quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4893: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (IX): Nascimento do primeiro filho (SET - DEZ 1966)

Continuação do Diário de Guerra, de Cristovão de Aguiar (IX)

Bissau, 20 de Setembro de 1966

A Otília embarcou hoje para Lisboa. Viemos de cima, do mato, há três dias. Seguiu há pouco num avião militar, com uma bar­riga enorme de quase sete meses. Deve nascer o pimpolho em fins de Novembro, princípios de Dezembro. Vou ficar em Bissau durante mais uns tempos para me tratar, que não consegui aguentar-ne nas canetas psicológicas.

Bissau, 26 de Setembro de 1966

Poema para minha Mãe, que faz hoje quarenta e sete anos de vida:

“O MENINO DE SUA MÃE”

- Mãe, que é do teu menino,
Tão breve,
Brincando no caminho,
Em corridas de pé leve,
Guindando as poças da chuva,
Que caía em desatino
E logo estiava num instantinho?
- Que será feito do arco e do pião
E da fieira que se apertava no bojo como uma luva
Que o teu menino, à mão, zunindo, o lançava,
E da Lua clara que nem lampião,
Que, vagarosa, no céu viajava?

- Onde o marulho do mar
Que aquietava o teu menino,
E dos barcos de papel
Nas valetas rasas de água a cirandar?
Que lhe destinaram do destino
De flores e mel
Que lhe afian­çaste outrora?
E da Paz das noites benditas,
Do Deus em que ainda acreditas
E que o teu menino foi esquecendo,
Não O compreendendo
Por desdita agora?

- Onde o berço
Em que o embalavas,
E das preces da hora do deitar
- Nunca o terço! 
(Com Deus me deito, com Deus me levanto...)
E dos casos que lhe con­tavas,
E das cantigas soando a mar
(Assim era o teu canto!)
Que devagarinho en­toavas
Para teu menino nanar?
- Dize-me, Mãe, onde morreste
O teu menino?, em que desvão o escondeste
Para o ir procurar?

- Sabes, Mãe, o teu menino está tão di­ferente:
Velho e absorto
E sobretudo tão ausente
(Dir-se-ia quase morto)...
O teu menino
Já não salta ao eixo
Rebaldeixo
No adro paroquial,
Nem no ci­mento da Avenida...
Nem tão-pouco joga (o que é o destino),
O seu pião de fieira colo­rida,
Que há tanto tempo se rachou...
E o arco de ferro forjado,
Com a sa­pata feita do mesmo metal,
Foram-se enferrujando num recanto
Da encantada casa-de-trás...
Depressa  o tempo foge 
O teu menino tornou-se rapaz
E dá a viva ideia de que é hoje
Uma visão alucinada de soldado...

Onde já lá vão as guer­reias
Tra­vadas na Canada da Sabina
Em que havia muita pedrada,
Baba e ranho, alarido e arengada,
Chegando o sangue a esguichar das veias?...

Ficava a Canada quase em frente
Da casa de madrinha Rufina,
Que um dia se despediu da gente
E se foi para a Amé­rica no voo da carreira...
Tudo então se passava entre o rapazio:
Os de Cima e os de Baixo, que, cheios de brio,
Defendiam à tapona e à porrada
A rigorosa fron­teira
Que separava os de cada lado da Canada...

Entre­tanto toda a vida se en­rodi­lhou,
E ela tem agora um travo a puro fel...
Só da noite mais noite é te­cido o teu menino,
Vive ainda em maior escuridão que o destino,
Que se não cum­priu e ficou em ruínas
- São as nossas sinas
Mas nunca se há-de ele es­quecer
Que um dia que já não existe
De teres prometido ao teu menino
(Ele não se lem­bra agora se já então era triste),
Embarcado em seu batel de ilusão
E de papel,
- O tal des­tino
Que, como vara de condão,
O haveria de transmu­dar em flores e mel...
Todavia, cá dentro, ele perma­neceu e continua refém...
Há-de ser resgatado, quem sabe, na Banda do Além...

A tua bênção me cubra, minha Mãe!


Bissau, 27 de Setembro de 1966

Aqui estou há mais de uma semana em trata­mento psiquiátrico. Vejo tudo envolto numa pelí­cula de sono saboroso! Comecei por matar vacas e carneiros a tiro de Walter e de G3. Faziam barulho, mééé, e eu não su­portava o mínimo ruído, sobretudo de noite. Havia, porém, quem matasse carreiros de formigas com a G3. Mas eu pagava o prejuízo aos seus donos. Se era alta noite, gri­tava pelo cozinheiro e seus ajudan­tes e mandava que esquarte­jassem os animais, para que depois a carne servisse para o nosso sustento. Chamava depois os indígenas, seus do­nos, logo de manhã ao quartel, per­guntava-lhes o preço dos ani­mais e pagava o que me pediam. Matava gatos também, mas esses ti­nham sete fô­legos e levavam muito tempo a morrer: esper­nea­vam e miavam de tal ma­neira, que quase me en­doideciam. O pior foi o ensaio de pancadaria com cavalo mari­nho que dei num furriel. Mandei a Otí­lia para casa de um comerciante cuja mulher convivia por vezes com a minha, pre­tex­tando-lhe que queria ter uma conversa em particular com um militar. Foi a gota de água que fez com que o médico da com­pa­nhia me vi­es­se a sugerir, com muito bons modos, que, quando fosse a Bissau levar a Otília, ficasse por lá, a fim de des­cansar. Estava com o meu grupo de com­bate em Sonaco há mais de um mês. Ali era o re­pouso do guerreiro. Tinha um cachorro lindo, arra­çado de setter. Andava um dia a passear, ao lusco-fusco, na rua com­prida de So­naco, quando ouço atrás de mim o jipe da patrulha. Não deram por mim, que an­dava na berma. Só enxergaram o cachorro, que vinha no meio do caminho. E ouço então o furriel a dizer para o con­dutor:  Mata o cão do nosso alferes.  Não foi pre­ciso mais nada. Denunciei a minha pre­sença e ordenei-lhe que se apre­sen­tasse no quartel imediatamente. Obedeceu. Depois levei-o até à minha palhota. E foi en­tão que lhe toquei a pavana com o ca­valo marinho. Mas, não há dúvida, os medica­mentos que estou to­mando estão produzindo bom efeito. Já vou exercendo autocrí­tica sobre os meus actos passa­dos.


Bissau, 5 de Outubro de 1966

ALMA DOLENTE

A tristeza das coisas ao sol poente,
Falando, muda, numa voz precisa,
Escuta-a quem tem a alma dolente
E a dor de uma ânsia que se eterniza.

O Universo absoluto é uma ferida,
Lateja, arde, geme, sem compasso...
Dói tudo no silêncio, e a própria vida
Escorre vagarosa em gotas de cansaço...

Oh negrume tropical, noite africana,
Oh escuridão do medo em cada esquina
Com a vida enforcada em pó e lama,

Arranca do ventre tuas vinganças
E este ódio que as almas assassina
E deixa o Sol brincar com as crianças...


Contuboel, 7 de Outubro de 1966

O Dakota militar, vindo de Bissau, fez-se à pista térrea de Bafatá. Mas, quando tocou no solo, foi-se desviando para o mato, meio desasado. Parou a tempo de não haver desgraça. Tinha rebentado um pneu de uma das rodas do trem de aterragem. Como era dia de santo correio, estavam um jipe e um Unimog da minha companhia no aeródromo e assim aproveitei a boleia e vim logo para casa, que já tinha saudades dos meus cães e dos serões ouvindo a Voz da Liberdade e das tertúlias poéticas, em que lia, em voz alta, para um grupinho muito restrito, os versos da Praça da Canção, de Manuel Alegre, e também da Antologia da Poesia Erótica e Satírica, organizada por Natália Correia, que, por tal facto, teve de responder em tribunal, tendo a obra sido apreendida. Mandou-ma um elemento do Movimento Nacional Feminino, quando aqui esteve uma delegação de três meninas universitárias. Pedi-a no gozo. Nunca julgava que, ao fim de um mês, tivesse nas mãos uma obra proibida pela PIDE, enviada por quem foi.


Contuboel, 10 de Outubro de 1966

Chegou há semanas, estava ainda em tratamento em Bissau, uma ordem do comando-chefe, via batalhão de Bafatá, destinada a todas as unidades do mato, sobretudo àquelas prestes a partir, avisando que os soldados que não sabem ler nem escrever terão de embarcar da Guiné pelo menos com o exame do primeiro grau, ou seja, a terceira classe da instrução primária; caso contrário, quando chegarem à Metrópole, não poderão ser desmobilizados e ficarão nas respectivas unidades até concluírem aquele exame. O mesmo acontecerá àqueles que, tendo embora o exame do primeiro grau, saírem daqui sem o diploma do exame da quarta classe. É uma ordem injusta, não por ela em si nem pelo seu alcance, mas pelo facto de estarmos a pouco mais de três meses do regresso e não haver tempo suficiente nem condições psicológicas para uma intensiva preparação escolar dos soldados em tamanho estado de indigência cultural. Por outro lado, também não se percebe muito bem o súbito interesse das hierarquias militares pelos seus homens analfabetos e pelos outros que só têm a terceira classe. Deve ser para dar alimento às estatísticas. O capitão pôs logo mãos à obra, isto é, nomeou alguns voluntários e já se começou há tempos a dar escola. Dois furriéis milicianos e um alferes (eu próprio, que me juntei há pouco), iniciaram então a tarefa de mestre-escola. Garanto que toda a gente irá embarcar com o seu diploma na mão, custe o que custar. Por desmobilizar é que não ficam, não senhor. Era o que faltava, depois de uma comissão desta natureza, permanecerem os pobres coitados retidos no Regimento de Infantaria 15, em Tomar, até completarem os estudos. Os alunos são em número de dez: seis que não enxergam uma letra e os outros quatro pouco mais sabem, pois têm um primeiro grau muito atrasado e esquecido.


Contuboel, 23 de Novembro de 1966

Estava sentado no estabelecimento do comerciante português, lendo o Arauto, o pasquim da província, e fumando intensivamente cigarro atrás de cigarro, quando chega o nosso capitão com um papel numa das mãos. Era um telegrama que tinha vindo via rádio, anunciando-me que era pai. Fiquei néscio e sucinto. Pai! E escrevi, num aerograma amarelo, um poema ao meu filho José Manuel, a primeira missiva que recebe na vida, que ainda agora principiou...


Bafatá, 12 de Dezembro de 1966

Exame dos alunos da Companhia de Caçadores 800. Cometi um acto sacrílego, mas não havia outra escapatória. Sacrilégio maior seria deixar que estes homens ficassem na tropa mais alguns meses, ou um ano, sei lá bem, depois de terem sofrido o que sofreram nesta guerrilha diabólica de nervos e do resto, que foi ainda pior. Falei com a senhora professora, uma cabo-verdiana lindíssima, de fazer refrear a respiração. Disse-lhe da minha justiça e das minhas intenções. Ela, com o seu brio profissional à flor da pele sedosa:

- Não, senhor alferes, não posso consentir numa palhaçada dessa natureza, pelo amor de Deus. - Principiei a seduzi-la e ela foi caindo de tal modo na esparrela, que, quando a convidei a sair da sala de exame, obedeceu, sem pestanejar. Depois. Olha, depois! Depois, encarreguei-me eu próprio de fazer o exame escrito, com caligrafia de principiante, a condizer, dos seis semi-analfabetos, que o tempo de aprendizagem e a disposição de ensinar foram mesmo muito escassos, enquanto os meus camaradas se incumbiram dos restantes. No fim, ficaram todos aprovados e a professora, ao entrar na sala após ter sido avisada de que terminara a prova para lhe entregarmos as respostas, lançou-me uns olhos tão doces, que me deu vontade de lhe tomar lições de qualquer disciplina.


Contuboel, 25 de Dezembro de 1966

Uma noite de Natal já com um grão de esperança no seu ventre e outro bem pesado na asa. Daqui a menos de um mês, vamos de abalada. Até parece mentira. As cruzinhas estão chegando ao fim.
__________

Notas de CV:

Cristóvão de Aguiar foi Alf Mil da CCAÇ 800, Contuboel, 1965/67

Vd. último poste da série de 28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4876: Diário de Guerra, de Cristóvão de Aguiar (org. José Martins) (VIII): Estadia em Contuboel e Sonaco com a Otília (JAN-AGO 1966)

Guiné 63/74 - P4892: Cartas (Carlos Geraldes) (5): 2.ª Fase - Janeiro a Março de 1965

1. Mais um poste da série Cartas, 2.ª Fase - Mato, de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66.


2.ª Fase: O Mato

Pirada, 03 Jan. 1965
As festas de Natal e Ano Novo passaram sem quase darmos por isso, mas no entanto fizemos manga de festa que foi mais um pretexto para dar vazão à raiva de estarmos aqui contra a nossa vontade.
Todas as noites organizávamos batuques e rara foi a noite em que me deitei antes das 3 da madrugada. De manhã, a convite do Castro, íamos até Paúnca almoçar, eu, o doutor e alguns dos meus furriéis. Quase sempre acabávamos por ficar para o jantar. Em Paúnca come-se muito bem!
Só regressávamos depois da meia-noite, cantando ao luar durante todo o caminho. Entrávamos em Pirada aos tiros, fazendo grande algazarra, acordando toda a gente.
Depois íamos beber café para a nossa Messe e comer algum resto de frango de churrasco com batatas fritas que tivesse sobrado do almoço.

O capitão está de férias na Metrópole, o Cardoso vai cedo para a cama, ou anda por aí entretido a tentar seduzir alguma bajuda (com ofertas de pó-de-talco), de maneira que quem manda agora aqui, sou eu, o alferes mais graduado que se lhes segue.
Além do mais, com estas comezainas todas estou a ficar mais gordo. Da última vez que me pesei, a balança marcou 81 kg. Vejam lá que brutalidade!
Mas já comecei a fazer dieta. Isto é, a tentar comer menos. Praticamente deixei de beber whisky e só de vez em quando é que lá vai um, como refresco.

No dia de Ano Novo, tivemos cá a visita de uma delegação de mulheres senegalesas. Uma autêntica apoteose de cor, pois todas exibiam exuberantes vestidos, cheios de tules e rendas de nylon esvoaçando ao vento. Parece que é uma antiga tradição que, mesmo com esta ameaça de terrorismo, não deixam de festejar. São esposas de funcionários e polícias aduaneiros aqui da fronteira e têm uma maneira de vestir muito mais elegante que as mulheres do lado de cá, que parecem umas autênticas parolas diante delas. Foi um dia inteiro de muita festa com muita luz, muita cor, muita batucada e principalmente muita alegria.
No dia seguinte tudo voltou à normalidade.

O capitão parece que se está a dar muito bem lá por Coimbra, donde é natural e onde foi passar as férias. Parece que não tem vontade de voltar pois já vai com mais de quarenta dias de licença!
Mas, ah! É verdade! Também tivemos cinema por cá!
Foi no dia antes da véspera de Natal.
De repente, precedido por uma multidão de miúdos em grande chinfrineira, apareceu na entrada da aldeia, uma grande carripana, um daqueles Ford-T, quase pré-histórico que, ostentava um pomposo dístico, pintado nas portas: “Cine-Guiné”.
Ao volante, um velhote de chapéu à colonial na cabeça acompanhado por um negro.
Num abrir e fechar de olhos juntou-se uma pequena multidão que o saudava entusiasticamente enquanto ele estacionava aquela estranha traquitana mesmo no centro da aldeia. Imperturbável saiu e logo se dirigiu para uma das lojas comerciais onde parecia já ser esperado.
Era o Manel Jaquim, o famoso homem do cinema ambulante, de quem o M. Santos e o Chefe de Posto, já tanto nos tinham falado que quase o considerávamos como uma personagem lendária. Convidado a instalar-se em nossa casa, não se fez rogado, erguendo um leito de campanha, com o respectivo mosquiteiro, mesmo no meio do nosso quintal. Ao jantar, revelou-se um indivíduo muito patusco, conversador e filósofo. Apesar de já ter uma idade avançada parecia irradiar uma impressionante força anímica.
Fiel ao velho estilo colonial, de largos calções de caqui azul-escuro, chapéu de cortiça, olhar felino, revelando uma sabedoria de velha raposa, o Manel Jaquim é um sobrevivente de outras eras e aventuras, ao estilo dos filmes de Tarzan e da macaca Cheeta, da nossa meninice.
Conhecia todos os trilhos da Guiné e tratava quase toda a gente por tu completamente à vontade e com a maior franqueza. Numa época de guerra como esta que, estamos agora a travar, cheia de emboscadas, minas e selvajaria, nada parece deter este velho descendente dos conquistadores de antanho. Não há recanto nenhum da Guiné que ele não conheça e vai a sítios onde a tropa até tem medo de passar ao lado.

Rápida e metodicamente montou a velha máquina de projectar de 16 mm, completamente portátil, relíquia que afirmou ter comprado aos americanos, como salvado da guerra do Pacífico e à qual dedica toda a atenção e carinho. Aproveitando a largueza do nosso quintal, montou ali mesmo a sala de espectáculo, com um enorme lençol branco a fazer de ecrã (que chega para o formato Cinemascópio). A toda a volta do recinto colocou uma série de fios com lâmpadas eléctricas. A energia para tudo aquilo é fornecida por um pequeno, mas potente gerador a gasóleo que também trazia com ele. Na entrada, pendurou meia dúzia de cartazes a anunciar a sessão de cinema para hoje, do Cine-Guiné. À noite o nosso quintal até parecia a Feira Popular.
Empoleirado em cima de uma enorme caixa que, também lhe servia de cofre, mestre Manel Jaquim, com uma impressionante carabina de caçar elefantes, pousada nos joelhos, começou a cobrar os bilhetes aos clientes que acorriam em massa.
Preços: 4$00 para os pretos; 10$00 para os soldados; 25$00 para os comerciantes e oficiais, mesmo para aqueles que, como nós, tinham emprestado o recinto. Cada qual providenciava o assento que lhe fosse mais cómodo ou sentavam-se mesmo no chão. Era engraçado observar a fila de clientes que se ia formando à porta do cinema, todos com os mais variados bancos e cadeiras à cabeça.

O filme, “Hércules e a Rainha”, era mais um daqueles pastelões italianos sobre temas mitológicos mas que, curiosamente faz sempre as delícias destas plateias, a quem o astuto Manel Jaquim procura contentar.
Apesar de a maioria dos espectadores ser analfabeta e também não perceber nada do que os actores diziam, inacreditavelmente todos pareciam entender a trama, não desviando os olhos ecrã, vibrando entusiasticamente com as proezas do grande herói da mitologia grega.
Quando veio o final, aplaudiram maravilhados.

Bajocunda, 08 Fev. 1965
De repente fui deslocado, às pressas, para esta localidade a 10 km de Pirada e que também pertence ao nosso Comando, por haver boatos de que qualquer coisa estaria eminente.
Estamos cá ao todo, perto de 80 homens, pois também veio outro pelotão pertencente a uma Companhia de Cavalaria que futuramente será quem virá em peso para cá, reforçando esta zona tão perto da fronteira com o Senegal.
Assim somos 2 alferes e 7 furriéis a comer numa messe improvisada numa casa mesmo ao lado de um barracão que faz de caserna para os soldados, tudo encravado no meio de uma minúscula povoação de palhotas e só duas ou três casas de pedra e cal, antigos entrepostos comerciais que em toda a Guiné fazem o escoamento da produção agrícola e pecuária, fornecendo ao mesmo tempo, à população local, os mais variados artigos de consumo.

Tivemos um bocado de sorte pois encontrámos um frigorífico grande a petróleo que ainda trabalha bem. Todo o resto que precisamos é que não há meio de aparecer, tais como: cal, cimento, uma bomba de água, madeira, ferramentas de carpinteiro e pelo menos 15 camas para os soldados que ainda dormem no chão. E isto contando só com os meus, porque os do alferes Gabriel, o oficial de Cavalaria que se veio juntar a nós, esses dormem todos no cimento. É a guerra mais desorganizada que já vi.

Ontem, domingo, fui até Pirada, resolver alguns assuntos pendentes e aproveitei para rever os amigos que lá deixei, o M. Santos e a família; a Ti Clara a velha lavadeira negra que trata da minha roupa que, como gosta muito de agua di Lisboa (vinho) anda sempre a cair de bêbeda e não dá conta do serviço, entregando-o a outra rapariga, a Olívia muito mais competente; o Adulai e o Sambaro, os dois moços que foram os meus primeiros guias e que no outro dia até se deslocaram, de bicicleta, de Pirada para Bajocunda, só para me visitarem e me trazerem uma galinha. Desconfio que, ingenuamente, ambicionam pertencer ao meu grupo de guerreiros e fazem isto para me agradar.

Há ainda a Joaninha, uma criança linda, neta da Ti Clara e a Rita, uma mulata instruída, que sabe fazer renda, ganhando bom dinheiro com isso. Tudo gente com quem confraternizo, sentado num pequeno tamborete à porta da casa de Ti Clara, na berma da estrada, à entrada de Pirada, saboreando amendoim acabado de torrar, enquanto o sol acaba o seu giro diário e se esconde atrás das palmeiras que rodeiam a bolanha lá em baixo.
Quando me viram, vieram logo saudar-me todas sorridentes, perguntando pela minha saúde, pelas minhas coisas, pelos meus parentes, por tudo aquilo que acham ser os meus bens mais preciosos, tal como é costume por estas bandas, apertando-me demoradamente as mãos, especialmente a Ti Clara a quem providencio sempre algumas sobras da água di Lisboa da nossa Messe.
À saída não me deixou partir sem trazer a habitual galinha churrascada na brasa, à cafreal, temperada com muito Piri-Piri e limão como só ela sabe fazer. Abracei-a comovido. Apesar de ser uma velha horrenda com um aspecto quase repelente, coxa, meio louca desbocada até, quando está sob os efeitos do álcool mas quando sorri, o rosto todo se ilumina e transfigura-se revelando a alma pura que aquele corpo alberga. Quando morrer irá decerto direitinha para o céu, como recompensa do inferno que passou cá em baixo nesta terra esquecida dos deuses e dos homens.

O M. Santos, como sempre, faz questão em receber-me para jantar, o que eu nem me atrevo a recusar, tão maravilhosos são os jantares em casa dele.
Quando finalmente regressei a Bajocunda já passavam das 23H00, hora propícia para eles andarem por aí a preparar alguma emboscada… mas felizmente, por enquanto ainda não se resolveram.

Na noite anterior tinha também visitado, de jeep, algumas tabancas por aqui perto, para dar uma impressão de que estamos sempre vigilantes a qualquer hora do dia e que podem confiar na tropa para os proteger, caso venham a ser atacados por algum grupo armado que, vindo do Senegal, resolva fazer política de terra queimada para assustar as populações e levá-las a abandonar este território, que é o que esta gente mais teme.
Quem me sugeriu a ideia para esse passeio nocturno, e até me serviu de guia, foi um comerciante de Bajocunda, o Sr. António Costa. Muito alto e muito gordo, este indivíduo de raça negra é também um grande bonacheirão que gosta imenso de beber e de receber visitas mas que no entanto não chega aos calcanhares do M. Santos, lisboeta de gema, recém incluído nestas guerras por ter tido dificuldades financeiras na Metrópole, segundo se consta.

Bajocunda, 15 Fev. 1965
Estou aqui a vigiar uma área de mais de 300 km2, com dois Pelotões para comandar, o meu e um outro de Cavalaria, situação inédita mas que não me tem acarretado problemas de maior pois eu e o outro alferes rapidamente fizemos amizade.
Cá na terra, para já, sou o chefe máximo, depois do régulo que me pareceu ter muita autoridade entre a população, um déspota quase.
E por isso tenho muito que fazer e não parece. Estão sempre a aparecer à porta do aquartelamento (duas antigas casas comerciais, cercadas de arame farpado, encravadas no minúsculo centro da povoação) indígenas que me querem cumprimentar… e pedir algum favor. Há sempre problemas com o rancho, com as camionetas, com a falta de gasolina, com as patrulhas, com as informações, com os rádios, eu sei lá, uma infinidade de coisas que me está quase a deixar louco.
Depois ainda dizem que vim para aqui para me divertir. Pois, mas o pior é que para além de tudo, os terroristas não são para brincadeiras. Ainda no outro dia mataram dois alferes, um furriel e três soldados, numa emboscada em que usaram metralhadoras e bazookas. Andam organizados em secções de 120 homens, com 2 morteiros, 4 bazookas, 4 minas anti-carro, doze espingardas automáticas, pistolas-metralhadoras e vários revólveres e espingardas de repetição. Por enquanto aqui ainda vou tendo a sorte de a população estar do meu lado e bem armada, senão eles já teriam entrado por esta zona.

Bajocunda, 22 Fev. 1965
Vamos lá ver se consigo escrever algumas linhas como deve ser. Desde a última carta, os acontecimentos têm vindo a multiplicar-se de uma maneira assombrosa. As coisas não estão muito más, mas estão o suficiente para me encher de problemas e não me deixar dormir descansado.
Tudo começou com um ataque a uma aldeia que fica longe daqui. Queimaram as casas, mas não fizeram mortos nem feridos. No entanto toda a população da área já quer fugir, com medo que lhe aconteça o mesmo.
Assim temos de deslocar, todas as noites, duas ou três Secções para proteger as aldeias mais importantes. O IN não voltou, mas andamos todos estourados. Eu, dia sim, dia não tenho de dormir no campo com a tropa. Como se pode calcular, a minha actividade mais que triplicou, preocupado com mil e um problemas.
O M. Santos, por várias vezes já me mandou recado para ir lá comer uns camarões ou umas sardinhas assadas mas, obviamente, nem tenho podido.

Bajocunda, 01 Mar. 1965
Então que tal o Carnaval? Aqui fizemos uma batucada e improvisámos uma orquestra que esteve a chatear a paciência de todos até altas horas da noite!
Numa tabanca abandonada, na parte Sul deste território, tinha encontrado uns tambores de diferentes tamanhos e eu e alguns furriéis resolvemos improvisar uma pequena orquestra de percussão. Passámos o dia na melhor das disposições, apenas ensombrada pelos constantes intervenções do nosso capitão que parece meio histérico com a situação que está a acontecer agora nesta área.

Com a vinda da Companhia de Cavalaria para aqui, naturalmente regressarei a Pirada. Embora seja melhor para mim, acho que estas trocas e baldrocas acabam sempre por dar mau resultado. Vão ser as piores condições de alojamento, o reacender de velhos problemas, etc., etc.

Ontem à noite, antes de jantar, estivemos em Pirada, eu o Gabriel e o Inácio (outro alferes da mesmo Companhia de Cavalaria, que gradualmente se está a juntar a nós em Bajocunda). O M. Santos recebeu-nos com a habitual cortesia mas não conseguimos ficar lá muito tempo, pois o capitão começou a resmungar pelo facto de terem vindo todos os oficiais de Bajocunda, de maneira que, a contragosto, tivemos de vir embora.
Aliás, desde que apanhou aquele susto na estrada Bajocunda-Canquelifá, o capitão nunca mais foi o mesmo.
Mas a culpa foi só dele e eu passo já a contar como foi.

Nesse dia, como de costume, saí do aquartelamento para levar duas Secções até uma aldeia distante, a tabanca de Orébodé situada mesmo na beira da estrada conhecida pela estrada da mancarra (pois é a única por onde circulam os grandes camiões civis que vão até à zona Nordeste da Guiné para procederem à recolha da tal mancarra, o amendoim, o maior produto agrícola daqui).
No caminho fiz um desvio pela tabanca de Amedalai, a tabanca do régulo, onde fui investigar a veracidade de alguns boatos que corriam sobre um grupo IN, que estaria por perto, do outro lado da fronteira com o Senegal. Juntando alguns elementos da guarda pessoal do régulo para me servirem de guia, fui então até a tabanca de Cuntim, outra tabanca na berma da estrada da mancarra mas bastante mais à frente, onde teriam sido detectados sinais da presença do IN, tabanca essa que ficava a meio do caminho para Orébodé onde teria de deixar as já citadas duas secções.
Como de facto só vi vestígios que me levaram a supor tratar-se de um grupo pouco numeroso, que por qualquer motivo se teria desviado do seu percurso normal e como todos os rastros indicavam claramente que teriam regressado ao Senegal resolvi prosseguir viagem para então instalar os meus homens no local que estava estabelecido, em Orébodé, onde ficariam a pernoitar.
Sem ter dado por mais nada, regressei pela mesma estrada, fazendo novamente o desvio para a tabanca do régulo onde fui deixar os elementos da escolta pessoal dele que, ainda estavam comigo.

Quando cheguei ao aquartelamento soube que o capitão, vindo de Pirada esbaforido, tinha estado lá à minha procura, pois soubera por uns camionistas civis que, entretanto por lá teriam passado vindos de Canquelifá que, um grupo fortemente armado tinha sido visto na estrada da mancarra, tendo até feito parar um deles, embora o mandassem seguir depois. Alarmado com essas notícias ameaçadoras o capitão tentou imediatamente entrar em contacto comigo via rádio, mas eu entretanto já tinha saído com as duas secções. Assim tinha resolvido meter-se num Unimog com mais dois soldados e um furriel e vir ao meu encontro.
Ao chegar a Bajocunda, vendo que eu não estava, temerariamente resolveu, mesmo assim, ir ao meu encontro para me prevenir da situação. Por azar e devido ao tal desvio que eu tinha feito, para a tabanca do régulo, desencontrámo-nos totalmente.

Quando me inteirei do que tinha acontecido, achei que, para não haver mais desencontros, o melhor seria esperar que o capitão resolvesse voltar para trás.
Mas o tempo foi passando e nada de notícias do capitão. Quando anoiteceu e veio a hora do jantar começámos a ficar inquietos e mais inquietos ficámos, quando nos pareceu ouvir o som de uma enorme fuzilaria que parecia vir de Leste, do lado da estrada da mancarra.

Ainda tentámos uma aproximação, avançando para lá com mais uma secção, procurando certificarmo-nos de onde vinha o som do tiroteio mas, como a noite estava demasiado cerrada e como de repente tudo se tivesse silenciado, resolvemos aguardar pela chegada do dia. Quando regresso ao quartel, qual não é o meu espanto, venho encontrar o capitão e os outros homens do seu grupo, num estado lastimoso, de olhar desvairado, falando e gesticulando sem parar, rodeados pelos restantes soldados do nosso quartel.
Tinham sido repentinamente atacados por uma nutrida fuzilaria de toda a espécie, quando chegaram perto da tabanca de Cuntim, (onde eu tinha estado antes, sem que nada me tivesse acontecido). Surpreendidos, apenas tiveram tempo de abandonar a toda a pressa a viatura e as próprias armas, para fugir pelo mato fora, tentando chegar ao quartel. O que conseguiram, por autêntico milagre.
A muito custo lá fomos reconstituindo o filme dos acontecimentos.

De facto um grupo numeroso de guerrilheiros, tinha entrado na zona da tabanca de Cuntim, chegando até junto da estrada, onde teria feito parar os camiões da mancarra, deixando-os, no entanto, prosseguir sem lhes causar qualquer dano. A comprovar isso lá estavam as pegadas que eu e a milícia nativa encontrámos nos arredores daquela tabanca e que, no entanto, pareciam indicar também que esse grupo, posteriormente, teria voltado para o Senegal.
Mas o que deve ter acontecido foi que, quando eu já tinha abandonado o local, o mesmo grupo de guerrilheiros, resolveu voltar atrás, ao mesmo local, à mesma tabanca. E foi então que deram de caras com o grupo do capitão que chegava nesse momento no Unimog.
Surpreendidos por encontrarem ali elementos das nossas tropas, e como eles também não são menos medrosos que nós, julgando estar na presença de um grande contingente, abriram um tão nutrido fogo com todas as armas de que dispunham, espingardas, metralhadoras, bazookas, etc., que o capitão e os homens que seguiam com ele, nem tiveram tempo para mais nada senão, saltar da viatura e fugir, o mais rápido possível, pelo meio do mato. O que lhes valeu foi um pouco de sangue frio e um bom sentido de orientação, pois de outro modo não teriam conseguido regressar ao quartel, sãos e salvos. Mas não ganharam para o susto.
Só quase de madrugada é que consegui apaziguar um pouco o nosso capitão e convencê-lo de que tudo tinha sido causado por um daqueles desencontros acidentais que acontecem sempre quando menos se espera.
Felizmente não havia a registar problemas mais graves. Apenas a lamentar a perda de uma viatura e algumas armas ligeiras. Não se poderiam atribuir culpas, tudo tinha sido um caso fortuito. Mas que de facto, o capitão, não deveria ter tomado aquela decisão temerária de ir à minha procura, isso era uma evidência em que todos nós acabámos por concordar.

Acho que, no entanto, ele nunca mais me olhou da mesma maneira e passou a considerar-me um cruel espinho cravado na honra militar dele, que a todo o custo pretendia manter impoluta. Nunca mais foi o mesmo capitão, jovial, descontraído e até paternal para com os oficiais sob o seu comando. Ficou com o sistema nervoso definitivamente abalado e dia a dia, isso torna-se cada vez mais notório.
Como todo este acidente irá ser apagado, com certeza, dos relatórios oficiais e como não convém ser mais lembrado, o assunto passou a ser tabu. A perda da viatura, reduzida a cinzas pelo fogo IN, vai ser explicada como um incidente de emboscada inesperada e à qual foi impossível resistir sem pôr em causa as vidas das nossas tropas. Mas a imprevidência de um comandante será escamoteada, para que a fragilidade com que se joga esta guerra, não fique mais uma vez à mostra.
(Nem de propósito: na história oficial da CART 676, escrita por um oficial adjunto do capitão, pouco antes do nosso regresso à Metrópole, pode ler-se a seguinte referência a este episódio, nestes termos: “- Em 16 de Fevereiro de 1965 o IN atacou de surpresa a tabanca de Orébodé (Bajocunda) onde se encontrava uma viatura Unimog guardada por 4 soldados. O grande potencial de fogo do IN obrigou os referidos soldados a abandonar a viatura e a irem juntar-se à Secção que se encontrava perto, ficando a viatura completamente destruída e apoderar-se, o IN, de um rádio AN/GRC-9 que estava montado na referida viatura.”- sem mais nada, apenas isto!)

Pirada, 15 Mar. 1965
Estou de novo em Pirada, onde me sinto como em casa. Foi um verdadeiro alívio deixar Bajocunda pois não consegui afeiçoar-me aquilo de maneira nenhuma. Isto aqui, em Pirada, é muito mais airoso, há muito mais população, a Messe é fora do quartel e tenho o meu amigo M. Santos que continua a ser uma excelente pessoa.
Bajocunda ficou entregue a uma Companhia de Cavalaria e nós ficámos apenas com Pirada e Paúnca. É muito menos trabalhoso.
No entanto trouxe de lá algumas lembranças curiosas: um canhangulo, oferta do régulo, um conjunto de tambores saracolés, uma lança e um jogo muito interessante que, pelos vistos todos os fulas sabem jogar na perfeição, chamado Ôri. Só vos digo que tem causado tanta sensação entre os oficiais e sargentos que em menos de 15 dias todos aprenderam a jogar. Posso-me orgulhar de até me terem vindo pedir para os ensinar. É um jogo bastante simples mas que requer muita atenção e alguns cálculos matemáticos. Além disso é uma boa maneira de promover a aproximação com os nativos que gostam imenso de o jogar. Sempre que posso, desafio qualquer um para jogar comigo, quase sempre o régulo de Pirada, Solo Só que, a rir, dá-me cada nó cego em menos de um fósforo que até fico vesgo. Deve haver uma mnemónica própria para os cálculos necessários em cada tipo de jogada, mas que eu ainda não consegui descobrir qual é.
Tinha encontrado o tabuleiro à entrada de uma tabanca e até pensei que se tratava de uma escultura curiosa feita num pedaço de madeira escura, talvez a representação de uma canoa, ou até algum brinquedo infantil, embora estivesse danificado num dos extremos (pela passagem inadvertida do rodado do jeep). De facto parecia mais com uma canoa, com duas fiadas paralelas de seis cavidades cada e mais duas maiores nas pontas.
Quando, mais tarde, um indígena o viu no aquartelamento, junto com as minhas coisas é que fiquei a saber que se tratava do tabuleiro de um jogo muito popular e conhecido em toda a Guiné, o Ôri, palavra que em dialecto fula significa o algarismo um, a unidade. No próximo aerograma explicarei como se joga.
(Cerca de dez anos depois, pude constatar que este jogo é, nem mais nem menos, o jogo mais disseminado por toda a África, com inúmeras versões e nomes diferentes, Awele, Mancala, Solo, Wari etc. De origens muito remotas, estende-se até à Ásia, e é considerado um dos jogos mais importantes de toda a humanidade.)

Está cá mais um capitão que, veio comandar um grupo de sapadores. Estão a colocar uma cerca de arame farpado à volta das tabancas para as defender (?) mas, que na verdade, apenas serve para restringir a livre circulação dos indígenas e melhor os controlar.

Pirada, 21 Mar. 1965
Mais uma vez aqui estou a colocar, à pressa, a escrita em dia, à luz do Petromax, pois desta vez adiantaram o dia do Correio. Tenho de fazer serão para poder chegar a tempo. Mas não faz mal, amanhã só me levantarei lá para as dez da manhã.
Aqui dorme-se muito. Depois do almoço, dorme-se a sesta, quase sempre até às 4 da tarde. Depois quando há serviço para fazer, vamos até ao quartel. Quando não há, toma-se banho, jogamos o Ôri ou vamos a casa do M. Santos beber uns whiskies.
Autêntica vida de malandro! Quero dizer… de guerreiro! Porque de vez em quando também se vai para o mato a qualquer hora do dia ou da noite e fica-se por lá não importa quanto tempo, a dormir em que cama houver, ou mesmo até sem dormir!
E quando o Manel Jaquim por cá aparece, lá tenho de pagar os bilhetes a uma data de gente muito simpática que me enche de mimos, interesseiros, claro!
-“Alfero Gérardis, bonito, boniiito… dimais!!!” – são os elogios que estou sempre a ouvir, por esta acção psico-social, actividade a que agora me dedico no intervalo das guerras.

Ainda ontem eu e o Cardoso (regressado de Paúnca, por o Castro ter acabado as férias) fomos a um baile crioulo.
O enfermeiro civil que é mestiço e o ajudante do Chefe de Posto que também é da mesma cor, andam sempre a organizar bailes e outras comemorações, pois aparece sempre um pretexto qualquer nem que seja para provar a toda a gente que até não gostam nada de vinho…, só de cerveja bem gelada!
Um velho gira-discos a pilhas, meio roufenho, lá conseguia debitar umas mornas e coladeras bem dengosas, na semi obscuridade de um Petromax que há muito ultrapassara a garantia e com um vidro mais preto que a cara deles que não deixava sequer identificar as pessoas e os corpos dançantes, só por apalpação. Quando dei por ela, o Cardoso já se tinha raspado deixando-me ali só no meio daquela escuridão mal cheirosa, onde até podia correr o risco de ser degolado por um qualquer assassino escondido nas trevas. A Ti Clara que aparece sempre nestas ocasiões propícias estava lá, sentada a um canto completamente bêbada. Tão bêbada que quando se quis levantar estatelou-se a todo o comprido armando um reboliço que o baile teve mesmo que acabar por ali e eu aproveitei para me escapar à sorrelfa.
Mas fora tudo isso, até foi um baile bastante decente…
__________

Nota de CV

Vd. último poste da série de 28 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4875: Cartas (Carlos Geraldes) (4): 2.ª Fase - Outubro a Dezembro de 1964

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4891: Os nossos médicos (2): Tierno Bagulho e Pio de Abreu (Canchungo, 1971/73) (Luís Graça / António Graça de Abreu)



Capa e contracapa do livro de J. L. Pio de Abreu, Como tornar-se doente mental, 18ª ed, Lisboa, Dom Quixote, 2008. (Prémio Città delle Rose, 2006).



Fotos: © Luís Graça (2009). Direitos reservados.




Os nossos médicos (2): Tierno Bagulho e Pio de Abreu (Canchungo, 1971/73)

por Luís Graça e António Graça de Abreu


Os médicos que estiveram na Guiné, no tempo da guerra colonial, têm sido em geral parcos de palavras (escritas). Ainda não nos deixaram testemunhos (escritos), com uma excepção ou outra (por exemplo, Mário Ferreira, autor de uma obra de ficção, Tempestade em Bissau, que ainda não li) (*)... Que eu saiba, não temos ninguém equivalente ao António Lobo Antunes (**), que fez a guerra de Angola, e cujas filhas publicaram, em 2006, as cartas e os aerogramas que o pai foi escrevendo à mãe, entretanto falecida por doença.

É bem possível que ainda haja escritos (diários, cartas, aerogramas, relatórios, dossiês, etc.) nas gavetas de alguns dos nossos antigos camaradas médicos. Fotos, seguramente que há algumas, já amarelecidas, no velho baú lá do sótão de um ou outro. É possível, no entanto, que apareçam escritos, sobre a experiência da guerra colonial, da autoria dos nossos médicos, à medida que acabam as suas carreiras no Serviço Nacional de Saúde. No caso dos que foram mobilizados para a Guiné, logo na primeira metade da década de 1960, já estarão mais do que reformados, andando a maioria na casa dos 70-75 anos.

A verdade é que não têm chegado ao nosso blogue, nem os escritos nem as fotos dos médicos que passaram pelo CTIG. O que é pena: o seu ponto de vista, muito particular, sobre o nosso quotidiano na Guiné, é também uma peça importante do puzzle da nossa memória…

Nem sequer sabemos quem eles são (ou foram), quantos foram, por onde andaram e por onde param hoje. Em geral, havia um médico, miliciano, por batalhão. (Originalmente, houve companhias independentes, que tinham o seu próprio médico, como foi o caso foi da CCAÇ 675, Binta 1964/65, de que o nosso camarada JERO era o Fur Mil Enfermeiro) (***).

Julgo eu que fossem, a maior parte deles, de rendição individual. Em Bambadinca, entre 1969 e 1971, conheci no mínimo três, o David Payne, o Saraiva e o Vilar. Destes, o primeiro e o último tiraram depois a especialidade de psiquiatria. O Payne e o Sampaio pertenciam à CCS do BCAÇ 2852 (1968/70). O Vilar – também conhecido pela sua alcunha de caserna, o Drácula – integrava a CCS do BART 2917 (1970/72).

O David Payne, já falecido, foi aqui amiudadas vezes vezes evocado pelo Beja Santos. O Payne seu era amigo e padrinho de casamento (se não me engano). Infelizmente, também já não se encontra entre nós (***).

Os nossos alferes milicianos médicos eram mais velhos que os restantes oficiais e sargentos milicianos. O Lobo Antunes, por exemplo, foi para Angola já com 28 anos, casado… Eram mais velhos por razões óbvias: eram licenciados e, em princípio, tinham de já estar inscritos na Ordem dos Médicos para poderem exercer medicina em Portugal. Convém aqui recordar que as carreiras médicas, públicas, só existem em Portugal, desde 1971.

Não sei quais eram os critérios usados pelo Exército no recrutamento, incorporação, instrução e mobilização dos médicos, digamos, de campanha, que integravam unidades operacionais a nível de batalhão

Talvez alguém saiba e possa escrever mais alguma coisa sobre os serviços de saúde militar, a sua história, o corpo médico, etc. Enquanto estudantes de medicina, os futuros médicos deviam beneficiar de adiamento da incorporação. Mas, quando eram incorporados, não deviam ter ainda grande experiência clínica. A tropa e sobretudo o ultramar devem ter sido, também, para eles, uma grande “escola” (tanto do ponto de vista clínico como humano).

Na Guiné, para além do HM 241, em Bissau, não havia nenhum estabelecimento hospitalar digno desse nome, nem mesmo em Bafatá, a capital da zona leste… Os meios de diagnóstico e terapêutica eram escassos, o serviço de sangue bem como o de anestesia eram inexistentes, a farmácia estava limitada aos produtos do laboratório militar, etc., nos nossos postos médicos, no mato, preparados quando muito para prestar primeiros socorros (um rudimentar medicina de emergência pré-hospitalar) e fazer, quando alguma, algum pequena cirurgia ambulatória com ou em anestesia local...

Não é ofensa para ninguém reconhecer que a preparação dos alferes milicianos médicos (sem falar dos furriéis milicianos enfermeiros e dos 1ºs cabos auxiliares de enfermagem) era deficiente, tanto a nível clínico e terapêutico como epidemológico (conhecimento da etiologia e da distribuição das principais patologias que afectavam a população que serviam, os militares e os civis).

Tal como no passado, o que era sobretudo valorizado era a cirurgia militar, com as suas várias valências, capaz de responder aos casos, mais graves, de feridos em combate ou por acidente, muitos deles politraumatizados, com direito a evacuação Ypsilon (os tais trinta minutos de viagem de heli, de ida e volta, que podiam significar a diferença entre a vida e a morte).

Em geral, os nossos alferes milicianos médicos não nos acompanhavam em operações (a não ser em casos esporádicos como foi o caso do já citado Dr. Saraiva, apanhado pela Op Tigre Vadio, em Março de 1970). Eles pertenciam à CCS do respectivo batalhão e, tal como os capelões, faziam visitas periódicas às unidades de quadrícula (Xime, Mansambo e Xitole, no caso por exemplo do Sector L1, com sede em Bambadinca).

Dentro das limitações dos serviços de saúde militares da época e do país (que só tinha 3 faculdades de medicina, em Coimbra, Lisboa e Porto, e uns escassos 5 mil médicos… no final da década de 1950, número que duplicou na década seguinte!), fizeram-se milagres na Guiné, com a coragem, a competência e a abnegação dos nossos 1ºs cabos auxiliares de enfermagem, dos nossos furriéis milicianos enfermeiros, das nossas pára-quedistas enfermeiras, dos nossos alferes milicianos médicos, dos nossos médicos militares de carreira (que deveriam ser poucos) e, enfim, de todo o staff do HM241 (que, eu, felizmente, nunca conheci, por dentro…), sem esquecer na rectaguarda, na Metrópole, o Hospital Militar Principal, na Estrela, com o seu famigerado Anexo de Campolide, em Lisboa, e o Centro de Medicina de Reabilitação, em Alcoitão, Cascais, criado (em meados da década de 1960) e gerido pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. (Em casos mais graves, que exigiam sofisticados cuidados de cirurgia plástica e reconstrutiva, Portugal tinha um acordo de cooperação com a Alemanha, um parceiro da NATO).

Alguns dos nossos camaradas médicos já não estarão vivos. Outros ainda aparecem nos convívios anuais das unidades a que pertenceram. É o caso, por exemplo, do Dr. Vilar, que foi médico do meu tempo em Bambadinca (CCS/BART 2917, 1970/72), mas também do Dr. Mário Fereira.

De que eu me lembre só temos dois antigos alferes milicianos médicos na nossa lista, de A a Z, dos membros da Tabanca Grande: o Amaral Bernardo e o Mário Bravo (ambos vivem e trabalham no Porto, o primeiro no Hospital de Santo António e o segundo no Hospital da Ordem do Carmo) (****). Não confundir com oficiais milicianos que, tendo sido operacionais, se formaram mais tarde como médicos, já depois do 25 de Abril. É o caso, por exemplo, do nosso querido amigo Victor Junqueira (que vive e trabalha em Pombal).

No descritor “Médicos” do nosso blogue, há já mais de três dezenas de referências. Temos inclusive varais histórias protagonizadas por médicos mas escritas por outros. Daí a ideia de darmos continuidade à série, ainda incipiente, dedicada aos nossos médicos.

É uma série (*****) que deve ser de recordação de (e de homenagem a) os nossos médicos militares que, em geral, eram milicianos, incluindo os que prestavam serviço no HM 241, em Bissau. Fica aqui o apelo para nos lembrarmos deles e eles de nós… Cada um de nós deve ter recorrido uma ou mais vezes aos seus serviços e, portanto, deve ter, no mínimo, uma história passada com eles.

Hoje começamos por evocar dois deles, através da escrita do nosso camarada e amigo António Graça de Abreu, Alf Mil, CAOP 1 (Canchungo, Mansoa e Cufar, Junho de 1972/Abril de 1974). São eles o Tierno Bagulho, na altura já com “trinta e tal anos” e o Pio de Abreu, mais novo. O primeiro (cirurgião) com mais experiência clínica e treino de que o segundo (que hoje é um conhecido psiquiatra). O Tierno Bagulho, infelizmente, já não nos poderá ler. O mesmo não acontece com o coimbrão J.L. Pio de Abreu, autor de um desconcertante e saudavelmente provocador livro sobre saúde mental.

O livro do António Graça de Abreu continua a ser, para mim, uma preciosa fonte de informação (factual e contextual) sobre o período final da guerra que eu já não vivi nem acompanhei (1972/74).

Há tempos perguntei ao Graça de Abreu se tinha mais recordações do Tierno Bagulho, para além das que constam no seu diário. Aqui fica a resposta:

(...) Perguntas-me pelo Bagulho, o médico, cirurgião de Teixeira Pinto. Falo nele no meu livro, conheci-o bem quando cheguei a Teixeira Pinto, em Junho de 1972. Estava lá com outro médico, outro grande senhor chamado Pio de Abreu que é hoje professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e um dos maiores especialistas portugueses em Psiquiatria. Foram duas pessoas que me orgulho muito de ter conhecido. Do Dr. Bagulho, filho do almirante Tierno Bagulho, sei que faleceu poucos anos depois de voltar da Guiné. Afinal tu conheces a viúva, a Raquel. Infelizmente não tenho nenhuma fotografia do Bagulho e do Pio de Abreu, apenas uma onde apareço com o outro médico, o Mário Bravo, que veio substituir um deles em Teixeira Pinto. Um abraço ao Mário Bravo. (...)

Canchungo, 22 de Julho de 1972

Fui hoje jantar com os dois alferes médicos no único tasco onde se pode comer cá na terra. Um bife duro, batatas mal fritas, um ovo estrelado, 45 escudos.

Os dois médicos são gente interessante, inteligentes, cabeças abertas para o mundo. Conversámos sobre a guerra, sobre as nossas vidas. O Bagulho tem trinta e tal anos, é já cirurgião em Lisboa, esteve detido em Caxias quando da crise académica de 1962. O Pio de Abreu ainda não tem trinta anos, é de Coimbra e faz parte daquele grupo de quarenta e nove estudantes da Universidade que, em 1969, na sequência das greves e desacatos na academia coimbrã, foram alistados coercivamente no exército.

Nenhum tem hoje qualquer actividade política nem de contestação do regime, mas carneiros não somos. É pena para mim – não para eles -, estarem em fim de comissão, só mais dois meses para o Bagulho.

São óptimos médicos, segundo a opinião de toda a gente. Dão consulta à população, com intérprete, tratam das milhentas doenças que afligem este povo manjaco e são os médicos militares, cuidam da tropa aqui estacionada e prestam assistência aos feridos em combate que chegam a Canchungo vindos directamente do mato.

Têm uma casa grande apenas habitada por eles, fora do quartel, na avenida principal em frente ao hospital. Uma casa bonita com uma sala de estar confortável, com móveis e tudo.
In: António Graça de Abreu: Diário da Guiné: Lama, Sangue e Água Pura. Lisboa: Guerra e Paz. 2007. pp. 31/32.

Sobre o Luís Tierno Bagulho, que morreria precocemente, de doença, no final dos anos 70, depois de ter à Guiné, já independente, como médico cooperante, deixando viúva a minha amiga Raquel, e três filhos (duas raparigas e um filho de tenra idade, o Luís, hoje também médico, devendo estar a acabar a sua especialidade em medicina interna, no antigo Hospital São José, em Lisboa), escreve ainda o António Graça de Abreu:

Canchungo, 6 de Agosto de 1972

Depois do jantar, estava no bar de oficiais com o Bagulho, o alferes médico, e chamaram-no de urgência ao hospital. Peguei no jipe e fui lá levá-lo.

Havia uma criança a nascer.

A primeira vez que entrei numa maternidade foi na barriga de minha mãe, a segunda foi hoje. Entrei curioso na pequena sala do hospital que funciona como maternidade no momento exacto em que o bebé nascia, saía coma placenta ensanguentada do ventre da mãe, a pele quase branca. O Bagulho fez rapidamente o seu trabalho de médico e deixou o recém-nascido ao cuidado da enfermeira negra. Pediu-me que o acompanhasse até uma sala mais pequena, do outro lado da parede.

Havia uma criança a morrer.

Um bebé de quatro meses agonizava. A mesma enfermeira que cuidava agora do recém-nascido, há umas horas atrás exagerara na distribuição do soro à criança doente cuja vida se extinguia diante dos nossos olhos. O Bagulho pediu-me para eu ir buscar uma botija de oxigénio. Mas a válvula da botija estava avariada, não regulava a distribuição do gás. O médico suava, eu também. Nada se podia fazer. Extinguia-se uma vida por doença, incompetência, falta de meios. O miúdo morria.

Sempre o supremo milagre: entre nascimento e morte, caminhamos sobre a terra
(p. 38).

(Esta cena fez-me recordar uma outra, passada em Bambadinca, em meados de 1970 – já não posso precisar o mês – em que o Dr. Saraiva, auxiliado pelo nosso querido Pastilhas, se não estou em erro, e mais uns tantos como eu, que só atrapalhavam, tentou desesperadamente salvar uma bebé de umas das nossas amigas do Bataclã de Bambadinca… Elas era de Bafatá (vinham de vez em quando fazer a Bambadinca uma farras) e uma delas tinha uma bebé, de meses, que dormia a um canto, embrulhada nuns míseros panos. A farra era grande, a música alta, íamos já pela noite dentro, quando a mãe – a Ana Maria ? a Fatumatá ? – deu conta de que a criancinha estava com dificuldades respiratórias…

Levada de urgência para o nosso posto médico, no quartel, o Saraiva fez tudo o que estava ao seu alcance para a salvar… Lembro-me dele esquartejar, com o bisturi, a perna da bebé à procura, desesperadamente da safena para lhe poder administrar o soro milagroso da vida… A criança acabou por morrer, já de madrugada… Cotizámo-nos para ajudar a mãe a fazer um funeral condigno… Foi o primeiro bebé que vi a morrer, à minha frente. Embora já calejados pela dureza da guerra, ficámos todos consternados pela morte daquele anjinho… De bisturi em punho, o Saraiva, nessa noite, atingiu, aos meus olhos, o estatuto do gigante humano lutando, num combate desigual, contra a prepotência dos deuses. Eu, que segurava a perninha da criança, não aguentei o combate até ao fim. Pronta e brutamente, o Saraiva dispensou os meus serviços e mandou-me apanhar ar, para a parada)…

Encontro, mais à frente no diário do A. Graça de Abreu, outra referência a médicos, desta vez ao Pio de Abreu:

Canchungo, 16 de Agosto de 1972

Hoje, o resultado das brincadeiras com as armas. Ouvi um tiro e gritos na caserna dos soldados do Batalhão [, BCAÇ 3863], aqui diante do meu quarto, a uns quarenta metros. Fui dos primeiros a chegar, a ver o sucedido. Um soldado, quando brincava coma espingarda, esfacelara o pé direito de outro soldado com um tiro de G3. Tiraram a bota ao pobre rapaz que guinchava de dores, e meu Deus, como estava o pé, destroçado, atravessado de lado a lado, com os ossos e os tendões despedaçados, tudo à mostra, escorrendo sangue. Estava convencido de que era pouco impressionável, mas tive uma tontura, vi tudo branco. Recuperei rápido e ajudei a levar o rapaz em braços para a enfermaria. O Pio, o médico, fez o que pôde. Uma hora depois uma DO evacuava o soldado para o hospital de Bissau.

Em Bafatá, caiu um das avionetas DO ao levantar voo, parece que por acidente, descuido do piloto, um alferes que eu não conhecia. Morreram o piloto e um cabo mecânico.
(pp. 43/4).

O Pio de Abreu ainda estava em Teixeira Pinto, em finais de Outubro de 1972, aquando a emboscada entre Pelundo e Có, a uns quinze quilómetros do Canchungo, a um coluna de cerca de 40 viaturas, e em que seguiam vários oficiais superiores, incluindo o comandante do CAOP1 (o famoso coronel Durão), e em que houve cerca de 10 feridos, alguns com gravidade,

Há uma referência à actuação do Alf Mil Médico Pio de Abreu [, da CCS do BCAÇ 3863, ] na tentativa de salvar a vida a um fuzileiro do PAIGC, atingido por estilhaços de uma bala de helicanhão.


Canchungo, 31 de Outubro de 1972

(…) Quando acontecem estas coisas, pedem-se logo os helicópteros de Bissau para a evacuação dos feridos e vem também o helicanhão que faz fogo sobre os itinerários de retirada do IN. Foi então abatido um guerrilheiro que veio de héli para aqui. Eu sabia que havia feridos e lá estava na pista. O fuzileiro do PAIGC chegou ainda vivo, com um uniforme azul manchado de sangue e um estilhaço na cabeça de bala de helicanhão. O médico e um furriel enfermeiro fizeram-lhe massagens no coração que de nada valeram, o homem morreu. Foi o primeiro guerrilheiro que vi, e logo agonizando numa maca de lona.
(p. 62)

Em Fevereiro de 1973, há outra referência a um intervenção do Pio de Abreu.


Canchungo, 1 de Fevereiro de 1973

(…) No regresso dos comandos [, da 38ª CCmds, enviados com o Cor Ricardo Durão, para lidar com um rebelião de militares guineenses do Bachilé, na sequência de um desafio de futebol que acabara mal], à entrada da vila rebentara uma caixa cheia de dilagramas – granadas disparadas pela G3 com um dispositivo especial – em cima de um Unimog onde vinham catorze homens. Dois mortos de imediato, os restantes feridos vinham a caminho. Corremos para o hospital. Os comandos chegaram. Como vinham, meu Deus! Um Furriel morria na sala de operações. A suas últimas palavras para o Pio, o médico, foram: “ Doutor, cuide dos outros, eu estou bem”. Nas macas, no chão de pedra do hospital jaziam feridos graves, corpos semi-desfeitos, barrigas, intestinos de fora e quatro rapazes só com alguns estilhaços. Não ouvi um queixume mas havia muitos homens a chorar.

Era preciso evacuar os feridos para o hospital de Bissau. Onze horas da noite, iluminámos a pista com os faróis das viaturas e com as mechas acesas de muitas garrafas de cerveja cheias com petróleo, distribuídas de dez em dez metros ao longo do campo de aviação. Aterraram quatro DO. Ajudei a transportar feridos entre o hospital e as avionetas, num dos nossos Unimogs. Dois deles iam muito mal, cravados de estilhaços, em estado de choque ou em coma, não sei se escaparão. (…)
(p. 74).

Dias depois, a 3 de Fevereiro de 1973, o António Graça de Abreu é, transferido, com o CAOP1, para Mansoa (que tem a grande desvantagem, em relação ao Cachungo, de “embrulhar uma vez por mês”, p. 73), e perdemos o rasto do Pio de Abreu, que, como já dissemos, pertencia à CCS do BCAÇ 3863, com sede em Canchungo (Teixeira Pinto).

Mobilizado pelo RI 1, o BCAÇ 3863, esteve sediado (o comando e a CCS) em Teixeira Pinto. A comissão de serviço na Guiné foi de 17/9/1971 a 16/12/1973. Foi comandado pelo Ten Cor António Joaquim Correia. Era composto pelas CCAÇ 3459 (Bassarel), 3460 (Cacheu) e 3461 (Carenque e Teixeira Pinto).

Presumo o que o J.L. Pio de Abreu tenha terminado a comissão na mesma altura que a CCS do BCAÇ 3863, ou até antes. Hoje ele é um dos mais conceituados nomes da psiquiatria portuguesa, sendo psiquiatra do Hospital de Coimbra e professor associado da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra, autor do best-seller Como tornar-se doente mental, 18ª ed, Lisboa, Dom Quixote, 2008. (Prémio Città delle Rose, 2006).

Teríamos muito gosto que ele nos lesse ou que este poste pudesse chegar ao seu conhecimento. O mesmo se passa com a nossa amiga Raquel e seu filho Luís Bagulho, ou até mesmo com as suas filhas (com quem cheguei a privar, quando adolescentes). Talvez a família Bagulho queira e possa acrescentar algo mais sobre este período da vida do nosso camarada que tanto o marcou, como pessoa e como médico, ao ponto de voltar à Guiné-Bissau, como cooperante, sempre generoso e slidário, já depois da independência. Nunca o conheci pessoalmente. A doença atraiçou-o precocemente, creio que já no final dos anos 70.


_____________

Notas de L.G.:

(*) 10 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2092: Antologia (61): Tempestade em Bissau (Mário G. Ferreira)

(**) 9 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2169: Antologia (63): Zé, meu camarada, eras um dos nossos e cada um de nós um dos teus (António Lobo Antunes, Visão, 4 Out 2007)


Vd. também:

28 de Outubro de 2008 > Guiné 63/74 - P3375: (Ex)citações (5): Os nossos soldados eram miúdos, de 19, 20, 21 anos. Admiráveis. Iam matar e morrer (A. Lobo Antunes)

30 de Junho de 2008 >Guiné 63/74 - P3003: Blogoterapia (58): Que o País os beije antes de os deitar fora, e lhes peça desculpa (António Lobo Antunes / A. Graça de Abreu)

23 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2205: Humor de caserna (1): A sopa nossa de cada dia nos dai hoje (Luís Graça / António Lobo Antunes)

(***) Vd. ppste de 29 de Agosto de 2009 >Guiné 63/74 - P4878: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (12): O nosso Alferes Médico na vida civil...


Vd. outras histórias sobre médicos (lista exemplificativa, não exaustiva), publicadas no nosso blogue:

2 de Novembro de 2006
Guiné 63/74 - P1238: David Payne Pereira, um gentleman luso-britânico e um grande médico em Bambadinca (Beja Santos)

8 de Agosto de 2007> Guiné 63/74 - P2036: Memórias de um comandante de pelotão de caçadores nativos (Paulo Santiago) (11): Dr Brocas, o contador de estórias que era gago


11 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2523: Estórias de Guileje (7): Um capitão, cacimbado, e um médico, periquito, aos tiros um ao outro... (Rui Ferreira)


26 de Maio de 2008 > Guiné 63/74 - P2887: Em busca de...(27): José Alberto Machado, Alf Mil Médico (Carlos Marques Santos)

(***) Vd. postes de:

21 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2566: Em busca de ... (21): Malta de Bedanda, do futebol e dos serviços de saúde (Mário Bravo, Alf Mil Médico, CCAÇ 6, 1971/72)

23 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1457: Tertúlia: Apresenta-se o Alf Mil Médico Mário Bravo, CCAÇ 6, Bedanda (1971/72)

28 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1467: Bem vindo a Guileje, Doutor (Mário Bravo)

12 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1517: Tertúlia: Com o António Graça de Abreu em Teixeira Pinto (Mário Bravo)

(*****) Vd. poste de 15 de Fevereiro de 2009 >Guiné 63/74 - P3899: Os nossos médicos (1): Alf Mil Médico José Alberto Machado (Nova Lamego)

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4890: Estórias do Fernando Chapouto (Fernando Silvério Chapouto) (2): As minhas memórias da Guiné 1965/67 – Escolta a barco para Farim

1. Do nosso Camarada Fernando Chapouto, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCAÇ 1426 (1965/67), Geba, Camamudo, Banjara e Cantacunda, publicamos neste poste a segunda parte das suas memórias. A primeira parte está no poste P4877 e é referente ao embarque da sua Companhia, no navio Niassa, e à sua tranquila 1ª patrulha em Bissau:


Escolta a um barco com géneros para Farim

Passados uns dias sobre a minha primeira patrulha sem incidentes fui chamado para o cumprimento de uma missão muito delicada, que segundo me foi comunicado era escoltar um barco e dois batelões carregados de géneros, destinados às tropas estacionadas na zona de Farim.

A escolta constava da minha secção com um enfermeiro, um cozinheiro e um radiotelegrafista.
O barco, lá seguiu a “dez à hora” na praia mar, porque na baixa-mar parava completamente. Entramos no rio Cacheu e começaram a surgir os problemas. O rádio não funcionava, talvez por falta de experiência do operador e os alimentos estavam todos estragados.

O arroz estava cheio de bicho, o feijão idem aspas, o azeite rançoso, etc. Além das rações de combate que obviamente não dariam para todo o percurso, restavam-nos em bom estado comestível algumas conservas e chouriços, que tivemos de começar a racionar, pois ainda faltavam muitos dias para chegarmos a Farim.

Quando chegamos à povoação do Cacheu pedimos que nos dessem pão, que nos foi fornecido em grande quantidade. Conseguimos contactar com Bissau, transmitindo que estava tudo a correr bem, excepto no tocante à alimentação. A resposta foi a que esperávamos, que nos desenrascássemos pois mais nada havia a fazer.

E lá fomos rio acima, ao sabor das marés, até S. Vicente, acompanhados de perto por uma lancha da marinha, que entretanto nos veio ajudar na escolta, e que ia e vinha, sempre de “olho” em nós.

Em S. Vicente, permanecemos um dia e meio à espera do barco patrulha, Durante esse tempo dedicamo-nos à pesca no rio e acabamos por pescar um peixe parecido com um tubarão (ou da sua família), que deu para uma ou duas refeições.

Regressado o barco patrulha, o comandante alertou-me para o perigo que íamos enfrentar rio acima.

Voltamos a seguir viagem de noite (o barco patrulha circulava para cima e para baixo) até que o inesperado aconteceu.

Estava eu a passar pelas brasas quando, de repente, ouvi umas rajadas de tiros, aprontei a G3, mas nada mais me chegou aos ouvidos. Um dos cabos chegou junto de mim e disse:

- Furriel que está aí a fazer? - Temos um ferido!

- Mas eles já se calaram! - disse eu.

- Não são terroristas, foi o “preto” (piloto do barco) que adormeceu e deixou o barco entrar pelo arvoredo dentro, e as árvores ao partirem é que pareciam rajadas de tiros. Temos um ferido.

O soldado feriu-se na roldana do mastro, que ao embater nas árvores se soltou e caiu-lhe em cima de uma perna partindo-a. Este soldado não pertencia à minha secção, ia para Farim cumprir mais uma comissão como voluntário.

Tirei o raio do homem do leme do barco e mandei para lá o meu 1º Cabo, que era de Portimão e tinha carta de navegação. Lá seguimos viagem até BINTA, onde deixamos o ferido, e continuamos até Farim, onde chegamos ao meio da manhã.

Depois de cumpridas todas as formalidades habituais, fui ter com o sargento de dia que era um furriel do meu curso, para nos dar uma refeição em condições, contando-lhe a história dos nossos alimentos.

Por ele, furriel, não havia entraves, mas o encrenca do oficial de dia só nos colocou problemas. Perguntei-lhe se era preciso ir falar com o seu comandante de batalhão, para ultrapassar o impasse.

Não foi preciso, lá se ultrapassou este “entrave”, mas perdi nesta “ultrapassagem” mais de uma hora. Acabamos por comer uns restos do tradicional prato da tropa - feijão com chouriço -, mas como a fome é “negra”, ninguém se queixou que era “feijão” como diziam na Metrópole e toca a comer.

Para nossa sorte, Farim tinha sido atacada na manhã anterior com morteiradas e bazucadas, que certamente estavam programadas para nós. Valeu-nos o atraso do tal dia, por causa do barco patrulha, e assim nos safamos desta.

No regresso tudo foi mais rápido, paramos em Binta para carregar os batelões de madeira, que decorreu célere com a ajuda da maré, após o que continuamos o nosso rumo à capital, sem mais problemas, até à entrada da barra.

Uma vez aí chegados, já noite, instalou-se uma grande tempestade, pois estávamos na época das chuvas, acompanhada de uma estrondosa trovoada e ondas de elevada altura que desamarraram os batelões. Com estes à deriva, permaneci no “meu” barquito com mais dois ou três soldados e a tripulação (constituída por nativos).

Bom, se não morrer de um tiro, morro afogado – pensei -, saber nadar nada me adianta aqui. Pensei que o meu fim tinha chegado, os nativos rezavam, aqueles minutos pareceram-me uma eternidade. Com o clarão dos relâmpagos via o lamaçal da margem, e só pensava como é que nos safamos se o barco se volta. Ficamos ali atolados e… de repente o pesadelo terminou. A tempestade passou.

Ao romper do dia, a primeira tarefa foi detectar e atrelar os batelões, que haviam ficado à deriva distantes um do outro. Os nativos lá os amarraram e fomos atracar no cais de Bissau.

Comuniquei a chegada ao comandante de companhia, que nos enviou viaturas com prontidão, mudamos homens e “tarecos”, para as mesmas, e ala que são horas e a fome já apertava. Um bom banho, mudar de roupa que o “perfume” ganho naqueles doze dias era óptimo, a banhos de balde, chuva e fome.

Conclusão, comecei apreensivo a perceber o que se me iria deparar pela frente, pois isto ainda era o início de uns longos meses de comissão.

Importa referir que este foi o primeiro abastecimento de barco a Farim desde o início da guerra na Guiné.

Pensei que parava por ali, no quartel, uns dias, mas bem me enganei pois fui destacado para mais uns patrulhamentos nos arredores de Bissau, a fim de contactar com as populações e detectar eventuais sinais de anormalidade, entre a buliçosa e animada população.

Militares que fizeram parte da escolta a FARIM. Da esquerda para a direita:
Em baixo: 1º Cabo Vitorino, 1º Cabo Enfermeiro Coimbra, 1º Cabo Alfredo, Soldados Costa e Guerreiro.
Em cima: Eu e os Soldado Matos, Radiotelegrafista, Cozinheiro Júlio, Paixão e Duarte. Na foto faltam dois Soldados, o Leonel e o Valter.

Um forte abraço do,
Fernando Chapouto
Fur Mil Op Esp/Ranger da CCaç 1426

Foto e legenda: © Fernando Chapouto Direitos reservados.
_________
Nota de MR:

Vd. último poste desta série, do mesmo autor, em:


Guiné 63/74 - P4889: Estórias do Mário Pinto (Mário Gualter Rodrigues Pinto) (15): Sobreviver no inferno da Guiné

1. O nosso Camarada Mário Gualter Rodrigues Pinto, que foi Fur Mil At Art da CART 2519 - "Os morcegos de Mampatá" (Buba, Aldeia Formosa e Mampatá - 1969/71), enviou-nos mais um texto do seu baú de memórias:

Camaradas,

No seguimento do envio das minhas estórias para publicação no blogue, seleccionei mais este texto do meu caixote das memórias, porque acho que é matéria do interesse geral e, mais especificamente, dos nossos Camaradas da Tabanca Grande, o qual intitulei de:

"SOBREVIVER NO INFERNO DA GUINÉ"

Na guerra, o factor sobrevivência de um soldado, depende muito da sua inteligência, astúcia, boas preparações física e psíquica, a que se deve juntar uma boa e adequada dose de instrução militar, aliadas a excelentes capacidades de perspicácia e reflexos naturais (ou sexto sentido), tudo isto bem protegido pelo elemento “esquisito”, que ninguém desdenha possuir e que designamos por sorte. Abreviando a ideia numa curta frase: Regressar vivo a casa!

O chamado instinto de sobrevivência é um dom natural propriedade de quase todos os seres vivos, a que o ser humano felizmente não escapa, em maior ou menor escala de valor em cada espécimen, no entanto não mensurável.

Bem se pode dizer que foi esta faculdade humana, que nós mais utilizámos dia-a-dia, na prática, para sairmos vivos das várias armadilhas, patrulhas, colunas, emboscadas, operações, etc. naquele inferno operacional que nos ditou o P.A.I.G.C., as doenças, as más condições alimentares, as condições adversas territoriais e o problemático clima da Guiné.

Depressa nos apercebíamos que a maioria dos “mandantes” na Guerra, preservavam as suas integridades físicas legando o seu mando nos oficiais de patente mais baixa, ou mais novos vulgo "Piriquitos", que operavam no terreno. Era a sua “lei” de sobrevivência.

Aprendemos então a adaptar-nos ao novo modo de viver – na guerra -, e, majoritariamente, a saber preservar a nossa integridade física e vida pessoal.

Tal no entanto, jamais poderia implicar, recorrer a actos de traição, fosse de que modo fosse, que implicassem a preservação da integridade física e vida pessoal do(s) nosso(s) outro(s) Camarada(s).

Ainda ouvi um dia alguém dizer: “Mais vale um covarde vivo que um herói morto”. Se calhar, digo eu, em caso muito limite, sem colocar em causa a integridade física de qualquer Camarada e se, o candidato a covarde, conseguir viver posteriormente com a sua consciência tranquila, o problema seria só dele e de mais ninguém!

Na minha opinião pessoal, cobardia, no nosso caso, era sonegar-se às vicissitudes da guerra por simples que fossem. Covardia era não ajudar um, ou mais Camaradas em dificuldades e abandoná-los à sua sorte. Em casos extremos, covardia poderia passar por não se lutar abnegadamente até ao último alento de vida, em defesa da nossa própria integridade e, ou, se necessário, da dos nossos Camaradas.

Claro que não somos todos iguais e cada um de nós, e no conjunto da sua unidade, regeu-se por um código de conduta, mais ou menos aguerrido e heróico conforme a sua educação intelectual.

Obviamente que o facto de se ser mais valente e ousado, nomeadamente debaixo de fogo IN, diminuía seriamente as probabilidades de se sobreviver.

Por exemplo, as tropas Comandos têm como seu lema: “A sorte protege os audazes”.

Mas a sorte muitas vezes era madrasta e os seus destemidos e agressivos Homens pereciam em combate.

Heróis sim mas a que custo!

Quem ingressava nas tropas especiais sabia, à partida, que o seu factor de sobrevivência, dependia muito de si e do espírito de corpo que era incutido à sua equipa, ao seu grupo e, em acções bélicas de maior envergadura e perigosidade, à sua companhia.

Quantas vezes os rasgos heróicos individuais, ou colectivos, de bravura e coragem custaram o mesmo número de mortos.

Para esta minha análise, não interessa se esses rasgos foram, ou não, involuntários e, ou, irreflectidos.

Depois havia aqueles que, em áreas muito massacradas pelo IN, que eram submetidos massiva e consecutivamente à provação do privação, sofrimento, dor e morte, que muito para além da ambição suprema – a manutenção da sua vida -, com o avançar do tempo e a deformação do seu melhor estado psíquico e físico, se deixavam apoderar por um estranho desprezo pelo risco e pelo perigo.

Este estado era tanto mais agravado com as doenças graves entre elas as mais temidas como o paludismo e as disenterias.

Em estrado terminal, haviam os que, atingido o seu mais alto nível de esgotamento psicológico, se suicidavam.

Muitos de nós que andávamos embrulhados nas hostilidades, que mal tínhamos tempo para poisar nos nossos bura… kos, só voltávamos a tomar algumas precauções e cuidados, ao aproximar-se o fim das comissões e o regressar dos sonhos de voltar a casa… vivos e incólumes fisicamente, porque, psiquicamente, meus amigos bem sabeis como andamos, ainda hoje, quase todos.

Resumindo e pesando tudo isto que acabei de vos dizer, no meu balanço e análise geral meramente pessoal, ao fim destes 35 anos sobre a conclusão do conflito na Guiné, creio, sinceramente, que nós, os ex-Combatentes desta contenda, salvo as devidas e raras excepções à “regra”, cumprimos escrupulosamente o que nos foi mandado, salvaguardando o nosso código de conduta, que foi sobreviver com honra, dignidade e respeito pelo nosso opositor.

Por isso, muito contribuiu, quando eram pedidos voluntários para qualquer missão, perigosa ou não, respeitarmos uma máxima muito bem delineada entre a malta da tropa “normal”, que todos conhecemos: “Voluntários?... Só para casa”.

Um abraço,
Mário Pinto
Fur Mil At Art
__________
Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:


segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4888: Estórias do Jorge Fontinha (7): A nossa Casinha

1. Mensagem de Jorge Fontinha, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72, com data de 28 de Agosto de 2009:

Caro vinhal.
Um grande abraço e me parece que já estava na altura de regressar.
Assim aí vai mais um contributo.

Um abraço para toda a tertúlia.
jorge fontinha


A NOSSA CASINHA

Vou aproveitar o facto de o Luís Faria se ter despedido de Binar e estar a chegar a Teixeira Pinto, para retomar as minhas Estórias, pois as dele e as minhas voltam a estar interligadas a partir desta fase. Aproveito também o facto de ele nesta altura ir de férias, para lhe preparar o terreno, pois quando ele regressar vou eu.

Quando finalmente, o resto da Companhia se junta a nós, em Teixeira Pinto, passámos efectivamente a uma acção mais envolvente e efectiva no apoio às Forças Especiais do CAOP 1: Comandos, Páras e Fuzileiros.

De início era apenas um Bi-grupo. O 2.º e o 4.º, e todo o staff da Companhia, com o Capitão Mamede de Sousa, o 1.º Sargento Guerreiro e os restantes Especialistas e os inestimáveis apoios logísticos, muito úteis para quem, dia sim, dia não, prestava apoio à abertura da estrada Teixeira Pinto/Cacheu, intervalado com Operações de grande envergadura ao Balangarez, com as referidas Companhias de Tropas Especiais do CAOP 1. O 3.º Grupo só se juntaria à Companhia, já em Bula, aquando dos Reordenamentos, e o 1.º ao fim de uns dois meses, em Teixeira Pinto, pois manifestamente dois Grupos começava a ser demasiado cansativo para os 2.º e 4.º Grupos. Como diria o Luís Faria, eles abusaram de nós, não sabíamos passar despercebidos!

Todavia este Grupo mais alargado de amigos e camaradas de outros carnavais, passou a ser mais unido e já com os 3 Grupos de Combate Operacionais a revezarem-se, o espaço dentro do quartel começou a ser mais reduzido, para as nossas mais frequentes folgas.

Assim nasce a nossa casinha.

De frente: Gaspar, Jorge Fontinha e Luis Faria. De perfil: Cap. Mamede Sousa. De costas: Chaves e Madaleno

A alguns metros do quartel, ao fundo da Av. Principal de Teixeira Pinto, eu mais um grupo de compinchas, alugámos uma vivenda, onde poderíamos passar umas horas de descompressão e de puro lazer.

Nessas instalações passou a realizar-se alguns momentos de boa degustação de belos camarões e ostras, mas também de amena cavaqueira entre camaradas de armas. Por vezes juntavam-se a nós alguns intrometidos locais, juntamente com alguns convidados, já por mim referenciados, noutras Estórias, como o Chefe de Posto Júlio e outros amigos.

Ali, não havia guerra apenas umas belas cervejas que curiosamente também eram bazucas.

Esta casa era uma espécie de multiusos. Como tinha, para além da sala e da cozinha, uma bela casa de banho, onde dava para refrescar várias vezes ao dia e 4 quartos, não era difícil arranjar ocupantes para eles. As nossas queridas bajudas e ou caboverdianas não se faziam rogadas.

Chaves, Freitas Pereira, Rebocho, Luis Faria, Jorge Fontinha e Guerra Madaleno

Por aquela casa, para além de nós e os nossos amigos, passaram também alguns convidados do Comando do CAOP da altura, alguns elementos semi-incógnitos do PAIGC e vários graduados e praças de todas as forças estacionadas em Teixeira Pinto: Comandos, Fuzas e Páras, para além da anfitriã CCAÇ 2791.

A ideia que nos norteou, ao alugar aquele espaço, foi tão só promover um lugar de convívio entre pessoas de bem e de paz.

Guerra era guerra, lazer era confraternizar sem perguntas.

Nunca houve o mais pequeno problema.

Jorge Fontinha e Antonino Chaves

Um abraço para a tertúlia.
JORGE FONTINHA
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4237: Estórias do Jorge Fontinha (6): O 4.º GCOMB / CCAÇ 2791, destacado no CAOP 1 - Teixeira Pinto

Guiné 63/74 - P4887: Em busca de... (87): Pessoal do Pel Mort 2138, Mampatá (1969/71) (José Teixeira / Bruno Ramos)

1. Mensagem do nosso tertuliano José Teixeira com data de 31 de Agosto de 2009:

Carlos
Reporter de serviço
Boa tarde
Junto mail de um filho de antigo combatente que pretende contactos sobre antigos combatentes em Mampatá.

No meu tempo não havia pelotão de morteiros, pelo que não conheci o pai do jovem que escreve.
Por favor põe no blogue.

Abraço fraterno do
José Teixeira


2. Mensagem de Bruno Ramos, filho do nosso camarada Hernâni da Silva Ramos, com data de 31 de Agosto de 2009:

Boa tarde,

Daqui é o Bruno Ramos, falo em nome do meu pai, ex 1º cabo Hernâni da Silva Ramos, do Pelotão de Morteiros 2138 que esteve na Guiné entre 1969 e 1971. O pelotão foi divido por várias localidades, e o meu pai esteve em Mampatá. Segundo o que pesquisei, o Batalhão (*) de Caçadores 2381, 2382, 2834 esteve na Guiné na mesma altura com o Pelotão de Morteiros 2138. Estou a contactar pelo seguinte, caso tenha conhecimento de algum camarada desse pelotão, ou até mesmo conheça o meu pai, por favor contacte ou então forneça algum tipo de contacto de qualquer camarada que julgue que tenha alguma informação importante.

Muito obrigado pela atenção,
Bruno Ramos

Telefone: 916 209 000
e-mail: b_ramos@portugalmail.pt


3. Em mensagem posterior, Bruno Ramos informou que criou um Blogue em nome de seu pai, pedindo a devida divulgação.

Aqui fica o endereço da página:

http://pelotaodemorteiros2183.blogs.sapo.pt/
__________

Notas de CV:

(*) CCAÇs 2381 e 2382, e BCAÇ 2834

Vd. último poste da série de 31 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4886: Em busca de... (86) Informação sobre Américo dos Santos Alves, Sold At NIM 2161/63, da CART 565 e BCAÇ 599 (Fernando Chapouto)