Guiné > Zona Leste > Contuboel > A
dolce vita dos dois primeiros meses de comissão (1)... Luís Graça (CCAÇ 2590 / CCAÇ 12) e Renato Monteiro (CART 2479 / CART 11), em passeio pelo Rio Geba, em Junho de 1969.
Foto do arquivo pessoal de ©
Luís Graça (2005)
Tenho este texto guardado, há um ano, com uma enorme gana de o publicar... Não o fiz por respeito à vontade (tácita) do seu autor, que eu conheço de Contuboel, dos brevíssimos meses de Junho e Julho de 1969, e de quem perdi depois, completamente, o rasto (mas não o rosto)... O rosto vim a reconhecê-lo na contracapa de um livro: enfim, uma estória singela de encontros e desencontros já aqui evocada no post anterior...
O Renato, que faz parte da nossa tertúlia, ainda não disse quem era: dei-lhe um tratamento de privilégio... Mas já agora ficam a saber mais alguma coisa sobre o misterioso
homem da piroga:
Embarcou para a Guiné em 18 de Fevereiro de 1969, fazendo parte da Cart 2479 / BART 2866... Passou por Contuboel (Junho/Julho)(1) e Piche, acabando por mudar de companhia, por
motivos disciplinares... Sem entrar em detalhes, por razões de confidencialidade e respeito pela privacidade do meu amigo, julgo que caso destes não eram tão raros quanto isso no nosso tempo... Já aqui o João Tunes falou do caso dele (2)... A
porrada valeu ao Renato a mudança de companhia: foi colocado no Xime e depois no Enxalé, na
CART 2520 (1968/70)... Por pouco tempo, já que o paludismo apressou-lhe o fim da comissão: evacuado do Hospital 241 foi transferido para o HMP, em Lisboa, em 4 de Setembro de 1969.
Tudo para justificar a quebra de um compromisso e dar a conhecer, ao resto da tertúlia, mais um camarada da Guiné, com uma históira de vida e uma sensibilidade singulares, um homem
desalinhado como eu, e sobretudo que sabe oôr em palavras muito daquilo que sentimos e vivenciámos na tropa e na guerra, ou não fosse ele um poeta e um artista. O Renato vai-me perdoar por lhe retirar um pouco do seu mistério... (LG)
Texto do
Renato Monteiro (ex-furriel miliciano, CART 11, Contuboel e Piche, 1969/ CART 2520, Xime e Enxalé, 1969):
Diga se me ouve, escuto!
Amigo Luís:
Apesar dos inúmeros apagões (alguns intencionais) sobre o capítulo da minha história (desde o embarque ao regresso), tenho a ideia de, nesse tempo, ser sempre dos últimos a chegar à formatura. A falta de pontualidade acabava sempre por constituir motivo sério de repreensão (inúmeras vezes repetida) pelo Comandante da Companhia: -- Ó Monteiro, um dia destes, dou-lhe uma porrada”.
É bem provável que te recordes do sujeito: um tipo excessivamente baixinho, que nunca foi capaz de fazer uma meia volta - volver sem criar a impressão de mover-se numa matéria adesiva, impedindo a rotatividade livre dos calcanhares e por filtrar as sílabas e as vogais através do cornetim nasal, em vez do uso comum das cordas vocais quando comunicava com o pessoal...
Não vale a pena adicionar, a estas, outras características inerentes ao sujeito para perceber como, a partir de certa altura, o regime, com um número cada vez mais insuficiente de
quadros permanentes não teve outro remédio senão mandar para as urtigas os manuais de selecção de pessoal para as três frentes... Em determinada fase do campeonato, os recursos humanos deixaram de se preocupar com a questão dos perfis: servia qualquer um.
Como não alterei, em nada, esta inclinação espontânea para o desalinho,
acabei por propiciar o cumprimento da promessa nasalada do capitão, cedo demais, em Piche, para onde fôramos transferidos.
Após 10 diz de detenção domiciliária, em situação de incomunicável, acabei por ser recambiado para o
Xime, com um grande sentimento de luto, sobretudo em relação aos africanos do meu pelotão (com quem trocava imensas estórias) para além de me ver afastado do companheirismo de um ou outro camarada, especialmente do Furriel Cunha (mais conhecido por Canininhas) que, tendo sensivelmente a mesma estatura da do capitão, não era tão baixinho quanto aquele!
Natural do Barreiro e filho de um palhaço, herdara do pai um grande humor (que muito ajudou a contrariar a propensão para uma revolta amarga que me deixava a falar sozinho) sendo, ainda, dotado de uma aptidão fora de série para tocar qualquer instrumento. (Hoje não faz outra coisa do que andar pelo país fora, a concertar orgãos e pianos gripados...). Desde a aterragem no Aeroporto da Portela (1969) vi-o apenas três vezes: uma com o propósito de me facultar o Diário da Companhia ( a CART 2479); outra para me ceder algumas fotos tiradas por si na Guiné (algumas das quais figuram na Fotobiografia) e uma outra a pretexto de beber um copo...
Seguramente que a personalidade do Canininhas, vertida para a literatura, não careceria de muita elaboração ficcional, bastando quase só transcrevê-lo... E, pergunto-me se não terá sido ele o autor da foto da
Piroga do Geba, já que uma das suas fixações era, para além de perfilhar uma gazela (!), adquirir uma câmara fotográfica...
Como tu, é difícil recordar o terceiro camarada que se encontrava connosco e a quem , afinal, se fica a dever este inesperado reencontro entre nós e, com uma certa memória de mim próprio...
Ao contrário da maior parte das pessoas que conheço (e crê, não me vanglorio desta particularidade) nunca mais cuidei em revisitar os antigos companheiros... Sequer os que integravam a Companhia sediada no Xime que incorporei.
Salvo os graduados, a maior parte era constituída por malta recrutada no Alentejo, tendo como comandante um homem com quem apenas troquei duas ou três brevíssimas conversas, uma das quais em torno de livros que líamos e autores que apreciávamos.... Igualmente miliciano, de formação católica, de quando em quando, procedia a uma breve cerimónia no centro da parada, junto a um padrão ou coisa do género, onde lia umas passagens da bíblia a muito poucos (meia dúzia ?) de soldados que, voluntariamente, o acompanhavam...
Ao que julgo, era professor de Química e, apesar de não recordar o seu nome (imagina, como trabalhei para a evaporação destas memórias) conservo dele a
melhor das lembranças... Aceitava pacificamente a minha tendência para o
desalinho (se é que dava por isso) e eu respeitava-o.
A partir do Xime, como sabes, a par das incursões que se faziam em direcção (por vezes mais aparentes do que efectivas) às bases ou acampamentos dos
Turras (devidamente assinalados no
mapa da tua página), mantínhamos um contacto regular com Bambadinca para o reabastecimento logístico.
Guiné-Bissau > Zona Leste > Estrada Xime - Bambadinca > 1997 > Ponte do Rio Undunduma. A segurança desta ponte era vital para as NT. Ficava a 4 km de Bambadinca e a 7 do Xime. No célebre ataque a Bambadinca, em 31 de Maio de 1969, a guerrilha tentara dinamitá-la. Desde Junho de 1969 a ponte era defendida por 2 secções da CART 2520 (Xime) e, mais tarde, por um Gr Comb da CCAÇ 12 (a partir do final do ano de 1969), alterando com o Pel Caç Nat 52, comandado pelo Alf Mil Beja Santos (transferido de Missirá para Bambadinca em Novembro de 1969, sendo substituído em Missirá pelo Pel Caç Nat 54, do Allf Mil Correia). Havia apenas abrigos individuais, extremamente precários: bidões de areia com cobertura de chapa de zinco, e valas comunicando entre os abrigos individuais.
Foto: ©
Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá, professor primário em Bambadinca, em 1997)
A Ponte de Rundunduma, próximo daquela aldeia (e que se encontra igualmente ilustrada na tua página), foi ocupada inicialmente pela secção de que fazia parte.
No dia em que lá chegamos, a preocupação prioritária foi a de cavar uma vala, vertiginosamente, operação deveras penosa mercê da dureza do terreno, e de no dia seguinte tratarmos de construir uns frágeis abrigos, com os usuais bidões, enchidos com pedra e areia cobertos por folhas de zinco.
Imaginarás como nos sentíamos tão vulneráveis, sobretudo à noite, face a uma hipotética investida do IN. A expectativa de sermos atacados, com os parcos dispositivos de defesa e o reduzido número de homens que dispúnhamos, causava-nos uma grande intranquilidade... Alturas houve em que apenas dormitava durante o dia, por temer a probabilidade de virem a incomodar-nos de noite, estando ainda por perceber a que razão de não nos terem visitado... Ora, para serem bem sucedidos, nem precisariam de grande ousadia!
À volta do rio, nos charcos, o insistente coaxar das rãs era-me tão insuportável que a custo simulava junto da Guida a irritação que me provocava o pitoresco e pacífico som daquelas sujeitas quando, mais tarde, as surpreendíamos nos lagos do nosso namoro!
Apesar de partilhar com os demais aquele sentimento permanente face à iminência das emboscadas e flagelações aos aquartelamentos (que acabaram episodicamente por suceder) onde me senti, apesar de tudo, menos desconfortável (se assim posso dizer) foi no
Enxalé, para onde fui destacado.
Aí, tive a oportunidade de retomar o contacto com as comunidades africanas, balantas e mandingas, que coabitavam, paredes meias, com o destacamento. Através da leitura recente que fiz a registos dessa altura, soube (para minha surpresa) que cheguei a ter perto de cem alunos aos quais procurava ensinar a falar e a escrever a língua portuguesa utilizando como espaço lectivo um antigo armazém de um colono, que se pôs em fuga no início da Guerra...
Mas o pior de tudo foi ter sido incumbido de gerir a logística e de me ver obrigado a aplicar as formas de camuflar o saldo negativo que ingenuamente (?) herdara do camarada anterior, enquanto aguardava, ansiosamente, pela nossa transferência para a Ilha de Bissau, onde viria a ser internado no Hospital com uma infecção que me proporcionou o regresso, dois meses antes do previsto, a Lisboa.
Logo no início desta longa resenha falava-te da falta de pontualidade em chegar às formaturas. Amigo Luís, essa lacuna mantém-se até hoje. Não apenas em relação às coisas que se comparam com a seca das formaturas, mas também com as que envolvem prazer, como o simples acto de responder-te...
Em parte, este deixar para amanhã o que deve ser feito logo, prende-se com a falta de tempo ou, melhor dito, com a forma como o ocupo...
Disso te darei notícia, tão breve quanto possível, aproveitando para responder às tuas últimas palavras.
Um grande abraço,
Renato
Lumiar, 28 - 7- 05
__________
Notas de L.G.
(...) "O que eu observo, sob o frondoso e secular poilão da tabanca, é uma típica cena rural: (i) as mulheres que regressam dos trabalhos agrícolas; (ii) as mulheres, sempre elas, que acendem o lume e cozem o arroz; (iii) as crianças, aparentemente saudáveis e divertidas, a chafurdar na água das fontes; (iv) os homens, sempre eles, a tagarelar uns com os outros, sentados no bentém, mascando nozes de cola…
"Em suma, um fim de tarde calma numa tabanca fula de Contuboel que daria, em Lisboa, uma boa aguarela, para exposição no Palácio Foz, no Secretariado Nacional de Informação (SNI).
"E, no entanto, o seu destino, o destino destes homens, mulheres e crianças fulas, já há muito que está traçado: em breve a guerra, e com ela a morte e a desolação, chegará até estas aldeias de pastores e agricultores, caçadores e pescadores, músicos e artesãos, místicos e guerreiros…
"O chão fula vai resistindo, mal, ao cerco da guerrilha. De Piche a Bambadinca ou de Galomaro a Geba, os fulas estão cercados. Mas por enquanto, Bafatá, Contuboel ou Sonaco ainda são sítios por onde os tugas podem andar, à civil, desarmados, como se fossem turistas em férias!
"Contuboel é ainda um oásis de paz, com um raio de uns escassos quilómetros" (...).
Texto delicioso onde relata as noites, chatas p'ra burro, em que era obrigado a jogar king com o seu comandante, o tenente-coronel Romeira; as bravatas sexuais dos tugas; e a porrada que apanhou por recusar bater num cabo de transmissões sob o seu comando, porrada essa que o levou do Pelundo até ao Catió.