domingo, 21 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P777: Do Porto a Bissau (19): Do Quelélé a Guileje, a obra da AD do Pepito (A. Marques Lopes)

Texto do A. Marques Lopes:

Logo no dia 13 de Abril, os que fomos de jipe fizemos uma visita à AD do Pepito, no Bairro do Quelélé, onde tivemos o gosto de conhecer ao vivo este nosso amigo, que mostrou ser a pessoa maravilhosa e sensacional que já imaginávamos.

Já sabem da nossa participação na Rádio Comunitária Voz do Quelélé, apoiada pela AD. Mas, ali no Quelélé, onde tem a sua sede, esta ONG tem outras iniciativas que me deixaram grandemente espantado, pelo inesperado do seu alcance, pelo inusitado que me pareceram num país sem quase nada.

Com óptimas instalações, a Escola de Artes e Ofícios do Quelélé tem um belo pavilhão com várias salas onde se podem ver dezenas de jovens:

(i) numa delas aprendem informática, em secretárias individuais com computador;

(ii) noutra aprendem as técnicas da electrónica, também em secretárias individuais com aparelhagem própria;

(iii) numa outra as futuras auxiliares de educadora de infância aprendem como participar na educação das crianças guineenses;

(iv) recebem aulas sobre transformação de frutas, gestão dos recursos marinhos, radialismo, de actor de teatro e iluminação de teatro noutra sala...

Explicou-nos o Pepito que muito daquele material, secretárias, computadores e material electrónico, tinha sido oferecido, porque já não usado, por empresas e ministérios portugueses, e com a grande ajuda do Instituto Marquês Valle Flor, uma ONG portuguesa (no dia seguinte, quando fomos esperar ao avião os quatro elementos que se juntaram ao nosso grupo, encontrámos o Pepito e um representante deste Instituto que tinha chegado para ver a AD na zona do Cantanhês).

Foi o que nós vimos, mas todas as iniciativas e acção da AD estão plenamente expressas no seu Relatório de Actividades, já referenciado no blogue.

Convidou-nos o Pepito para irmos ver as instalações da AD na zona do Cantanhês, oferecendo-nos as suas instalações para pernoitar, pois, disse, seriam precisos dois ou três dias. Infelizmente, devido à dificuldade em organizar todas as visitas com um grande grupo, não nos foi possível lá ir.

Mas, quando sozinhos, eu e o Allen decidimos um dia ir a Guileje e ver a sua recuperação histórica, e aqui estão algumas fotografias [mostrando nomeadamente granadas abandonadas pelas NT e que ainda não foram neuralizadas ou detonadasa]. Depois, o dia já ia alto, não deu para ir mais longe e houve que regressar a Bissau.

Abraços

A. Marques Lopes

Fotos: © A. Marques Lopes (2006)

Guiné 63/74 - P776: Composição da CCAÇ 12, por Grupo de Combate, incluindo os soldados africanos (posto, número, nome, função e etnia (Luís Graça)


Guiné > Zona Leste > Contuboel > Junho de 1969: O 2º Grupo de Combate da CCAÇ 2590 (futura CCCAÇ 12), ainda em período de instrução da especialidade . O 2º Gr Comb era comandado pelo Alferes Miliciano Carlão que aparece na fotografia, na primeira fila, ajoelhado, olhando no sentido oposto ao do fotógrafo. Atrás dele o soldado Arménio, de alcunha o Vermelhinha (era cabo, antes de embarcar mas foi despromovido, por ter apanhado uma porrada da PM). De pé, na terceira fila, os furriéis milicianos Levezinho e Reis. Na segunda fila, meio agachados, os 1ºs cabos Branco e Alves (de alcunha o Alfredo) .

Um grupo de combate da CCAÇ 2590 (mais tarde, CCAÇ 12) era constituído por 30 homens. Havia 4 Gr Comb. Cada grupo de combate, comandado por um alferes, tinha três secções (1 furriel e 1 cabo e oito soldados, estes africanos).

Casa secção era especializada. Havia a secção dos lança-granadas, com o respectivo apontador e municiador (1 LGFog 8.9, 1 LGFog 3.7). Havia a secção do Morteiro 60 (apontador e municiador ). E havia ainda a secção da Metralhadora Ligeira HK 21 (apontador e municiador). Cada combatente estava equipado com a espingarda automática G-3 e granadas defensivas. Em geral havia ainda dois apontadores de dilagrama (neste caso, 1ª e 3ª secção) (LG)

Foto: © António Levezinho (2005)
__________

Pode parecer fastidiosa, inútil, irrelevante... a minha lista de Baldés... Não penso o mesmo: pode ter (ou vir a ter) algum interesse documental, historiográfico, eu sei lá... Pode facilitar a pesquisa de informação, de testemunhos, de depoimentos...

É também um pequeno, modestíssimo, gesto de elementar justiça para com aqueles guineenses que lutaram ao nosso lado, que fizeram parte da CCAÇ 12 e, portanto, da nova força africana com que sonhou Spínola e que tanto atemorizou o PAIGC. Infelizmente, uma parte deles (quantos, exactamente?) já não hoje estarão vivos. Uns foram fuzilados, como o Abibo Jau (1), outros terão morrido de morte natural, que a sua esperança de vida era muito menor que a nossa, em 1969...

Eu estou à vontade para publicar esta lista: sempre critiquei a africanização da guerra da Guiné, embora longe de imaginar que, no dia seguinte à nossa retirada, começasse a caça aos traidores, aos contra-revolucionários, aos mercenários, aos colaboracionistas... Em 1969, ainda estava vivo o Amílcar Cabral e eu admirava-o, intelectualmente... Achava que na Guiné, depois da independência, tudo seria diferente, e não aconteceriam os ajustes de contas que se verificaram noutras revoluções ou guerras civis, na Rússia, na China, na Espanha franquista, na França depois da libertação, etc. Pobre de mim, ingénuo...

Mas, por outro lado, também fui cúmplice da sua integração no nosso exército: mesmo sendo de da especialidade de armas pesadas, e não fazer parte formalmente de nenhum dos quatro grupos de combate da CCAÇ 12, participei em muitas das operações em que estes participaram, fui testemunha da sua coragem e do seu medo, dormi com eles nas mais diversas situações, incluindo nas suas tabancas... Foram meus camaradas, em suma.

Soldados ex-milícias, a maior parte com experiência de combate, os nossos camaradas guineenses da CCAÇ 12 (originalemnte, CCAÇ 2590), eram oriundos do chão fula e em especial dos regulados do Xime, Corubal, Basora e Cossé, com excepção de um mancanhe, oriundo de Bissau.

“Todos falam português mas poucos sabem ler e escrever", lê-se na história da CCAÇ 12 (O que só verdade, 21 meses depois de os termos conhecido e instrúiído em Contuboel, em Junho e Julho de 1969). Foram incorporados no Exército como voluntários, acrescentou o escriba, para branquear a instustentável situação dos fulas, condenados a aliarem-se aos tugas.

Guiné > Região Leste > 1969 > Estrada Xime-Bambadinca> O comandante da CCAÇ 12 (ex-CCAÇ 2590), Capitão Inf 50156311 Carlos A. M. Brito, promovido a major no final da comissão. Oficial do quadro, já tinha feito duas comissões anteriormente, uma na Índia e outra em Angola.

Foto do Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).

© Humberto Reis (2006).

Tirando o 1º Cabo José Carlos Suleimane Baldé (promovido ao actual posto em 16 de Setembro de 1969),era, todos Praças de 2ª classe. Samba Só, Mamadá Baldé, Braima Bá e Quecuta Colubali passaram a soldados arvoraddos na mesma data, por reunirem qualidades para uma eventual promoção ao posto de primeiros cabos: "ascendente sobre os camaradas, experiência de combate e aprumo militar" (sic). Entretanto, houve mais promoções no final da 1ª Comissão da CCAÇ 12 (a rendiçãoo individual dos quadros metropolitanos fez-se a partir de Fevereiro de 1971).

É muito provável que todos ou quase todos os graduados africanos da CCAÇ 12 ( e da CCAÇ 21, para a qual transiatram em 1973) tenham sido fuzilados, em 1974 e 1975 (1)...


Composição orgânica dos grupos de combate (Fonte: História da CCAÇ. 12: Guiné 1969/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores 12. 1971. Capítulo I).

1º Gr Comb

Comandante Alf Mil Op Esp 00928568 Francisco Magalhães Moreira

1ª secção
1º Cabo 8490968 José Manuel P Quadrado (Ap dilagrama)

Soldado Arvorado 82107469 Abibo Jau (F)
Soldado 82105869 Demba Jau (F)
Sold 82107769 Braima Jaló (Ap LGFog 8,9) (FF)
Sold 82106069 Sajo Baldé (Mun LGFog 8,9) (FF)
Sold 82106869 Suleimane Djopo (Ap Dilagrama) (FF)
Sold 82105469 Baiel Buaró (F)
Sold 82106269 Mamadu Será (FF)

2ª Secção
Fur Mil 04757168 Joaquim João dos Santos Pina
1º Cabo 17765068 Manuel Monteiro Valente (Ap Dilagrama)

Soldado Arvorado 82106369 Vitor Santos Sampaio (Mancanhe)
Soldado 82106469 Mamadu Au (Ap Metr Lig HK 21)
Sold 82105969 Samba Camará (Mun Metr Lig HK 21) (FF)
Sold 82105269 Sherifo Baldé
Sold 82106669 Mussa Bari (FF)
Sold 82106969 Mamadu Jau (F)
Sold 82105369 Mamadu Silá (Ap LGFog 3,7) (F)
Sold 82107669 Ussumane Sisse (Mun LGFog 3,7) (M)

3ª Secção
Fur Mil 19904168 António Manuel Martins Branquinho
1º Cabo 18998168 Abílio Soares

Soldado Arvorado 82107169 Mamadu Baló (F)
Soldado 82106569 Mustafá Colubalii (Ap Mort 60) )(FF)
Sold 82106169 Sana Camará (Mun Mort 60) (FF)
Sold 82105669 Amadu Baldé (FF)
Sold 82106169 Saico Seide(F)
Sold 82107569 Gale Jaló (FF)
Sold 82105569 Sana Baldé (Ap Dilagrama) (F)

2º Gr Comb
Comandante: Alf Mil de Inf 13002168 António Manuel Carlão

1ª secção
Soldado Arvorado 82107969 Alfa Baldé (Ap LGFog 3,7)
Soldado 18968568 Arménio Monteiro da Fonseca
Sold 82118169 Samba Camará (FF)
Sold 82115369 Iéro Jaló (F)
Sold 82118869 Cheval Baldé (Ap LGFog 8,9) (F)
Sold 82103269 Aruna Baldé (Mun LGFog 8,9) (F)
Sold 82105169 Mamadú Bari (FF)
Sold 82116369 Sidi Jaló (Ap Dilagrama) (FF)
Sold 82118669 Mussa Seide (F)
Sold 82117669 Amadú Camará (FF)

2ª Secção
Fur Mil Op Esp 05293061 Humberto Simões dos Reis
1º Cabo 17626068 José Marques Alves

Soldado Arvorado 82116569 Mamadu Baldé (F)
Soldado 82101469 Udi Baldé (FF)
Sold 82101069 Sajo Candé (F)
Sold 82108069 Alfa Jaló (F)
Sold 82116469 Iéro Juma Camará (Ap Mort 60) (FF)
Sold 82111969 Mamadú Jaló (Mun Mort 60) (F)
Sold 82111069 Adulai Baldé (F)
Sold 82117269 Adulai Bal (F)

3ª Secção
Fur Mil 17207968 Antonio Eugénio S. Levezinho
1º Cabo 18880368 Manuel Alberto Faria Branco

Soldado Arvorado 82116969 Braima Bá (F)
Soldado 82116669 Gale Colubali (Ap Metr Lig HK 21) (FF)
Sold 82116769 Mamadú Uri Colubali (Mun Metr Lig HK 21) (FF)
Sold 82111369 Amadú Turé (F)
Sold 82117469 Demba Jau (Ap Dilagrama) (F)
Sold 82107869 Iero Jaló (FF)
Sold 82116869 Gale Camará (F)

3º Gr Comb
Comandante: Alf Mil Inf 01006868 Abel Maria Rodrigues

1ª secção
1º Cabo 02920168 Carlos Alberto Alves Galvão

Soldado Arvorado 82108769 Totala Baldé (F)
Sold 82108569 Sambel Baldé (F)
Sold 82108969 Mauro Baldé (Ap LGFog 8,9) (F)
Sold 82110369 Jamalu Baldé (Mun LGFog 8,9) (F)
Sold 82109169 Malan Baldé (F)
Sold 82109569 Iéro Jau (Ap Dilagrama) (F)
Sold 82110969 Samba Baldé (Ap Metr Lig HK 21) (F)
Sold 82109969 Malan Nanqui (M)

2ª Secção
Fur Mil 07098068 Arlindo Teixeira Roda
1º Cabo 17625368 António Braga Rodrigues Mateus

Soldado Arvorado 82108369 Mamadú Jau (Ap Dilagrama) (F)
Soldado 82109369 Malan Jau (Ap Mort 60) (F)
Sold 82100769 Amadú Candé (Mun Mort 60) (F)
Sold 82108869 Quembura Candé (F)
Sold 82109769 Sherifo Baldé (F)
Sold 82115369 Ussumane Jaló (FF)
Sold 82110169 Madina Jamanca (F)

3ª Secção
Fur Mil 06559968 José Luís Vieira de Sousa
1º Cabo 12356668 José Jerónimo Lourenço Alves

Soldado Arvorado 82108469 Sajo Baldé (Ap Metr Lig HK 21) (F)
Soldado 82109669 Cherno Baldé (Mun Metr Lig HK 21) (F)
Sold 82109469 Sanuchi Sanhã (Ap LGFog 3,7) (F)
Sold 82109269 Sori Jau (Ap Dilagrama) (F)
Sold 82110569 Mamadu Embaló (F)
Sold 82110769 Chico Baldé (F)
Sold 82115169 Demba Jau (F)
Sold 82108669 Cutael Baldé (F)

4º Gr Comb
Comandante: Alf Mil Cav 10548668 José António G. Rodrigues

1ª secção
Fur Mil 15265768 Joaquim A. M. Fernandes
1º Cabo 18861568 Luciano Pereira da Silva

Soldado Arvorado 82115469 Samba Só (F)
Soldado 82109869 Samba Jau (Mun Metr Lig HK 21) (F)
Sold 82115269 Cherno Baldé (Ap Metr Lig HK 21) (F)
Sold 82117569 Mamai Baldé (F)
Sold 82117869 Ansumane Baldé (Ap Dilagrama) (F)
Sold 82118269 Mussa Jaló (Ap Dilagrama) (FF)
Sold 82118969 Galé Sanhá (FF)

2ª secção
Fur Mil 11941567 António Fernando R. Marques
1º Cabo 17714968 António Pinto

1º Cabo 82115569 José Carlos Suleimane Baldé (F)
Soldado Arvorado 82118369 Quecuta Colubali (F)
Soldadado 82110469 Mamadú Baldé (F)
Sold 82115869 Umarú Baldé (Ap Mort 60) (F)
Sold 82118769 Alá Candé (Mun Mort 60) (F)
Sold 82118569 Mamadú Colubali (FF)
Sold 82119069 Mamadu Balde (F)

3ª secção
1º Cabo 00520869 Virgilio S. A. Encarnação

Soldado 82116069 Sajuma Jaló (Ap LGFog 8,9) (FF)
Sold 82110269 Suleimane Baldé (Ap LGFog 8,9) (F)
Sold 82111069 Sori Baldé (F)
Sold 82115669 Sherifo Baldé (F)
Sold 82115769 Tenen Baldé (F)
Sold 82117169 Ussumane Baldé (F)
Sold 82117769 Califo Baldé (F)
Sold 82118469 Califo Baldé (F)

Legendas:

F= Fula
FF= Futa Fula
M= Mandinga
Mc=Mancanhe
Ap= Apontador
Mun= Municiador
Mort= Morteiro
LGFOg= Lança-granadas foguete
Met= Metralhadora
Lig= Ligeira
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Notas de L.G.

(1) Vd. posts de:

11 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLV: Ex-graduados da CCAÇ 12 também foram fuzilados (António Duarte)

(...) "grande parte dos graduados da CCAÇ 21 foram fuzilados.

"Ora, para nós, ex-militares da CCAÇ 12, esta situação toca-nos profundamente, pois em 1973 esta companhia [a CCAÇ 21], que ficou em Bambadinca comandada pelo Ten Jamanca [ex-comando africano], foi constituída, tendo por base furriéis que eram ex-cabos da CCAÇ 12 (na época colocada no Xime)" (...).

12 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)

(...) "Eu (com os meus quase 11 anos) e muitos outros, em 1974, vimos os militares do PAIGC em dois camiões de fabrico russo, um deles completamente tapado de toldo. Passaram por Xime, de manhã, para Madina Cudjido (Colhido, como vocês dizem). Passados uns 30 minutos ouvimos muitos tiros. Só que por volta da hora do almoço ouvimos [dizer] que foram lá fuzilados 8 pessoas. E das pessoas que nós ouvimos que tinham sido fuzilados - não sei se corresponde a verdade ou não - um deles era o tal Abibo Jau que esteve na CCAÇ 12 em Xime. A outra pessoa seria o Tenente Jamanca, da CCAÇ 21 que estava em Bambadinca" (...).

16 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLXIV: Fala-se em 11 mil fuzilados (Leopoldo Amado, historiador)

(...)"No período pós-independência, os fuzilamentos dos antigos colaboradores africanos incidiram sobre os Comandos Africanos, Milícias, agentes das forças especiais, fuzileiros, cipaios, régulos, agentes da PIDE, elementos da Acção Nacional, guias, e até agentes que trabalhavam para a administração colonial.

"Só no caso da Guiné, fala-se em cerca de 11.000 o número de elementos fuzilados pelo PAIGC imediatamente após a independência. Certo ou não, a verdade é que houve como que uma espécie de vingança quando os ânimos se serenaram, depois que o PAIGC assumiu a administração política do país" (...).

sábado, 20 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P775: Antologia (38): O cativeiro dos bichos de Artur Augusto Silva (Luís Graça)


Guiné-Bissau > Bissau > Contracapa do livro de contos, de Artur Augusto Silva, O Cativeiro dos Bichos... Bissau, 2006 (Edição de autor).

Nota de L.G.: Recordam-se que no último Natal recebemos uma prenda do Pepito que muito nos sensibilizou. Ele enviou-nos, para publicação no blogue, um dos contos, escritos pelo seu pai, já falecido, e que os filhos (Henrique, João e Carlos Schwarz) decidiram reunir em livro. Em Fevereiro último conheci pessoalmente o Pepito (Carlos Schwarz), que me ofereceu o livro (2). Na altura comprometi-me a fazer uma pequena recensão bibliográfica e sobretudo a divulgá-lo pela nossa tertúlia e pelo nosso blogue.

Para já, aqui vai um primeiro apontamento biográfico sobre o autor, Artur Augusto Silva (1912-1983), extraído no essencial dos dados fornecidos na contracapa do livro:

(i) Nasceu a 14 de Outubro de 1912, em Cabo Verde, na Ilha da Brava, "a ilha dos poetas, das flores e das mulheres bonitas", a ilha que foi também po berço do poeta Eugénio Tavares (1867-1930);

(ii) Ainda estudante, foi Director da revista Momento, revista que pretendia ser a réplica lisboeta da Presença, de Coimbra, e onde se propunha abrir uma Tribuna Livre com outros jovens escritores e intelectuais, "em que livremente se discutisse e todos pudessem falar";

(iii) Na Metrópole (como então se dizia), "publicou vários artigos, fez reportagens, dirigiu saraus literários, organizou exposições de arte moderna, promoveu conferências culturais na Casa da Imprensa, na Sociedade Nacional de Belas Artes e em vários outros locais de Portugal";

(iv) Licenciou-se em Direito em 1938, pela Universidade de Lisboa;

(v) Em 1939, partiu para Angola onde trabalhou como Secretário do Governador Geral;

(vi) De 1941 a 1949 exerceu advocacia em Lisboa, em Alcobaça e em Porto de Mós, na região da Estremadura (dessa experiência, humana e profissional, colheu o autor matéria-prima para alguns dos seus contos, agora publicados, como o Zé Faneca, pescador da Nazaré);

(vii) Em 1949, partiu para a Guiné onde foi advogado, notário e substituto do Delegado do Procurador da República;

(viii) Foi também Membro do Centro de Estudos da Guiné, juntamente com Amilcar Cabral de quem era grande amigo e com quem viajou várias vezes;

(ix) Participou, em 1949, na criação do Colégio-Liceu de Bissau;

(x) Visitou vários países africanos, recolhendo elementos que mais tarde lhe serviriam para escrever, entre outros livros, Os Usos e Costumes Jurídicos dos Fulas, tendo-se tornado um especialista em direito consuetudinário;

(xi) Cidadão empenhado, africano nacionalista, jurista corajoso, fez questão de defender presos políticos guineenses, muitos deles seus amigos "ou que passaram a sê-lo, acusados de sedição pela potência colonial"; mais concretamente, "foi defensor em 61 julgamentos, um deles com 23 réus, tendo tido apenas duas condenações";

(xii) Em 1966, "já em plena luta de libertação da Guiné", foi preso pela Pide, no aeroporto de Lisboa, situção violenta e arbitrária que ele recorda "com dor e revolta";

(xiii) "Meses mais tarde, por intervenção de Marcelo Caetano e de outros responsáveis políticos, que embora discordassem das suas ideias políticas o admiravam como homem de carácter, foi libertado, mas proibiram-lhe que regressasse à Guiné, sendo-lhe fixada residência em Lisboa";

(xiv) "Em 1967, Marcelo Caetano, convidou-o para ir trabalhar como advogado na Companhia de Seguros Bonança. Também Adriano Moreira o convidou para leccionar no Instituto de Ciências Ultramarinas, o que ele recusou, fazendo ver ao portador do convite a incoerência de o terem prendido pelas suas ideias sobre o colonialismo português e depois o convidarem para leccionar matérias relacionadas com Africa".

(xv) Em 1976, de visita à nova República da Guiné-Bissau, foi convidado pelo então Presidente Luís Cabral para trabalhar como juiz no Supremo Tribunal de Justiça;

(xvi) Foi professor de Direito Consuetudinário na Escola de Direito de Bissau;

(xvii) Faleceu em Bissau, a 11 de Julho de 1983, com 70 anos.

Em homenagem ao autor (e ao seu filho e nosso amigo, Pepito, membro da nossa tertúlia, fundador e líder da AD - Acção para o Desenvolvimento), publicamos aquele que é um dos contos que mais gostamos: uma fabulosa fábula (passe o pleonasmo) do tempo em que os animais falavam, e que, escrito em 1967, na Prisão de Caxias, tinha também uma crítica implícita à hipócrita política do Governo Português da época, em relação aos povos africanos que dominava; recorde-se que na época era Governador, de triste memória, o General Arnaldo Schultz, o mesmo que o expulsou da sua terra de adopção e que o mandou prender, à chegada a Lisboa, através do braço longo armado da Pide.
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O Cativeiro dos Bichos , por Artur Augusto Silva (pp. 57-63)

A história que ides ler foi-me contada na tabanca de Quebo, no sertão da terra dos fulas, por um homem chamado Umarú Só, velho para além de toda a idade e que por ser velho e sábio conhecia os segredos do mundo e as suas maravilhas.

Vou narrá-la por palavras minhas, porque sei que não me perdoariam o uso daquele estilo floreado, exuberante, por vezes difuso mas sempre poético que os fulas usam para contar uma história.

Houve um tempo em que todos os seres viviam na mais foi perfeita harmonia e a paz reinava por toda a parte. Isto passou-se antes de ter nascido uma garça chamada Macute e que ficará para sempre como o anjo mau que perverteu o mundo.

Foi o caso que numa manhã de sol, quando as manadas de búfalos pastavam nas lalas verdejantes de Bambadinca, uma garça ainda nova e inexperiente, ao esburgar com o bico as carraças de um búfalo, picou-o profundamente, o que o levou a dar um sacão com a cauda, sacão que apanhou a garça e a fez cair !

As coisas teriam ficado por aqui se não fora a garça Macute que, de longe, presenciou o caso e porque queria tornar-se raínha das aves, logo engendrou um plano que a conduzisse à satisfação dos seus desejos.

Andou de terra em terra convocando uma grande reunião de todos os bichos que voam para tomarem conhecimento da maior afronta que jamais fora praticada sobre um ser vivente.



Guiné-Bissau > Bissau > Contracapa do livro de contos, de Artur Augusto Silva, O Cativeiro dos Bichos... Bissau, 2006 (Edição de autor).

Chegado o dia da reunião, ali se encontrou toda a bicharada que povoa os ares, desde a águia-real, de peito branco e palavra e bico adunco, até ao colibri que é mais pequeno que a pequena flor. Vieram os papagaios vestidos de cinzento e peitilho vermelho, vieram todos os patos, desde o marreco ao ferrão, vieram as galinhas, incluindo as perdizes e as galinhas da Guiné todas louçãs na sua vestimenta preta de bolas brancas, vieram os mergulhões de longo bico plumagem verde, azul, preta e branca, veio toda a casta de pardalada que enxameia os céus, vieram as abetardas no seu voo lento e majestoso e, por fim, chegaram as borboletas no seu voo saltitante e colorido.

Reunidos todos, a garça Macute declarou que era necessário escolher um presidente que dirigisse os trabalhos mas, quando esperava ser investida no cargo, teve a desilusão de ver que optavam pela águia-real.

A águia -real soltou três assobios e declarou aberta a assembleia.

Logo a garça Macute levantou uma questão prévia:
- Vejo aqui as nossas boas amigas, as avestruzes, mas afigura-se-me que elas não são aves. Com efeito, desde que que o mundo é mundo, não há notícia de que uma avestruz tenha voado. Elas fazem parte dos bichos que andam e, por isso, não devem tomar parte da nossa reunião.

Todas as garças grasnaram em sinal de assentimento e estabeleceu-se um certo burburinho, prontamente reprimido pelo presidente que declarou ir pôr po caso à votação.

A coruja, sábia reconhecida por todos, pediu a palavra e disse:
- O problema posto pela nossa companheira, a garça, não é novo e muitas têm sido as opiniões ventiladas sem que se chegue a qualquer conclusão. Se é verdade que a avestruz tem asas, não é menos certo que nunca se serve delas para voar. Em minha opinião, devem ser classificadas entre os bichos que andam e não entre os que voam.

Como, após tão sábio resumo, ninguém quisesse usar da palavra, a águia pôs o caso à votação, e por maioria esmagadora foi decidido que as avestruzes não eram aves, mas sim bichos que andam.

Então a águia convidou a garça a dizer do motivo da reunião, e Macute começou:

- As aves são neste mundo em que vivemos, os animais mais nobres e mais valentes. Nunca uma de nós sofreu qualquer vexame ou insulto sem que imediatamente respondesse. Ora, devo dizer-vos que é com o coração oprimido de indignação e raiva que vos vou contar que há dias, na bolanha de Bambadinca, uma de nós, precisamente uma garça, foi vítima de agressão por parte de um búfalo. Devo acrescentar que o caso não pode ficar assim e por isso proponho que se declare guerra sem quartel a todos os bichos que andam.

Uma vozearia infernal atroou os ares e os abutres eram, de entre todas as aves, quem mais grita fazia, apoiando tão dignos sentimentos.

Um pardalito que estava presente, voltou-se para um jagudi que mostras de grande contentamento e ainda disse:
- O que vocês querem é que haja guerra para poderem comer a carne dos que morrem.

Logo o jagudi, gritando traidor, deu-lhe uma sapatada em três tempos o engoliu.
- Calma! Calma! - Gritava a águia-real, receosa de não ter mão na assembleia.

Serenados um pouco os espíritos, a águia deu a palavra ao primeiro orador inscrito, o periquito. Este começou por dizer que a afronta fora grave mas, em seu entender, deveria averiguar-se primeiro se as coisas se tinham passado conforme o relato da garça, porque não via razão para que um búfalo magoasse uma garça, sem qualquer razão. Propunha, pois, uma comissão de inquérito.

O papagaio, segundo orador, citou alguns precedentes em que o comportamento dos bichos que andavam para com os bichos que voam demosntrava cruelda e propôs que o caso fosse levado ao conhecimento do bicho homem que possui discernimento mais do que suficiente para resolver o conflito.

As corujas apoiaram e depois de muitos oradores terem falado, foi resolvido levar o caso ao bicho homem. Formada a comissão que se avistaria com o bicho homem, dissolveu-se a assembleia, no meio de grande excitação.

O papagaio, como falador de grandes conhecimentos, presidia à comissão de queixa, a qual se dirigiu ao bicho homem para fazer as suas lamúrias.

Ouviu o bicho homem as mágoas da passarada e ali jurou que iria investigar, para que se fizesse inteira e completa justiça. Voltassem daí a sete dias, para ouvir a sua resolução.

A passarada retirou-se em boa ordem e o bicho homem ficou a esfregar as mãos de contente porque em sua cabeça surgira um palno.

Mandou o bicho homem chamar o rei dos bichos que andam e que é, contra o que se pensa, o elefante.

Veio este acompanhado de numeroso séquito do qual fazia parte o seu melhor conselheiro, o macaco.

Exposto o motivo da convocação, logo ali declarou o elefante que as intenções da bicharada que anda eram pacíficas e que nunca, até aquele momento, qualquer dos seus súbditos fizera mal a outrem, facto que devia ser do conhecimento do bicho homem que tudo sabe.
- Na verdade, na verdade, retorquiu o homem. Mas há uma queixa e é necessário saber quem tem razão. Parece-me que seria melhor que os bichos que andam nomeassem um delegado e os que voam, outro, para trazerem a minha presença, as alegações de cada parte e as provas a produzir...

Todos concordaram e ficou estabelecido que daí a sete dias e se realizaria o julgamento do caso.

Sete dias passados e à hora marcada, reuniu-se a garnde assembleia e o bicho homem, dizendo que ambas as partes lhe mereciam o maior respeito e consideração e que, assim, não podia dar a direita a um e a esquerda a outro, propõs que o representantre de cada parte ocupasse a direita durante meia hoitra e que a primeira posição fosse tirada à sorte.

Constituído o Tribunal, entraram o macaco como advogado, dos bichos que andam e mais vinte e sete testemunhas, logo seguido pelo papagaio, representante dos bichos que voam, com vinte e cinco testemunhas.

Historiou o homem o diferendo em poucas palavras e pediu ao papagaio, como advogado da parte acusadora, que dissesse da sua justiça.

Falou o papagaio com perfeita dicção e clareza, citando vários confrades seus e algumas palavras que ouvira aos homens, o que lhe valeu aplausos até dos bichos que andam. Empertigou-se o macaco, abriu os braços como já vira em comícios do bicho homem e analisou, um por um, os argumentos do papagaio e a sua queixa. Falou no amor, na justiça piedade, em todos os sentimentos nobres e a tal ponto comoveu a bicharada que voa, fez chorar um pardal estouvado e brincalhão como todos os pardais.

Exposta a questão, iniciou o bicho homem a audição das testemunhas e quer as de acusação, quer as de defesa, declararam nada saber do assunto.

Concedida novamente a palavra aos advogados, estes excederam-se em citações: foram épicos, heróicos, patéticos, fizeram chorar a assembleia e, logo a segui fizeram-na rir desabridamente e foi numa das suas tiradas mais sublimes que o macaco, demonstrando rara intuição científica, classificou o homem de seu primo. O Chimpanzé que estava seguindo a peroração nos menores detalhes, comentou em à parte: primo, mas degenerado.

Depois desta afirmação solene do macaco, os jornais e revistas que o bicho homem publica, começaram-na citando obstinadamente, pelo que hoje é ponto assente a existência de tal parentesco.

O bicho homem suspendeu a sessão por uma hora, ao cabo da qual reentrou para ler a sentença. Era uma longa peça de considerandos e que começava por afirmar que "em virtude de se não ter provado a queixa dos bichos que voam, mas convindo fazer justiça, profiro a seguinte sentença: Julgo a acusação improcedente mas, tendo em atençao que a paz é um dever indeclinável de todos os espíritos sãos, e para poder reservá-Ia, determino que me sejam entregues como reféns e para garantia da paz futura, um animal de cada uma das espécies que voam que andam".

Eliminava magnanimamente custas, dada e manifesta ,ipobreza das partes.

Todos animais, tanto os que voam como os que andam, aplaudiram delirantemente tão sagaz decisão e só o macaco, fiado no parentesco com o bicho homem, quis recorrer da decisão, alegando que "começara a escravatura".

Ninguém o quis ouvir, a decisão ficou sem recurso (recurso para quem? perguntava o papagaio) e o bicho homem começou encaminhando a bicharada para currais e capoeiras previamente instalados por sua indústria.

A verdade é que com o correr dos anos as palavras do macaco tiveram plena comprovação, pois o bicho homem nunca mais soltou nenhum dos reféns e porque estes se reproduziam e o bicho homem não tinha com que alimentá-los, passou a comer deles cada vez com mais apetite.

Se acontecia alguém perguntar ao homem a razão de tão prolongado cativeiro, respondia: como querem que eu os liberte se ainda ontem vi um milhafre pilhar um rato e comê-lo em três tempos? É com sacrifício, com muito grande sacrifício que dou de comer à bicharada, mas mesmo com sacrifício devo manter a minha palavra honrada e a minha justiça proverbial.

É certo que ensinei os bois a trabalhar para mim; é certo que como a carne dos bichos e uso das suas penas e da sua pele em utensílios que fabrico, mas não é menos verdade que todos devem conhecer a minha isenção. Estou esperando que os bichos consigam uma promoção social
que os habilite a entrar no concerto dos seres civilizados para, então lhes dar a liberdade que eu desejo mais do que eles.

Se a história é verdadeira, não posso assegurá-lo pois que os factos passaram-se há muitos anos e não conheci o bicho homem que fez tal justiça; mas, porque Umarú Só é pessoa séria, incapaz de inventar, estou em crer que eles se verificaram conforme a narrativa.

(Prisão de Caxias, 1966)

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Nota de L.G.

(1) Vd. post de 16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXVIII: Um conto de Natal (Artur Augusto Silva, 1962)


(2) Vd. post de 16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXXIX: Projecto Guileje (9): obus 14, precisa-se!

(...) "Foi muita gentileza, da parte dele, ter-se deslocado só para me conhecer pessoalmente, dar-me notícias da sua terra (que ele ama com um coração muito grande), falar-me, com entusiasmo contagiante, da menina dos seus olhos - que é o Projecto Guiledje (com dj, como ele gosta que se escreva) - e, ainda, presentear-me com o livro de contos do seu pai, Artur Augusto Silva (Ilha Brava, Cabo Verde, 1912- Bissau, 1983), um homem de leis e de cultura, amante da justiça e da liberdade, já aqui por nós justamente evocado

"Noutra ocasião, farei a recensão bibliográfica de O Cativeiro dos Bichos, um colectânea de 25 contos, seleccionados pelos seus filhos (Henrique, João e Carlos Schwarz), alguns dos quais escritos na prisão de Caxias, em 1966. O livro acaba de ser editado em Bissau (Fevereiro de 2006, edição de autor).

"A conversa, de cerca de 1 hora, que tive com o Pepito (ninguém o conhece por Carlos Schwarz, nem quando foi ministro dos transportes num governo de transicção) só pecou por ser curta... Mas deu para, de imediato, eu fazer mais um amigo guineense" (...).

sexta-feira, 19 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P774: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (8): A ida para o leste

Guiné > 1968 > O Rio Geba atravessa(va) várias regiões: na margem direita, para lá de Bissau, que é uma ilha, a região do Morés (Mansoa) e a a região Leste (Bafatá); na margem esquerda, a região de Quínara (Buba) e de novo a região leste, que começava a partir do Rio Corubal... De Mansoa a Bafatá não havia ligações terrestres, já que a estrada que ligava Bafatá a à capital, passando por Mansoa estava interdita... O único recurso, para as NT, era a via fluvial, como aconteceu com a CCAÇ 2405 (1968/69), transferida de Mansoa, cinco meses depois, em Dezembro de 1968 para o sub-sector de Galomaro (LG).

Foto do Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71). © Humberto Reis (2006).

Guiné > Região do Oio > Mansoa > 1968 > O Alf Mil Raposo com dois milícias nativos.

© Paulo Raposo (2006)

VIII parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).

Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. pp. 25-26 (1).

Depois de cinco meses de Mansoa, em chão Balanta, fomos mandados para o leste, para o chão Fula.

O leste da Guiné era quase um planalto, a vegetação não era tão densa e o clima era menos húmido.

Como a estrada de Mansoa para Bafatá estava cortada por acção do inimigo, só podíamos lá chegar ou por avião ou pelo rio.

Foi posta à nossa disposição uma LDG, lancha de desembarque grande, e lá fomos rio acima. A hospitalidade do pessoal da Marinha deixava sempre muito a desejar. A lancha acostou ao Xime, e o resto do caminho fomos em coluna, para Bambadinca.

Sempre que se formava uma coluna neste itinerário, a companhia do Xime saía para fazer protecção lateral.

Chegámos a Bambadinca à noite, cheios de fome e de sono e lá dormimos já nem sei como. No dia seguinte mandaram-nos para um quartel próximo, Fá Mandinga, aonde descansámos enquanto aguardávamos novas ordens.

Deixo aqui uma história curiosa: Bambadinca ficava num ermo, de um dos lados descia para o rio Geba e na outra margem ficava uma grande bolanha.

Para protecção avançada, estava nessa bolanha um grupo de combate de tropa africana comandado pelo Alferes Beja Santos, que vinha connosco desde Mafra. Estavam instalados num aquartelamento de reduzidas dimensões (1). Tinham uns abrigos, mas dormiam em Tabancas, nome que era dado às casas construídas pelos nativos, que tinham telhado de colmo.

Numa bela noite, o nosso Beja Santos sofreu um ataque, em que o inimigo, para corrigir o tiro, fez fogo com munições tracejantes. Como resultado, o colmo incendiou-se e o pessoal perdeu todos os seus haveres com o fogo. No dia seguinte, aparecem na sede do Batalhão [2852] o nosso Beja Santos com alguns dos seus homens, todos em cuecas. Era assim que estavam quando tinha começado o ataque.

Como a guerra ainda não se tinha alastrado ao leste, era intenção do comando de Bafatá (3)reordenar a população e constituir núcleos de auto defesa. A ideia era brilhante, cativou a população, mas não alterou em nada o curso da guerra.
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Nota de L.G.

(1) Vd. o último post, de 11 de maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIV: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (7): A ida ao Morés: atenção, heli, aqui tropa à rasca

(2) Comandante do Pel Caç Nat 52, destacado em Missirá a norte, de Bambadinca, no regulado do Cuor.

(3) Sede do Agrupamento 2957 (sendo o comandante o Coronel Hélio Felgas). A região leste estavva dividada em cimnco sectores, sendo o sector L1 o de Bambadinca, abrangendo o triângulo Xime-Bambadinca-Xitole.

Guiné 63/74 - P773: Saudações aos camaradas de Gandembel (José Teixeira)

Luís.

Saúdo com muita emoção a entrada do Idálio Reis. Faltava uma peça importante no nosso Blogue para melhor se compreender as asneiras que se fizeram na guerra da Guiné.

Como já tive ocasião de afirmar, os camaradas de Gandembel foram autênticos heróis à força, mas foram-no, como tantos outros.

É preciso fazer-se a história de Gandembel.

Obrigado, Idálio Reis. Bem vindo.

Um abraço fraterno e cheio de saudade.
José Teixeira

quinta-feira, 18 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P772: Dos comandos de Brá ao pelotão de fuzilamento (Virgínio Briote)

Guiné > Base Aérea de Bissalanca > 1966 > Grupo de comandos Os Vampiros, do Alf Mil Comando Briote > O Justo Nascimento é o primeiro da fila de trás, a contar da esquerda; e o Jamanca, o quarto. Foto: © Virgínio Briote(2006)


Guiné > Brá > 1965 > Jamanca e Justo, comandos do Grupo Os Vampiros, futuros graduados da 1ª Companhia de Comandos Africanos (1970/74)

Foto: © Virgínio Briote(2006)




Guiné > Bissau> Praça do Império > Escadaria do Palácio do Governador >1966 > O 1º Cabo Comando Jamanca a ser condecadorado pelo Coronel Kruz Abecassis. Em 1973 o tenente Jamanca era o comandante da CCAÇ 21: terá sido fuzilado em 1974 em Madina Colhido, perto do Xime (1) (LG).

Foto: © Virgínio Briote(2006)

Texto do Virgínio Briote que continua sendo membro, fidelíssimo, da nossa tertúlia, ao mesmo que vai produzindo os seus textos, pessoalíssimos, belíssimos, no seu blogue Tantas Vidas, as dele, as do Gil Duarte, as da Teresa, sempre a Teresa, as do Capitão Valentim, as do Capitão Leão, as de uma geração inteira, de homens e mulheres, que amaram e desamaram, viveram e morreram, lutaram e perderam, a Dora, a Clara, a Matilde, o Leonel, o Manaças, o Marcolino da Mata e tantos outros, figuras de carne e osso que povoaram Brá, Bissau, Mansoa, o norte, o sul, o leste, as bolanhas, as picadas, as matas... O retrato de uma geração que ele está a contruir, como um puzzle, da sua experiência, como comando, como homem, nos anos de 1965/66... Continua, camarada, que a gente também vai lá visitar-te: mais do que uma obrigação, é um prazer! (LG)
Caro Luís,

Venho a esta missa todos os dias, às vezes mais que uma vez por dia.

A questão dos militares guineenses que combateram do nosso lado continua ainda muito sensível. Qualquer interpretação que seja feita, corre sempre o risco de ficar incompleta, tantos dados ainda estão no segredo. E muitos de nós já os levaram com eles para a cova. Fica a história simplificada, que pode não ser completamente correcta, se dissermos que:

(i) Os fuzilamentos são incompreensíveis e não justificam as atrocidades que eventualmente alguns tenham praticado;

(ii) Os tempos a seguir à independência foram vulcânicos, ainda estávamos em plena guerra-fria, é conveniente lembrar;

(iii) Os militares guineenses eram portugueses, convém também não esquecer. E ficaram lá, porque as entidades que negociaram a transferência de poderes, os esqueceram, pura e simplesmente.

Mas admito que não tenha toda a informação.

Envio-te algumas fotos de 1965 e 66.

Um abraço
vb
_________

Nota de L.G.

(1) Vd. post de 12 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXLIX: O fuzilamento do Abibo Jau e do Jamanca em Madina Colhido (J.C. Bussá Biai)

Guiné 63/74 - P771: Do Porto a Bissau (18): Sadiu Camará, um sobrevivente (A. Marques Lopes)

Guiné-Bissau > Buba > Tabanca Lisboa > 2005 > O Zé Teixeira com o chefe da tabanca e a sua lindíssima filha. A tabanca Lisboa, a 5 Km de Buba, era um antigo centro de treino do IN, de nome Sare Tuto... Aqui ainda vivem vários antigos combatentes do PAIGC... Sadiu Camará, antigo paraquedista, casou aqui com uma guerrilheira... Foi ele que mudou o nome da aldeia e ajudou a população como caçador... Uma história com final (quase) feliz. (LG)

© José Teixeira (2005)

Guiné-Bissau > Saltinho > Abril de 2006 > Saliu Camará, beafada, um antigo paraquedista português, um sobrevivente nato...

Foto: © A. Marques Lopes (2006)

1. Texto do A. Marques Lopes:

Já que se fala dos guineenses que estiveram ao lado da tropa portuguesa contra o PAIGC, vou contar-vos o que o Sadiu Camará, beafada, me contou a mim (1):

(i) tirou o curso de paraquedista em Tancos, 70/71, e regressou à Guiné na Comp.ª 122 do BCP;

(ii) com essa companhia participou em operações, fazendo especialmente de intérprete, participando, inclusive, em interrogatórios de prisioneiros; isto até ao 25 de Abril;

(iii) após esta data, fugiu de Bissau e foi para a zona de Fulacunda, embrenhando-se no mato durante seis meses, sobrevivendo com recurso à caça, raízes e frutos alimentícios;

(iv) durante esse período ajudou com as suas peças de caça as populações daquela zona, sendo aceite por eles;

(v) acabou por ser apanhado e esteve preso durante seis semanas: "levei muita porrada e passei muita fome", disse-me;

(vi) mataram vários que também estavam presos, mas a ele não o mataram porque tiveram em conta as ajudas por ele prestadas às populações;

(vii) perguntei-lhe, a propósito, quem é que tinha mandado fazer os fuzilamentos; disse-me, sem hesitações: "foi o Nino Vieira, que era comissário das Forças Armadas, o Gazela (comandante daquela zona, na altura, já falecido) e o Chico Té (nome de guerra de Francisco Mendes, morto em 1998, de forma violenta e em circunstâcias estranhas);

(viii) após ser libertado, inscreveu-se na Juventude Amilcar Cabral, onde esteve seis anos;

(ix) após deixar essa organização, acompanhou, como guia, durante dezoito anos, os técnicos do Centro de Conservação da Natureza (disse-me o nome de um deles, o dr. António Araújo);

(x) em 1998 foi incluído nas Forças Armadas da Guiné, ao lado de Ansumane Mané, como faz questão de frisar;

(xi) viveu na tabanca Sare Tuto, antiga base do PAIGC, na zona de Buba, aí casando com a guerrilheira Neura, beafada, e construíu, depois, uma tabanca, a que deu o nome de Lisboa, cujo actual chefe é Assume Cassamba, onde construíu um posto de recolha de água e um sistema de produção de sal; segundo ele, é ainda "consultor" (homem que faz coisas e apoia a população) dessa tabanca;

(xii) trabalha actualmente como guarda no Clube de Caça do Saltinho.

Outro percurso, como se vê.

A. Marques Lopes

PS - Disse-me o José Teixeira, após divulgação desta minha mensagem através de e-mail, que Sare Tuto é a tabanca Lisboa, nome mudado pelo Saliu Camará. E ele até tem fotografias dessa tabanca. A fundação a que o Camará se me referiu foi, pois, uma mudança de nome. Diz também o José Teixeira que ele é guia e pisteiro dos caçadores que vão ao Clube de Caça do Saltinho, e não guarda. Também o percebi mal. Fica a correcção.

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Nota de L.G.:

(1) Por elementar precaucção (protecção das nossas fontes de informação e segurança das pessoas), perguntei ao António se podia publicar as (in)confidências sobre o Camará... "Haverá problemas de segurança ? O nosso blogue chega à Guiné, aos esbirros do Nino Vieira ?"...

Resposta pronta do nosso camarada:

Caro Luís:

Não me parece que haja problemas graves.

Primeiro, porque o Camará não tem papas na língua e conta isto que eu contei em frente de toda a gente, porque é um homem conceituado e querido junto das populações, sente-se seguro.

Segundo, porque muita gente ouvi na Guiné a dizer mal do Nino abertamente, sem peias, inclusive o jornal Gazeta, que se publica todos os dias em Bissau, trazia diariamente editorias altamente críticos ao Presidente, assinados por António Monteiro (o que muito me espantava), daí eu estar convencido que a situação não ficará como está durante muito tempo.

É talvez por isso que o Nino anda, actualmente, empenhado numa campanha de pacificação da sociedade guineense... E não me parece que os serviços de inteligência guineenses estejam tão avançados a ponto de vasculharem a Internet (...).

Guiné 63/74 - P770: Um pesadelo chamado Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317, 1968/69 )

Guiné > Fronteira sul com a Guiné-Conacri > CCAÇ 2317 (1968/69) > Posição, no mapa de Guileje, das nossas posições em Gandembel e Ponte Balana, nas margens esquerda e direita e do Rio Balana, abandonadas em menos de um ano (Abril de 1968-Março de 1969).

Texto do Idálio Reis (ex-Alf Mil, CCAÇ 2317, BCAÇ 2835, Gandembel e Ponte Balana 1968/69) (1)

Caro Luís Graça:

Não me contive perante a catadupa de missivas que o fora-nada vai recebendo. Assim, surge esta segunda mensagem, a reiterar com o tempo.

O seu fundamento serve tão-só para também dar o singelo contributo de um ex-alferes miliciano, a quem lhe foi dado a conhecer essa Guiné profunda, e que hoje vai sendo divulgada tão bem pelos companheiros da Tertúlia.

A forma que utilizo, com anexações, torna-se-me mais fácil, pois permite colmatar falhas/gralhas na escrita.

Até breve. Um cordial abraço a todos os companheiros do blogue. Idálio Reis.

Companheiros da Tertúlia Luisiana:

Os contributos que convergem para o nosso blogue, jorram a uma cadência invulgar, tais são a frequência e a intensidade com que nos surgem, surpreendem e entusiasmam, que acaba por me impulsionar a não prorrogar em demasiado, um tempo quedado no mutismo, seguramente a postura menos atenciosa e cordial.

Já tive a oportunidade de visionar o imenso arquivo já disponível, ainda sem o atento grau de leitura que o mesmo justifica e merece, mas que me permite ter uma noção generalizada do que efectivamente ele representa, consubstanciado numa antologia de diferenciadas narrativas de acontecimentos, inúmeros, variados, vívidos, espectrais, dos que um dia alguém lhes determinou que compulsivamente demandassem rumo a uma parcela pátria do continente africano contígua ao Golfo da Guiné.

Apesar de tudo, constato com alguma nostalgia, que o conteúdo do blogue ainda apresenta uma brecha para colmatar, pois o período de comissão em que por aí (sobre)vivi, correspondente aos anos de 1968/69, não detém o acervo memorial que a Guiné teve então o triste ensejo de testemunhar.

Contudo, é-me justo salientar aqui, o papel relevante que o José Teixeira da CCAÇ 2381 vem assumindo, em que refere pormenorizadamente muito das suas vivências e que circunstancialmente apresentam uma certa forma de identificação comum à da minha Companhia, na sua contemporaneidade, nos lugares e trilhos, nas vicissitudes e anseios. Para ele, que envidou esforços para me encontrar, um carinho muito especial.

Ao assumir como lema «um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana» (1), faço-o num claro propósito de fazer incidir as estórias que me comprometi escrever, mormente sobre este local; narrar alguns factos e feitos ocorridos para que não caiam no olvido, remoçar memórias arquivadas nos recônditos do fundo de um baú pessoal muito especial, para que se sinta o que foi a disforme inequidade da guerra da Guiné profunda, tão punitiva e pesarosa para muitos de nós.

Passados tantos anos, torna-se-me particularmente difícil aceitar que os Poderes deste País em nada contribuíssem para não se deixar cair no esquecimento o que a guerra colonial representou para a nossa geração, porventura por causa da sofrida e pungente hecatombe da Guiné, a fim de eventualmente nos quedarmos no assumir de um imposto estado de condescendência, e deste conformismo nada reivindicar para nada poder alcançar.

Guiné > Bissau > Brá > 1965 > O General Schultz (à esquerda). Governador Geral da Guiné, o brigadeiro Schultz foi promovido a general em 5 de Setembro de 1965. Foi substituído por Spínola em Maio de 1968. A seu lado, o Capitão Nuno Rubim, hoje coronel.

© Virgínio Briote (2005)



No dealbar de 1968, havia já uma zona a Sul, de relativa amplitude e fronteiriça à Guiné de Sekou Touré, principal sustentáculo do PAIGC, que estava vedada ao controlo das NT. Tal não obstou a que se quisesse ousar implantar, no eixo do chamado corredor de Guileje, que até era conhecido pelo corredor da morte, e que amplamente se sabia ser uma das principais vias de passagem de víveres e de armamento das forças inimigas, um posto militar fixo com o fim de impedir ou limitar as suas acções a nível do território.

No [cerne] desta determinação, constata-se sem margem para grandes dúvidas que o acéfalo estado-maior de Arnaldo Schulz, já inteiramente grudado ao estrito reduto de Bissau, não continha minimamente qualquer plano estratégico estruturado e coerente para o acerado conflito militar que se aguçava e recrudescia com o delongar do tempo sem tempo.

O envio de tropa para uma zona de fulcral importância logística para o PAIGC, que já tinha conseguido impedir a deslocação de colunas no troço da picada entre Aldeia Formosa e Guileje, mostrar-se-ia um fracasso rotundo para as NT, desastroso, implacável, cruel, como infelizmente se viria a constatar pela perda infinda de militares, que estimo em números de uma vintena de mortos e meia centena de feridos.

Malfadada Fortuna para quem coube tão adverso e fatídico destino. Um BCAÇ (2835), passados dois meses após a sua chegada, é desmembrado e disperso pela Província, com a CCS a sediar-se em Nova Lamego e 2 Companhias a tomarem rumo ao Sul da Província. Uma permanecerá longo tempo em Guileje e a minha (a 2317) viria a ser deslocalizada para as imediações do rio Balana, mais ou menos à semi-distância entre Guileje e Aldeia Formosa, com a função de aí se radicar a fim de construir de raiz um aquartelamento [Gandembel e Ponte Balana], mesmo junto à picada de ligação.

A inserção de Gandembel/Ponte Balana obrigou a uma natural implementação das forças do PAIGC, inclusive com a permanência do bigrupo de Nino Vieira e de colaborantes cubanos. E como resultado óbvio desta movimentação, os aquartelamentos periféricos viriam a ser coagidos a tomar procedimentos de maior esforço e empenho na precaução e vigilância das suas tropas, causando-lhes um acentuado desgaste físico e moral. Atente-se à quantidade dos militares que foram raptados nesta época.

Julgo hoje que o General Spínola, que chegara em fins de Maio de 1968 e após tomar conhecimento in loco do que a Província lhe poderia dar a mostrar, apercebeu-se claramente da situação militar e social que se lhe deparava. Se as directrizes dimanadas do Poder Central eram determinadam pela manutenção a todo o custo das colónias, sem quaisquer excepções, então haveria que encetar uma estratégia diferente da que grassava, mas que paradoxalmente não poderia antever os seus resultados. Mas que resultados?

E uma das suas resoluções de maior impacto em finais desse ano, foi o de mandar fazer abandonar as posições de Gandembel e de Madina do Boé (com uma funestíssima retirada). Assim, a odisseia da minha Companhia por este rincão, que começara a 8 de Abril de 1968, finalizava a 28 de Janeiro de 1969.

Este consumptivo período de quase dez meses, que obriga a um conjunto de homens sitiados, a ter que sobrepujar todas as infindas contrariedades, em pleno palco de uma guerra de guerrilha sem tréguas, acaba por fenecer ante uma julgada impotência para contrariar o desaire.

Tantos momentos dramáticos que nos deixaram marcas profundas de sofrimento: de amargura e desalento, de raiva e dor, de mágoas e pesadelos, de medos e agonias. Tantas mazelas do corpo e da alma, para homens em florescimento, a desencadearem perturbações que nos vêm vindo a avassalar sem míngua no seu perpétuo movimento, até que o determinismo da Lei da vida nos liberte de tais sujeições.

Os tempos de Gandembel, muito em especial a sua primeira parte, são de uma violência pessoal inusitada, agressiva, estarrecedora, inumana (2):

(i) De um trabalho ingente e penoso a obrigar ter a G3 sempre à mão enquanto os braços labutavam na construção das casernas-abrigo;

(ii) corpos lassos em cima de furados colchões de campanha assentes na terra dormitando dentro de buracos desprotegidos;

(iii) alimentados por uma comida difícil de tragar, metida em marmitas saburrosas em que o arroz e os produtos desidratados preponderavam;

(iv) sem água de qualidade para nos saciar e bastante para remoção da sujidade do pó que se inculcava pela pele que se tisnava com o tempo;

(iv) sem nenhuma assistência médica;

(v) sem o apoio de qualquer população indígena;

(vi) sem qualquer iluminação exterior que visionasse uma sombra estranha no negrume das noites, e o mais odioso e duro, sem o merecimento de qualquer comiseração, fortemente estrugidos por uma quase constância dos mais variados estampidos em resultado de um ror imenso dos insidiosos ataques inimigos.

Parece-nos que só dispúnhamos de uma salvaguarda, que nos poderia acolher nos momentos mais transidos: porventura, a vinda de algum helicóptero, se para tal tivesse condições para momentaneamente aterrar.

Houve um ligeiro lenitivo nos últimos tempos, pois o modo de construção das casernas permitia-nos obter uma outra segurança, e uma maior disponibilidade da água contribuía para um melhor asseio. Contudo, tudo isto conjugado, é objectivamente muito pouco ou quase nada. Não poderei esconder que já neste período, as colunas de reabastecimento quase se quedaram, mesmo as provenientes de Aldeia Formosa.

Ficávamos à mercê de transportes por héli ou do arremesso das Dorniers em sobrevoo.
Pois do que prometia a força humana, algo sempre sobrava desta dedicação sacrificada e dolente, a fim de nos permitir resistir sem vacilações ou soçobros. É que a agudização em crescendo das agruras, compenetrava-nos para a gravidade da situação em confronto, em que reconhecíamos não haver lugar para consentir a mínima imprevidência ou tergiversação ao inimigo, pois que num qualquer instante poderia surgir a iminência de um surpreso confronto de proporções desmesuradas, que só uma indómita vontade, um acto mais corajoso ou a persistência do combate com maior denodo, os impediria de atingir alguns dos seus propósitos. Aclararei em mensagens sequentes muito destes insólitos acontecimentos.

Por isso, já comecei a identificar situações vividas e a indagar-lhes pormenores, para intentar coligir bastantes apontamentos a fim de poder escrever esta história de Gandembel/Ponte Balana, se para tanto não me faltar a requerida habilidade, e que este blogue acabe por ser um verdadeiro e real repositório do que o Luís Graça em tanto se tem empenhado.

Já que falei nessas duas datas, que representam em meu entendimento, a mais longa operação militar que se desenrolou naquele espaço de tempo, desejaria sublinhar o seguinte: de Guileje, a 8 de Abril de 1968 parte uma imensa coluna de reabastecimentos e de materiais de construção, com a protecção de uma Companhia – julgo que a própria CART 1613 - o companheiro José Neto poderá aqui dar-nos uma ajudam - , seguindo a picada em direcção a Norte, que viria já ao entardecer a estacionar junto ao corredor de Guileje [o mapa de Guileje de 1956, identifica bem o local]; a noite, passada debaixo das GMCs e dos Unimogs, foi aterrorizadora, com ataques quase contínuos de armas ligeiras e pesadas e de morteiros.

Talvez por este facto (!) e porque o acesso à água ficava relativamente longe, a coluna deslocou-se na madrugada seguinte mais para norte, sitiando-se então do lado esquerdo da picada, na margem esquerda do rio Balana e a cerca de 300/400 metros do seu leito. Estava escolhido o local para aí se construir o aquartelamento de Gandembel e depressa se abriu um caminho para diariamente se procurar água que o Balana pouco cedia na época seca.

A imagem anexa clarifica bem a localização de Gandembel e de Ponte Balana, com o caminho para o rio Balana e de ligação aos 2 postos. Ponte Balana era um pequeno fortim guardado a nível de um grupo de combate, a fim de viabilizar a defesa da ponte sobre o rio Balana, que foi necessário operacionalizar, dado que todos os pontões estavam destruídos.

Quanto ao dia 28 de Março de 1969, abandona-se um aquartelamento, deixando de pé apenas 8 casernas-abrigo e uma série de minas anti-pessoais de protecção envolvendo o arame farpado e um fortim mais junto ao rio Balana. Talvez que ainda tivessem sobrado fantasmas, as sombras que cada um à sua maneira lá deixou e que tantas vezes nos assolam.

A coluna fez-se até Aldeia Formosa sem quaisquer incidentes, nem mesmo em Changue-Iaia (um dos locais mais fatídicos desta longa odisseia).

Contudo, há um facto insólito a reter dessa noite. Já refeitos em Aldeia, em que Gandembel e Ponte Balana ficariam para sempre submergidos no breu da escuridade, ouvimos que esse desolado local fora violentamente flagelado. E nós, já longe da imprevisível consequência dos impactes, esboçámos um sorriso de pasmo e interrogámo-nos ante uma dúvida que jamais terá resposta: será que os guerrilheiros do PAIGC não quiseram saudar esta fuga, com uma salva à sua moda?!

___________

Nota de L.G.

(1) Vd. post 19 de Abril de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXIV: Um sobrevivente de Gandembel/Ponte Balana (Idálio Reis, CCAÇ 2317)

(2) Mesmo assim, havia lugar para o humor... Nos primeiros tempos da minha comissão, em Contuboel e depois em Bambadinca (CCAÇ 12, 1969/71), Gandembel era, com Madina do Boé, um dos lugares mais míticos e fantasmagóricos do sul... O hino de Gandembel (cuha autoria se desconhece) era cantarolado por nós, como se fosse uma espécie de talismã, mezinho ou ritual de exorcismo... Fico muito sensibilizado e agradecido ao Idálio pelo este testemunho que cala fundo na caserna dos tertulianos... Não pares de escrever, camarada! Deixa fluir as tuas memórias, como se fossem águas barrentas do Rio Balana, em plena época das chuvas. Se não fores tu, se não formos nós, os fantasmas que ainda pairam por Gandembel e Ponte Balana nunca não mais terem sossego... Vd post de Guiné 63/74 - CDII: O Hino de Gandembel

Guiné 63/74 - P769: O batalhão do 'corredor da morte' (Nuno Rubim)

Pendurado no blogue, em lista de espera, já com mais de duas semanas, tenho aqui uma mensagem do Coronel Nuno Rubim, que me chegou por e-mail do Virgínio Briote. A questão então levantada (tentativa de fixar um batalhão no 'corredor da morte' entre Gambembel e Guileje, ainda no tempo do Arnaldo Schultz) acaba por ser respondida no post a seguir, assinado pelo Idálio Reis.
L.G.

Caro Luís,

O Cor Nuno Rubim mandou-me uma mensagem que transcrevo:

"Uma das questões que para mim constituiu sempre um mistério foi a tentativa de se instalar um Batalhão no corredor de Guileje, em Gadembel, já depois de eu ter regressado ao puto. Julgo que esse projecto ainda se iniciou, mas terá sido de curta duração.

"No site do Dr. Luis Graça encontrei uma pequena referência a essa questão e enviei um email, que não teve resposta, para o endereço aí indicado.
Tem conhecimento do caso ?"

Recebeste a mensagem do Cor Rubim?
Bom regresso de férias.
Um abraço,
vb

quarta-feira, 17 de maio de 2006

Guiné 63/74 - P768: Ainda sobre os fuzilados... ou comentário ao texto do Jorge Cabral (João Tunes)


Guiné > Cartaz de proganda do Exército Português > Nós, os nossos e os outros... Foto: © A. Marques Lopes (2005)

Texto do João Tunes:

Camaradas Luís, Jorge e restantes tertulianos,

Só posso agradecer a oportunidade de poder ter lido o texto sereno, culto e frontal do nosso camarada Jorge Cabral.

O texto do camarada Jorge levanta umas quantas questões que me atrevo a comentar. Mais para conversar que para contrariar. E, se licença me é dada, aqui vai disto. Com toda a consideração para com o camarada Jorge, restantes tertulianos, sem meter em gaveta o meu modo próprio de pensar e que, humildemente, sujeito ao contraditório.

O camarada Jorge coloca, entre várias, uma questão interessantíssima vivida pela experiência convivial de todos nós, onde quer que tenhamos estado a cumprir o serviço militar no exército colonial. Refiro-me ao tribalismo versus consciência nacional na formação do povo da Guiné-Bissau.

Sabe-se que este processo, como demonstra ainda a experiência após-guerra, é longo por natureza, sobretudo pela altíssima concentração de etnias diferentes e muitas delas rivais num espaço delimitado pelas potências coloniais (provavelmente, se a Guiné-Bissau sobrou para Portugal, isso se deve à desvalorização que a França atribuiu àquele problemático e pobre pedaço).

Por outro lado, a potência ocupante (Portugal), acelerou o processo de unificação diferenciada (os fulas mantiveram-se na supremacia de aliados) para integrar a categoria de Província Ultramarina, evoluindo assim da anterior concepção colonial tout-court de conquista e ocupação e que gerou, na estratégia de alianças, a tradição da cooperação militar e repressiva portugueses-fulas. E o proteccionismo colonial-ultramarino sempre manifestado para com os fulas foi mitigado para retirar argumentos de mobilização, via rivalidade étnica, ao PAIGC que, enquadrado sobretudo por caboverdianos, tiveram os balantas como seu suporte principal de revolta. E um aspecto do nivelamento étnico próprio do colonialismo da fase da guerra, sobretudo exercitado por Spínola e pelos Chefes da PIDE, centrou-se na exploração do factor de máxima divisão comum, ou seja, contrapor o bom povo da Guiné, o da Guiné Melhor, ao mando caboverdiano instalado no PAIGC.

E isto, esta unificação perante um inimigo comum que ameaçava a supremacia de portugueses, fulas, balantas, mandingas, etc, julgo, foi o melhor que o colonialismo português, na fase da guerra colonial, conseguiu, incluindo o assassinato de Amílcar Cabral. Nunca mais que isto, como todos observámos nos vários chãos onde estivemos no terreno. E a estratégia militar portuguesa, evoluindo a partir da aliança exclusivista pró-fula, exprimiu-se na separação estanque entre os chãos das diversas etnias, delimitando áreas de conflito, concorrência e rivalidades. Que, do ponto de vista da ocupação militar, não foi, reconheça-se, obra pequena. O grosso do problema da construção, naquele mosaico étnico, de uma consciência nacional, sobrou sempre, para o PAIGC. Difícil, sempre a desafiar o impossível, como ainda hoje constatamos. Sobretudo problemática quando a autoridade do Estado se corrói e se gasta no cancro das suas impotências e atavismos de regressão tribalista.

Cada um de nós, na sua quadrícula, no seu chão, vivemos essa experiência de salamização da Guiné. Uns com fulas, outros com mandingas, outros com manjacos, outros com balantas, por aí fora. Talvez parecendo, na nossa percepção vivida, que os guineenses eram uma totalidade da etnia das tabancas em que servimos militarmente, a que nos calhou como companhia.

E foi nesse contacto, um contacto parcialíssimo pela natureza multi-étnica da Guiné, em que encontrámos os nossos amigos e camaradas guineenses que connosco apostaram, de vontade, à força ou por necessidade, no serviço pelo Exército Colonial, pela parte do ocupante. E, inevitável, a camaradagem do mesmo lado da barricada numa guerra, seja ela qual for, gera afectos e solidariedade. Como não entender isto?

No entanto, nada do que se reconhece, e tão respeitável que é, não diminui a base o problema: fomos ocupantes e tivemos, no terreno, colaboradores na ocupação. E muitos, quase todos, saímos da Guiné com o afecto que se reparte com os amigos. Os daqui e os de lá.

Feita a leitura simétrica, do ponto de vista do PAIGC, pode-se iludir que a leitura sobre o comportamento dos nossos amigos tivesse de ser forçosamente a oposta à nossa? Ao fim e ao cabo, não admitimos sequer que o indigno, reprovável, inaceitável, tratamento dado pelo PAIGC aos nossos amigos, sobretudo os vergonhosos fuzilamentos no após-independência, não foi assim tão diferente (terá mesmo sido pior?) do tratamento que aplicámos, quando fomos metralha e lei, durante a ocupação militar colonial, pelas nossas Forças Armadas e pela PIDE, aos capturados nas hostes do PAIGC e populações por eles controladas - ou se passavam para nós, mudando de campo, ou eram torturados, aprisionados e muitas vezes assassinados.

Porque não se lhes reconhecia causa e qualidade de militar inimigo, eles eram os turras, apenas turras, por isso marginais à aplicação da Convenção de Genebra. E todas as inflamadas celebrações que agora oiço à nossa histórica aversão e abolição da pena de morte, ao fuzilamento sem julgamento, ao acto em si de matar, faltaram, faltaram-nos, no momento talvez mais certo por ser o mais pedagógico e de legado civilizacional - terem sido feitas, essas mesmas celebrações, quando capturámos turras, lhes chegámos a roupa ao pelo ou, na maior parte das vezes, os entregámos aos esbirros da PIDE e à sua sanha assassina.

Mas, nessa altura, tínhamos o diáfano manto que nos cobria por sermos nós a autoridade. E o mando, sobretudo quando exercido por mão militar, não conjuga bem com o sentido de justiça e do património civilizacional? É mesmo. Pois é, ontem como depois. Ontem, os do PAIGC eram os outros. Hoje, continuam sendo nossos, os que de nos fizemos amigos no convívio e na camaradagem forjadas a combater os outros. E só nos pode indignar que os outros tenham sido patifes com os nossos. Ainda a diferença entre os nossos e os outros?

Emoção respeitável esta, mas emoção. A razão, ainda distante, talvez faça, um dia, o resto - o que falta para o equilíbrio da apreciação histórica, entendendo, então, porque estivemos ali e o que fizemos ali. E, sobretudo, porque nos custa tanto de lá sair, ou seja, tirar do aperto ao pescoço os nós dos laços das circunstâncias e das marcas da nossa juventude gasta lá, entre bolanhas e tabancas.

E hoje, velhos ou para lá caminhando, a saudade aperta, das terras e das gentes, sobretudo dos amigos, principalmente dos amigos distantes, ficando com a lágrima mais fácil, mas nem sempre a mais justa na sua repartição equilibrada pelos caminhos da memória. Lá chegaremos, confio eu. Senão, alguém lá irá ter (por nós).

Abraços amigos para todos os camaradas tertulianos.
João Tunes

Guiné 63/74 - P767: Pedido do João Carvalho, o nosso wikipedista

Guiné > Canjadude > 1974 > O furriel miliciano enfermeiro Carvalho, da CCAÇ 5, com um guerrilheiro do PAIGC, equipado a rigor e empunhando a mítica espingarda-metralhadora Kalash...

© João Carvalho (2006)

Amigos e camaradas

Venho solicitar, se mo permitirem, que me dêem uma ajuda em informações, para que as possa divulgar na Wikipédia. É uma forma de divulgar a verdade, que muitos querem ocultar ou ignorar.

Trata-se da listagem das batalhas ou operações efectuadas durante a Guerra Colonial.

Se, além do nome da batalha ou operação, me poderem fornecer uma pequena descrição do acontecimento, eu agradeço.

Claro que se alguém desejar colocar na Wikipédia a informação em vez de ma transmitir, sinta-se completamente livre para isso. Todos os colaboradores são bem vindos.

Para facilitar junto o endereço da página que precisa ser acrescentada: http://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_batalhas_de_Portugal

Quem desejar introduzir o seu próprio texto na Wikipedia e tiver alguma dúvida de como se faz, pode contatar-me por e-mail, por MSN (mesmo endereço do email) ou na minha página da Wikipedia

Agradeço antecipadamente aos camaradas.
João Carvalho
Ex-furriel miliciano enfermeiro
(CCAÇ 5 - Os Gatos Pretos, Canjadude, 1972/74)

Foto: © João Carvalho (2006)

Guiné 63/74 - P766: A contagem do tempo de tropa (António Duarte)

Texto do António Duarte, em complemento de uma mensagem anterior e em resposta a um pergunta do Manuel Cruz sobre a contagem do tempo de serviço militar para efeitos de protecção social (reforma, complemento de pensão, etc.) (1)

(Comentário de L.G.: Penso que este não é o fórum indicado para discutir os nossos problemas corporativos ou socioprofissionais, resultantes de ou relacionados com a nossa condição de ex-combantentes da guerra colonial ou do ultramar, como queiram - já não sei qual das expressões é a politicamente correcta, hoje e agora...

Em todo o caso, eu não posso nem quero impedir que, esporadicamente - e não por sistema - sejam aqui apresentados e até debatidos temas como a ajuda médica e psicoterapéutica nos casos de stresse pós-traumático de guerra ou a contagem do tempo de tropa para efeitos de reforma ou aposentação... De resto, o pessoal da caserna é quem mais ordena...Por outro lado, esta informação interessa a quase toda a gente da nossa tertúlia, com excepção dos paisanos... L.G.)


Quanto à segunda nota é de ordem prática e destina-se a responder ao Manuel Cruz, meu ex-comandante de companhia na CART 3493.

A questão da contagem de tempo para reforma dos ex-combatentes, foi uma fraude para ganhar votos. (Peço desculpa de roçar a política, mas não há volta a dar).

A legislação inicial previa a contagem do tempo de serviço militar, sendo o tempo prestado em cenários de risco ponderada a 200% (caso da Guiné), o que implicaria que a esmagadora maioria de nós teria direito a uma contagem de 5 a 5 anos e meio de tempo a contar para a reforma.

Posteriormente houve outro entendimento perfeitamente demagógico, que é o que está a ser aplicado. Quem neste momento está reformado e foi combatente recebe uma anuidade (disse bem, anuidade), à volta de € 300 a € 350. Para o efeito foram vendidas umas instalações militares com o intuito de aplicar o resultado dessa venda num fundo de pensões, destinado a suportar os pagamentos que entretanto começaram a ser pagos.

Acontece porém que o actual Ministro da Defesa já foi ao Parlamento dar nota que o fundo chegou ao fim, pois não há mais dinheiro e que importa alterar a legislação, pelo que, e segundo as últimas informações que obtive, o esquema de pagamento vai ser alterado, deixando de ser universal e só será pago a quem tenha muitas dificuldades financeiras. (De facto é uma esmola e as esmolas servem para os ricos ganharem o Céu...)

Em síntese, quem já trabalhava antes de ser incorporado, terá o seu tempo de tropa considerado mas em singelo, sem o de guerra ponderado por factores superiores a 1. Os restantes não terão direito a nada.

Ressalvo contudo que há regimes privados, como o dos Bancários que consideram o tempo todo, inclusivamente o de guerra multiplicado pelo ponderador, que poderá ser inferior a 200% (zonas de Angola, Moçambique, etc.). No entanto o ex-combatente terá de pagar, para o Fundo de Pensões associado ao Banco em causa, as importâncias que o actuário determinar, em função do salário actual e esperança média de vida do ex-combatente.

Quem quiser pode consultar os serviços citados pelo Manuel Cruz, que funcionam ainda na R. Braamcamp, junto ao Rato, em Lisboa, mas que nada dizem de concreto, limitando-se a explicar que há desentendimento entre diferentes Ministérios. O da Segurança Social só poderá considerar o tempo se foram constituídas as provisões e o da Defesa que deveria pagar, está teso.

Entretanto face ao que vai chegar na reforma da segurança social, penso que não vale a pena ter-se expectativas...

E por hoje deixo-vos com um abraço de camaradagem,

António Duarte
___________

Nota de L.G.:

(1) Vd. post de 10 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXL : Regressei bem e sem traumas (Manuel Cruz, CCAÇ 3493)

(...) "Creio que nesta matéria [contagem dos erviço militar] haverá muitas dúvidas em alguns de nós. Como estamos? No meu, no teu caso e noutros?

"Por exemplo, eu não consigo respostas do Ministério, a várias questões mesmo utilizando os meios que o Ministério da Defesa Nacional coloca ao dispor via-mail. Também existe um balcão oficial na Rua Braancamp, 90, em Lisboa, que presta esclarecimentos, mas ainda não visitei.

"Afinal, do tempo do Ultramar sempre temos os 100% de bónus em tempo ou em euros ? Algum de vós tem respostas a estas matérias?" (...)

Guiné 63/74 - P765: Foi em plena guerra colonial que nasci de novo (Padre Mário de Oliveira)

Guiné > Mansoa > 9 de Setembro de 1974 > O Furriel de Operações Especiais Ribeiro, da CCS do BCAÇ 4612, recolhe a bandeira verde-rubra, na presença de representantes do PAIGC (incluindo a viúva de Amílcar Cabral) e de autoridades militares do CTIG. Seis anos anos, o Alf Mil Capelão Oliveira fazia uma curta passagem por Mansoa, antes de ser expulso do exército, em Março de 1968.

Foto: © Eduardo Magalhães Ribeiro (2005)

Texto do Mário de Oliveira, em resposta a um convite meu para integrar a nossa tertúlia... E, a propósito, seria escusado lembrar que na nossa tertúlia ninguém censura ninguém... Podemos (e devemos, quando for caso disso) discordar, saudavelmente, uns dos outros, mas por princípio não fazemos juízos de valor, julgamentos, públicos (e sumários), e muito menos insultos... por que isso iria coortar a nossa capacidade de reconstruir o puzzle da nossa memória (individual e colectiva) da guerra, estancar os nossos fluxos, perturbar os nossos sentimentos de pertença, pôr em causa as comunalidades das nossas vivências... Tal não significa ignorar, escamotear ou esconder as diferenças que existiram, existem e existirão entre cada de um nós!...

Em suma, somos, ou esforçamos por ser, a mais plural das casernas de todas as tropas do mundo... Aqui, a haver uma regra de proibição, é a seguinte: só é proibido proibir... E o tratamento por tu, meu caro Mário, é fortemente desejável ou tendencialmente recomendável: de facto, não dá grande jeito tratar um camarada por você... Dito isto, sê bem vindo, camarada! (LG)


Meu caro Luís:

Aqui estou a responder à sua provocação. Com alegria e paz.

Foi na Guiné que os meus olhos mais se abriram. E que iniciei o meu êxodo para a Liberdade e para a Dignidade. Quem alguma vez vai a África como ser humano, nunca mais será a mesma pessoa. E que dizer então de quem foi a África para participar numa guerra contra o seu Povo?

Tomo a liberdade de partilhar com os camaradas que visitam este site e nele participam com os seus pontos de vista, o texto que escrevi sobre uma aula que, há poucos anos, fui convidado a dar sobre a guerra colonial. O texto já está publicado no meu livro Ouviste o que foi dito aos antigos. Eu, porém, digo-vos, editado pela Campo das Letras, Porto [2004]. Com ele, partilho também o meu afecto e o abraço com todos os camaradas.

Vosso, sempre
Mário

Uma aula sobre a guerra colonial que foi um escândalo

Foi um escândalo a aula que, numa certa noite, fui partilhar sobre a guerra colonial, na Universidade Popular do Porto. Convidado expressamente pelo responsável do curso, o camarada de profissão, Jorge Ribeiro, do "JN", em vez de me limitar a fazer uma viagem ao passado, tentei trazer a guerra colonial para os nossos dias.

As perguntas que formulei, as questões que levantei, rasgaram inevitável debate. Que poderia ter sido mais saudável, se os participantes no curso, mulheres e homens, mais homens do que mulheres, tivessem tido espírito de abertura e de tolerância. Assim não aconteceu. E houve quem se escandalizasse com as minhas posições e até estranhasse que eu, depois de dizer o que disse, continue a assumir-me publicamente como padre católico da Igreja que está no Porto. Felizmente, ninguém saiu da sala, enquanto partilhei os meus pontos de vista, previamente escritos. Mas não faltou quem, já em pleno debate, tivesse dito que teve vontade de o fazer. Um dos presentes chegou mesmo a dizer que, embora não concordasse com os meus pontos de vista sobre o tema, pelo menos admirava a minha coragem física e moral.

É o texto integral dessa polémica aula, que aqui apresento de seguida. Leiam e reflictam. Discutam. Até para ver se todos aqueles que, um dia, fizeram a guerra colonial, ousam, agora, olhar para ela de frente, a fim de se desencadear no país um generalizado processo de consciencialização e de libertação do nosso povo. De contrário, continuaremos prisioneiros de medos e de mitos que nos levam a obediências acríticas e irracionais, como aquela que, com o apoio da senhora de Fátima e da hierarquia católica, a generalidade do país protagonizou, não só durante os 13 anos que a guerra colonial durou, mas também durante os quase 50 anos do regime ditatorial e fascista de Salazar!


Felizmente, houve o 25 de Abril de 1974 que pôs fim a 13 anos de guerra colonial. E nos reconciliou connosco próprios e com os povos do mundo, particularmente, com os povos africanos de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau.

Mas ainda está para aparecer quem explique, suficientemente, como é que nós, um povo tendencialmente acolhedor e fraterno, ecuménico e tolerante, consentimos que nos envolvessem numa guerra colonial, em três frentes, para mais, contra povos que nunca nos tinham feito mal, que nunca nos provocaram e a quem nós, até, durante cerca de 500 anos, impunemente colonizámos, explorámos, infantilizámos, oprimimos. Como é que, depois de tudo isto, ainda nos metemos numa guerra contra eles?

Seria salutar tentarmos, todos estes anos depois e no fecundo clima da liberdade que Abril nos proporcionou, reflectir este problema, a fim de tirarmos alguma lição da guerra, em ordem a tornarmo-nos um povo mais amadurecido, mais autónomo, mais liberto, por isso, menos sujeito a ser instrumentalizado por minorias espertalhonas que sempre as há em todos os povos. E às quais convém, activamente, resistir, sempre que os interesses delas não são os das maiorias – se calhar, nunca são! – nem são os do povo de que essas minorias fazem parte.

Durante 13 longos anos, entre 1961 e 1974, aceitámos, sem revolta de maior, que os nossos filhos, na força da vida, fossem para África, lá longe, noutro continente, de armas na mão, para fazer a guerra a povos que não conhecíamos e que apenas reclamavam o direito à autonomia e independência!

Em lugar de acolhermos e satisfazermos esta legítima aspiração – outros povos, antes de nós, já o tinham feito! – aceitámos que os nossos filhos deixassem a casa, a família, interrompessem os seus sonhos e fossem combater esses povos.

Muitos encontraram lá a morte antes de tempo. Muitos outros vieram de lá gravemente feridos no corpo e na alma. E, ainda hoje, muitos milhares deles, arrastam-se por aí sobrecarregados com o estresse da guerra, sem que o Estado português, às ordens de quem todos eles se alistaram para esse feito de lesa-humanidade, se mostre, hoje, razoavelmente sensível e disposto a assumir as suas responsabilidades até ao fim.

Como se explica que tenhamos embarcado nessa aventura? Como se explica que não nos tivéssemos revoltado e resistido? Como se explica que não nos tivéssemos erguido, como um só homem, uma só mulher, contra quem, sem nos consultar, ousou dar-nos uma ordem – Para Angola, rapidamente e em força ? Como obedecemos tão cegamente, tão ordeiramente? Por que não nos opusemos? Por que não fizemos, colectivamente, o famoso manguito, tão característico do chamado Zé Povinho português? Por que nos submetemos e logo nos dispusemos a entregar os nossos filhos, os nossos maridos, os nossos pais, a esse Moloch devorador de sangue humano e de riqueza, que é a guerra, toda a guerra?

E por que é que, todos estes anos depois, continuamos tão conformados com as trágicas consequências da guerra? Por que não fazemos parar o país, para exigirmos que, concretamente, as dezenas de milhar de vítimas do estresse da guerra colonial sejam tratados como gente, sejam tratados com equidade e justiça? Por que consentimos, tão facilmente, que o Estado português continue a ser um estado prepotente, sobranceiro, irresponsável? Por que permitimos que ele nos trate com tanta sobranceria e tanto desprezo?

Não esperais, certamente, que vos traga respostas acabadas para todas estas perguntas, para todas estas questões. De resto, nem é esse o tema desta nossa conversa, esta noite.

Ainda assim, gostaria de partilhar convosco alguma luz e projectá-la sobre estas questões que levantei. É que, também eu estive na guerra colonial. Pouco tempo, é certo, mas estive. Apenas quatro meses, no termo dos quais, fui expulso, sem qualquer julgamento prévio.

Estive na guerra colonial, já ela estava em marcha, em três frentes. Estive entre Novembro de 1967 e Março de 1968. Por isso, também eu tenho o dever de reflectir estes problemas. Não só levantar estas interrogações, mas contribuir para se encontrar possíveis respostas.

Acordei para a Guerra Colonial, quando, em 1967, fui chamado ao Paço episcopal do Porto - tinha então 30 anos de idade e cinco anos de padre, na Diocese, e era professor de Religião e Moral no Liceu D. Manuel II - para ser informado, de viva voz, pelo Bispo-Administrador Apostólico, D. Florentino de Andrade e Silva, de que o meu nome já tinha sido enviado para Lisboa, pelo que, em breve, iria ser chamado a frequentar um curso de capelães militares, na respectiva Academia Militar!

Não me perguntou o Bispo se eu estava disposto a ir, se tinha alguma coisa a objectar. Não me consultou. Apenas me informou e deu-me a ordem de marcha. Como se a Igreja fosse um enorme quartel, onde a generalidade dos seus membros apenas obedece, cumpre ordens dos superiores, auto-apresentados como infalíveis, como donos da verdade, como rostos visíveis de Deus, senão mesmo, o próprio Deus na terra.

A verdade é que eu, nessa altura, embora ficasse mudo de espanto e como que apunhalado no peito, não ousei sequer contradizer o Bispo. E lá fui para a Academia Militar, com mais umas dezenas de outros padres do país, pelos vistos, todos mais ou menos incómodos, por razões as mais diversas, nas respectivas dioceses.

Ao fim de cinco semanas de curso intensivo, fui dado como apto e parti para a Guiné-Bissau, a fim de me integrar, como alferes capelão, no Batalhão 1912, que já operava militarmente em Mansoa, a 60 kms de Bissau.

Hoje, também eu me pergunto: Como é que isto foi possível? Como é que eu nem sequer me lembrei de formular objecção de consciência? Como é que fui logo obedecer a semelhante ordem?

Aconteceu comigo o que aconteceu com a generalidade do país. A mim, o Bispo mandou e eu obedeci. Aos outros portugueses, o Estado/Governo mandou e eles obedeceram. Salvas as muitas e honrosas excepções, de quantos fugiram, desertaram, deixaram o país, por muitos anos, para não terem de ir à guerra. Alguns, por medo ou covardia, a maior parte por convicção. Estavam mais politizados e não suportaram ser cúmplices do crime de lesa-humanidade que é toda a guerra colonial.

Se pensarmos bem, estará aqui uma razão, uma forte razão que ajuda a entender por que foi possível a guerra colonial.

Durante séculos, praticamente, os oitos séculos da nossa História, desde 1143 até aos nossos dias, mais propriamente, até ao 25 de Abril de 1974, fomos educados para obedecer. Ou obedecer, ou mandar. Quem não fazia parte das minorias que mandavam, integrava as maiorias que obedeciam, que tinham de obedecer.

Fomos educados para obedecer. Aos superiores. Legítimos superiores, dizia-se. Só que, lá, onde há superiores, tem de haver inferiores. Lá, onde há hierarquia, há fatalmente súbditos: Há opressão. Há subserviência. Há infantilismo. Há menoridade. Há desigualdade. Como tal, não é possível a fraternidade/sororidade.

Deveríamos ter sido educados para a liberdade, para crescer como pessoas, para a responsabilidade, e educaram-nos para a obediência. Deveríamos ser gente adulta, autónoma, responsável, habituada a enfrentar e a responder aos problemas de que é feita a vida, mas fizeram de nós súbditos, pequeninos, infantes. Um Portugal de pequeninos. Por isso, marionetes. Executantes da vontade de outrém. Anti-cidadãos!

Fomos, desde nascença, como país, um povo dominado pelo clero/padres e pelos nobres/burgueses. Nascemos à sombra da cruz e da espada, do trono e do altar. Se não nos submetíamos pela pregação terrorista, pela catequese ameaçadora do clero, pelo medo de Deus e do inferno, submetíamo-nos pelo medo da espada.

A República, em 1910, cortou, interrompeu este fado! Pôs fim a este ciclo de opressão de oito séculos. Mas veio logo a seguir a senhora de Fátima (1917) e, anos depois, o Estado Novo. Ficamos pior do que antes. Sob o domínio de Salazar e do cardeal Cerejeira. Da Pide e dos senhores abades.

É neste longo interregno, nesta longa noite do fascismo, que acontece a guerra colonial. Quando o povo ainda não era povo. Quando a liberdade ainda não tinha passado por aqui e era coisa proibida. Quando ser homem/ser mulher, ser cidadão, era crime. Quando só a subserviência e a obediência tinham voz e vez.

Abril de 1974 foi, por isso, o dia do nosso Natal e da nossa Páscoa, como povo. Nascemos e ressuscitamos para a liberdade e para a festa.

Nesse dia, como não podia deixar de ser, a guerra colonial acabou! Um povo que se liberta para a liberdade é incapaz de se alistar e de fazer alistar os seus filhos para a guerra contra povos que apenas queriam a autonomia e a independência.

Nesse dia, em vez de armas e balas, corremos a distribuir cravos vermelhos. Em vez de guerra, fizemos paz. Em vez de semearmos morte e mais morte com os nossos braços e as nossas mãos, abraçamos os povos africanos e descobrimo-nos irmãos.

Entretanto, hoje, todos estes anos depois de Abril de 1974, que fizemos da liberdade conquistada? Somos capazes de gritar, Guerra nunca mais, paz sempre? Guerra nunca mais, Direitos Humanos sempre? Ou voltamos a ter saudades do passado e medo do futuro? Ousamos ser cada vez mais responsáveis, autónomos, senhores dos nossos destinos, ou suspiramos pelo regresso de Poderes autoritários?

Como se explica, então, que, depois de Abril 74, continuemos a alimentar seitas/novas religiões/novas igrejas? Como se explica que continuemos a sustentar uma Igreja, como aquela de que sou membro, a Igreja católica romana, com tantos privilégios? Como se explica que, concretamente, continuemos a tolerar a existência duma Concordata entre a Igreja católica e o Estado português, que vem desde 1940, desde o fascismo? Como se explica que continuemos a alimentar Fátima e a sua senhora vampiresca que, com o seu paleio moralista nos leva a carteira e, sobretudo, a dignidade, a ponto de nos fazer andar de rastos no seu santuário? Como se explica que continuemos a dar do nosso dinheiro para ajudar a erguer basílicas de seis milhões de contos, onde, depois, o clero - certo clero - nos oprime e ameaça, quando nem sequer temos, a maior parte de nós, casas decentes e espaçosas para viver?

Há algumas dezenas de anos, em plena noite do fascismo, levaram-nos a fazer uma guerra colonial em três frentes de África. Felizmente, aconteceu Abril de 1974 e, com ele, a liberdade e o fim dessa maldita guerra. Foi um gigantesco passo em frente que demos, como povo. Porventura, o maior da nossa história de oito séculos.

Do que se trata, agora, é de seguir em frente. Nunca mais voltar atrás. Como diz a canção: "Somos um povo que cerra fileiras / parte à conquista do pão e da paz / somos livres, somos livres / não voltaremos atrás".

Contudo, as minorias espertalhonas não desapareceram. Nem desistiram. Hoje, estão de volta. Com falinhas democráticas.

Amolecer no combate pela nossa autonomia e independência, é morrer. Até porque com senhoras de Fátima (a original é uma senhora cega, surda e muda, que se reproduz por uma espécie de clonagem e, por isso, consegue aparecer como uma maldição geradora de medo em todas as igrejas paroquiais do nosso país e em muitas casas de família, mesmo do estrangeiro), não vamos a lado nenhum, ou vamos, mas para o abismo. Lá diz o ditado popular: Fia-te na virgem e não corras, verás o tombo que levas.
Por mim, foi em plena guerra colonial que nasci de novo, do Alto, do Espírito. O meu 25 de Abril aconteceu em Mansoa, exactamente, no dia 1 de Janeiro de 1968. Abriram-se-me os olhos (da consciência). Percebi a engrenagem em que estava metido. E da qual até era funcionário privilegiado.

Recusei o prato de lentilhas que me ofereciam. Escolhi a liberdade. A responsabilidade. A cidadania. Escolhi ser homem, em lugar de funcionário eclesiástico.

A guerra e os homens da guerra não me perdoaram e expulsaram-me, a toda a pressa, sem qualquer julgamento prévio. E, pela boca de um deles, o então bispo castrense, D. António dos Reis Rodrigues, ditaram a sentença: "padre irrecuperável".

Mal sabiam eles que esse foi o primeiro dia do resto da minha vida!