Guiné > Algures durante a
guerra de libertação > Amílcar Cabral, mais do que um ícone revolucionário (tal como
Che Guevara), foi um dos maiores líderes africanos do Século XX. "Amílcar não escreveu uma única frase de pensamento sem olhar para a espingarda. Amílcar não mandou dar um único tiro de espingarda fora da lógica política da estratégia da libertação anticolonial e da emancipação africana, pensada e repensada na sua profunda cultura marxista e criativa, no seu modo próprio de pensar a Guiné, África e o mundo" (João Tunes).
Fonte: Foto de origem desconhecida (PAIGG ?).
Camarada Luís,
Com o trato da questão da liderança (
estilo de comando) no viver militar, foste buscar o nosso camarada da Marinha, teu amigo e colega académico, Correia Jesuíno, que não tenho prazer de conhecer, nem sequer de vista. Mas acontece que o Prof Correia Jesuíno é santo cá da minha casa (por via conjugal, vivendo eu, em vida partilhada de vinte anos, podando a quatro mãos um rebento a ameaçar ser adulto já em Julho, com uma sua antiga aluna e discípula no ISPA) e permite que conteste a tua afirmação que ele só conheceu, do ex-império, e de passagem, Cabo Verde. E então o papel fulcral e determinante que ele teve em Angola na chamada
fase de transição da descolonização? Ó camarada Luís,
aquilo não valeu, custou, mais que vinte comissões no mato? Não sei, não.
Depois, permite-mo, não concordo nada, nadinha mesmo, com essa de meteres Amílcar Cabral na redoma do
líder político-intelectual, dizendo "Cabral não foi um operacional, um verdadeiro guerrilheiro como o Nino...."(1). Como assim? Dizes isto, com tamanha ligeireza, e logo a propósito de um exemplo acabado de
praxis feito gente como foi Amílcar?
Eu não tenho idolatria por Cabral, não lhe meto tijolo na adoração como mito. Aliás, sou altamente crítico quanto ao preço pago pela sua utopia (ego-étnica) da unidade (absurda, autojustificativa como desiderato da sua condição de mestiço) Guiné-Cabo Verde e que Cabral impôs ao PAIGC e dando, neste absurdo (mas, se calhar, condição necessária para o sucesso), o trunfo maior, no divisionismo e na traição, para o
trabalho sujo da Pide e do Exército Colonial (que custaria a própria vida, dele Cabral, e hoje termos a Guiné-Bissau entregue a um apenas bom guerrilheiro como Nino, faltando-lhe o resto, se calhar o mais importante).
Mas Amílcar Cabral foi um dos líderes mais inteligentes e geniais de toda a África (assumamos a honra de termos combatido um Chefe IN de tamanha envergadura, o maior líder africano!). E foi-o pela
praxis, porque foi teórico enquanto operacional, operacional enquanto pensador revolucionário.
Amílcar não escreveu uma única frase de pensamento sem olhar para a espingarda. Amílcar não mandou dar um único tiro de espingarda fora da lógica política da estratégia da libertação anticolonial e da emancipação africana, pensada e repensada na sua profunda cultura marxista e criativa, no seu modo próprio de pensar a Guiné, África e o mundo.
Amílcar que teve a
sorte trágica de ter sido assassinado e transformado em mártir antes de lhe chegar a hora de ver e ser julgado pela obra feita, prestando contas, com o Estado às costas, perante a história e os seus seguidores, das consequências da eficácia e absurdos da sua lógica, dos seus acertos e desacertos.
Mas vamos à substância. Que só pode ser dada pela vida vivida, ou seja, pela experiência feita corpo e alma. E, neste campo, se me permitem, tu e os restantes camaradas tertulianos, dou-te dois, como testemunhos.
1º) Um dos merdas militares que conheci logo na ida e chegada à Guiné foi um major que fazia as vezes de 2º Comandante (depois pirou-se para uma repartição e não nos acompanhou na ida para o mato no
Pelundo). Era, como muitos outros, um cagarolas apesar de já ter feito várias comissões na guerra colonial.
No primeiro dia da ocupação
periquita do Quartel de Santa Luzia em Bissau, apanhei, como
oficial de dia, um levantamento de rancho organizado pelos
velhinhos que esperavam embarque de regresso porque os cozinheiros
periquitos do meu Batalhão tinham entornado sal a mais na comida (a maioria deles nunca tinha cozinhado na puta da vida) (1).
Um gozo do camandro aquele, o dos
velhinhos, sentados no refeitório quietos e com gozo sádico, a praxarem
periquitos e a malta não comia e dizia em coro:
- Piú, piú, velhinhos, fartos de mato, não comem comida salgada por piriquito, piriquito vai pró mato, piú, piú.
Eu, fodido, a comprovar que a comida estava mesmo salgada, a sentir escorrer o suor dos cozinheiros novatos em pânico, apardalado como
periquito que era, pedindo ajuda ao major para sair da embrulhada, o gajo encafuado nos galões do traço grosso junto a um traço fino, eu dependente porque só tinha um traço fino em cima do ombro e a perguntar-lhe:
-Meu major, como vamos resolver? - E o gajo a ficar mais à rasca que eu, a suar mais que eu e que os cozinheiros nossos camaradas e feitos merda, atarantado, atarantado, e depois sair-se:
- Ó alferes, para que é que tem essa pistola à cintura? Abata um ou dois, depois os outros comem! - E eu, feito palerma, mais palerma que
periquito, a olhar o merdas do major a mandar-me dar tiros nos
velhinhos praxistas da perda da solidariedade, e a ver o major a desaparecer atrás da secretária e a querer dizer-me que não estava ali, nem tinha vindo em comissão, apesar de ir na terceira comissão e com a terceira comissão ir acabar de pagar os prédios que comprara em Lisboa, com o pé de meia da guerra, da guerra por Minho a Timor.
E eu ali, feito parvo, entre aquele major de merda, a preparar transferência para uma repartição no quartel general, os
velhinhos da praxe, os cozinheiros ainda sem dedo para o sal. Mais a Walter pendurada no cinto que o major me mandava descarregar em cima dos
velhinhos para os obrigar a engolir a comida salgada. E subiu-me o calor à cabeça, fazendo luz, arranquei a Walter da cintura, meti-lhe bala na câmara e atirei-a ao major de merda e disse-lhe:
- Vá lá você, ó valentão, ó seu major de merda, corra lá a tropa a tiro, se é capaz, eu cubro-lhe a retaguarda.
E o gajo, o major, quieto, enfiado na secretária, a suar, a suar, sem pio e sem se mexer. Feito merda, afinal merda feita major. Virei costas ao major, veio-me o sentido da lucidez, do comando, da liderança, do consenso. Disso tudo que tu, Luís, tão bem falas por tão bem saberes falar. E, calmo, periquito feito velhinho instantâneo pelo aperto, acordei logo ali a anulação do levantamento de rancho com uma patuscada de recurso de salsichas, ovos estrelados e batatas fritas à maneira, e com maneira no sal, com que os
velhinhos se deliciaram e os
periquitos secaram os suores.
Aprendi ali, logo ali, que, em questão de liderança e bom senso, um traço grosso só atrapalhava na companhia ao traço fino. Devia saber isso, mas, na altura, eu ainda era
periquito.
2º) O Alferes Chico, operacional junto à CCS, era o meu melhor amigo, ali no Pelundo. Um gajo porreiro e puro. Algarvio, com um curso de professor de educação física, aliava excelentes sentimentos e boa consciência social e política, com um gosto físico pela actividade, pelas operações, pelo fazer a guerra. Estava contra a guerra colonial mas, no fundo, fervia-lhe a apetência de guerreiro e pela acção. Era o meu principal companheiro de tertúlia, também para as farras selectas com bajudas selectas - alma aberta e límpida, ingénua também.
Uma noite, o PAIGC resolveu perturbar a calma do Pelundo com umas rajadas soltas de
costureirinha, para avisarem que estavam lá, existiam, tentando quebrar a modorra da psico que ia tecendo harmonia entre tropa e população, num rame-rame que era favorável à consolidação do domínio-tampão sobre o chão manjaco.
O tenente coronel nabo que comandava as tropas, reuniu o oficialato de emergência. O homem estava possesso, como assim, tanto bem que lhes fazemos, mais isto, mais aquilo, estes cabrões dos pretos da tabanca estão feitos com os turras, alferes Chico forme já o seu pelotão, saia e dê uma lição à pretalhada, eles precisam de umas porradas bem dadas, foda-lhes os cornos que eles precisam de aprender que não se brinca com a tropa.
Eu a ouvir o discurso e a olhar para o Chico, o meu amigo Chico, e a medir-lhe a reacção. E a ver-lhe na cara a contradição entre senso e acção. E a medir-lhe pelo subir do seu bigode algarvio que o apelo da acção lhe estava a aquecer a cabeça e a pesar-lhe na mão agarrada á G3.
Deu-me um
vaip, um
vaip guerreiro, e logo me ofereci para o combate:
-Meu tenente-coronel, se me permite, ofereço-me para incorporar a acção punitiva, convém manter as transmissões operacionais com o quartel, permite que seja o oficial de transmissões do Alferes Francisco?.
De orgulho escancarado foi a reacção do oficial comandante. Com certeza, com certeza, muito bem, muito bem. Cheguei-me ao Chico, a tropa alinhada, artilhada, pronta para tudo, disposta a tudo que o alferes mandasse, o Chico todo marcial na sua missão de comando e represália, e eu a dar-lhe missa mansa:
- Ó Chico, como é que é, vamos arrear nas bajudas e nas mães das bajudas com que roçamos? - E o Chico, hirto:
- Tem que ser, Tunes, tem que ser, se os gajos mijam fora do penico levam para aprenderem, não ouviste o comandante. E eu, calmo e sem desarmar:
- Não me fodas, Chico, vamos primeiro ver se tudo está ou não está a dormir, nas calmas, só para ver, pode ter sido malta de fora, para desestabilizar, depois lixamos as bajudas e ficamos sem bajuda para dançar, o que é preciso é calma, ó Chico, porque se estragamos a psico amanhã temos o Caco a dar-nos na mona.
Guiné > Região do Cacheu > Pelundo > Alferes milicianos da CCS do BCAÇ 2884, com sede no Pelundo, em alegre e descontraído convívio, no dia 1 de Janeiro de 1970. João Tunes, oficial cripto, é o segundo da esquerda, de costas e de quico na cabeça, abraçando um camarada (talvez o médico ou o capelão) ..."E lá fomos, em guerreira missão, apanhando e comendo tomates da horta militar com a tropa toda a desopilar em risos e em descarga guerreira. Voltámos em alívio e em alegria, sem parar para pensar o que seriam aqueles mesmos lúdicos militares por roubarem tomates a um major se o comando, a liderança, lhes apontasse, impulsionasse, impusesse, antes, o caminho da filha de putice. Da barbárie até" (João Tunes).
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João Tunes (2005)
Vi logo nos olhos do meu amigo Chico ele quebrou, ficou mais algarvio que guerreiro, mais a puxar para a bajuda que para a porrada, mais para a consciência que para a pulsão. Não me respondeu, mas aquele silêncio disse-me tudo. Entrámos numa palhota, tudo dormia como se nada tivesse acontecido. O Chico riu-se. E tomou-me a dianteira:
- Eentão aquele cagarola queria que andássemos à porrada com mulheres a dormir, ó Tunes, já viste o que aquele cabrão queria armar?.
Dei-lhe razão sem muita ênfase. Estava no papo. O melhor do Chico tinha vindo ao de cima. Não interessava forçar a nota. A questão era como regressar ao quartel, recolhendo à tenda. A ideia veio-me, sei lá como:
- Ó Chico, vamos fazer um golpe de mão e mamar a horta do major Pinho, sacando-lhe os tomates! - O Chico riu-se com uma das suas inigualáveis e mais sonoras gargalhadas, concordando.
E lá fomos, em guerreira missão, apanhando e comendo tomates da horta militar com a tropa toda a desopilar em risos e em descarga guerreira. Voltámos em alívio e em alegria, sem parar para pensar o que seriam aqueles mesmos lúdicos militares por roubarem tomates a um major se o comando, a liderança, lhes apontasse, impulsionasse, impusesse, antes, o caminho da filha de putice. Da barbárie até.
Abraços. Para ti e para toda a digna e marcial Tertúlia.
João Tunes
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Notas de L.G.
(1) Vd. post de 21 de Março de 2006 >
Guiné 63/74 - DCXLV: Estilo de comando e espírito de casta (João Tunes)
(2) Este episódio já aqui foi evocado pelo João Tunes, em post de 17 de Setembro de 2005 >
Guiné 63/74 - CXCII: Os nossos (des)encontros: do Niassa ao Pelundo, passando por Bissau (João Tunes)