tinha uma vala, como era de esperar.... Ela percorria toda a zona habitável do aquartelamento...
"Agora bem à esquerda do aquartelamento aí está o Xitole civil ... Em frente à pista e do lado do heliporto nota-se um trilho que nos levava à Ponte Marechal Carmona... Pelo fundo da pista nota-se uma estrada que vai dar à que segue para o Saltinho... Pela frente e na zona mais arborizada existe um complexo: era onde havia um poço... Mais à esquerda sim, e quem sai da porta de armas, vê-se uma estrada - bem à esquerda da fotografia... Exactamente era por aí que entravam as colunas logísticas que vinham ao Xitole (1)...
"Ai, Luís e Humberto, ficaria toda a tarde a falar sobre isso - por agora vai isto assim... Descrito com emoção, os locais estão certos, o português está à atirador que era o que eu era"...
Guiné > Xitole > 1970 > "David: Ou a ti, a partir de Junho de 1970, ou à malta da CART 2413, anteriormente, costumávamos a ser nós, CCAÇ 12, a levar a bianda. Cera vez arranjei aí um amigo que me ajudou a comer a ração de combate".
© Humberto Reis (2006)
Guiné > Xitole > 1969/70 > Guiné >Xitole > 1970 > "Zé Vacas de Carvalho (2): Conheces este rapazinho de lencinho ao pescoço no Xitole? À tua direita, estou, e à esquerda - penso eu, se a memória me não falha - o furriel enfermeiro Godinho da CCS do BART 2917 que foi connosco, à turista... À direita, temos o nosso amigo e camarada da CCAÇ 12, o furriel miliciano T. Roda".
© Humberto Reis (2006)
Guiné > Xitole > 1970> Os furriéis milicianos Reis e Levezinho. "Tony: Esta no Xitole também está bem apanhada. Parecemos dois bonecos da bola".
© Humberto Reis (2006)
__________
Notas de L.G.
(1) Vd posts de
20 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXII: O inferno das colunas logísticas na estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole-Saltinho
11 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CLXX: As heróicas GMC e os malucos dos seus condutores (CCAÇ 12, Septembro de 1969)
(2) O Alf Mil Vacas de Carvalho era o comandante do Pelotão Daimler, estaccionado como nós, CCAÇ 12, em Bambadinca (1969/71).
© David J. Guimarães (2005)
Já aqui evocámos e descrevemos, noutra ocasião, o que era o inferno das colunas logísticas na Guiné, e em particular na estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole (1), que muitos de nós conhecemos tão bem (eu, o Humberto Reis, o David J. Guimarães, o Carlos Marques dos Santos, etc.)...
Recorde-se que desde Novembro de 1968 que o itinerário Mansambo-Xitole estava interdito. Nessa altura, uma coluna logística do BCAÇ 2852, no regresso a Bambadinca, sofrera duas emboscadas (uma das quais, a primeira, com mina comandada), a cerca de 2km da Ponte dos Fulas, na zona de acção da unidade de quadrícula aquartelada no Xitole (CART 2413). A coluna prosseguiu com apoio aéreo.
Nove meses depois, a 4 de Agosto de 1969, a CCAÇ 12 participou na reabertura desse itinerário, que era absolutamente vital para as NT (aquarteladas em Mansambo, Xitole, Saltinho...). Na Op Belo Dia, participou o 2º Gr Comb da CCAÇ 12 (o pelotão do Humberto Reis e do Tony Levezinho) com forças da CART 2339 (Mansambo) - a que pertencia o Carlos Marques dos Santos - formando o Destacamento A. Nessa operação, não foram encontradas minas nem abatizes no itinerário mas o IN emboscou 1 Gr Com do Dest B, constituído por forças da CART 2413 do Xitole, na Ponte dos Fulas, quando as NT estavam a reabastecer-se de água.
Hoje relembramos, através de alguns dos cerca de 100 diapostivos do Humberto Reis (em boa hora recuperados e digitalizados), aspectos menos dramáticos, mais triviais, mais humanos, dessas colunas, periódicas, em que levávamos a bianda aos nossos camaradas de Mansambo, Xitole e também Saltinho...
Guiné > Xitole > 1970 > Uma coluna logística, vinda de Bambadinca, passa pela Ponte dos Fulas, sobre o Rio Pulom, a caminho do Xitole (CART 2716, 1970/72)
© Humberto Reis (2006)
Comentário do David J. Guimarães (ex-furriel miliciano da CART 2716, aquartelada no Xitole (1970/1972), e pertencente ao BART 2917, sediado em Bambadinca.
" (...) Efectivamente lá ao fundo da fotografia vê-se bem o Fortim, junto à ponte, e em cima dela pelo que vejo é a primeira viatura militar que está na foto.
"Esta fotografia foi tirada do ponto mais alto do destacamento da Ponte dos Fulas. Quem tirou a fotografia [o Humberto Reis] tinha um abrigo à sua esquerda e mais atrás o local onde comíamos, reuníamos, limpávamos armas, conversávamos, etc. E ra um coberto ao ar livre...
"Como se verifica a estrada passava pelo meio deste acampamento onde nós só estávamos para guardar a ponte sobre o rio Pulom (Ponte dos Fulas). Era um local isolado. Tínhamos um bem: não saíamos em patrulhamento.
"Tínhamos montadas duas Metralhadoras Pesadas Bredas .. Um dentro do Fortim e outra bem cá em cima junto ao coberto acima referido ... Essa estava apontada para a zona do Xitole, que distava 3 Km dali....
"Foi aqui que comecei a minha comissão no mato, pois o 3º Grupo de Combate a que eu pertencia, foi por sorteio o que calhou ir para ali ao 3º mês... De notar que os Morteiros do Xitole também protegiam aquela zona, estando perfeitamente com orientações para aquela direcção - bem mas isso era com os tipos das armas pesadas. Nunca tivémos ali nenhum ataque e ainda bem, senão tenho a sensação de que estaria aqui a contar outra história ou como ex-prisioneiro ou então... estaria com o Cunha, agora, no outro mundo...
"As colunas para nós eram um espectáculo mesmo... Não mais que isso, pois nada fazíamos senão vermos a passar os carros todos para um lado e, depois ao fim da tarde, para o outro ... Até ao próximo mês... E lá ficavamos nós na Ponte dos Fulas... No meio do silêncio da savana. A beber uns copos, claro...
"Diariamente do Xitole deslocava-se lá um Pelotão que nos ia levar géneros ao almoço e ao jantar... Note-se que tinhamos a noção exacta de que a área circundante e a zona entre o Xitole e a cerca deste destacamento - eram terra de ninguém onde o IN andaria mais ou menos à vontade...
"O único civil que lá recebíamos era o Mamadu, um pescador, bom homem, bem alto ... e que já morreu".
Guiné > Xitole > 1970 > Vista aérea do Xitole (aquartelamento, posto administrativo e tabanca)
© Humberto Reis (2006)
Comentário do David J. Guimarães:
"Esta foto aérea terá se ser comparada com outras, que eu tirei em 2001, já publicadas na página do Xitole, e que identificam os edifícios que ainda existem (ou exitima). Vamos lá descrever o que vejo, possivelmente a bordo de uma DO - não sei, deverá ser...
"Da direita para a esquerda, os edifícios: em primeiro lugar, a cozinha das praças notando-se na esquina um abrigo subterrâneo - era nesse abrigo que dormia parte do 4º Grupo de Combate... Depois andando mais para a esquerda vemos outro abrigo e depois uma casa civil - era a casa do Chefe de Posto, hoje ainda existente... Continuando, vemos uma casinha pequenina e à frente outro abrigo - aí era o ninho de um dos morteiros 81 e o abrigo da secção de armas pesadas que lá se encontrava...
"Depois mais à frente aparece um grande abrigo - sei que lá se instalava parte do 1º Grupo de Combate... Continuando mais à frente vê-se uma casinha pequenina - era a capela da companhia (tenho eu que enviar uma fotografia onde eu estou na frente) Notem agora uma arvore frondosa - é a árvore grande ainda hoje existente - da parte de vê-se outro abrigo: também ele com o resto do 1º Grupo de Combate... Por detrás da capela e debaixo dessa árvore grande verde, é exactamente o bar do soldado, aquele bar onde o Humberto e o Levezinho se encontram a conversar em fotografia que vem mais abaixo, neste post...
"Mais à esquerda vemos outra árvore de bom porte: é o local da porta de armas... Seguindo agora desse modo no sentido da pista, vemos um edifício escuro: é a Oficina Mecânica, o depósito de armamento, enfermaria etc... Caminhamos mais para a direita e novo edifício e abrigo - messe e abrigo dos oficiais... Antes e bem junto nota-se para lá qualquer coisa: ninho da metralhadora Breda e abrigo... Mais para à direita casa dos oficiais, surge então a sala de operações, a messe dos sargentos, a secretaria etc... Deixamos esse edifício comprido e logo vemos outro: depósito de géneros.... Mais à frente e com árvores notam-se edifícios: são casas de banho... Mais um abrigo voltado para a pista e mais uma arrecadação... Enfim, era por ali que se instalou também e já coberto pelas árvores o ninho do morteiro 10.7 ...
"E estamos muito perto do ponto de partida, a cozinha dos soldados.... Aí existia outro abrigo idêntico àquele que se situa ao lado da cozinha... Bem ao fundo nota-se então a pista dos aviões e um quadrado bem definido que é o heliporto....
"Toda a área circundante ao quartel antes da pista tinha uma vala, como era de esperar.... Ela percorria toda a zona habitável do aquartelamento...
"Agora bem à esquerda do aquartelamento aí está o Xitole civil ... Em frente à pista e do lado do heliporto nota-se um trilho que nos levava à Ponte Marechal Carmona... Pelo fundo da pista nota-se uma estrada que vai dar à que segue para o Saltinho... Pela frente e na zona mais arborizada existe um complexo: era onde havia um poço... Mais à esquerda sim, e quem sai da porta de armas, vê-se uma estrada - bem à esquerda da fotografia... Exactamente era por aí que entravam as colunas logísticas que vinham ao Xitole (1)...
"Ai, Luís e Humberto, ficaria toda a tarde a falar sobre isso - por agora vai isto assim... Descrito com emoção, os locais estão certos, o português está à atirador que era o que eu era"...
Guiné > Xitole > 1970 > "David: Ou a ti, a partir de Junho de 1970, ou à malta da CART 2413, anteriormente, costumávamos a ser nós, CCAÇ 12, a levar a bianda. Cera vez arranjei aí um amigo que me ajudou a comer a ração de combate".
© Humberto Reis (2006)
Guiné > Xitole > 1969/70 > Guiné >Xitole > 1970 > "Zé Vacas de Carvalho (2): Conheces este rapazinho de lencinho ao pescoço no Xitole? À tua direita, estou, e à esquerda - penso eu, se a memória me não falha - o furriel enfermeiro Godinho da CCS do BART 2917 que foi connosco, à turista... À direita, temos o nosso amigo e camarada da CCAÇ 12, o furriel miliciano T. Roda".
© Humberto Reis (2006)
Guiné > Xitole > 1970> Os furriéis milicianos Reis e Levezinho. "Tony: Esta no Xitole também está bem apanhada. Parecemos dois bonecos da bola".
© Humberto Reis (2006)
__________
Notas de L.G.
(1) Vd posts de
20 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXII: O inferno das colunas logísticas na estrada Bambadinca-Mansambo-Xitole-Saltinho
11 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CLXX: As heróicas GMC e os malucos dos seus condutores (CCAÇ 12, Septembro de 1969)
(2) O Alf Mil Vacas de Carvalho era o comandante do Pelotão Daimler, estaccionado como nós, CCAÇ 12, em Bambadinca (1969/71).
Guiné 63/74 - P434: Comentário ao Diário de José Teixeira (J.C. Mussá Biai)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Xime > 1972:
Malta da CART 3494, em passeio despreocupado pela tabanca do José Carlos Mussá Biai, que na altura era criança... O segundo, a contar da esquerda, é o ex-1º cabo radiotelegrafista Castro. A CART 3494 (1972/74)esteve aquartelada no Xime (1972/73) e depois em Mansambo (1973/74). Pertencia ao BART 3873 (1972/1974), com sede em Bambadinca.
© Sousa de Castro (2005)
Meu caro Luís:
Acabo de ler o diário de José Teixeira que acho muito engraçado (no bom sentido) e com um sentido de humanismo raramente visto. Isso só demonstra o sentido de solidariedade e compaixão que une os dois povos.
Cumpre-me fazer algumas correcções:
(i) Aquilo que ele escreve como vianda devia ser bianda;
(ii) Aquilo que ele escreve vem na cume devia ser bim nô cumé;
(iii) O que escreve de gila deve ser guila e o significado não é contrabandista, mas sim, comerciante ambulante;
(iv) E o dialecto que ele identifica como sendo mandinga, não o é, mas sim fula.
O meu muito obrigado. Um abraço, amigo Luís.
José C. Mussá Biai
2. Comentário de L.G.:
Fico muito feliz por reencontrar, agora aqui no bosso blogue, o José Carlos, que faz parte da nossa tertúlia, como guineense, como português e como amigo. Recorde-se a sua história:
Nasceu no Xime, e era menino no tempo em que por lá passaram a CART 2715 (1970/72), a CART 3494 (1972/73) e a CCAÇ 12 (1973/74). O furriel miliciano enfermeiro, da CART 3494, de nome José Luís Carvalhido da Ponte, natural de Viana do Castelo, foi alguém especial na sua vida e na vida de outros meninos, por ter sido seu professor na única escola que lá havia, o Posto Escolar Militar nº 14.
Também teve como professor, depois da CART 3494 ter ido para Mansambo, o furriel Osório, da CCAÇ 12, que dava aulas no Posto Escolar Militar nº 14, juntamente com a esposa. Fez a instrução primária debaixo de fogo. Um dos seus irmãos, o Braima, era guia e picador das NT. O seu pai, um homem grande, mandinga, do Xime, o chefe religioso da comunidade islâmica local (um almanu).
A família, de etnia mandinga, teve problemas depois da independência devida à colaboração com as NT. Teve irmãos que fizeram o serviço militar em Farim e que depois foram presos. O José Carlos, nascido em 1963, foi para Bissau fazer o liceu. Foi cinco anos professor, até vir para Lisboa e obter uma bolsa de estudo da Fundação Gulbenkian. Hoje é formado em engenharia florestal. É casado. A sua mulher é natural do Xitole, filha de um comerciante conhecido dos tugas, o Braima.
Trabalha e vive em Portugal, no Instituto de Geográfico Português. Mas nunca mais voltou a encontrar os seus professores do Xime. O José Carlos é um exemplo de tenacidade, coragem, determinação e nobreza que honra qualquer ser humano. Que nos honra a nós e ao povo da Guiné-Bissau a ele que também pertence.
Malta da CART 3494, em passeio despreocupado pela tabanca do José Carlos Mussá Biai, que na altura era criança... O segundo, a contar da esquerda, é o ex-1º cabo radiotelegrafista Castro. A CART 3494 (1972/74)esteve aquartelada no Xime (1972/73) e depois em Mansambo (1973/74). Pertencia ao BART 3873 (1972/1974), com sede em Bambadinca.
© Sousa de Castro (2005)
Meu caro Luís:
Acabo de ler o diário de José Teixeira que acho muito engraçado (no bom sentido) e com um sentido de humanismo raramente visto. Isso só demonstra o sentido de solidariedade e compaixão que une os dois povos.
Cumpre-me fazer algumas correcções:
(i) Aquilo que ele escreve como vianda devia ser bianda;
(ii) Aquilo que ele escreve vem na cume devia ser bim nô cumé;
(iii) O que escreve de gila deve ser guila e o significado não é contrabandista, mas sim, comerciante ambulante;
(iv) E o dialecto que ele identifica como sendo mandinga, não o é, mas sim fula.
O meu muito obrigado. Um abraço, amigo Luís.
José C. Mussá Biai
2. Comentário de L.G.:
Fico muito feliz por reencontrar, agora aqui no bosso blogue, o José Carlos, que faz parte da nossa tertúlia, como guineense, como português e como amigo. Recorde-se a sua história:
Nasceu no Xime, e era menino no tempo em que por lá passaram a CART 2715 (1970/72), a CART 3494 (1972/73) e a CCAÇ 12 (1973/74). O furriel miliciano enfermeiro, da CART 3494, de nome José Luís Carvalhido da Ponte, natural de Viana do Castelo, foi alguém especial na sua vida e na vida de outros meninos, por ter sido seu professor na única escola que lá havia, o Posto Escolar Militar nº 14.
Também teve como professor, depois da CART 3494 ter ido para Mansambo, o furriel Osório, da CCAÇ 12, que dava aulas no Posto Escolar Militar nº 14, juntamente com a esposa. Fez a instrução primária debaixo de fogo. Um dos seus irmãos, o Braima, era guia e picador das NT. O seu pai, um homem grande, mandinga, do Xime, o chefe religioso da comunidade islâmica local (um almanu).
A família, de etnia mandinga, teve problemas depois da independência devida à colaboração com as NT. Teve irmãos que fizeram o serviço militar em Farim e que depois foram presos. O José Carlos, nascido em 1963, foi para Bissau fazer o liceu. Foi cinco anos professor, até vir para Lisboa e obter uma bolsa de estudo da Fundação Gulbenkian. Hoje é formado em engenharia florestal. É casado. A sua mulher é natural do Xitole, filha de um comerciante conhecido dos tugas, o Braima.
Trabalha e vive em Portugal, no Instituto de Geográfico Português. Mas nunca mais voltou a encontrar os seus professores do Xime. O José Carlos é um exemplo de tenacidade, coragem, determinação e nobreza que honra qualquer ser humano. Que nos honra a nós e ao povo da Guiné-Bissau a ele que também pertence.
Guiné 63/74 - P433: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (7): Mampatá, Outubro-Dezembro
Continuação da publicação de O Meu Diário, de José Teixeira (1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):
Créditos fotográficos: © José Teixeira (2006)
Mampatá, 29 de Outubro de 1968
Quase seis meses se passaram, já, desde que deixei a Metrópole. Parece que estou a ver à minha frente o cais de embarque e milhares de pessoas que com as lágrimas nos olhos e lenços a esvoaçar diziam adeus aos jovens familiares que se lentamente se afastavam com destino à Guiné.
Este tempo, os primeiros meses da guerra, sempre o mais difícil, tem-me custado imenso a passar. Ambientes diferentes, um clima doentio que me marcará para sempre, a guerra com todos os seus perigos. Até a própria natureza parece diferente. Tudo isto são factores, que a par das saudades da família que ficou preocupada, da namorada que lá longe sofre na incerteza, influem no meu estado de espírito.
Guiné-Bissau > Empada > 2005 > A antiga enfermaria do José Teixeira
Já corri muitos perigos. Balas e estilhaços que mãos criminosas, inconscientes ou talvez conscientes do direito de terem a sua Pátria livre, lançaram sobre mim. Já percorri muitos quilómetros, conheci terras, povos e culturas, paisagens maravilhosas. Por muitos anos que viva, jamais esquecerei a Guiné, a forma natural como os seus povos vivem, a fraternidade que comungam entre si, a sua forma simples de Ser, em que o Ter não é importante, mas o viver cada dia como que o seguinte não existisse.
A família do sargenti di milícia Hamadu (1) estava toda reunida. No meio, um alguidar cheio de vianda (arroz) com um pequeno bocado frango frito:
- Teixeira Fermero, vem na cume (Enfermeiro Teixeira vem comer). - Sentei-me meti a mão no alguidar, fiz uma bola com arroz bem temperado com óleo de palma e meti à boca (Em Roma sê romano). Estava apetitoso e eu estava cheio de comer massa com chispe que o cozinheiro confeccionava na cozinha improvisada ao ar livre, porque não havia mais nada. Estamos no tempo das chuvas, a Bolanha dos Passarinhos está intransponível pelo que não há colunas a Buba para trazer mantimentos.
Guiné-Bissau > Quebo > 2005 > Um hospital (?)...
A refeição animada com a conversa sobre a forma de viver em Lisboa, quando chega um estranho elemento, carregado de panos e bujigangas, era um gila (contrabandista oriundo da Guiné Conacri). Começou o diálogo em Mandiga:
- Na pinda . .. Jame tum … - . O homem sentou-se e começou a comer connosco. O ditado Português diz “para mais um chega sempre”, agora para mais dois… mas chegou.
Após ter comido connosco a pouca vianda que havia tentou vender os panos que trazia, depois foi-se embora, com muitas saudações e com um Djarama nani ( muito obrigado) no final
Quem é? - perguntei.
- Ká sibi - É Gila vem de Conacri, tinha fome. Quando pessoal tem fome …
Mampatá, 1 de Novembro de 1968
Comemoro seis meses que saí da Mãe Pátria. O "Bandido" quis entrar na festa e veio fazer uma visita a Mampatá. Ontem cerca das 20 horas, com seis canhões sem recuo e um morteiro, fez um belo festival nocturno enviando-nos 112 canhoadas que não causaram danos físicos nem materiais. Ripostamos com o 81 e mal o inimigo cessou o fogo, os meus colegas e alguns soldados da Milícia saíram na sua perseguição, sem resultado porque o IN pôs- se de imediato em fuga.
Note-se a diferença de capacidade bélica. Eles trazem todo este material às costas. Isto é demais…
Gui Guiné-Bissau > 2005 > Uma campanha sanitária, tendo em vista a prevenção do paludismo...
Fui procurado pela irmã mais velha da Fámara Baldé. Trazia-me a sua filha com oito meses que estava doente. Tinha Paludismo e estava a entrar na fase crónica, de que quase todos os adultos de raça africana sofrem. Os que conseguem escapar na sua fase mais aguda. A criança apresentava-se muito magra, com 42 graus de temperatura, diarreia e vomitava tudo o que mamava, nem forças tinha para chorar. Acabava de chegar do Hospital de Bissau, segundo me disse a mãe a chorar, sem esperança.
Todos os dias de manhã tinha sua visita.
- Fermero parti-me mézinho para minina, na tem febre e bariga ramassa
Que fazer? Eu que apenas tinha aprendido a tratar feridos da guerra! Estes poucos meses de Guiné ensinaram-me a lutar contra o paludismo nos meus colegas e nos adultos africanos com bons resultados, mas nunca tinha deparado com uma situação tão delicada.
Pedi-lhe para voltar mais tarde que ia pensar o que fazer para salvar a bébé. Para combater o paludismo nos adultos servia-me de um antipalúdico injectável misturado com outro injectável para prever a reacção negativa do coração. Então pensei que, injectando na bebé umas milésimas destes dois produtos, talvez salvasse a criança.
Ontem assim fiz, com todo o cuidado, no posto de socorros ao ar livre, no coberto da casa da Answar. A reacção só se fez sentir cerca de um quarto de hora depois com um pulsar acelerado do coração e um avermelhamento da face. Depois a aceleração aumentou, os olhos dilataram-se e a menina ficou estática por duas ou três horas. Que momentos de ansiedade para mim e para aquela mãe que me confiou a sua filha. Esta chorava e dizia:
- Tu mataste minina! -. Eu pedia-lhe para ter calma e apelava para todos os Santos. Por fim a aceleração do coração começou a baixar e temperatura registou 39 graus. Estava ganha a vida da criança. Abraçamo-nos a chorar um ao outro e a mãe ofereceu-me a menina para minha mulher quando fosse grande.
Ao fim do dia deixei-a levar a menina para a tabanca e chorei sozinho de alegria. Hoje voltou para me dizer que a minina ká na tem xoro, já não vomitou a mamada (2).
Trazia-me água fresca numa cabaça, que ia buscar à bolanha a uma nascente de que se servia também o IN. (Que riscos por minha causa). Trazia-me cachos de bananas e eu tinha de todas as noites ao passar para o meu abrigo ir parte mantanhas ... à minha mulher. Se não o fizesse, a mãe chamava:
- Fermero tu não vens ver tua mudjer e parte mantanhas a ela !
Dizia-me muitas vezes que quando eu viesse para a Metrópole tinha de trazer a minha mudjer.
Assim foi até sair de Mampatá. Tornei-me um visitante da família Baldé. Fámara, Binta Auá e Answar. A mãe era uma velhinha que só falava o seu dialeto e o pai tinha-as abandonado suponho que era gila ( contrabandista) ou IN.
Mampatá, 3 de Novembro de 1968
O dia 3 de Novembro não será esquecido pelos "Amarelos de Mampatá" pois tivemos de travar uma luta de vida ou de morte com o IN que aproveitou a hora do almoço em que os militares se afastaram do seu posto de defesa para buscar na cozinha alimentação, para tentar entrar em Mampatá.
De algum modo eu fui o responsável pela situação criada, pois incentivei um sentinela durante a noite a mandar um tiro na direcção de uma vaca que estava entre as duas faixas de arame farpado e tocava neste, provocando o tilintar das garrafas que lá tínhamos colocado para não sermos surpreendidos pelo IN a tentar entrar pela calada da noite cortando o arame. Esta minha atitude passou-se durante a minha hora de ronda e o sentinela assim fez pouco depois, aparecendo de manhã uma vaca com um buraco numa coxa. Claro que o proprietário, o Régulo Alfero Aliu (Alferes da Milícia) vendeu a vaca à tropa.
Há mais de um mês que não comemos carne, porque os Africanos se recusam a vender qualquer animal. Assim foi fácil convencer o proprietário a vender a vaca ferida, mas ficou-nos cara.
Praticamente todos os postos de sentinela ficaram abandonados à hora do almoço o que não é habitual, mas o estranho foi o turra saber exactamente o que se estava a passar e atacou.
Quase todos os soldados tiveram de correr para as suas posições debaixo de fogo e durante quinze minutos a luta foi terrível com "eles" junto ao arame com fogo cerrado. Chegamos a ter a sensação que estavam cá dentro o que não se verificou graças à nossa capacidade de resistência e por sorte também. Ao tentarem entrar pelo lado de Buba, o Silva Algarvio que não tinha vindo buscar a comida ao refeitório por estar doente, aguentou-os até chegarem reforços e obrigou-os a retirar. Aliás foi ele que deu o sinal. Ao ver um grupo de africanos com armas que não eram a velha mauser a tentarem forçarem a porta em rede de arame farpado, estranhou e abriu fogo, depois… foi, cantinas de comida pelo ar e umas loucas correrias para os abrigos de protecção. Segui-se o “chocolate” do costume. Os assaltantes recuaram para selva e o fogo continuou.
Onze moranças ficaram destruídas pelo fogo, pois utilizaram balas incendiárias e também destruiram o paiol. Fiquei assustado e desorientado porque dada a intensidade do fogo e a estratégia adoptada pelo IN contava ter muito que fazer com os feridos talvez mortos, atendendo a que ninguém contava com tal surpresa e os postos estavam desguarnecidos e sobretudo porque tinha pouco material de socorro ( apenas 2 sacos de soro).
Ainda debaixo de fogo saí do abrigo onde me protegera e corri pela tabanca à procura de feridos, junto dos abrigos subterrâneos onde se abrigara a população. Felizmente nada aconteceu, foi só fogo de vista susto e prejuízos materiais. Graças a Deus.
Pergunto-me como que a população não foi atingida e as suas casas foram queimadas ? Ataque combinado ? Notámos que o “catequista” muçulmano saiu de manhã cedo para a bolanha, o que é estranho pois costuma estar sempre na tabanca a ensinar os putos e só voltou muito depois do ataque. Temos de o trazer debaixo de olho, como disse o Alferes Belo depois de saber a sua ausência.
Novo ataque de. . . formigas. Dormia a bom dormir depois de uma ronda de duas horas pelos postos de sentinela. Um colega dá um grito: Aiiiiiiiii. Logo de seguida, eu, e os outros dois colegas saltamos da cama pensando que era mais uma visita do IN. Aconteceu-nos exactamente o mesmo que aos colegas do posto do morteiro. Estávamos todos cravados de formigas e o chão era um autêntico tapete preto. Iniciamos logo o combate dirigido por mim pois já tinha experiência da sessão anterior com o Rio Maior.
Quem não gostou foi Djaló, pois a palhota dele sofreu um ataque di branco e ficou sem palha. Foi a única maneira de matarmos as formigas e podermos continuar a dormir descansados.
Foi aqui que pude apreciar a sua capacidade organizativa. Com a bota esmagava um grupo delas e logo as mais fortes se dirigiam para o local fazendo como que um cerco de protecção. Mais tarde nas minhas experiências pude verificar que ao interromper uma a fila de formigas, todo o grupo parava até vinte / trinta metros à frente e rectaguarda e iniciavam de imediato o envolvimento à zona afectada seguindo à frente as mais fortes.
Mampatá, 5 de Novembro de 1968
Atacaram Gandembel com o Morteiro 120 e às 3 horas da matina, Ponte Balana acordou debaixo de manga de chocolate (fogo intenso). Não sabemos se houve acidentes pessoais.
Parece incrível que a zona do Corubal que, segundo dizem é das mais lindas e mais ricas da Guiné, se encontre mal defendida. Há lá uma tabanca onde só existem três armas antigas, canhangulos. Da última vez que o IN a visitou, a população fugiu para o mato e eles entraram à vontade, roubaram o gado e incendiaram as tabancas.
Mampatá , 29 de Dezembro de 1968
Há uns tempos que não pego no Diário. Senti-me por uns tempos desorientado, mas agora estou melhor. Habituei-me ao ambiente e às situações que tenho de viver - estou em guerra - e tudo se tornou mais fácil, apesar de começar a não entender a razão desta guerra. A população quer paz para viver e nós, ao estarmos cá, trazemos-lhe a guerra. E de facto a guerra continua, mas a situação nesta área está mais calma e a relação com os povos locais - Fulas Mandingas, Fula Futas e Balantas - é excelente. Estou a gostar de viver aqui.
A bajuda Jobo Ansato (Joaninha, como eu lhe chamo), começou há tempos a ter um comportamento diferente para comigo. Várias vezes me ofertou fruta, chama-me muitas vezes à noite para a porta do abrigo subterrâneo onde dorme, gosta de conversar comigo e fica ciumenta quando me vê a conversar com outras bajudas. Com a Fámara, por exemplo, que é a jovem mais linda que eu vi em toda a minha vida. Eu, embora notasse essa mudança, não conseguia compreender a sua razão de ser.
Ontem, como tantas outras vezes fui até à sua tabanca e a conversa virou para os feridos de guerra as doenças da população e a acção dos enfermeiros e fiquei espantado ao ouvi-la dizer dizer:
- No último taque di bandido eu ver Tixera ir por Tabanca, baixo di fogo perguntá tudo dgente si ká na firido. A mim nesse dia ficá manga di contente com Tixera. Tixera i amigo di Africano.- Para meu espanto verifico que foi a partir da data do último ataque que sofremos que se deu esta mudança no seu comportamento. Como uma simples acção no cumprimento do meu dever pode influir tanto na maneira de pensar e agir de uma pessoa !
A minha fama de curandeiro depois da recuperação da Binta, assim se chama a bebé que curei, fez-me passar por outra aventura do género. Apareceu-me na Enfermaria improvisada, ao ar livre, uma mulher que não era da localidade a pedir-me para ir ver o seu minino que ramassa (vomita) e tem corpo quente, manga d'ele (temperatura).
O menino estava numa cubata perto da Enfermaria, deitado numa esteira no chão e apresentava os mesmos sintomas da Binta, muito magro, alta temperatura, sem forças nos braços. Era um pouco mais velho, mas estava esquelético
Hesitei, tal fora o susto que tinha passado e insisti para o levar a Aldeia Formosa e daí para Bissau na avioneta que viria dois dias depois trazer o correio para os militares, dado que não havia médico nesta localidade.
Numa mistura de Português, crioulo e dialecto da etnia, a mãe só me pedia:
- Cura minino. Dá quinino para minino ficar bom.
Preparei o medicamento servindo-me do mesmo sistema que utilizei na Binta, apenas em menor quantidade e dei a injecção ao miúdo, cujo nome não cheguei a saber.
As reacções foram as mesmas, só que desta vez a recuperação foi mais lenta. O coração parecia um cavalo, embora o corpo estivesse como que paralisado, apenas mexia os olhos dilatados.
Para meu azar, a mãe e a proprietária da cubata entraram em pânico, mais que eu próprio e começaram a ameaçar-me que se o menino morresse o marido me matava a mim, cortava-me o pescoço. Faziam o gesto com uma catana que sempre usam.
Eu só pedia calma e acompanhava o estado do bébé. Tal como da outra vez, ao fim de umas horas a temperatura baixou, a face deixou de estar avermelhada e os olhos perderam a dilatação.
Guiné-Bissau > Empada > 2005 > O ex-1º cabo enfermeiro Teixeira da CCAÇ 2381 encontra o seu antigo ajudante de enfermagem, Braima, 36 anos depois...
Deixei a criança entregue à mãe, recomendando que lhe desse uma pequena mamada e fosse aumentando a dose conforme ele fosse reagindo. Se a temperatura subisse ou vomitasse devia chamar-me de imediato. Se não houvesse nenhuma situação anormal, eu voltaria no dia seguinte para ver o menino.
À noite rondei a casa para ver se havia alguma anormalidade e no dia seguinte dirigi-me para lá, ainda cedo, para ver o estado do bébé, mas não consegui voltar a vê-lo porque a mãe, de manhã cedo abandonou Mampatá, pelos vistos, feliz porque o seu minino já comia e não tinha o corpo quente.
De onde veio, quem era, nunca chegarei a saber, pois a dona da tabanca diz que não conhece a mudjer que esteve lá em casa com o menino, apenas lhe deu hospedagem por uma noite.
__________
(1) Em 2005 procurei o Hamadu. Sei que foi viver para Buba, sendo actualmente quem dirige as orações na Mesquita local. Não consegui encontra-me com ele, apenas conheci uma neta, por quem deixei uma mensagem.
(2) A recuperação foi de cerca de oito dias. Daí em diante, todos os dias a mãe trazia-me a menina: - Tua mudjer vem parte mantanhas (cumprimentar).
Créditos fotográficos: © José Teixeira (2006)
Mampatá, 29 de Outubro de 1968
Quase seis meses se passaram, já, desde que deixei a Metrópole. Parece que estou a ver à minha frente o cais de embarque e milhares de pessoas que com as lágrimas nos olhos e lenços a esvoaçar diziam adeus aos jovens familiares que se lentamente se afastavam com destino à Guiné.
Este tempo, os primeiros meses da guerra, sempre o mais difícil, tem-me custado imenso a passar. Ambientes diferentes, um clima doentio que me marcará para sempre, a guerra com todos os seus perigos. Até a própria natureza parece diferente. Tudo isto são factores, que a par das saudades da família que ficou preocupada, da namorada que lá longe sofre na incerteza, influem no meu estado de espírito.
Guiné-Bissau > Empada > 2005 > A antiga enfermaria do José Teixeira
Já corri muitos perigos. Balas e estilhaços que mãos criminosas, inconscientes ou talvez conscientes do direito de terem a sua Pátria livre, lançaram sobre mim. Já percorri muitos quilómetros, conheci terras, povos e culturas, paisagens maravilhosas. Por muitos anos que viva, jamais esquecerei a Guiné, a forma natural como os seus povos vivem, a fraternidade que comungam entre si, a sua forma simples de Ser, em que o Ter não é importante, mas o viver cada dia como que o seguinte não existisse.
A família do sargenti di milícia Hamadu (1) estava toda reunida. No meio, um alguidar cheio de vianda (arroz) com um pequeno bocado frango frito:
- Teixeira Fermero, vem na cume (Enfermeiro Teixeira vem comer). - Sentei-me meti a mão no alguidar, fiz uma bola com arroz bem temperado com óleo de palma e meti à boca (Em Roma sê romano). Estava apetitoso e eu estava cheio de comer massa com chispe que o cozinheiro confeccionava na cozinha improvisada ao ar livre, porque não havia mais nada. Estamos no tempo das chuvas, a Bolanha dos Passarinhos está intransponível pelo que não há colunas a Buba para trazer mantimentos.
Guiné-Bissau > Quebo > 2005 > Um hospital (?)...
A refeição animada com a conversa sobre a forma de viver em Lisboa, quando chega um estranho elemento, carregado de panos e bujigangas, era um gila (contrabandista oriundo da Guiné Conacri). Começou o diálogo em Mandiga:
- Na pinda . .. Jame tum … - . O homem sentou-se e começou a comer connosco. O ditado Português diz “para mais um chega sempre”, agora para mais dois… mas chegou.
Após ter comido connosco a pouca vianda que havia tentou vender os panos que trazia, depois foi-se embora, com muitas saudações e com um Djarama nani ( muito obrigado) no final
Quem é? - perguntei.
- Ká sibi - É Gila vem de Conacri, tinha fome. Quando pessoal tem fome …
Mampatá, 1 de Novembro de 1968
Comemoro seis meses que saí da Mãe Pátria. O "Bandido" quis entrar na festa e veio fazer uma visita a Mampatá. Ontem cerca das 20 horas, com seis canhões sem recuo e um morteiro, fez um belo festival nocturno enviando-nos 112 canhoadas que não causaram danos físicos nem materiais. Ripostamos com o 81 e mal o inimigo cessou o fogo, os meus colegas e alguns soldados da Milícia saíram na sua perseguição, sem resultado porque o IN pôs- se de imediato em fuga.
Note-se a diferença de capacidade bélica. Eles trazem todo este material às costas. Isto é demais…
Gui Guiné-Bissau > 2005 > Uma campanha sanitária, tendo em vista a prevenção do paludismo...
Fui procurado pela irmã mais velha da Fámara Baldé. Trazia-me a sua filha com oito meses que estava doente. Tinha Paludismo e estava a entrar na fase crónica, de que quase todos os adultos de raça africana sofrem. Os que conseguem escapar na sua fase mais aguda. A criança apresentava-se muito magra, com 42 graus de temperatura, diarreia e vomitava tudo o que mamava, nem forças tinha para chorar. Acabava de chegar do Hospital de Bissau, segundo me disse a mãe a chorar, sem esperança.
Todos os dias de manhã tinha sua visita.
- Fermero parti-me mézinho para minina, na tem febre e bariga ramassa
Que fazer? Eu que apenas tinha aprendido a tratar feridos da guerra! Estes poucos meses de Guiné ensinaram-me a lutar contra o paludismo nos meus colegas e nos adultos africanos com bons resultados, mas nunca tinha deparado com uma situação tão delicada.
Pedi-lhe para voltar mais tarde que ia pensar o que fazer para salvar a bébé. Para combater o paludismo nos adultos servia-me de um antipalúdico injectável misturado com outro injectável para prever a reacção negativa do coração. Então pensei que, injectando na bebé umas milésimas destes dois produtos, talvez salvasse a criança.
Ontem assim fiz, com todo o cuidado, no posto de socorros ao ar livre, no coberto da casa da Answar. A reacção só se fez sentir cerca de um quarto de hora depois com um pulsar acelerado do coração e um avermelhamento da face. Depois a aceleração aumentou, os olhos dilataram-se e a menina ficou estática por duas ou três horas. Que momentos de ansiedade para mim e para aquela mãe que me confiou a sua filha. Esta chorava e dizia:
- Tu mataste minina! -. Eu pedia-lhe para ter calma e apelava para todos os Santos. Por fim a aceleração do coração começou a baixar e temperatura registou 39 graus. Estava ganha a vida da criança. Abraçamo-nos a chorar um ao outro e a mãe ofereceu-me a menina para minha mulher quando fosse grande.
Ao fim do dia deixei-a levar a menina para a tabanca e chorei sozinho de alegria. Hoje voltou para me dizer que a minina ká na tem xoro, já não vomitou a mamada (2).
Trazia-me água fresca numa cabaça, que ia buscar à bolanha a uma nascente de que se servia também o IN. (Que riscos por minha causa). Trazia-me cachos de bananas e eu tinha de todas as noites ao passar para o meu abrigo ir parte mantanhas ... à minha mulher. Se não o fizesse, a mãe chamava:
- Fermero tu não vens ver tua mudjer e parte mantanhas a ela !
Dizia-me muitas vezes que quando eu viesse para a Metrópole tinha de trazer a minha mudjer.
Assim foi até sair de Mampatá. Tornei-me um visitante da família Baldé. Fámara, Binta Auá e Answar. A mãe era uma velhinha que só falava o seu dialeto e o pai tinha-as abandonado suponho que era gila ( contrabandista) ou IN.
Mampatá, 3 de Novembro de 1968
O dia 3 de Novembro não será esquecido pelos "Amarelos de Mampatá" pois tivemos de travar uma luta de vida ou de morte com o IN que aproveitou a hora do almoço em que os militares se afastaram do seu posto de defesa para buscar na cozinha alimentação, para tentar entrar em Mampatá.
De algum modo eu fui o responsável pela situação criada, pois incentivei um sentinela durante a noite a mandar um tiro na direcção de uma vaca que estava entre as duas faixas de arame farpado e tocava neste, provocando o tilintar das garrafas que lá tínhamos colocado para não sermos surpreendidos pelo IN a tentar entrar pela calada da noite cortando o arame. Esta minha atitude passou-se durante a minha hora de ronda e o sentinela assim fez pouco depois, aparecendo de manhã uma vaca com um buraco numa coxa. Claro que o proprietário, o Régulo Alfero Aliu (Alferes da Milícia) vendeu a vaca à tropa.
Há mais de um mês que não comemos carne, porque os Africanos se recusam a vender qualquer animal. Assim foi fácil convencer o proprietário a vender a vaca ferida, mas ficou-nos cara.
Praticamente todos os postos de sentinela ficaram abandonados à hora do almoço o que não é habitual, mas o estranho foi o turra saber exactamente o que se estava a passar e atacou.
Quase todos os soldados tiveram de correr para as suas posições debaixo de fogo e durante quinze minutos a luta foi terrível com "eles" junto ao arame com fogo cerrado. Chegamos a ter a sensação que estavam cá dentro o que não se verificou graças à nossa capacidade de resistência e por sorte também. Ao tentarem entrar pelo lado de Buba, o Silva Algarvio que não tinha vindo buscar a comida ao refeitório por estar doente, aguentou-os até chegarem reforços e obrigou-os a retirar. Aliás foi ele que deu o sinal. Ao ver um grupo de africanos com armas que não eram a velha mauser a tentarem forçarem a porta em rede de arame farpado, estranhou e abriu fogo, depois… foi, cantinas de comida pelo ar e umas loucas correrias para os abrigos de protecção. Segui-se o “chocolate” do costume. Os assaltantes recuaram para selva e o fogo continuou.
Onze moranças ficaram destruídas pelo fogo, pois utilizaram balas incendiárias e também destruiram o paiol. Fiquei assustado e desorientado porque dada a intensidade do fogo e a estratégia adoptada pelo IN contava ter muito que fazer com os feridos talvez mortos, atendendo a que ninguém contava com tal surpresa e os postos estavam desguarnecidos e sobretudo porque tinha pouco material de socorro ( apenas 2 sacos de soro).
Ainda debaixo de fogo saí do abrigo onde me protegera e corri pela tabanca à procura de feridos, junto dos abrigos subterrâneos onde se abrigara a população. Felizmente nada aconteceu, foi só fogo de vista susto e prejuízos materiais. Graças a Deus.
Pergunto-me como que a população não foi atingida e as suas casas foram queimadas ? Ataque combinado ? Notámos que o “catequista” muçulmano saiu de manhã cedo para a bolanha, o que é estranho pois costuma estar sempre na tabanca a ensinar os putos e só voltou muito depois do ataque. Temos de o trazer debaixo de olho, como disse o Alferes Belo depois de saber a sua ausência.
Novo ataque de. . . formigas. Dormia a bom dormir depois de uma ronda de duas horas pelos postos de sentinela. Um colega dá um grito: Aiiiiiiiii. Logo de seguida, eu, e os outros dois colegas saltamos da cama pensando que era mais uma visita do IN. Aconteceu-nos exactamente o mesmo que aos colegas do posto do morteiro. Estávamos todos cravados de formigas e o chão era um autêntico tapete preto. Iniciamos logo o combate dirigido por mim pois já tinha experiência da sessão anterior com o Rio Maior.
Quem não gostou foi Djaló, pois a palhota dele sofreu um ataque di branco e ficou sem palha. Foi a única maneira de matarmos as formigas e podermos continuar a dormir descansados.
Foi aqui que pude apreciar a sua capacidade organizativa. Com a bota esmagava um grupo delas e logo as mais fortes se dirigiam para o local fazendo como que um cerco de protecção. Mais tarde nas minhas experiências pude verificar que ao interromper uma a fila de formigas, todo o grupo parava até vinte / trinta metros à frente e rectaguarda e iniciavam de imediato o envolvimento à zona afectada seguindo à frente as mais fortes.
Mampatá, 5 de Novembro de 1968
Atacaram Gandembel com o Morteiro 120 e às 3 horas da matina, Ponte Balana acordou debaixo de manga de chocolate (fogo intenso). Não sabemos se houve acidentes pessoais.
Parece incrível que a zona do Corubal que, segundo dizem é das mais lindas e mais ricas da Guiné, se encontre mal defendida. Há lá uma tabanca onde só existem três armas antigas, canhangulos. Da última vez que o IN a visitou, a população fugiu para o mato e eles entraram à vontade, roubaram o gado e incendiaram as tabancas.
Mampatá , 29 de Dezembro de 1968
Há uns tempos que não pego no Diário. Senti-me por uns tempos desorientado, mas agora estou melhor. Habituei-me ao ambiente e às situações que tenho de viver - estou em guerra - e tudo se tornou mais fácil, apesar de começar a não entender a razão desta guerra. A população quer paz para viver e nós, ao estarmos cá, trazemos-lhe a guerra. E de facto a guerra continua, mas a situação nesta área está mais calma e a relação com os povos locais - Fulas Mandingas, Fula Futas e Balantas - é excelente. Estou a gostar de viver aqui.
A bajuda Jobo Ansato (Joaninha, como eu lhe chamo), começou há tempos a ter um comportamento diferente para comigo. Várias vezes me ofertou fruta, chama-me muitas vezes à noite para a porta do abrigo subterrâneo onde dorme, gosta de conversar comigo e fica ciumenta quando me vê a conversar com outras bajudas. Com a Fámara, por exemplo, que é a jovem mais linda que eu vi em toda a minha vida. Eu, embora notasse essa mudança, não conseguia compreender a sua razão de ser.
Ontem, como tantas outras vezes fui até à sua tabanca e a conversa virou para os feridos de guerra as doenças da população e a acção dos enfermeiros e fiquei espantado ao ouvi-la dizer dizer:
- No último taque di bandido eu ver Tixera ir por Tabanca, baixo di fogo perguntá tudo dgente si ká na firido. A mim nesse dia ficá manga di contente com Tixera. Tixera i amigo di Africano.- Para meu espanto verifico que foi a partir da data do último ataque que sofremos que se deu esta mudança no seu comportamento. Como uma simples acção no cumprimento do meu dever pode influir tanto na maneira de pensar e agir de uma pessoa !
A minha fama de curandeiro depois da recuperação da Binta, assim se chama a bebé que curei, fez-me passar por outra aventura do género. Apareceu-me na Enfermaria improvisada, ao ar livre, uma mulher que não era da localidade a pedir-me para ir ver o seu minino que ramassa (vomita) e tem corpo quente, manga d'ele (temperatura).
O menino estava numa cubata perto da Enfermaria, deitado numa esteira no chão e apresentava os mesmos sintomas da Binta, muito magro, alta temperatura, sem forças nos braços. Era um pouco mais velho, mas estava esquelético
Hesitei, tal fora o susto que tinha passado e insisti para o levar a Aldeia Formosa e daí para Bissau na avioneta que viria dois dias depois trazer o correio para os militares, dado que não havia médico nesta localidade.
Numa mistura de Português, crioulo e dialecto da etnia, a mãe só me pedia:
- Cura minino. Dá quinino para minino ficar bom.
Preparei o medicamento servindo-me do mesmo sistema que utilizei na Binta, apenas em menor quantidade e dei a injecção ao miúdo, cujo nome não cheguei a saber.
As reacções foram as mesmas, só que desta vez a recuperação foi mais lenta. O coração parecia um cavalo, embora o corpo estivesse como que paralisado, apenas mexia os olhos dilatados.
Para meu azar, a mãe e a proprietária da cubata entraram em pânico, mais que eu próprio e começaram a ameaçar-me que se o menino morresse o marido me matava a mim, cortava-me o pescoço. Faziam o gesto com uma catana que sempre usam.
Eu só pedia calma e acompanhava o estado do bébé. Tal como da outra vez, ao fim de umas horas a temperatura baixou, a face deixou de estar avermelhada e os olhos perderam a dilatação.
Guiné-Bissau > Empada > 2005 > O ex-1º cabo enfermeiro Teixeira da CCAÇ 2381 encontra o seu antigo ajudante de enfermagem, Braima, 36 anos depois...
Deixei a criança entregue à mãe, recomendando que lhe desse uma pequena mamada e fosse aumentando a dose conforme ele fosse reagindo. Se a temperatura subisse ou vomitasse devia chamar-me de imediato. Se não houvesse nenhuma situação anormal, eu voltaria no dia seguinte para ver o menino.
À noite rondei a casa para ver se havia alguma anormalidade e no dia seguinte dirigi-me para lá, ainda cedo, para ver o estado do bébé, mas não consegui voltar a vê-lo porque a mãe, de manhã cedo abandonou Mampatá, pelos vistos, feliz porque o seu minino já comia e não tinha o corpo quente.
De onde veio, quem era, nunca chegarei a saber, pois a dona da tabanca diz que não conhece a mudjer que esteve lá em casa com o menino, apenas lhe deu hospedagem por uma noite.
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(1) Em 2005 procurei o Hamadu. Sei que foi viver para Buba, sendo actualmente quem dirige as orações na Mesquita local. Não consegui encontra-me com ele, apenas conheci uma neta, por quem deixei uma mensagem.
(2) A recuperação foi de cerca de oito dias. Daí em diante, todos os dias a mãe trazia-me a menina: - Tua mudjer vem parte mantanhas (cumprimentar).
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