Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 27 de junho de 2006
Guiné 63/74 - P916: A propósito da carta do Beja Santos a Alcino Barbosa (Carlos Vinhal, CART 2732, Mansabá)
Camaradas,
Depois de ler a Carta a Alcino Barbosa, da autoria do nosso camarada Mário Beja Santos (1), não posso deixar de fazer algumas considerações.
Depois de ler alguns dos os textos que compõem o já valiosíssimo Blogue do nosso Luís, concluo que da guerra da Guiné pouco conheço. Estive 22 meses no mato, mas pelas estórias que me chegam, acho que estive num hotel de 5 estrelas e os contactos que tive com o IN, mais não foram que quezílias entre má vizinhança..
Mais, a guerra vista e sentida por aqueles que fizeram parte de Companhias Nativas (tropas especialistas ou não) foi diferente daqueles que, como eu, fazendo parte de companhias do continente e/ou Ilhas, teve poucos contactos com os autóctones. O carinho com que falais dos vossos nharros é comovedor. A maior parte de vós tem isso em comum e eu sinto-me um pouco estranho.
Não conheci muitos militares tão aguerridos como o camarada Beja Santos, pelo pouco que ainda li dele, mas sei que havia militares graduados (e não só) que, talvez tendo uma visão e percepção particulares daquela guerra, actuavam como se de si próprios dependesse a solução da mesma. Comandar, ou mandar, sempre foi complicado e sempre acarretou responsabilidade e custos de ordem moral. À primeira vista, Beja Santos demonstrou no passado alguma distanciação em relação ao militar Alcino Barbosa, de quem nunca mais soube, e ao senhor Jesuíno Inácio Jorge, a quem nunca visitou. Coisas que ainda pode resolver.
Gostava que o camarada Beja Santos ou algum de nós, com lucidez e distanciamento suficiente, fizesse uma análise ao nosso comportamento colectivo na Guerra Colonial, enquanto jovens militares. Cumprindo o serviço militar obrigatório, foi-nos imposta uma guerra da qual não quisemos ou não conseguimos fugir.
Deixo a minha ideia à consideração geral, principalmente àqueles que, por mais formação ou especialização, lhe queiram dedicar algum tempo.
Carlos Esteves Vinhal
Leça da Palmeira/Matosinhos
Telemóvel 916032220
Comentário de L.G.:
1. Carlos: Obrigado pela tua interessantíssima questão (ou questões).
2. Não há duas guerras nem duas classes de guerreiros: tirando a "guerra do ar condicionado", só havia uma guerra, um único teatro de operações, e todos nós - tropa-macaca, branca ou preta, e tropa especialista - e a fizemos e sofremos, fomos actores e fomos vítimas...
3. Eu tenho muito respeito pelos militares das unidades de quadrícula que viveram 21 meses ou mais em estado de sítio, em muitos casos... Muitos deles têm mais marcas, no corpo e na alma, do que a malta nas unidades ditas de intervenção...
4. A questão que levantas e que pões ao Beja Santos, é um desafio, delicado mas estimulante, e que não uma resposta única: por que é que alguns de nós, muitos de nós, milicianos e soldados do contingente geral, nos batemos galhardamente contra o PAIGC, "contra a nossa própria guerra"... Posta a coisa em termos ainda mais crus: por que é que os oficiais e sargentos milicianos se substituiram, durante muito tempo, aos oficiais e sargentos do quadro permanente...
5. Vamos discutir estas questões, se assim o entenderem, com serenidade e honestidade intelectual, mas sem ressentimentos nem espírito de polémica, porque isto é fracturante... De qualquer modo, não há tabus entre nós, espero bem... (LG)
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Nota de L.G.
(1) Vd. post de 24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P904: SPM 3778 ou estórias de Missirá (3): carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade (Beja Santos)
Vd. também posts relacionados com este episódio da mina com emboscada, ocorrido em 16 de Outubro de 1969:
24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P905: A morte na estrada Finete-Missirá ou um homem com a cabeça a prémio
26 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P911: Uma mina para o 'tigre de Missirá'
Guiné 63/74 - P915: Saudação ao Beja Santos e aos 'baixinhos' de Dulombi (Paulo Raposo)
Oh tempo, dá sinais de ti, rapaz, e aparece, contamos contigo [no dia 1 de Julho de 2006, no Grande Encontro da 2ª Incorporação, de 10 de Abril de 1967, do Curso de Oficiais Milicianos, EPI, Mafra]
Os baixinhos do Dulombi que continuam em excelente forma física, mas apanhados do clima, assim como tu.
Leonel de Carvalho e Madaíl vão para a Alemanha ver a bola, escreveram, no entanto, que muito lamentam não estarem presentes.
Um forte abraço do
Raposo
O Rei Almançor de Montemor
Paulo Lage Raposo
Alf Mil Inf
BCAÇ 2852 / CCAÇ 2405
Guiné 68/70
Telefone 266898240
Herdade da Ameira
7050 Montemor O Novo
PS - Este rádio segue em claro pois o cripto mais uma vez apanhou outra cadela ontem à noite e diz que lhe dói muito a cabeça. Já não tenho mão naquele desgraçado.
segunda-feira, 26 de junho de 2006
Guiné 63/74 - P914: As emoções de um regresso (Paulo Santiago, Pel Caç Nat 53) (1): Bissau
Foto: © Paulo Santiago (2006)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Finais de Março de 1972. "Perto da foz do Cantoro, minutos antes de um terrível ataque de abelhas" (PS).
Foto: © Paulo Santiago (2006)
Guiné > Zona leste > Sector L1 > Bambadinca > 1971 (?) > "Noite de copos em Bambadinca. Estou de camuflado, o Alf Machado à civil. Penso que os soldados são da CCS [do BART 2917]" (PS).
Foto: © Paulo Santiago (2006)
Guiné-Bissau > Jugudul > Fevereiro de 2005 > O Paulo Santiago, à esquerda, com o Ten Ká da Guarda Fiscal e o Sado, oficial superior da mesma força e "meu grande amigo". Foto tirada junto à rotunda, em Jugudul.
Foto: © Paulo Santiago (2006)
Guiné-Bissau > Região de Bafatá > Bambadinca > Fevereiro de 2005 > Com os meus antigos soldados Bubacar e Mamadú, estando abaixado o filho do meu soldado Iero Seidi, já falecido.
Foto: © Paulo Santiago (2006)
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Texto do Paulo Santiago (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 53, Bambadinca, 1970/72), actualmente residente em Aguada de Cima, Águeda, um dos melhores sítio do mundo para se comer leitão...
Luís:
Vou procurar descrever a minha visita à Guiné, feita juntamente com o meu filho João Francisco. Era para ter sido feita em 1998, devido à guerra teve de ser adiada.Esteve progamada para várias datas juntamente com alguns camaradas da CCAÇ 2701, mas chegava a hora e por qualquer motivo havia adiamento. Em Janeiro de 2005 convidei o João, tinha 20 anos,para ir comigo. Acedeu e marquei viagem para a semana de Carnaval.
Em 4 de Fevereiro, após uma noite mal dormida,imaginando o que iria encontrar,embarcámos às 8 horas no voo da TAP com destino a Bissau. Gosto pouco de andar de avião, mas aquelas horas de voo passei-as muito bem.
Quando começou o sobrevoo da Guiné a emoção começou a apoderar-se de mim...tinham-se passado 33 anos. Quando assomo à porta do avião sobe-me às narinas aquele cheiro de que tinha tantas saudades. Como gosto daquele aroma e como o tinha guardado no meu intimo. Na pista tinha à minha espera o meu amigo Sado,oficial superior da Guarda Fiscal, que por motivos de saúde vem várias a Portugal, dando-me o prazer de ficar em minha casa e que trata a minha mãe por avó.Dirigimo-nos à sala de desembarque, onde está uma senhora, vim a saber da segurança,com um papel com inscrição Santiago. Tinha sido um pedido da Residencial Coimbra onde iríamos ficar. O Sado e a senhora encaminharam-nos pela saída diplomática. Senti-me importante. Havia dois carros para nos levarem: um da Residencial e outro do Sado. Vim no da Residencial e o meu filho com o Sado.
Durante o percurso corria-me um filme na cabeça, passado nos anos de 1970/1972. Acordo, está ali o Poilão de Brá e toda aquela confusão, que não existia no nosso tempo de jovens, que é o Mercado de Bandim. Chego à Residencial Coimbra, na casa Nunes e Irmão, perto da Catedral, oferecem-me um Gin, mas quero é ir para a rua, ver pessoas, ver locais.
Guiné-Bissau > Bissau > 2001> Restaurante Lusófono, junto ao Aeroporto de Bissau... Em primeiro plano, o Dr. Vilar, à esquerda, e o David Guimarães. O Dr. Vilar foi alferes miliciano médico do BART 2917 (Bambadinca, 1970/72) e, como tal, também foi médico do pessoal da CCAÇ 12 (Bambadinca, 1969/71).
Foto: © David J. Guimarães (2005)
Vimos para a rua, o Sado foi para o serviço, venho eu e meu filho. As pessoas cumprimentam-nos (Boa Tarde),e eu emociono-me,estou num País estrangeiro e cumprimentamo-nos como se eu estivesse aqui, em Aguada. A Língua que nos une é um bem valioso.
Passamos em frente à Catedral, ao antigo edifício dos CTT, ainda com estas iniciais, ao ex-BNU, ao local onde existiu o Bento, agora edifício da Televisão, chegamos ao porto onde desembarquei do Alfredo da Silva. Regressamos passando pelo sitío onde ficava o Pelicano, o Pintosinho, flectimos para passar junto à Amura, regressando à Residencial para beber calmamente um Gin Tónico.
À noite, com o meu filho, fomos jantar a um restaurante em frente ao Grande Hotel, ruas sem luz, as pessoas a darem as Boas Noites, sem sentirmos qualquer insegurança.
Foi assim o meu primeiro dia em Bissau após Agosto de 1972. Continuarei a contar-te, em próximas mensagens, os restantes dias.
Um abraço
Paulo Santiago
(ex-Alf Mil Pel Caç Nat 53, 1970/72)
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Nota de L.G.
(1) Sobre o Polidoro Monteiro, vd. posts de:
18 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLVIII: Estórias cabralianas (4): o Jagudi de Barcelos
(...) Dos quatro Comandantes de Bambadinca que conheci, apenas o Polidoro Monteiro me mereceu consideração. Dos outros nem vou dizer o nome, e de dois a imagem que guardo é patética (...) (Jorge Cabral]
29 de Abril de 2005 > Guiné 69/71 - IX: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (1)
(...) No ano passado esteve connosco o Major (Coronel Aposentado) Anjos de Carvalho... Vamos ver se este ano vem também o [major de operações] Barros e Bastos... O Polidoro Monteiro e o Magalhães Filipe já faleceram. O Polidoro Monteiro, sim, operacional, como tu dizes e bem, sempre o foi...
"Quanto ao Vilar fácil será encontrá-lo, Psiquiatra Marques Vilar, vais dar a ele [em Aveiro]...Poderei arranjar a direcção dele, fica descansado" [David Guimarães].
26 de Maio de 2005 > Guiné 69/71 - XXVI: A malta do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole (6)
(...) Um dia o Comandante do BART 2917, já na sobreposição, apareceu no Xitole. O Luís Graça e o Humberto Reis conheciam-no. Era o Tenente Coronel Polidoro Monteiro... Conto-vos uma peripécia passada com ele. Perguntava eu, bem perfilado, ao Polidoro Monteiro:
- Meu comandante, a nossa missão é ir ensinar o caminho a esta gente...Proponho que ensinemos o início dos caminhos por onde passamos tantas vezes....Resposta:
- Vai-te foder, seu caralho, quero que lhes ensinem a toca....Deu em riso, como é evidente... [David Guimarães]
Guiné 63/74 - P913: Empada 1969 ou as duas Guinés (Zé Teixeira, CCAÇ 2381)
Foto: © José Teixeira (2006)
Texto enviado pelo José Teixeira (ex-1º cabo enfermeiro Teixeira, da CCAÇ 2381, Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70):
Luís
Saúde, paz e felicidade para ti e para os teus.
Fui buscar um texto à história da minha Companhia que, creio, poderá dar uma visão realista da situação política, social e económica da Guiné resultante da evolução da guerra, no ano de 1969.
Os dados populacionais referenciados foram possíveis, creio eu, devido ao facto de os militares da minha Companhia se terem revoltado contra o Chefe de Posto, por este ter castigado o Kebá, por falta de pagamento de imposto do "pé descalço" e ter sido substituido pelo Comandante da Companhia, Capitão Moutinho Santos. (História já aqui contada no blogue) (1). Houve assim acesso aos dados registados sobre a população civil.
Um antigo combatente que viveu o drama de Guileje falava-me há tempos das zonas vermelhas, isto é, das áreas marcadas no mapa a vermelho, onde era vedada a penetração das nossas forças e, se por acaso ou erro lá fossem parar, deviam de imediato avisar o Comando-Chefe, pois o risco de serem considerados IN era elevado.
Situação resultante da partilha do terreno nos primeiros tempos da guerra, em que os régulos eram convidados a aderir às nossas posições ou a tornarem-se IN com as consequências que adivinhamos.
Quer dizer, havia duas Guinés, a nossa e a dos outros. Quem está de acordo comigo ?
Já agora gostaria que alguém me explicasse melhor esta história.
Um abraço
Zé Teixeira
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INIMIGO
Para melhor se compreender a actual [fins de 1969] situação do IN na região de Empada, torna-se necessário, ainda que sucintamente, estudar a evolução do desenvolvimento da subversão desde o seu início, até hoje. Para isso foi lida e estudada toda a documentação existente na Unidade, além de serem ouvidos os elementos da população de há muito radicados em Empada e que foram protagonistas ou pelo menos testemunhas dos factos.
Assim, logo que eclodiu o terrorismo através de vicissitudes e peripécias várias - destruição de nossa parte, das tabancas que apoiavam o IN; destruição das tabancas que nos apoiavam, por parte do IN - , os campos foram–se a pouco e pouco extremando, refugiando-se a população que nos era favorável em Empada e arrebantando o inimigo para fora do nosso alcance as restantes populações, as quais se refugiaram e organizaram nas zonas da Península da Pobreza, Dassalame, Aidará, Cã Beafada, e Cã Balanta.
Constatando-se que a área do sub-sector coincide em linhas gerais, com a do posto Administrativo de Empada, fácil nos é apreciar, recorrendo aos arrolamentos existentes, antes da subversão, verificar a situação desfavorável em que ficamos.
Assim, segundo dados de 1963 o número de contribuintes era de 2.388 e o total de habitantes com mais de 16 anos era de 8.827. Actualmente existem do nosso lado 437 contribuintes, sendo o número de habitantes, das condições anteriorenente expressas, de 1.354. Verificamos assim que apenas 1/7 dos contribuintes e 1/7 da população ficaram controladas por nós. Por outro lado, embora a área efectivamente patrulhada pela Unidade seja de 1/3 da área total, verifica-se que o IN, se refugiou nas zonas agricolamente ricas e onde pode facilmente subsistir e apoiar outras regiões.
Numa segunda fase, coincidente com a estadia da CCAÇ 1423, o IN procurou a todo o custo desalojar a população que apoiava a tropa (1) forçando-a, ou ir para o mato, ou a procurar refúgio em Bolama ou Bissau. Os ataques de grande violência sucediam-se causando vítimas entre a população civil que chegou a pedir às autoridades para se refugiar em Bolama.
Num dos ataques chegou a penetrar na povoação, sendo repelido com duas perdas. Para isso muito contribuiu um 1º cabo que com a bazooka calou 3 metralhadoras ligeiras. Num outro ataque o IN apresentou-se com canhões sem recuo, morteiros médios, metralhadoras de 12.7 mm, metralhadoras pesadas e ligeiras em grande profusão, cercando a povoação a cerca de 100 m do arame farpado, tendo sido repelido com perdas, embora tivesse causado danos consideráveis.
Simultaneamente com estes ataques e flagelações constantes a Empada, o IN organizou-se fortemente nas regiões já referidas, criando uma organização politica-administrativa suficientemente forte para controlar totalmente a população, doutriná-la e mentalizá-la, enquanto abria escolas, embora de nível baixo, e procurava dar à população uns rudimentos de assistência sanitária, com estabelecimento de enfermarias que, embora de fraco valor intrínseco, não deixavam de constituir elementos preponderantes de uma propaganda insidiosa.
Para melhor compeensão do grau de doutrinação alcançado pelo IN sobre a população, transcreve-se passagens do relatório da Operação Tipóia, realizada em Abril de 1966, última em que à zona de Pobreza foi mandada apenas a Companhia de Empada [ CCAÇ 1423, 1966/68 ?], reforçada com a milícia, tendo sido cercada, deixado um morto não recuperado e só conseguindo regressar graças a appoio aéreo:
(i) A princípio, 4 elementos inimigos atacaram com pistola metralhadora, avançando a peito descoberto;
(ii) depois de mais tiros de P.M. por parte do IN, ainda mais próximos pelo cantar e bater de palmas, concluimos que o cadáver do nosso soldado devia estar nas mãos dos bandoleiros;
(iii) o In foi calculado em cerca de 100 elementos, divididos em grupos que actuavam em diferentes posições;
(IV) o IN insultou sempre as NT com a frase "Tuga - filhos da p...;
(v) pareceu-nos que o IN em Ianguê se encontrava preso de um forte e estranho fanatismo que o leva a lançar-se contra as NT sem qualquer receo da morte.
Fonte: Extractos de HU - História da Unidade: CCAçÇ 2381 -Os Maiorais [ Buba, Quebo, Mampatá, Empada, 1968/70]. Cap. II. Pag. 29-30.
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Nota do J.T.:
(1) A história do Kebá que revi em 2005 é um exemplo concreto. Tinha 3 mulheres com vários filhos. Duas ficaram da banda de lá. Ele fixou-se em Empada com a outra esposa. Em dada altura fugiu para o mato e tentou recuperar as outras duas e seus filhos, mas estas não quiseram vir com ele, pelo que ele voltou e vivia num pesadelo. Era meu ajudante na enfermaria, mas recusava-se a sair para o mato, aliás, nunca aceitou pertencer à Milícia.
Vd. post de 12 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXII: O meu diário (José Teixeira, enfermeiro, CCAÇ 2381) (18): Empada, Novembro/Dezembro de 1969
Comentário de L.G:
Houve muitos dramas parecidos com o do Kebá no início da guerra. Há tempos, um médico guineense também me relatou uma história parecida, que envolveu um seu tio materno, de etnia beafada, que vivia justamente em Empada: a esposa ficou do "outro lado", ou seja, na zona controlada pelo PAIGC; ele ficou do "lado de cá", ou seja, na zona controlada pelos tugas... Acabou por arranjar outra família; o mesmo se passou com a sua esposa... Curiosamente, e por razões compreensíveis, nunca quis ser milícia, tal como o Kebá...
Guiné 63/74 - P912: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (12): A morte de um pai
Foto: © Paulo Raposo (2006)
XII parte do testemunho do Paulo Raposo (ex-Alf Mil Inf, com a especialidade de Minas e Armadilhas, da CCAÇ 2405, pertencente ao BCAÇ 2852 > Guiné, Zona Leste, Sector L1, Bambadinca, 1968/70 > Galomaro e Dulombi).Extractos de: Raposo, P. E. L. (1997) - O meu testemunho e visão da guerra de África.[Montemor-o-Novo, Herdade da Ameira]. Documento policopiado. Dezembro de 1997. 35-38 (1).
O regresso a Bissau
Aterrámos em Bissau como uma pedra. Dizem que são as melhores aterragens, pois as más são aquelas que nós não sentimos. É como as granadas e os tiros: os que nos são destinados, não os sentimos. Aberta a porta do avião, saímos sem pressa.
O calor e a humidade eram tantos que parecia que estávamos a entrar numa casa de banho onde alguém tivesse acabado de tomar um banho muito quente. Desta vez, não fui para o Grande Hotel, mas antes para uma cama que o João Saldanha me arranjou em casa dele.
Apresento-me no Quartel General e, por razões de que já não me recordo, perco a ligação aérea militar para Bafatá. Era um Dakota que fazia esse serviço. Como não havia outro transporte tão cedo, peço ao Alferes Bobone, que estava a tirar o brevet, para me levar a Bambadinca, que eu lhe pagava o tempo de vôo do Aeroclub, que era barato.
O Bobone era Chefe de Gabinete do Brigadeiro Spínola, portanto só me podia levar à hora do almoço, que, em Bissau tal como em toda a África, tinha a sesta como complemento. Fui almoçar a casa dele, pois ele tinha lá a mulher, e seguimos para o aeroporto, aonde nos aguardava o instrutor, que também seguiu.
O avião era um Auster, avião de três lugares, forrado a lona. Lá fomos, eles à frente e eu atrás, a ver se tudo corria bem. Voamos alto para não termos surpresas e, como o avião é lento no ar, parecia que estávamos parados. Ao fim de meia hora aterrámos em Bambadinca na pista de terra batida. Tudo bem.
A chegada de um meio aéreo, numa terra aonde não acontece nada, é sempre um acontecimento. Fomos para o bar tomar one for the road. Depois das contas feitas e das despedidas, o Bobone meteu-se no Auster para regressar, mas o motor não pega. Que se passa?
Ligamos para Bissau via rádio, e o chefe instrutor do Aeroclub, entre muitas coisas, diz para vermos se os cabos que ligam os borries da bateria estavam bem apertados. É claro que não, estava um solto. Foi apertado e lá seguiram. Spínola deve-lhe ter puxado as orelhas pelo atraso.
Um dos nossos passatempos nos períodos de pausa era contar histórias. O Bobone contou que um dia Spínola sentou-se na sua mesa de trabalho e com o braço, atira tudo o que estava em cima da mesa para o chão. Depois respira fundo e diz:
- Vamos trabalhar.
Coitado, era o peso da responsabilidade e era o feitio de quem se preocupa. Foi por esse seu feitio que mais tarde o apanharam. Não era uma pessoa fria. Spínola era sem dúvida um bravo. Os pilotos de heli não gostavam de voar com ele.
Se ele via uma aldeia, mandava o piloto descer, fazia uma alocução à população e seguia. Não se importava se a aldeia era controlada por nós ou pelo inimigo. Almeida Bruno passou as passas do Algarve com ele por causa destas incumbências.
No funeral do Brig. Nascimento, no Cemitério dos Prazeres, o Brig. Spínola aguentou estoicamente a carga de água que caíu, aquando das cerimónias. Não vacilava.
Novamente no Leste
Estamos em junho. Regressado à rotina de Tabancas em Auto Defesa, chega o primeiro correio e nesse correio vem uma carta de meu pai e outra de minha mãe muito estranha, que diz:
- O teu pai está melhor.
Esta era portanto a segunda carta de minha mãe, pois por capricho de destino a primeira ficou para trás. Sigo de imediato para Bafatá, o único local de onde se podia telefonar para Lisboa.
Depois de longa espera, consegui falar com a minha mãe. Naquela época pedia-se o número, e as centrais manuais iam pedindo sucessivamente o número até ao destino e, por fim diziam "está ligado".
A minha mãe contou-me então a triste história. Meu pai, passados dias após a minha partida, teve um acidente vascular cerebral. Entrou em coma e veio a falecer ao fim de três meses. Eu julgava que não era coisa que não me podia acontecer, e ainda hoje acho que é mentira.
A nada assisti. Era Setembro, e eu estava na altura em Galomaro, juntamente com uma companhia de paraquedistas. O Major Pardal dirige- se a mim, passa-me a mão pelas costas e diz-me:
- O teu pai acabou de falecer; o Brigadeiro Nascimento mandou um heli buscar-te, reservou o lugar do Governador na TAP e tens na repartição de pessoal uma licença para seguires viagem.
Uma rápida vinda a Lisboa
Devo gratidão a todos estes amigos. Foram horas muito difíceis. Chego a Bissau no heli e vou para o Grande Hotel, para embarcar para Lisboa no dia seguinte. À noite vou jantar com o Francisco Ramos. Eu, que não sou de muitas falas, não me calo durante o jantar.
Era uma realidade que eu não queria aceitar. A viagem de avião foi um martírio. Da tristeza para o que ia e de alívio por folgar durante um tempo o buraco da Guiné. Chego a Lisboa e vejo a minha mãe toda vestida de preto, como nunca a tinha visto. O funeral já se tinha dado. Vou para casa e esta parecia vazia. Ainda assisti à Missa de 7º dia na Igreja de S. Nicolau. A Igreja ficava por cima da casa comercial que o meu pai tinha na Rua da Prata. A Igreja estava repleta, embora a família não estivesse completa. Passados dez dias estou de regresso àquele inferno.
Ao Alferes David, [igualmente da CCAÇ 2405], passados meses, sucedeu-lhe a mesma coisa. Perdeu o Pai em circunstâncias idênticas. Houve muitos casos destes.
Novamente o regresso
Mais uma despedida no aeroporto e uma viagem sem história, toda feita de noite, com a habitual escala em Cabo Verde.
Regresso de novo à rotina de Tabancas em Auto Defesa.
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Nota de L. G.
(1) Vd. post de Guiné 63/74 - P889: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (11): Férias em Portugal
(...) "No aeroporto outra vez as despedidas, mas já não íamos para o desconhecido, já sabíamos o que nos esperava. De novo a família e os amigos de sempre a despedirem-se de nós. Vim depois a saber que depois de eu entrar para o avião, pois naquela altura assistia-se a tudo do varandim do 1º andar do aeroporto, o meu pai ficou agarrado a uma coluna, a chorar como uma criança.
"A viagem de regresso nada tinha de alegre. Dormi até chegarmos a Cabo Verde, de madrugada, para uma escala do avião. Comandava o avião o comandante Simões, visita de sempre da família amiga Simões de Almeida e Palma Carlos, relações que já vinham do tempo dos meus avós" (...).
Guiné 63/74 - P911: Uma mina para o 'tigre de Missirá' (Luís Graça)
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Finete-Missirá > 1969 > O Fur Mil Reis (à esquerda) e o Alf Mil Carlão (à direita), do 2º Gr Comb da CCAÇ 12 vistoriando os restos da viatura (Unimog 404) em que seguia o Alf Mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52, quando accionou uma mina anticarro, no dia 16 de Outubro de 1969, por volta das 18h00, na zona de Canturé (entre Finete e Missirá: vd. carta de Bambadinca, de 1/50.000).
Foto do arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
Foto: © Humberto Reis (2006)
Eis como esta acção da guerrilha foi ficou relatada nos documentos classificados que temos em nossa posse:
(i) História da Unidade: BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Bambadinca: Batalhão de Caçadores 2852. 1970. Cap. II. 112. Documento reservado
Em 16 [de Outubro de 1969] , IN não estimado emboscou no lado direito da estrada Finete-Missirá, próximo de Canturé, uma coluna de reabastecimerntos do pel Caç Nat 52, compotso por 15 elementos, simultaneramente ao accionamento de mina A/C, causando 1 morto e 3 feridos graves às NT. O IN sofreu 1 morto quando provocava assalto.
(ii) História da CCAÇ 12: Guiné 69/71. Bambadinca: Companhia de Caçadores nº 12. 1971. Cap. II. 16.
Registe-se ainda a intervenção do 2º Gr Comb [do Alf Mil Carlão e dos Furriéis Mil Reis e Levezinho] que, com o Pel Rec Inf da CCS [do BCAÇ 2852], foi em socorro duma coluna do Pel Caç Nat 52 que em 16 [de Outubro de 1969], já ao anoitecer, caíu numa emboscada com mina A/C comandada, no itinerário Finete-Missirá, próximo de Canturé, sofrendo um morto e três feridos graves.
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Finete, regulado do Cuor > 1969 ou 1970: Destacamento de milícias e aldeia em autodefesa de Finete, junto ao Rio Geba. Na foto, o furriel miliciano Henriques e dois dos soldados africanos da CCAÇ 12, do 4º Grupo de Combate, o Soldado Arvorado (mais tarde promovido a 1º cabo) José Carlos Suleimane Baldé e o Soldado Umarú Baldé, apontador de morteiro 60, mais conhecido por o puto (na foto, de pé, de cachimbo; era de facto um puto, com 16 ou 17 anos...).
Foto: © Luís Graça (2005)
Comentário de L.G.:
Lembro-me ainda muito bem deste fatídico acontecimento, que causou emoção em Bambadinca, até porque integrei a coluna de socorro que partiu daqui, atravessando o Rio Geba e a bolanha de Finete. Tudo se passou quase à nossa frente. O local da emboscada estava inclusive ao alcance dos nossos morteiros. Na altura ainda não havia obuses em Bambadinca, mas apenas um esquadrão do Pel Mort 2106 (espalhado, de resto, pelos ouytros aquartelamentos do Sector L1: Xime, Mansambo, Xitole, Saltinho).
O Beja Santos já me facultou cópia do relatório desta acção que ele próprio elaborou, na sua qualidade de comandante do Pel Caç Nat 52. Na carta ao Alcino Barbosa (1), há um pequeno conflito de datas: o Beja Santos diz, primeiro, que foi a 16 de Outubro de 1969, e depois, certamente por lapso, refere-se sempre a 15 (1); as nossas fontes dizem que foi a 16...
De qualquer modo, era voz corrente que o Beja Santos, conhecido entre os seus camaradas milicianos como o "tigre de Missirá", tinha a cabeça a prémio no regulado do Cuor... Exagero ou não, o próprio Beja Santos reconhece publicamente este facto no último post que inserimos (1):
"A 15 de Outubro devíamos ter regressado mais cedo. O Comandante local do PAIGC, Corca Só, já me tinha ameaçado de morte, tendo mesmo deixado um bilhete na estrada. Saímos tardíssimo de Finete, o sol a cair a pique, como acontece nos trópicos" (...).
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(1) Vd. post de 24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P904: SPM 3778 ou estórias de Missirá (3): carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade (Beja Santos)
Guiné 63/74 - P910: Os nossos (des)encontros do 10 de Junho (Fernando Chapouto, CCAÇ 1426)
Tem um página pessoal donde se retiram os seguintes elementos biográficos, relativos à sua comissão na Guiné: (i) Partida para a Guiné no Niassa em Agosto de 1965; (ii) Em Outubro de 1965 está em Camamudo; (iii) Em Dezembro de 1965 passa por Banjara; (iv) em meados de 1966 está destacado no Geba; (v) em Março de 1967 está em Cantacunda; (vi) Em Maio de 1967 regressa à metrópole no Uíge.
Há um outro nosso tertuliano que pertenceu a esta unidade, a CCAÇ 1426 (1965/67): é o Belmiro Vaqueiro, também ex-furriel miliciano, residente em Bragança. Há um ano atrás, publicámos aqui uma mensagem do Belmiro Vaqueiro : vd. post de 26 de Junho de 2005 > Guiné 69/71 - LXXXII: CCAÇ 1426 (Geba, 1965/67): Presente!, de que se destaca aqui um excerto:
Foi com muita emoção que vi o excelente trabalho publicado na Net acerca dos bravos da CART 1690. Curvo-me perante a memória dos caídos em combate cujo historial desconhecia. É que eu percorri todos esses locais e ainda tenho bem presente os momentos vividos em Cantacunda e Banjara. Fiz parte da Companhia de Caçadores nº 1426 com sede em Geba (1965 a 1967), companhia que que pelos vistos foi rendida pela CART 1690 nos primeiros dias de Maio de 1967 (...).
A CART 1690 foi a companhia, com sede em Geba, a que pertenceu originalmente o nosso camarada A. Marques Lopes.
Foto: © Hugo Moura Ferreira (2006)
Lisboa, Belém, 10 de Junho de 2006 > Sérgio Pereira e Lema Santos, em amena conversa, tendo ao meio o organizador do encontro da nossa minitertúlia, o Hugo Moura Ferreira. Diz o Chapouto: Recordar é viver... Este ano fomos poucos. Para o ano iremos mais, se Deus quiser. Mas é bom conviver com alguém que nos toca na mente e no pensamento e com quem, há muitos anos, palmilhámos o mesmo mato e as mesmas bolanhas, partilhando o mesmo sofrimento (...)
© Fernando Chapouto (2006)
Lisboa, Belém, 10 de Junho de 2006 > Em frente ao Forte do Bom Sucesso e do Memorial aos Mortos dos Ultramar> Da direita para a esquerda: Sérgio Pereira, Fernando Chapouto, Hugo Moura Ferreira, um camarada não idnetificado, o Fernando Franco e um antigo combatente da Guiné. Legenda do Fernando Chapouto: "Uma demonstração de unidade... e a prova de que não há racismo entre nós".
© Fernando Chapouto (2006)
domingo, 25 de junho de 2006
Guiné 63/74 - P909: O nosso Blogue informação e conhecimento: História da enfermagem na guerra colonial (Pedro Correia)
Boa tarde, Doutor Luis Graça:
Sou o Pedro Correia, aluno do 4º ano do curso de Enfermagem da Escola Superior de Enfermagem Imaculada Conceição. Estou a realizar a monografia de final de curso em que decidi escolher o tema da enfermagem na guerra colonial.
Pretendo abordar a prestação de cuidados pelos enfermeiros; as suas acções, formação e preparação que possuíam; quais os meios e recursos que possuíam; evacuações de feridos.
Tendo tomado conhecimento do blogue Luis Graça & Camaradas da Guiné, venho assim pedir a sua ajuda pois procuro dados acerca dos enfermeiros na guerra colonial.
Obrigada pela atenção, fico aguardar reposta.
Sem outro assunto de momento despeço-me atenciosamente.
Pedro Correia
Escola Superior de Enfermagem Imaculada Conceição
Rua Pedro Hispano, 923 - 4200 Porto
Telefone: 228 349 850
Fax 228 301 165
2. Caros amigos e camaradas da Guiné:
Temos, na nossa tertúlia, pelo menos quatro camaradas que fizeram poarte dos serviços de saúde militares:
(i) Carvalhido da Ponte, João Carvalho, Rui Esteves (ex-furriéis milicianos de enfermagem)
(i) José Teixeira (ex-1º cabo enfermeiro)
Alguém está em condições de dar uma ajuda ao aluno de enfermagem Pedro Correia? Recordo o pedido dele: "Pretendo abordar a prestação de cuidados pelos enfermeiros; as suas acções, formação e preparação que possuíam; quais os meios e recursos que possuíam; evacuações de feridos".
Seria útil para todos nós: este tema ainda não foi sequer abordado no nosso blogue... Que me recorde, o único que nos falou da acção (heróica) dos enfermeiros durante a guerra colonial (em combate e no apoio sanitário às populações locais) foi o Zé Teixeira, no seu diário: vd. post de 14 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXVI: O meu diário (Zé Teixeira) (fim): Confesso que vi e vivi
Num dos volumes Nova História Militar de Portugal (ed lit Manuel Themudo Barata e Nuno Severiano Teixeira). Lisboa: Círculo de Leitores,2003) também há um capítulo dedicado às mulheres (e em particular às enfermeiras paraquedistas).
3. A resposta, solidária, dos nossos tertulianos não se fez esperar:
3.1. Caro Luis: Também os enfermeiros do Esq Rec Fox 2640 (1) estão disponiveis para colaborar com o Pedro Correia.
Ex-Furriel Mil José Alberto da Costa Lima (Tel. 219376859)
Ex-1º Cabo Floriano da Silva Almeida (Tel. 239438280)
Um abraço, Manuel Mata
3.2. Feliz ideia. Por mim, será com muito gosto. Como o Pedro Correia, está cá no Porto, pode entrar em contacto comigo via e-mail ou pelo telemóvel 966238626, para marcarmos encontro.
Um abraço
Zé Teixeira
4. O Pedro Correia acaba de me mandar um e-mail, datado de 26 de Junho de 2006, a agradecer a nossa colaboração:
Boa Tarde!
Quero antes de mais agradecer-lhe o facto de ter disponibilizado no seu blogue o assunto de 'enfermagem' e também aproveitar para felicitá-lo pelo excelente blogue, um elemento bastante importante referente a um grande acontecimento da história de Portugal.
Aproveito igualmente para agradecer a todos aqueles que se disponibilizaram a ajudar-me a conhecer o trabalho realizado pelos enfermeiros durante a guerra colonial. Mais uma vez agradeço a atenção e colaboração. Sem outro assunto de momento, despeço-me atenciosamente. Com os melhores cumprimentos. Pedro Correia_____________
Nota de L.G.
(1) Vd. post de 2 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DXCVII: Esquadrão de Reconhecimento Fox 2640 (Bafatá, 1969/71) (Manuel Mata) (1)
Guiné 63/74 - P908: Recordações de 1968/69 (Torcato Mendonça, CART 2339)
Caro Luís Graça:
Continuo a ler o Blogue com muito interesse.
Há acontecimentos vividos por mim, mas não os recordo como são descritos. O tempo, a memória e a subjectividade da análise. Falei com o Marques dos Santos e, por vezes, acontece-lhe o mesmo.
Vão umas notas sem qualquer pretensão historiográfica… nada disso!
Fui ao Centro de Saúde (...) e conheci uma senhora simpatiquíssima.
GUINÉ 68/69 RECORDADA EM 2006
"Às vezes me alegro outras me entristeço”,,, ou rio com o matchudandi di branco, os mails do (des)encontro do 10 de Junho e o cão Labrador [do J. Vacas de Carvalho, contada na tertúlia, off-record...]; comovo-me (arrepio-me) com Gadamael/Guilege, as listas de fuzilados, o Presépio de Chicri…Vou lendo o Blogue e cada vez sinto mais presente aquela terra vermelha e ardente….
Só umas notas rápidas:
(i) O Beja Santos é meu contemporâneo na Guiné. Pensava que tinha comandado o Pel Caç Nat 53.
(ii) Na História da Guiné e Cabo Verde – publicada com o apoio da UNESCO em 1973/74 e impressa em Paris –apesar da sua natural “parcialidade”, devido ao ano da publicação, pode ler-se a pag. 92: “Os povos de África prestam hoje homenagem, como seus heróis nacionais, aos combatentes... Infali Sonco (e outros ).
Sobre o Alferes português e a Campanha de 1907/08, a pag. 102 refere:
Infali Sonco, régulo do Cuor, é ofendido pelo Comandante do Posto de Geba, o qual bate na sua própria presença num dos seus colaboradores. Ele reage matando um Alferes português e prende o Comandante, que libertará de seguida. Recusa o pagamento do imposto, corta a navegação no Geba, entre Bissau (?!) e Bafatá... Tiveram depois de vir reforços de Lisboa
Não será o Governador Fortes o Comandante de Geba?
O Historiador Leopoldo Amado certamente terá deste episódio, Infali Sonco e campanha posterior 1907/08, dados mais consentâneos com a realidade. Como também das campanhas de Teixeira Pinto e outros.
Não li a Nova História Militar de Portugal, mas com os autores que tem deve ser um óptimo elemento de consulta.
(iii) Longe de mim a pretensão de fazer história. Estórias da passagem pela Guiné! Gosto de História mas isso não interessa.
Claro que o Beja Santos ficciona as suas estórias. É natural e vale a pena ler textos com aquela qualidade.
Há (tenho) um outro livro – Grandeza Africana: Lendas da Guiné Portuguesa, de 1963- que, servindo-se da transmissão oral, relata os feitos de muitos heróis fulas, mandingas e outros. Termina com a Canção de Cherno Rachide, de Aldeia Formosa. Não conheci mas ouvi falar muito deste homem. São contos lindos sobre aqueles povos.
Gostava de aprofundar este assunto, mas já alonguei as breves notas.
(iv) Uma última: Se bem me lembro, a emboscada sofrida pelo Paulo Raposo foi próximo de Mansambo, na subida do pontão do rio Almami. A Secção era do Pelotão de Mil 145, estacionado na Moricanhe. À passagem dos militares do 145 foi accionada, com comando á distância, uma mina anti-carro. Dois mortos, um capturado – Soldado Lamine que conseguiu fugir e voltar cerca de uma semana depois – e três feridos. Um deles o Sargento Mádia ainda perseguiu o inimigo mas, esgotado devido aos ferimentos, voltou para Mansambo.
Talvez os homens do 145 fossem filhos de um Deus menor. A Virgem Mãe não conseguiu salvá-los a todos. Bocados dos mortos ficaram, por muito tempo no cimo das árvores. Os vivos ripostaram bem e provocaram baixas , previstas por mim logo no local e confirmadas posteriormente pelo Laminé .
Era outra estória!
Guiné 63/74 - P907: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (1): A nossa blogoterapia
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Caro Luís
Há algum tempo que estou na Guiné. Não enlouqueci. Só que li o que escrevestes e, principalmente o que o Beja Santos escreveu. É duro, sabes - um voltar ao passado em segundos ou minutos, eu nem sei. Lastimo o falecimento do David Payne (1); lastimo todas as vitimas daquela brutalidade. Até que ponto não fui também corresponsável. Até que ponto não estive mais com Marte e menos com a razão?
Hoje estive na Assembleia Municipal. Não trocaram ideias. Preferiram insultos. Quando cheguei a casa tentei jantar mas desisti.Telefonei aos filhos. Depois abri a Televisão, liguei o portátil e fui ao Blogue. Parei no tempo… ou fui até lá… quase que senti os cheiros!
Quando estou tenso a música clássica, em som alto, acalma-me. Hoje é tarde para o fazer. Desde sempre que a música, mesmo no rádio, me acompanha. Ici rádio Abdijan…. Só que era música africana. Gostas de Bach. Sei que o Beja Santos era melómano e ficou sem os discos. Nunca falámos nisso. Talvez a guerra fosse mais importante…Talvez!
Desculpa este desabafo. Estou mais calmo. Será isto uma terapia?
Um abraço,
Torcato Mendonça
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Nota de L.G.:
(1) Alferes Mil médico, da CCS do BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70). Era psiquiatra. Referido pelo Beja Santos no seu último post, de 24 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P904: SPM 3778 ou estórias de Missirá (3): carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade (Beja Santos)
(...) "Não sei se deva contar como foi a nossa retirada até Finete, para vir buscar reforços. Os soldados válidos ficaram a tomar conta dos feridos. Retirei com crianças, com uma granada em cada mão. Em Bambadinca, encontrei a solidariedade do costume, regressei a Finete com o médico, David Payne (já falecido) e com o Alferes Reis, o sapador (nunca se recompôs da guerra, aparece-me no meu trabalho de vez em quando, sofre da mania da perseguição) e no dia seguinte, após a vossa evacuação por helicóptero, regressei a Missirá. Era minha intenção escrever-te, e depois visitar-te no Hospital Militar" (...).
Guiné 63/74 - P906: CART 2339 e Malan Mané, duas estórias para duas fotos (Torcato Mendonça)
Fotos apresentadas no almoço de convívio anual da CART 2339, que este ano se realizou em 20 de Maio de 2006. (Fotos do arquivo pessoal do ex-Alf Mil Cardoso; texto do ex-Alf Mil Torcato Mendonça; cópia enviada pelo ex-Fur Mil Carlos Marques dos Santos; )
FOTO 1: Évora - RAL 3
Esta foto é de uma das primeiras reuniões de graduados das CART 2338 e 2339. Na 1ª fila estão o Capitão Miliciano e o Alf Mil Diniz, da CART 2338. Este nosso camarada coordenava a travessia do Corubal, no Cheche, quando houve aquele trágico acidente. Texto ou textos já publicados no Blogue (1).
Não sei do Diniz. Mas mando-lhe um forte abraço.
Na foto éramos uns jovens… não sabíamos o que iríamos enfrentar, nem onde. Curioso seria ter tirado, no regresso, outra foto no mesmo local e com as mesmas personagens. Ver-se-iam as diferenças…
Malhas que o império teceu!
FOTO 2: Turra Mané
Interrogatório a um prisioneiro.
Pela disposição dos presentes é fácil imaginar a brutalidade do interrogatório. O militar das patilhas sou eu, na escrita. O sorriso é o mesmo nas duas fotos. O prisioneiro era o Malan Mané.
Só um apontamento sobre o Malan.
Em Agosto de 1969, o meu Grupo de Combate reforçado com Milícias, estava no COP 7 ou melhor, a trabalhar para a Companhia do Cap Mil Jerónimo, em Galomaro [CCAÇ 2405]. Como as Tabancas, em autodefesa, de Candamã e Afiá voltaram a ser atacadas, fomos chamados com urgência a Bambadinca. Houve uma reunião com o Comandante do Agrupamento – Coronel ou Brigadeiro Hélio Felgas -, o Tenente Coronel Pimentel Bastos, Comandante do BCAÇ 2852 e outros oficiais cujo nome já não recordo.
Recebemos a missão. Partir de imediato para Candamã/Afiá com mais um Grupo da minha Companhia. Recolhemos mais informações, com o Comandante da CART 2339, Capitão do Quadro Permanente Laranjeira Henriques, e, em coluna auto, deslocámo-nos para lá.
Na passagem por Afiá consegui convencer o Lhavo, caçador e guia em várias operações, para nos voltar a orientar. Mostrou-se relutante. Tinha as suas razões e, se bem me lembro, estavam correctas.
No dia seguinte lá partimos com o Lhavo e encontrámos a pista do IN. Seguimo-la, em progressão balanta. Vimos um local de pernoita, calculámos quantos seriam e, no fim do dia, descobrimos o possível local do acampamento. Som de pilão e outros indícios. Além disso, o local era óptimo para um acampamento.
Dois dias depois, salvo erro, forças das CCAÇ 2590 [CCAÇ 12], CART 2339 e o Pel Caç Nat 53 montaram emboscadas em possíveis locais de fuga do IN. Paraquedistas do Cop 7 assaltaram e destruíram o acampamento. Capturaram o Malan Mané. Na fuga o IN, junto á estrada Mansambo/Xitole, caiu numa emboscada da CART 2339. Sofreram baixas e foi ferido com gravidade o Comandante do PAIGC, Mamadu Indjai (2).
A nossa tropa regressou a quartéis e eu voltei a Mansambo. Uns dias depois entregaram-nos o Malan Mané. Íamos fazer uma operação – Pato Rufia – na zona do Xime e o Malan era o guia (3). Ele já tinha sido interrogado, creio que em Bambadinca. Não sei como decorreu mas imagino. Pelo breve relatório que nos entregaram disse pouco.
Em Mansambo o Malan foi para um dos dois abrigos do meu Grupo. Estes abrigos tinham uma sala que servia como refeitório, local de convívio, escrita e leitura e outros fins. Ficava na parte do abrigo virada para a parada, rodeada por duas fiadas de bidões com terra e tecto de zinco e colmo.
Entrei nessa zona e o Malan levantou-se, olhando para mim com um olhar inquieto, no mínimo. Fiquei, eu e os outros militares surpreendidos com aquela reacção. Como ele não falava mandinga e o meu crioulo era fraco, mandei chamar o Lali.É o guineense que se vê a sorrir na foto. Quando sentimos que o Malan estava mais calmo, conversámos com ele durante o tempo necessário para obter muitas informações. Foram passadas, as mais importante, a muitas folhas de papel.
O Malan sabia quem eu e outros camaradas éramos porque vinham, ele e outros militares do PAIGC, espiar-nos aquando da construção de Mansambo; tinha estado na fatídica emboscada da fonte, cerca de um ano antes. Viram-me passar mas não abriram fogo pois o objectivo era a fonte. Nesse dia fui com o meu Grupo á Moricanhe onde estava o Pelotão de Milícias 145. Disse-nos que o Cmdt do PAIGC para aquela zona era o Mamadu Indjai, recentemente reforçado e tendo 120/150 combatentes, com armas pesadas etc, etc. Não sabia o que entretanto sucedera ao seu ex-comandante.
Parece um relato de um santo. Claro que não o éramos. Aplicávamos a dureza julgada necessária, a disciplina, estávamos certos que o suor poupava sangue. Além disso sobre a Convenção de Genebra… só de nome… um conjunto de Leis, será?... Genebra, a cidade Suiça e a detestável bebida!... Mantínhamos era a nossa dignidade e o respeito por quem contra nós lutava. E não só.
Voltando ao Malan Mané. No dia seguinte fomos para o Xime. Correu mal a operação. O Malan enganou-se demasiadas vezes e, além de não atingirmos o objectivo, viemos de mãos a abanar.
Essa operação foi repetida, segundo me parece e o Malan foi ferido…Encontrei-o, em Novembro de 1969 no Hospital Militar em Bissau. Ver nota anterior no Blogue (4).
Em nota de rodapé: gostava de saber onde estará o Malan, o Braimadicô – ex-comandante do PAIGC, que nos guiou na operação Lança Afiada... Ainda vou escrever sobre ele e essa operação. Mas principalmente o que terá acontecido ao Lali, Lamine, Sargento Madia Baldé e a outros militares do Pelotão de Milícia 145 ou ao Régulo António Bonco Balde. Eram outras estórias!
África, principalmente a Guiné, é uma saudade. Mas... e mais não digo por agora.
Torcato Mendonça,
ex-operacional, Cart 2339 (Mansambo, 1968/69)
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Notas de L.G.:
(1) Vd., entre outros, os seguintes posts em que é referido o nome do Alferes Miliciano Diniz, da CART 2338:
7 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P853: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (10): A retirada de Madina do Boé
16 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXLIII: A verdade sobre o desastre do Cheche (Rui Felício)
2 de Agosto de 20054 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé (5 de Fevereiro de 1969)
(2) Vd post de 30 de Julho de 2005 > Guiné 63/74 - CXXX: A CAÇ 12 em operação conjunta com a CART 2339 e os paraquedistas (Agosto de 1969) ...
(...) "Op Nada Consta > Desenrolar da acção:
"Enquanto as forças do Sector L1 ficavam emboscadas nas proximidades da bolanha do Rio Biesse (a leste, a CCAÇ 12 com 3 Gr Comb dispostos em semicírculo; a norte, o Pel Caç Nat 53; e a oeste, forças da CART 2339), veio a primeira vaga de paraquedistas que foram colocados na ponta oeste da bolanha, penetrando imediatamente na espessa mata que se estende para sul.
"Cinco minutos depois, é capturado um elemento IN armado de RPG-2 (9). Sucederam-se mais duas vagas de helicópteros, transportando outros tantos Gr Comb dos paras e a mata passou a ser percorrida de norte para sul.
"0 prisioneiro [Malan Mané, de seu nome, de etnia mandinga], entretanto, não dera nenhuma informação que permitisse levar à localização de qualquer arrecadação [de material] ou acampamento importante. Confessou apenas que no local se encontravam 80 homens (10), sob o comando de Mamadu Indjai, dispersos em pequenos grupos pela mata, e com quem os paras estabeleceriam depois contacto, fazendo 2 mortos e capturando 3 armas automáticas" (...).
(3) Vd. posts de:
8 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXLVI: Setembro/69 (Parte I) - Op Pato Rufia ou o primeiro golpe de mão da CCAÇ 12
9 de Agosto de 2006 > Guiné 63/74 - CXLVII: Malan Mané, guerrilheiro, vinte anos, mandinga
(4) Vd. post de 15 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCLIII: O Malan Mané estava vivo em Novembro de 1969 e eu abracei-o (Torcato Mendonça)
(5) Informação preciosa do Torcato: n relatório da Op Lança Afiada, publicada em quatro partes no nosso blogue não é referido o nome do prisioneiro, Braimadicô, que serviu de guia às NT:
Vd. posts de:
14 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIX: Op Lança Afiada (IV): O soldado Spínola na margem direita do Rio Corubal
9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXIII: Op Lança Afiada (1969): (iii) O 'tigre de papel' da mata do Fiofioli
9 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXI: Op Lança Afiada (1969) : (ii) Pior do que o IN, só a sede e as abelhas
15 de Outubro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXLIII:Op Lança Afiada (1969): (i) À procura do hospital dos cubanos na mata do Fiofioli
sábado, 24 de junho de 2006
Guiné 63/74 - P905: A morte na estrada Finete-Missirá ou um homem com a cabeça a prémio
Meu caro Luís,
Fico preocupado pela capacidade de retenção da tua memória.
A maior parte dos acontecimentos que aqui descreves são fidedignos. Não te esqueças que eu tive um papel vagabundo nesta guerra. Cheguei a Missirá a 4 de Agosto de 68 e lá permaneci até Novembro do ano seguinte. Só abandonei Missirá porque os soldados estavam fartos daquele tipo de guerra em que eu os envolvi. Depois, parti para Bambadinca, onde era pau para toda a obra. Se quiseres, um dia posso-te fazer esta memória descritiva. Talvez seja útil para os nossos netos. Tenho muito gosto em encontrar-me contigo a partir de Julho. Vê no que te posso ser útil. Penso reformar-me aos 67 anos, se não houver problemas de saúde. Depois, tenho agendado escrever SPM 3778. Caso não te recordes, era o meu endereço na guerra. Manda-me a morada do blogue onde está o meu texto, por favor.
Recebe um abraço do Beja Santos
2. Respondi-lhe no dia seguinte nestes termos:
Camarada e amigo Beja Santos:
Fico contente por saber dos teus planos… Vou ficar à esperar do teu SPM 3778… Que Deus te proteja, como te protegeu na Guiné, e te dê saúde para escrever as tuas memórias… Eu também tenho coisas na calha… Sei que eras católico, eu não…
Quanto à minha memória, é capaz de não ser assim tão famosa… Na Guiné ia escrevendo o meu diário… Memória de elefante tem o Humberto Reis, mas tu sabes como nós somos selectivos… Por exemplo, eu invejava a tua discoteca de música clássica quando ia a Missirá; em contrapartida, só há tempos soube que alguns colegas teus, alferes milicianos, te chamavam o tigre de Missirá… Digo-te isto com ternura, até porque sempre admirei a tua relação com os teus homens… A idade, a maturidade e a distância permitem-nos estas (in)confidências: mas é também para isto que o nosso blogue serve…
O Mário Dias, um durão dos comandos de Brá (1963/66), acabou de escrever isto a teu respeito, e que é lindo:
(...) Estou a reunir material para construir uma página só dedicada aos destacamentos de Bambadinca: Missirá/Finete, Fá Mandinga, Ponte Rio Undunduma, Nhabijões… Se tiveres material fotográfico ou outro, a malta agradece… Os direitos de autor ficam sempre garantidos: o seu a seu dono... Num ano, já juntámos mais de 100 camaradas … e alguns amigos, não-combatentes, como o historiador Leopoldo Amadao, o jornalista Jorge Neto, ou o Pepito – Carlos Schwarz – mentor do Projecto Guileje, fundador e director da prestigiada ONG AD – Acção para o Desenvolvimento (estará cá de férias em Julho)…
3. Resposta do Beja Santos:
Meu caro Luís, mentir-te-ia se te dissesse que não me tocou profundamente a carta e os mais conteúdos. Fiquei petrificado a ver a Capela onde eu ia à missa. Assim nasceu o conto que te ofereço para o blogue. E agora pára de fazer chatagens sentimentais, obrigando-me a escrever através de novas revoadas de comoção.
Esta guerra é desinteressante para a geração dos nossos filhos, pois vem no nevoeiro de uma outra época terminal. Passará à moda na geração dos nossos netos. Por isso é que [acções] tão meritórias como aquela que estás a fazer merecem ser apoiadas. Faço Frequências na segunda e fica prometido que quando te telefonar terei à mão as fotografias que me pedes.
Atenção, que já há muita bibliografia sobre a nossa guerra. Por exemplo, o Freire Antunes escreveu dois volumes no Círculo de Leitores. Eu apareço no primeiro, com extracto do meu relatório da operação Rinoceronte Temível e o poema que o poeta Ruy Cinatti escreveu quando lhe mandei o relato que deu origem ao Presépio de Chicri. Recebe um abraço do Mário Beja Santos.
4. Acho que acabei de lhe fazer outra surpresa ao publicar a fotografia que mostra o estado em que ficou o Unimog 404, depois de accionar uma mina, quando o Beja Santos seguia de Finete para Missirá, no dia 15 de Outubro de 1969, por volta das 18h00... Era voz corrente que ele tinha a cabeça a prémio... Ele acaba de o confirmar no magnífico texto que é a carta ao Alcino Barbosa e a que chamou "mais um continho para o teu álbum de memórias" (vd. post anterior).
O Beja Santos não me levará a mal se eu lhe roubar a ideia do título de um dos seus próximos livros e passar a chamar às suas estórias, reais e ficcionadas, SMP 3778 ou estórias de Missirá...
Só uma ressalva: Mário, o blogue não é meu, é nosso... Ficamos honrados com a tua presença, a tua lucidez, a tua frontalidade, o teu talento, o teu testemunho, puro e duro... Como sabes, uma das nossas poucas regras, é o respeito uns pelos outros, pelas vivências, valores, sentimentos, memórias e opiniões uns dos outros (hoje e ontem)... Aqui, nesta caserna virtual, ninguém é juiz de ninguém... É a única maneira de falarmos, abertamente, sem ressentimentos, das nossas experiências como homens e como combatentes...
Obrigado também pelas publicações que me mandaste pelo correio. Com tempo, farei aqui uma breve recensão dos teus livros, para os nossos amigos e camaradas te conhecerem melhor... (LG)
Guiné 63/74 - P904: SPM 3778 ou estórias de Missirá (3): carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade (Beja Santos)
O Pel Caç Nat 52 foi depois transferido para Bambadinca, sendo substituído, em Novembro de 1969, pelo Pel Caç Nat 54, comandado pelo Alf Mil Correia, devido ao grande desgaste a que tinha estado sujeito nos últimos meses.
Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
© Humberto Reis (2006)
Carta a Alcino Barbosa, com muita intranquilidade
Beja Santos (ex-alf mil, comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70)
Alcino, esta carta está escrita no meu coração desde o dia 16 de Outubro de 1969, quando tu passaste a ser sinistrado de guerra. Até então, tu eras o 1º cabo a quem eu confiava a manutenção da dispensa, a preparação das escalas dos turnos da noite, a limpeza das metralhadoras nos abrigos, a elaboração da lista das munições que traríamos do batalhão.
Enviaram-me agora uma fotografia da Capela de Bambadinca, e a minha primeira recordação foi para ti. Um dia, regressava eu de um coluna do Xime, e alguém da secretaria me informou da tua chegada. Recordo um jovem transido, a olhar-me apavorado. Devem ter dito de mim cobras e lagartos, que ias para o inferno de Missirá sob o comando de um louco que andava permanentemente na mata. Tu vinhas substituir o Raposo, a quem apliquei 10 dias de prisão por ter adormecido no posto de sentinela. Apanhaste a fase épica da reconstrução do quartel, depois dos incêndios de Março, que devoraram as moranças, abrigos, depósitos. Ajudaste-me imenso. Eras reservado, o meu irmão mais novo a quem eu entregava aspectos de logística que me enfastiavam. Sei que adoeceste um dia que recebeste uma carta, sabe-se lá que calúnias ou suspeitas infundiram sobre o teu ânimo. Mas eu continuo a ver-te a tremer junto à Capela de Bambadinca, assombrado com a guerra que se aproximava. Eras um camponês, e ao longo destes anos eu interrogo-me sobre o que tens feito na vida, coxeando na tua fractura de calcâneo. Ora eu sou inteiramente responsável por tudo quanto se passou em Ganturé, pelas 18 horas de 15 de Outubro, e tu uma das minhas vítimas. Segue a minha confissão.
Os meses de Agosto e Setembro foram tumultosos, com operações, patrulhamentos diários a Mato Cão, a montar a vigilância às lanchas que navegavam até ao porto de Bambadinca. Tu deves estar recordado que em Agosto, entraste afogueado no meu abrigo aos gritos:
- O Furriel Casanova diz que vai matar toda a gente!.
Quando cheguei à porta do abrigo, de facto o Casanova andava de metralhadora em punho a ameaçar toda a gente de morte, caso lhe desobedecessem. Alguns soldados riam, pensando que se tratava de uma paródia. Mas não. Os nervos do Casanova tinham cedido. Demorei meia hora a avançar para ele, ele gritava:
- Não se mexa, mais um passo e dou-lhe um tiro na cara!
Quando lhe tirei a arma pelo tapa-chamas, ele caiu redondo no chão da parada. Como te recordas, foi evacuado e não mais voltou. Era assim a nossa guerra, eu via-te triste, penso que tu estavas muito distante, mordido de saudades da tua gente.
A 15 de Outubro devíamos ter regressado mais cedo. O Comandante local do PAIGC, Corca Só, já me tinha ameaçado de morte, tendo mesmo deixado um bilhete na estrada. Saímos tardíssimo de Finete, o sol a cair a pique, como acontece nos trópicos.
Mandava o bom senso que eu desse ouvidos ao nosso condutor, Manuel Guerreiro Jorge, que me pediu insistentemente que ficássemos em Finete. O Unimog 404 vinha carregado de combustível, rolos de arame farpado, munições e alimentos. E em Ganturé a roda dianteira do lado do condutor pisou a mina anti-carro que desfez completamente a frente da viatura.
Os minutos que se seguiram foram de apocalipse e caos, à altura daquela guerra. Saí com a G3 na mão e foi o que me valeu. O Cherno, que seguia no guincho, desapareceu, isto quando o guincho ficou completamente retorcido. O Cherno apareceu a dezenas de metros de distância, feito num Cristo, felizmente andou pelos ares e aterrou num morro de baga-baga. O desastre maior foi mesmo o Manuel Guerreiro Jorge que ficou desfeito da cintura para baixo e já chegou morto a Finete. Estou neste momento com a carta que o pai dele me escreveu quando regressei a Portugal, pedindo-me para o ir visitar ao Monte da Cabrita, Santana da Serra, concelho de Ourique. Prometi ao Sr Jesuíno Inácio Jorge ir visitá-lo em breve, o que nunca aconteceu.
De acordo com o relatório que fiz sobre esta emboscada e accionamento da mina anti-carro, tu ficaste ferido, bem como o Comandante da Milícia de Missirá, Albino Mamadu Baldé e o soldado Arlindo Bairrada. Imagina tu que o Bairrada foi ferido com estilhaços num saco lacrimal, andou com um olho pensado durante semanas e recompôs-se rapidamente. Também perdi o rasto do Bairrada.
Não sei se deva contar como foi a nossa retirada até Finete, para vir buscar reforços. Os soldados válidos ficaram a tomar conta dos feridos. Retirei com crianças, com uma granada em cada mão. Em Bambadinca, encontrei a solidariedade do costume, regressei a Finete com o médico, David Payne (já falecido) e com o Alferes Reis, o sapador (nunca se recompôs da guerra, aparece-me no meu trabalho de vez em quando, sofre da mania da perseguição) e no dia seguinte, após a vossa evacuação por helicóptero, regressei a Missirá. Era minha intenção escrever-te, e depois visitar-te no Hospital Militar.
Escrevo-te agora pedindo-te perdão pelo meu silêncio e pela minha ausência. É legítimo que tu nunca me perdoes a minha incúria naquela guerra demencial, onde eu arriscava tudo, esquecendo-me que comandava homens, jovens da minha idade. Devia ter-te procurado. E de vez em quando sinto-me intranquilo sabendo que tu, meu caríssimo Alcino, merecias que te tivesse procurado, dado companhia e confirmado a amizade que sempre senti por ti.
Não sei exactamente porque te estou a escrever hoje. Creio que o detonador foi a tal fotografia da Capela de Bambadinca, onde muito perto te conheci. Estamos numa idade em que não vale a pena guardar rancores e só me resta ter pena deste meu estúpido silêncio que alivio agora com esta confissão. A ver se ganho coragem para descobrir onde tu paras e tentar dar força à nossa amizade.
E se acaso leres esta carta, tal como nós dizíamos nos aerogramas, espero que a mesma te encontre cheio de saúde e prosperidade.
Teu, Mário Beja Santos.
sexta-feira, 23 de junho de 2006
Guiné 63/74 - P901: De Viana do Castelo a Cansissé (Américo Marques)
Boa tarde Luís!
Mais uns escritos, muito simples e sem conteúdo que doa, a recordar, como acontece com outros relatos. Unicamente descrevo um bocado da vivência, que em parte todos viveram. O ir, chegar e sobreviver – até regressar. Numa África que nos foi comum.
© Américo Marques
Américo Marques
A Estibordo do Niassa
Após ter ido de Viana do Castelo (B C 9) para formar batalhão até Penafiel e desta até Lisboa para embarcar no Niassa. E, como se tivesse acordado, dou comigo sentado no castelo da proa a estibordo do meu transportador marítimo. Num fim de tarde de Junho de 1973, quando avistei reconfortante vegetação – que me fez lembrar rapidamente a vida verde das montanhas e dos campos minhotos. Neste caso, as rendas verdes de Viana. Cidade pequena, dotada pela natureza com um rio calmo um mar muito iodado, e uma montanha que é destino de peregrinos. No resto é como outra qualquer. Composta de cedros, acácias, pinheiros, carvalhos, esquilos e miradouro para um deslumbrante horizonte. Quando o sol namora o mar, ao fim da tarde.
Depois deste devaneio ou divagação que me confundiu, resultante de um estado psicológico muito frágil (porque enjoei), deixei-me aconchegar pelos sendeiros de terra vermelha de Bissau. Envolvimento irreversível. Fazendo nascer em mim uma ligação que é neste momento - passados 33 anos - uma saudade maior que o oceano que nos separa... Fisicamente como é óbvio. Porque na mente a Guiné só não é a minha primeira terra porque existe uma outra, chamada Portugal.
E assim, já muito picado, fui andando, indo e me envolvendo com a realidade da Guiné. Foi quando nos enviaram para o Cumeré, para ouvir as boas vindas do supremo, o General A. Spínola. No dia seguinte, carregados de petiscos, bombarda e o Racal, foi dar ordem às botas até Mansoa. Cumprir o terrível I. A. O, que se estendia também às zonas de Nhacra e Dugal.
Passadas duas semanas, toca a carregar de novo o equipamento de campismo para definitivamente ficarmos acampados… Ah, mas não fomos à pata! Fomos enlatados num ferry, uma LDG, até ao Xime. Hall de entrada, via berliet, para as terras do Gabu.
Aqui tracei (mal) ou alterei o meu destino mais imediato. Como o bazuqueiro era amigo e companheiro de trabalho e como pertencia a outro grupo de combate que não o meu, pedi para trocar. Saiu-me a fava! Pois deixei de poder ficar em Nova Lamego. Que tinha comércio de gente ibérica, cinema, raparigas das nossas e vinho Lagosta. E de novo lá vou com as ferramentas. Desta vez para a vida paleolítica de Cansissé, acompanhado na viagem por muitos macacos que, para meu espanto, ladravam.
Ao chegar, embora nos tenham recebido com uma enorme festa, eu sou mal tratado (mas aceitei as caneladas) pois os 2 operadores de rádio que já cantavam; estaaaa´na mala… ficam encornados! Aguardavam dois transmissões e só chega um, e de maca, devido a estar com uma carga de paludismo.
Acreditem, que cá o doente teve pena do Lisboeta e do Alpalhão. Este grupo de combate até tinha o título de Os Duros de Cansissé, que chatice não os livrar das noites de escuta (até ao último dia) no Racal TR28.
Era só operações!... Na primeira, devido a levar a antena do STORNO à vista, o capitão chamou-me nomes feios, daqueles que se chama aos do apito... Desde o nascer do sol até ao pôr do mesmo. Quando assim não era, tinha que se cortar palmeiras - ai as minhas mãos! - para novos abrigos, pois o inimigo tinha armamento terrível. Nem os jactos escapavam. Eu que escutava nos diferentes rádios sei o que comunicavam, em cifra ou em codartemar.
Mas o pior era comer tripa seca (dobrada), tomar banho à bidonville; andar à pancada a escorpiões e aos tiros a serpentes. Iluminados com petróleo, que se metia em garrafas da cerveja Sagres e cuja torcida era feita de gaze, que nem sempre havia devido a ter duas estafadas Mercedes, constantemente avariadas. Obrigando durante as colunas que alguém tivesse que ir para trás, de bicicleta (emprestada!), por picadas não batidas até ao Destacamento ou a Canjadude, para trazer óleo. Neste caso, e que me lembre, o meu conterrâneo foi um dos valentes voluntários a fazer de aguadeiro (género o grande Joaquim Agostinho) para nós.
Escrever sobre sofrimento, situações sangrentas ou mortes dos da minha CART e das outras, não o faço, pois é provável que possa contar estórias sobre esta nossa História, no seu ponto mais dramático. E essa, só diz respeito ao colectivo do BART 6523. Nunca a uma vontade (embora normal) individual de prosar.
Concluo com uma grande necessidade de descarga emocional: nenhum Soldado devia ser sujeito a submeter-se - pois fomos obrigados a arrumar as armas e acatar ocontrolo do PAIGC - a um inimigo que tinha razão. E nós não sabíamos e foi uma grande humilhação. Por isso e só por isso. E por conseguinte, fomos escorraçados e hostilizados com palavras e gestos de desprezo, durante o percurso da viagem sem retorno, do Cumeré, local de concentração, até ao aeroporto. Naquela manhã de 9 de Setembro de 1974. Dia do Fim!
Junho 2006
Américo Marques
Guiné 63/74 - P900: O 25 de Abril em Nova Lamego (A. Santos, Pel Mort 4574/72)
2. Resposta pronta do A. Santos (ex-sold trms, Pelotão de Morteiros 4574/72, Nova Lamego, 1972/74)
Amigo Luís:
Em resposta ao teu pedido, sobre Abril em NL [Nova Lamego]:
Houve alguma confusão mas, como é lógico, ninguém me tira da cabeça que houve mãozinha do PAIGC.
No 1º de Maio [de 1974], NL acordou com muitas montras partidas, portas arrombadas e muita pilhagem, claro que houve muitos estragos, materiais e fisicos:
(i) materiais: tudo o que se podia levar para casa marchou, sendo os alvos principais as casas tradicionais do comércio guineense e as casas de libaneses;
(ii) físicos: 4 ou 5 mortos e vários feridos, não sei precisar.
De início a tropa tentou segurar a sublevação mas, como não estava a conseguir, o Coronel, comandante do CAOP2, mandou avançar os paraquedistas, que estavam ali à mão e o resultado foi o atrás descrito.
Quanto aos Fulas, sempre me dei bem com eles e vice versa, inclusive alguns até considerava como amigos. Recordo que principalmente as mulheres diziam que o branco não devia vir embora.
Após esse dia só houve mais uma tentativa, mas não me recordo de haver males fisicos, depois os ânimos serenaram, os militares do PAIGC começaram aparecer fardados, alguns até eram lá do sítio, e ostentavam a arrogancia própria dos vencedores,peito inchado... Na grande maioria, ao passar uns pelos outros nem nos cumprimentavamo, uns aos outros... Havia tensão no ar, mas nunca passou disso.
Todo o tempo de guerra dá cabo dos nervos aos seus intervenientes, mas, Luís, o período que mediou de finais de 1973 até depois do 25 Abril deu cabo dos meus. Na altura não avaliei a situação, como é natural, mas hoje passados estes anos todos é que sei o quanto me fez mal à saúde.
Um abração
A. Santos
Guiné 63/74 - P899: Diga se me ouve, escuto! (Renato Monteiro)
Foto do arquivo pessoal de © Luís Graça (2005)
O Renato, que faz parte da nossa tertúlia, ainda não disse quem era: dei-lhe um tratamento de privilégio... Mas já agora ficam a saber mais alguma coisa sobre o misterioso homem da piroga:
Embarcou para a Guiné em 18 de Fevereiro de 1969, fazendo parte da Cart 2479 / BART 2866... Passou por Contuboel (Junho/Julho)(1) e Piche, acabando por mudar de companhia, por motivos disciplinares... Sem entrar em detalhes, por razões de confidencialidade e respeito pela privacidade do meu amigo, julgo que caso destes não eram tão raros quanto isso no nosso tempo... Já aqui o João Tunes falou do caso dele (2)... A porrada valeu ao Renato a mudança de companhia: foi colocado no Xime e depois no Enxalé, na CART 2520 (1968/70)... Por pouco tempo, já que o paludismo apressou-lhe o fim da comissão: evacuado do Hospital 241 foi transferido para o HMP, em Lisboa, em 4 de Setembro de 1969.
Tudo para justificar a quebra de um compromisso e dar a conhecer, ao resto da tertúlia, mais um camarada da Guiné, com uma históira de vida e uma sensibilidade singulares, um homem desalinhado como eu, e sobretudo que sabe oôr em palavras muito daquilo que sentimos e vivenciámos na tropa e na guerra, ou não fosse ele um poeta e um artista. O Renato vai-me perdoar por lhe retirar um pouco do seu mistério... (LG)
Texto do Renato Monteiro (ex-furriel miliciano, CART 11, Contuboel e Piche, 1969/ CART 2520, Xime e Enxalé, 1969):
Amigo Luís:
Apesar dos inúmeros apagões (alguns intencionais) sobre o capítulo da minha história (desde o embarque ao regresso), tenho a ideia de, nesse tempo, ser sempre dos últimos a chegar à formatura. A falta de pontualidade acabava sempre por constituir motivo sério de repreensão (inúmeras vezes repetida) pelo Comandante da Companhia: -- Ó Monteiro, um dia destes, dou-lhe uma porrada”.
É bem provável que te recordes do sujeito: um tipo excessivamente baixinho, que nunca foi capaz de fazer uma meia volta - volver sem criar a impressão de mover-se numa matéria adesiva, impedindo a rotatividade livre dos calcanhares e por filtrar as sílabas e as vogais através do cornetim nasal, em vez do uso comum das cordas vocais quando comunicava com o pessoal...
Não vale a pena adicionar, a estas, outras características inerentes ao sujeito para perceber como, a partir de certa altura, o regime, com um número cada vez mais insuficiente de quadros permanentes não teve outro remédio senão mandar para as urtigas os manuais de selecção de pessoal para as três frentes... Em determinada fase do campeonato, os recursos humanos deixaram de se preocupar com a questão dos perfis: servia qualquer um.
Como não alterei, em nada, esta inclinação espontânea para o desalinho,
acabei por propiciar o cumprimento da promessa nasalada do capitão, cedo demais, em Piche, para onde fôramos transferidos.
Após 10 diz de detenção domiciliária, em situação de incomunicável, acabei por ser recambiado para o Xime, com um grande sentimento de luto, sobretudo em relação aos africanos do meu pelotão (com quem trocava imensas estórias) para além de me ver afastado do companheirismo de um ou outro camarada, especialmente do Furriel Cunha (mais conhecido por Canininhas) que, tendo sensivelmente a mesma estatura da do capitão, não era tão baixinho quanto aquele!
Natural do Barreiro e filho de um palhaço, herdara do pai um grande humor (que muito ajudou a contrariar a propensão para uma revolta amarga que me deixava a falar sozinho) sendo, ainda, dotado de uma aptidão fora de série para tocar qualquer instrumento. (Hoje não faz outra coisa do que andar pelo país fora, a concertar orgãos e pianos gripados...). Desde a aterragem no Aeroporto da Portela (1969) vi-o apenas três vezes: uma com o propósito de me facultar o Diário da Companhia ( a CART 2479); outra para me ceder algumas fotos tiradas por si na Guiné (algumas das quais figuram na Fotobiografia) e uma outra a pretexto de beber um copo...
Seguramente que a personalidade do Canininhas, vertida para a literatura, não careceria de muita elaboração ficcional, bastando quase só transcrevê-lo... E, pergunto-me se não terá sido ele o autor da foto da Piroga do Geba, já que uma das suas fixações era, para além de perfilhar uma gazela (!), adquirir uma câmara fotográfica...
Como tu, é difícil recordar o terceiro camarada que se encontrava connosco e a quem , afinal, se fica a dever este inesperado reencontro entre nós e, com uma certa memória de mim próprio...
Ao contrário da maior parte das pessoas que conheço (e crê, não me vanglorio desta particularidade) nunca mais cuidei em revisitar os antigos companheiros... Sequer os que integravam a Companhia sediada no Xime que incorporei.
Salvo os graduados, a maior parte era constituída por malta recrutada no Alentejo, tendo como comandante um homem com quem apenas troquei duas ou três brevíssimas conversas, uma das quais em torno de livros que líamos e autores que apreciávamos.... Igualmente miliciano, de formação católica, de quando em quando, procedia a uma breve cerimónia no centro da parada, junto a um padrão ou coisa do género, onde lia umas passagens da bíblia a muito poucos (meia dúzia ?) de soldados que, voluntariamente, o acompanhavam...
Ao que julgo, era professor de Química e, apesar de não recordar o seu nome (imagina, como trabalhei para a evaporação destas memórias) conservo dele a
melhor das lembranças... Aceitava pacificamente a minha tendência para o
desalinho (se é que dava por isso) e eu respeitava-o.
A partir do Xime, como sabes, a par das incursões que se faziam em direcção (por vezes mais aparentes do que efectivas) às bases ou acampamentos dos Turras (devidamente assinalados no mapa da tua página), mantínhamos um contacto regular com Bambadinca para o reabastecimento logístico.
A Ponte de Rundunduma, próximo daquela aldeia (e que se encontra igualmente ilustrada na tua página), foi ocupada inicialmente pela secção de que fazia parte.
No dia em que lá chegamos, a preocupação prioritária foi a de cavar uma vala, vertiginosamente, operação deveras penosa mercê da dureza do terreno, e de no dia seguinte tratarmos de construir uns frágeis abrigos, com os usuais bidões, enchidos com pedra e areia cobertos por folhas de zinco.
Imaginarás como nos sentíamos tão vulneráveis, sobretudo à noite, face a uma hipotética investida do IN. A expectativa de sermos atacados, com os parcos dispositivos de defesa e o reduzido número de homens que dispúnhamos, causava-nos uma grande intranquilidade... Alturas houve em que apenas dormitava durante o dia, por temer a probabilidade de virem a incomodar-nos de noite, estando ainda por perceber a que razão de não nos terem visitado... Ora, para serem bem sucedidos, nem precisariam de grande ousadia!
À volta do rio, nos charcos, o insistente coaxar das rãs era-me tão insuportável que a custo simulava junto da Guida a irritação que me provocava o pitoresco e pacífico som daquelas sujeitas quando, mais tarde, as surpreendíamos nos lagos do nosso namoro!
Apesar de partilhar com os demais aquele sentimento permanente face à iminência das emboscadas e flagelações aos aquartelamentos (que acabaram episodicamente por suceder) onde me senti, apesar de tudo, menos desconfortável (se assim posso dizer) foi no Enxalé, para onde fui destacado.
Aí, tive a oportunidade de retomar o contacto com as comunidades africanas, balantas e mandingas, que coabitavam, paredes meias, com o destacamento. Através da leitura recente que fiz a registos dessa altura, soube (para minha surpresa) que cheguei a ter perto de cem alunos aos quais procurava ensinar a falar e a escrever a língua portuguesa utilizando como espaço lectivo um antigo armazém de um colono, que se pôs em fuga no início da Guerra...
Logo no início desta longa resenha falava-te da falta de pontualidade em chegar às formaturas. Amigo Luís, essa lacuna mantém-se até hoje. Não apenas em relação às coisas que se comparam com a seca das formaturas, mas também com as que envolvem prazer, como o simples acto de responder-te...
Em parte, este deixar para amanhã o que deve ser feito logo, prende-se com a falta de tempo ou, melhor dito, com a forma como o ocupo...
Disso te darei notícia, tão breve quanto possível, aproveitando para responder às tuas últimas palavras.
Um grande abraço,
Renato
Lumiar, 28 - 7- 05
Notas de L.G.
(1) Vd. post de 29 de Junho de 2005 > Guiné 63/74 - LXXXVI: No 'oásis de paz' de Contuboel (Junho de 1969)
(...) "O que eu observo, sob o frondoso e secular poilão da tabanca, é uma típica cena rural: (i) as mulheres que regressam dos trabalhos agrícolas; (ii) as mulheres, sempre elas, que acendem o lume e cozem o arroz; (iii) as crianças, aparentemente saudáveis e divertidas, a chafurdar na água das fontes; (iv) os homens, sempre eles, a tagarelar uns com os outros, sentados no bentém, mascando nozes de cola…
(2) Vd. Blogue do João Tunes > Bota Acima > post de 7 de Abril de 2004 > Jogo de cartas