terça-feira, 28 de outubro de 2008

Guiné 63/74 - P3375: (Ex)citações (5): Os nossos soldados eram miúdos, de 19, 20, 21 anos. Admiráveis. Iam matar e morrer (A. Lobo Antunes)

Lobo Antunes: Como posso eu, cristal, morrer? Entrevista por Anabela Mota Ribeiro. Público. 12.10.2008

Notável entrevista do escritor de Arquipélago da Insónia (o seu último livro, 2008…) em que se fala dos temas que lhe são caros, recorrentes, obsessivos: a literatura, a escrita, a infância, as figuras do do avô e do pai, a psiquiatria, as mulheres, o amor, a amizade, a vida, a doença, a morte…

Há duas referências à guerra colonial... O escritor passou recentemente, em 2007, por uma situação, bem dura, a experiência de (e o combate contra) a doença, uma neoplasia. Tudo se relativiza (incluindo a hipótese da obtenção de um merecido e almejado Prémio Nobel da Literatura) quando um homem ganha este round e se prepara para o próximo… A vida é um combate de boxe contra a morte.

Eis os dois excertos em que faz referência à sua experiência da guerra colonial, em Angola:

(…) Não queria falar sobre isso, mas eu estive na guerra. Matar é muito fácil. Quando o Melo Antunes estava doente, nunca tínhamos falado sobre a guerra e ele começou a falar; a mulher aproximava-se e ele dizia: "Não podemos falar mais." Perguntava-lhe: "Ernesto, porque é que não sentimos culpabilidade?" Assisti e participei em coisas horríveis. E ainda hoje não sinto culpabilidade. Porquê? Ele também não soube responder. É estranho. Porque sinto culpabilidade por ter ferido uma pessoa verbalmente, por ter sido injusto para alguém.

Sente culpabilidade por que pensa que vai sobreviver àqueles que estão na mesma sala, à espera da radioterapia.

Sentia-me culpado porque eu ia viver e eles não. Eles eram melhores do que eu. Tinham coragem. Eu estava todo borrado. Li um bocadinho das cartas da guerra, cartas que me oferecia para ganhar o meu respeito; cheguei a ir sentado no guarda-lamas dos rebenta minas.


Porque me achava um cobarde e me enojava a cobardia física. Assisti uma única vez ao espectáculo da cobardia física, e é repelente. Os nossos soldados eram miúdos, de 19, 20, 21 anos. Admiráveis. Agora vão para a discoteca, naquela altura iam dar tiros. Iam matar e morrer. Voltando ao livro: o que eu queria era meter lá a vida toda, e não acho que seja triste. Acho que sou agora mais alegre do que era. (…).

Nesta entrevista, o escritor parece rejeitar os livros anteriores ao Esplendor de Portugal (1997), incluindo os três primeiros, a trilogia da guerra colonial - Memória de Elefante (1979), Os Cus de Judas (1979) e Conhecimento do Inferno (1980)... "Quando comecei a fazer os livros de que gosto, mais ou menos a partir d'O Esplendor de Portugal - até lá, se voltasse atrás, ia tudo fora - deixei de ter planos. Sei que me faltam três capítulos [do que estou a escrever agora] para acabar a primeira versão. Mas depois aquilo é tão trabalhado, emendado, reescrito" (*).

______________

Nota de L.G.:

(*) Para saber mais, ler o sítio não oficial do António Lobo Antunes, da iniciativa e responsabilidade de José Alexandre Ramos.

Vd. também a biografia do escritor, nascido em 1942, e que de 1971 a 1973 foi Alf Mil Médico, no leste de Angola, onde conheceu e fez amizade com o então capitão Melo Antunes, o ideólogo do MFA.

3 comentários:

Torcato Mendonca disse...

Olá Luís Graça:Manhã fria a de hoje.O blogue "aquece" um pouco. Ontem tínhamos falado no Lobo Antunes. Não li o Arquipélago da Insónia -ao Fundão não chegou e na Covilhã esgotou...interioridades. Ler este homem é quase uma necessidade para mim. Concordo contigo. Há uma mudança, uma inflexão nele depois daquele problema.É natural. Ele sabe pela experiência e ciência,eu, embora de forma diferente, pela experiência. Nada fica arrumado, de igual forma, na caixa entre as orelhas. Tudo é relativizado...acho natural...Talvez o Lobo Antunes não rejeite os livros iniciais; talvez sinta a necessidade, hoje,se isso fosse possível,de os modificar. Não quero ir por aí. Isto era uma nota simples. Quando ele fala de Melo Antunes( Comandante de uma Companhia do Batalhão onde estava L.Antunes-creio eu)ele relembra a perca do amigo,do intelectual, do homem que "devia sentir e saber explicar" a guerra. O rebenta minas é um pormenor...mas gosto mais de ler esse passado ou o Livro publicado com os aerogramas - não o ia ler, era quase voyerismo, mas li de um fôlego- e os mais recentes.Fui procurar O Conhecimento do Inferno mas deve estar "lá em baixo no reino dos Algarves". A Literatura da Guerra Colonial ---paro. Abraços Torcato

Luís Graça disse...

Olá, Torcato, aqui também está hoje um dia frio, belo, de Outono. Gostei de falar contigo ontem, ao telefone. Acabas também por passar, na pessoa (amada) da tua Ana, um momento de provação. É duro, a doença que irrompe pelo nosso corpo e pela nossa casa dentro, é como um golpe de mão, um momento brutal de pura violência... Nunca estamos preparados... Mas depois da pancada, do impacto, do sentimento de algo de injusto, cruel e intolerável que nos antinge, a nós ou aos nossos, a resposta é a luta... "Lutar ou fugir": não há alternativa. E contra a doença, só nos resta lutar, com os (felizmente) muitos meios que hoje temos... A verdade é que depois não será nada como dantes. Apercebemo-nos da nossa mortalidade...

Torcato, José... Tu, a Ana e a família vão dar a volta à coisa... E dar mais valor às pequenas grandes coisas que nos fazem felizes e que ajudam a dar sentido à vida... Como aconteceu com o nosso ilustre camarada Lobo Antunes...

E a propósito do que ele disse sobre os seus primeiros livros: não creio que os rejeite "quais filhos bastardos"... O que ele quer porventura dizer é que são filhos da "imaturidade literária"... Já não se reconhece neles, de resto nunca mais irá mexer neles... Estão incluídos nas obras completas, em edição "ne varietur"... Um escritor muito exigente consigo próprio, sem dúvida.

Força para ti e para a Ana.

Luís Graça disse...

Olá, Torcato, aqui também está hoje um dia frio, belo, de Outono. Gostei de falar contigo ontem, ao telefone. Acabas também por passar, na pessoa (amada) da tua Ana, um momento de provação. É duro, a doença que irrompe pelo nosso corpo e pela nossa casa dentro, é como um golpe de mão, um momento brutal de pura violência... Nunca estamos preparados... Mas depois da pancada, do impacto, do sentimento de algo de injusto, cruel e intolerável que nos antinge, a nós ou aos nossos, a resposta é a luta... "Lutar ou fugir": não há alternativa. E contra a doença, só nos resta lutar, com os (felizmente) muitos meios que hoje temos... A verdade é que depois não será nada como dantes. Apercebemo-nos da nossa mortalidade...

Torcato, José... Tu, a Ana e a família vão dar a volta à coisa... E dar mais valor às pequenas grandes coisas que nos fazem felizes e que ajudam a dar sentido à vida... Como aconteceu com o nosso ilustre camarada Lobo Antunes...

E a propósito do que ele disse sobre os seus primeiros livros: não creio que os rejeite "quais filhos bastardos"... O que ele quer porventura dizer é que são filhos da "imaturidade literária"... Já não se reconhece neles, de resto nunca mais irá mexer neles... Estão incluídos nas obras completas, em edição "ne varietur"... Um escritor muito exigente consigo próprio, sem dúvida.

Força para ti e para a Ana.