terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5870: Tabanca Grande (205): Pedro Cruz, ex-Alf Mil IOL, Guidaje e Bafatá (1972/74)

1. Mensagem de Pedro Cruz (ex-Alf Mil IOL, Guidaje e Bafatá, 1972/74), com data de 22 de Fevereiro de 2010:

Camarada Carlos
É com bastante gosto que participo no blogue.

Como o solicitado, em anexo, conto uma pequena história da minha vida militar, naturalmente com mais incidência sobre a Guiné - Guidage e durante o período crítico de 72 a 74.

Não encontrei mais fotografias de momento! Ainda vou fazer mais uma busca! Se recolher mais material eu envio-te para colocares na "minha" página!

Um abraço
Pedro Cruz


A Guidage...

Na Guiné...


Antes de iniciar a minha “coluna” sobre a minha passagem pela Guiné-Guidage gostaria de fazer uma pequena introdução relatando o meu início do serviço militar.

Fui fazer a Instrução, com início em Outubro de 1971, para Mafra. Terminada a Instrução em Dezembro fui em Janeiro de 1972 iniciar a Especialidade para Vendas Novas. Saiu-me em rifa a Especialidade de IOL (Informação, Observação e Ligação).

Esta Especialidade era própria numa guerra clássica, pois ela consistia em, utilizando meios aéreos, comandar as baterias de obuses e a sua consequente regulação de tiro.

Dei uma volta de avioneta mas a observação do tiro foi um desastre pois tive um grande enjoo. A especialidade citada foi reconvertida em PCT (Posto, Comando de Tiro), uma Especialidade já de acordo com a guerra de guerrilha que tínhamos em África. Depois de ter um mês e pico na Figueira da Foz em espera para embarcar para a Guiné, a meados de Junho, por volta das 23 horas lá dei uma volta na pista do Aeroporto de Lisboa e fui encaminhado para o Depósito de Adidos na Ajuda, pois foi declarada uma avaria técnica na aeronave. Finalmente, no dia seguinte e sensivelmente à mesma hora lá embarcamos para a terrinha do PAIGC.

Claro que a disposição não era muita, mesmo indo conhecer uma cidade nova, num país novo!

Quando estávamos a sobrevoar a cidade de Bissau fiquei logo muito “contente“ pela linda vista da cidade e até da cor do rio Geba... enfim, uma tristeza a somar aquela que levava...

Fomos, os artilheiros, encaminhados para a nossa base de artilharia (GA7) que ficava por trás do Quartel-General e em frente ao Comando de Transmissões.

Estivemos lá aproximadamente uma semana em formação. No fim da semana foi sorteada a localidade que iríamos dar apoio. Depois de Guilege tinha que me sair em rifa – Guidage.

Como é óbvio deprimido a monte…!

Vamos avançar…

Cheguei a Guidage no inicio de Julho de 72 e penso que a uma quinta-feira pois era nesta dia da semana que a tabanca recebia a DO (meio aéreo).

Fui render um alferes, que não me recordo o nome, mas lembro-me que era de S. João da Madeira. Foi um amigo pelos conselhos e indicações dadas.

Comecei, então, a minha comissão de serviço na altura que o meu colega partiu em coluna para Bissau.

Passei a dormir dentro da secção do obus que comandava. Por volta das 7 horas da manhã passava para o meu quarto para fazer a higiene pessoal.

O Pelotão de Artilharia que me foi destinado, tinha na sua guarnição à volta de 15 africanos, 2 cabos brancos e ainda um furriel miliciano da “metrópole”.

Até Maio de 1973 penso que só fomos flagelados três vezes e à distância.

A seguir a uma delas, e no dia seguinte, por ordem de Bissau, através do meu capitão foi me dito para “enviar” umas obusadas para Casamansa - Senegal, pois considerava-se que os “amigos” que nos tinham dado fogo dirigiam-se para o local atrás citado.

Posteriormente chegou a informação que as obusadas limparam o sarampo a duas vacas.

Pela análise das acções desenvolvidas pelos terroristas (na época era o nome que se lhes davam) pude constatar que em 72 o maior assédio foi antes das chuvas, por isso de meados de Maio até fins de Junho. Como não estava interessado em fazer parte do grupo que iria dar as “boas-vindas” aos “nossos amigos” tratei de meter férias na metrópole para o período anterior à chegada dos amigos do comandante Nino.

Em meados de Maio, numa quinta-feira, dia de vinda da avioneta que me levaria para Bissau, estava eu a cantarolar no meu quarto a fazer a barba por volta das 7 horas da manhã começo ouvir um grande barulho. A cançoneta acabou logo aí passados 1 ou 2 segundos não havia dúvidas os nossos “amigos” estavam a nos saudar junto ao arame.

É lógico que mesmo dentro do quarto comecei a rastejar. Mandei-me para a vala junto à porta.

Fui rastejando até ao fim da vala que ficava a uns 30 metros de um dos obuses.

Quando sentimos que o fogacho já vinha do lado do Senegal e mais longínquo do arame entrei para a guarnição do obus onde com dois africanos começamos a fazer fogo para a copa das árvores do lado do Senegal.

O ataque provocou alguns feridos. Passados uns minutos vimos qual foi o propósito deste tipo de ataque e o porquê da hora escolhida! Pelas Transmissões soubemos que tinham sido abatidos os dois Fiats que vinham em nosso auxilio. Antes ou depois do abate dos Fiats foi abatida também a avioneta da “quinta-feira” que trazia um grande amigo o 2.º sargento do patacão.

Este foi um dia bastante triste para todos.

Neste dia o Spinola acabou com o apoio aéreo aos aquartelamentos.

Passados uns cinco dias depois destes acontecimentos a Companhia fez uma coluna para Binta e de seguida para Farim.

É esta coluna que eu integro para me deslocar para Bissau.

Ia muito perto da cabeça da coluna quando ouvimos um grande rebentamento. Pusemo-nos em posição de defesa nas bermas da picada. O meu amigo Alf Mil Leitão* que comandava a coluna comunicou-nos que tinha rebentado uma mina antipessoal picada por um soldado.

Disse-nos que iria ser levantada uma mina anticarro que estava junto aquela rebentada.

Inexplicavelmente, sempre pronto a ajudar, o 2.º Sargento Horta (grande amigo) ofereceu-se para desmontar a mina. Em má hora. Estava ele a fazer as primeiras limpezas, eu estaria deitado na picada a uns 4 metros dele, quando se deu um grande rebentamento. Muito pó escuro no ar e também, infelizmente, o grande amigo Horta. O Horta, que estava de joelhos, para chegar mais perto da mina anticarro deitou-se de barriga para baixo. Estava lá mais uma mina antipessoal. Ponto final neste episódio.

Estive aproximadamente 40 dias fora de Guidage. Em casa, na Foz do Douro, em alguns dias, recebia más noticias do aquartelamento.

Quando cheguei de férias a Bissau, o Comandante do GAA7 disse-me que não iria de férias para Portugal se tivesse bilhete dois dias depois daquele que parti!

Despachou-me no dia seguinte a este comentário para Farim. Às 8 horas da manhã fui levado para o cais de Pigiquiti. Estava à minha espera uma caixa de ferro, que nós os operacionais, designávamos como LDM (lancha de desembarque média).

Tive o gosto e o prazer de conhecer um grande amigo, o furriel Conceição, que foi despachado para um aquartelamento vizinho de Farim. Perdi o contacto deste camarada. Na época não havia télélés. Fomos-nos confortando para a situação que estávamos a passar, sempre na esperança que aquela chapita (4 a 6mm) fosse suficiente para nos proteger dos roquetes inimigos. O amigo Conceição era de Portimão (Praia da Rocha(?) e começou profissionalmente a estar ligado à restauração (se algum amigo estiver a conhecer o camarada mande um dica para ele “visitar” a Tabanca Grande”).

De Farim fui para Binta nesse mesmo dia, localidade mais próxima de Guidage! Na madrugada desse dia, fomos em coluna para Guidage, a corta mato. Quando chegamos a Guidage, não foi supresa, mas não tínhamos nem a população nem os nossos camaradas à espera! O flagelo vivido recomendava recato. Como estava “folgado” da guerra parei junto à Secretaria a contemplar a Parada. Fui chamado a atenção para sair de lá pois era perigoso em campo aberto. A minha Secção de Obus foi mudada. Estava muito referenciada. O meu anterior abrigo foi atingido.

Um camarada alferes da Companhia começou a construir um novo abrigo tendo eu depois continuado com a tarefa pois ele foi evacuado para Bissau. Finais de Outubro de 73 veio a minha recompensa! Fui chamado a Bissau para mudar de aquartelamento. Camaradas alferes do GA7 deram-me a informação que iria para Bafatá pois não sabia jogar Bridge para ficar em Bissau.

Passado uma semana em Bafatá dei graças a Deus por não me meter dado dotes de jogador de bridge!

Até Junho de 74 foi paz e descanso. Depois da escrita para os meus queridos pais e para a namorada, a simpática menina 3R`s, era só “xonar”! A partir das 17 horas vínhamos para a cidade e para o petisco.

Finalmente uma palavra de saudação para todos os meus colegas e amigos com que convivi. Bem gostaria de salientar todos aqueles que foram e se tornaram grandes companheiros de luta, mas 36 anos passados já é o seu tempo…! O Matos, o Furriel Mecânico Auto (de Setúbal?) e o meu barbeiro (o Cabo do bar) são aqueles que ainda tenho presente os muitos passos do dia a dia que tínhamos em conjunto.

Obrigado a todos! Até sempre!
Pedro Manuel Ribeiro Freitas Cruz
Alferes Cruz (72-74)

*Para todos o meu contato: dragão.pedro@gmail.com

Na fotografia, já bastante deteriorado com o tempo, o nativo que me acompanha era o chefe da Tabanca





Comentário de CV:

Caro Pedro Cruz
Segundo os nossos registos oficiosos, és o 400.º tertuliano do nosso Blogue. Não terás direito a nenhum brinde, a não ser a amizade dos outros 399 da lista.

A nossa Caserna Virtual, por ter esta característica, não tem portas nem janelas, logo qualquer lugar que escolhas para nela permaneceres é exactamente igual aos dos atabancados há mais tempo. Espero que deduzas com estas minhas palavras que no nosso Blogue não há classes de tertulianos. Não distinguimos os antigos postos, as habilitações, o sexo, as orientações políticas e religiosas, etc.

Se alguma vez achares que um trabalho que enviaste não foi publicado no tempo que achaste razoável, só tens que notificar os editores do atraso para levares de volta umas palavrinhas a abater... muito trabalho, falta de tempo e outras desculpas. Nunca por nunca te sintas rejeitado.

Como também terás reparado, até pela leitura dos nossos postes, no nosso Blogue tratamo-nos todos por tu pela simples razão de que nos une o mesmo passado enquanto ex-combatentes da Guiné. Este tipo de convivência não interfere no respeito mútuo e na aceitação de opiniões contrárias, desde que a discussão se mantenha dentro da cordialidade.

Posto isto, resta-me deixar-te um abraço de boas-vindas de toda a tertúlia e esperar de ti a melhor colaboração no sentido aumentares este espólio de histórias contadas por quem as viveu.

Recebe um abraço pessoal de
Carlos Vinhal
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 19 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5847: Tabanca Grande (204): Humberto Carneiro Fernandes Duarte, ex-Fur Mil Op Esp / RANGER do BCAÇ 4514, 1973/74

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 – P5869: Histórias do Eduardo Campos (10): CCAÇ 4540, 1972/74 - Somos um caso sério (Parte 10): Nhacra 5


1. O nosso camarada Eduardo Ferreira Campos, ex-1º Cabo Trms da CCAÇ 4540, Cumeré, Bigene, Cadique, Cufar e Nhacra, 1972/74, dando continuidade às suas memórias da Companhia em Nhacra, iniciadas nos postes P5711, P5729, P5796 e P5812 enviou-nos a 10ª fracção e mais 3 documentos históricos do seu vasto arquivo pessoal:

CCAÇ 4540 – 72/74

"SOMOS UM CASO SÉRIO"

NHACRA/5

Só o cansaço e saturação de muitos meses de tensão sob os efeitos da guerra e das esgotantes e desgastantes das notícias dos mortos e dos feridos diários, dos combates, das multi privações, etc., é que podem justificar o comportamento dos seus intervenientes, imediatamente após o golpe de 25 de Abril de 1974.

Ainda as notícias que até nós chegavam, eram insuficientes e conclusivas, para saber qual o curso da revolução, e, em especial, em relação à política que ia ser seguida para a descolonização, e já eu via envolvido em abraços e confraternizações as NT com o IN do dia 24, que passaram a “amigos do dia 26”.

Devo confessar que não gostei nada dessas confraternizações e fiquei sempre á margem do regozijo comum. Só em Junho desse mesmo ano, numa coluna em que eu seguia para o Olossato e em plena picada, quando surgiu um grupo de guerrilheiros do PAIGC - bem armados -, obrigando a coluna a parar e aí sim, fui “forçado” aos abraços da praxe.

Pessoalmente, nada tinha contra aqueles homens, mas, para mim, era difícil comemorar com os mesmos, fosse o que fosse, não me conseguia "libertar" das imagens dos meus camaradas mortos no Cantanhez e de todos os outros, que até aí tinham tombado por toda a Guiné.

Talvez por falta de serenidade ou egoísmo, para avaliar a situação, tomei essa atitude na altura, já que eles (o IN) também tiveram os seus mortos, mas isso eu pensava que era um problema deles e atribuía o facto ao curso normal da guerra.

Hoje, após muito meditar nisso, gostaria de estar a contar outra reacção minha diferente, mas não posso, porque a verdade foi esta.

Já tinha 19 meses de Guiné, quando o 25 de Abril aconteceu, e, hoje, tenho por hábito dizer que até neste pormenor tive sorte, por ter vivido o antes e depois, porque tive o privilégio de assistir ao regozijo daquele povo, porque eles almejavam com a sua luta: A Independência.

Naturalmente, que também assisti e, porque não dizê-lo, participei em coisas menos agradáveis, já que a indisciplina começou a surgir entre as NT com alguma frequência, dentro e fora do aquartelamento.

A política tinha entrado no quartel e as divisões, entre nós, começaram a surgir. Uns eram tomados como fascistas, enquanto outros eram classificados revolucionários, consoante o sua definição de alinhamento.

A organização de um torneio de futebol de salão, foi o pretexto para o lançamento de um “jornal” a nível interno, no qual eu, modestamente, também colaborei.

Sentia-se o perfume da liberdade.

O 1º Exemplar saiu com o título de "Simplesmente Desporto", com data de 20 de Maio de 1974, mas pouco tempo depois, iria chamar-se "1º de Maio Desportivo" e a confusão entre camaradas estava para durar.

Outro exemplar saiu em Edição Especial, com data de 20 de Maio de 1974

As fotos são de uma operação stop efectuada no entroncamento Bissau-Cuméré-Mansoa, para “apanhar” Agentes da PIDE/DGS (depois do 25 de Abril como é óbvio).

Um abraço Amigo,
Eduardo Campos
1º Cabo Telegrafista da CCAÇ 4540

Fotos: © Eduardo Campos (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:

Vd. último poste desta série em:

Guiné 63/74 - P5868: Ser solidário (56): Zé Teixeira, a perda de uma mãe é sempre irreparável, mas nada nem ninguém te vai roubar a sua doce memória e o seu exemplo inspirador (Editores)

1. A Tabanca de Matosinhos, através do Álvaro Basto, deu-nos esta manhã, segunda-feira, 22 de Fevereiro de 2010, a funesta notícia: Faleceu a mãe do Zé Teixeira

Porque e a vida é feita infelizmente também destas coisas, cumpre-nos informar que faleceu a mãe do nosso querido, mais que camarada, amigo, Zé Teixeira.

Doente havia já algum tempo, o Zé andava sempre numa azafama com ela. Com o coração despedaçado, confessávamos muitas vezes como era difícil vê-la a definhar ora com uma pneumonia, ora com outra qualquer insuficiência.

Ontem ao final da tarde recebi a noticia pela boca embargada do Zé que se tinha finalmente acabado a provação da sua mãe.

Ao Zé e a toda a sua família, a nossa solidariedade e os nossos mais sinceros pêsames.

O corpo encontra-se depositado na capela da Igreja de Ermesinde e o funeral está marcado para amanhã, terça-feira, às 10h00.

[Álvaro Basto]
2. Comentário de L.G.:

Tinha acabado de celebrar os seus 89 anos... Tinha nascido em 1921... Era uma mulher sábia, de uma sabedoria construída e reconstruída na escola da vida, sem nunca ter ido à escola do ler, contar e escrever, como muitas outras mulheres da sua geração.

O Teixeira era o menino da sua mãe. Fala(va) dela com uma ternura comovente. Imagino como se terá sentido ao receber a notícia, sempre brutal, da morte (mesmo que anunciada e esperada) da sua mãe. Alguns de nós já são órfãos de mãe. É uma perda tremenda, imagino. São as nossas raízes. É a nossa metade, a metade do nosso ADN, do nosso genoma. A nossa mãe foi quem nos gerou, alimentou, cuidou, amou, acarinhou, quem nos deu o ser, quem nos manteve ligados à vida pelo cordão umbilical...

A dor da perda de um mãe é profunda. O Zé precisa hoje, mais do que nunca, de uma palavra amiga, de um ombro amigo. Precisa também dos amigos e camaradas da Guiné, que são e sabem ser solidários... Por que as mães dos nossos camaradas também foram nossas mães, com a sua morte, com o seu desaparecimento também morremos, também desaparecemos um pouco...

Estamos de luto, Zé, estamos contigo ao teu lado. E da tua mãezinha guarda, num cantinho secreto da memória, as melhores recordações, histórias, palavras, silêncios, gestos, emoções, sentimentos... Como este diálogo, tão lindo, que tu já aqui reproduziste, entre ti e a tua mãe, na véspera da tua partida para a guerra (*)... São palavras de um grande nobreza, desse ser único que é uma mãe, que era a tua mãe:

(... )" Duas coisas, te peço. Apenas duas: Primeiro, mesmo que a vida te transporte para caminhos tortuosos, mesmo que sintas a Fé a fugir-te, mesmo que não sintas a presença de Deus em ti, nunca deixes de rezar, nunca deixes de pelo menos uma vez por dia parares um pouco para O deixares entrar. Rezar nunca fez mal a ninguém (dissera-me ela muitas vezes). Pode ser uma âncora a que te poderás agarrar nos momentos difíceis.

"Segundo pedido. Tenta viver sem teres de matar. Vais para uma guerra numa terra desconhecida. De usos e costumes possivelmente estranhos. Não faço ideia do que será uma guerra, mas sei que na guerra se vive e se morre. Tenta voltar de modo a que a consciência não te perturbe no resto da tua vida. Vão ser dezoito longos meses de espera, mas a minha fé diz-me que voltarás são e salvo´"...

E acrescentavas tu, Zé:

"Os dois grandes pedidos que a minha mãe me fez, estão gravados a letra de ouro no meu coração e na minha mente. Por educação, quase desde o berço, em que o hábito de se rezar o Terço antes de deitar é uma cerimónia sagrada, seguida de um pedido de bênção aos avós e pais, a oração diária, por mais pequenina que fosse, era para mim um princípio, posto de lado quando aos dez anos abandonei a terra natal para ir trabalhar. Aliado à oração, está o conceito de que matar um ser humano é um pecado grave, conceito esse enriquecido em cada dia, nos caminhos que procurei trilhar e por último, pelo facto de por sorte minha, ter sido escolhido para enfermeiro militar.

"Que Deus te acompanhe, meu filho e sempre te proteja" - disse-me ela pondo fim à nossa conversa" (...).

Para ti, que és crente, essa conversa, agora fisicamente interrompida, irá ser retomada de outra maneira, num outro plano, espiritual. Pensa que a tua mãe agora é um estrelinha, algures no firmamento, que continuará a zelar e a cuidar de ti, que continuará a guiar-nos, a iluminar-nos, a inspirar-nos. Uma estrela protectora, como sempre o foi. Pede-lhe a sua benção, para ti, para a tua família, para todos nós, para o nosso querido país, para os nossos irmãos madeirenses, para o pobre e doente planeta que é a nossa casa... Um grande chicoração. Força, camarada e amigo Zé! Estarei contigo, em pensamento, às 10h de 3ª feira, na hora da derradeira despedida!
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Nota de L.G.:

Guiné 63/74 - P5867: Ser solidário (55): Ajudemos as vítimas da tragédia que assolou a Madeira no passado fim de semana (José Martins)

1. Mensagem de José Martins (ex-Fur Mil, Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), com data de 21 de Fevereiro de 2010:

Caros Camaradas
Desde ontem que, ao ligar a TV, se vê a catástrofe que se abateu sobre a Madeira.

Pelas intervenções dos habitantes, nota-se que os que mais terão sido atingidos, e ainda que tenha sido generalizada, os mais atingidos, dizia, serão os que terão uma idade mais avançada e portanto uma esperança de vida mais curta, o que aumenta a sua desilusão e sofrimento. Entre eles estarão, naturalmente, muitos camaradas de armas nossos que, depois de cumprirem o chamamento da Pátria, regressaram à sua ilha, para encarar o futuro.

Já que muitas das vítimas estão a ser auxiliados pelo Regimento de Guarnição n.º 3, da Madeira, que os responsáveis militares identifiquem esses antigos combatentes, referenciando-os quer ao Ministério da Defesa Nacional quer à Liga dos Combatentes, para que seja disponibilizado a estes camaradas a ajuda possível.

Cabe, também, aos nossos camaradas que habitam a Madeira que nos vão informando a forma de, nós continentais e não só, nos possamos solidarizar e participar na ajuda mais que necessária.

Além da nossa solidariedade, enviamos a estes compatriotas o nosso abraço fraternal
José Marcelino Martins


2. Comentário de CV:

O nosso camarada José Martins, homem solidário, está sempre atento a estas situações de sofrimento dos nossos semelhantes. O seu alerta foi oportuno.

A Madeira é um caso nacional, muito trágico, que nos comoveu pelas imagens que nos chegaram via televisão e internete.

Embora a ajuda à distância corra o risco de não chegar ao verdadeiro alvo, quem mais precisa, é um dever moral tentar diminuir as carências materiais de quem já pouco tinha e agora ficou sem nada. Não me refiro aos sinistrados do Funchal, que com ou sem ajuda terão mais hipótesese de refazer as suas vidas. Refiro-me às pessoas que tinham as suas casas empoleiradas (é o termo exacto) nas escarpas das serras e que as viram desaparecer sob uma invulgar torrente de água e lama.

Peço desculpa ao Zé, mas neste caso, ser ou não ser ex-combatente não deve servir para distinguir a ajuda, que deve ser dirigida a quem mais precisa, independentemente do seu estatuto de ex-militar. Haverá ex-combatentes bem instalados na vida e ex-coisa nenhuma na maior miséria.

Caberá em primeira instância às autoridades pugnar pela ajuda directa e efectiva aos sinsitrados, principalmente a quem perdeu os seus familiares, alguns sustento de agregados bem numerosos, como é vulgar naquela Ilha.

Para as pessoas interessadas em contribuir com os seus donativos, aqui ficam alguns NIB's destinados a receberem ajudam pecuniária, destinada aos atingidos pela catástrofe:

BANIF NIB 0038 0040 5007 0070 7711 1

BBVA NIB 0019 0001 0020 0181 6891 5

BES NIB 0007 0000 0083 4282 9362 3

Millenniun NIB 0033 0000 0025 1251 2440 5

Santander Totta NIB 0018 0003 2271 3788 0202 1


Curral das Freiras

Curral das Freiras bem lá no fundo da cratera de um antigo vulcão. A meia-encosta, à direita da foto, a estrada de acesso à Vila que esteve interrompida por detritos caídos da montanha.

Aspecto da linda marginal da cidade do Funchal

Uma vista da enconsta sul a partir do Pico da Torre

Panorâmica de Santana
Fotos: © Carlos Vinhal (2005). Direitos reservados

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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 17 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5831: Recordando o Tenente-Coronel Taveira Azevedo (José Martins)

Vd. último poste da série com data de 7 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5779: Ser solidário (54): Ajuda Humanitária à Guiné 2010 (Carlos Silva)

Guiné 63/74 - P5866: Ainda o desastre de Cheche, em 6 de Fevereiro de 1969 (5): uma versão historiográfica (?) (Luis Graça)





Guiné > Zona Leste > Rio Corubal > Cheche > 6 de Fevereiro de 1969 > Op Mabecos Bravios > Entrada e saída de viaturas, da CCAÇ 1790, a unidade de quadrícula de Madina do Boé,  na famigerada jangada que fazia a travessia do rio entre as margens sul  e norte... A última viagem seria fatal para 46 militares portugueses (das CCAÇ 1790 e 2405) e 1 civil... Foi o maior desastre do género, no TO da Guiné.

Imagens do Arquivo Histórico-Ultramarino. Fonte: Carlos de Matos Gomes e Aniceto Afonso – Os Anos da Guerra Colonial – Vol 10: 1969 – Acreditar na vitória. Matosinhos: QuidNovi. 2009. pag, 23 ( Com a devida vénia...).



1. Mandei ao José Martins, Armandino Alves, Rui Felício e Paulo Raposo, autores de postes sobre o desastre do Cheche (**), a seguinte mensagem:

Esta é a versão historiográfica... No livro, vol 10, de Os Anos da Guerra, de Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso,  há 3 fotos, do Arquivo Histórico-Militar, que vou ver se reproduzo, com imagens de viaturas a entrarem e a sairem da jangada...

Querem fazer algum comentário adicional a este excerto que vai ser reproduzido no blogue ?

Agradeço o vosso interesse e empenho em esclarecer os pontos mais obscuros ou controversos desta operação que acabou tragicamente.

Lembro que no blogue também já publicámos o Relatório da Op Mabecos Bravios, bem como o depoimento de Hélio Felgas, além dos testemunhos (presenciais) do Paulo e do Rui (***)... LG

2. Excerto da brochura Os Anos da Guerra, vol 10, pp. 23-24:

1969 – Os Acontecimentos

(…) Fevereiro, 6

Desastre do Cheche na travessia do rio Corubal, durante a retirada das forças portuguesas do quartel de Madina do Boé, na Guiné

Esta operação [, Op Mabecos Bravios,] tinha em vista retirar as forças portuguesas da posição insustentável de Madina do Boé, cercada pelo PAIGC e depois ocupada logo a seguir, no mesmo dia.

A companhia que estava em Madina do Boé havia 13 meses era a Companhia de Caçadores 1790, comandada pelo capitão José Aparício.

Depois de saírem de Madina, pelas nove da manhã do dia 6 de Fevereiro de 1969, as forças portuguesas perderam meia centena de homens e grande quantidade de material, quando a jangada que fazia a travessia do rio Corubal, se virou. Aparentemente por excesso de peso, ou pela sua má distribuição, agravado por uma detonação que provocou o pânico.

Na sequência da retirada e do desastre, o PAIGC ocupou Madina do Boé, Mejo e Cheche, tendo sido o facto alvo de exploração junto da opinião pública mundial por parte dos serviços de informação e propaganda do PAIGC.

O Exército justificou a retirada daquela região em consequência do reordenamento populacional, que exigia que aquelas populações fossem transferidas para aldeias de maior progresso económico e social.

De facto, o abandono do quartel de Madina do Boé fazia parte da reorganização do dispositivo militar que Spínola estava a levar a cabo desde que tomara posse[, do cargo de Comandante-Chefe e Governador, em 20 de Maio de 1968].

Madina era, juntamente com o Destacamento de Beli (já desactivado em Junho de 1968) e com Cheche, uma posição muito difícil de defender, por estar na fronteira da Guiné-Conacri, numa zona semidesértica e a uma cota inferior à dos morros do Futa Djalon, separada dos outros postes portugueses pelo rio Corubal, o que tornava esta localidade muito difícil de reabastacer ou mesmo de socorrer.

In: Carlos de Matos Gomes e Aniceto Afonso – Os Anos da Guerra Colonial – Vol 10: 1969 – Acreditar na vitória. Matosinhos: QuidNovi. 2009. pp. 23-24.

3. Comentário de L.G.:

Como repetidamente temos aqui escrito, o nosso blogue não é (nem nunca será, se isso depender só de mim) nenhuma espécie de tribunal da história da guerra colonial. Não julgamos, não condenamos, até por que, mal ou bem, todos fomos actores no TO da Guiné, plurais, contraditórios, dilacerados. O que nos move é apenas a vontade de lutar contra o esquecimento, o branqueamento, a indiferença, a manipulação, a falsificação, a ignorância, o cinismo, o conformismo... Privilegiamos as histórias de vida, as narrativas, os testemunhos presenciais, a pequena história, a fotografia, o documento... De um lado e do outro. Não estamos do lado do politicamente correcto.  Nem do pensamento único. Não queremos nem defendemos o unanimismo.  Procuramos a triangulação de fontes, muito embora tenhamos muitas limitações no acesso a documentos de arquivo, oficiais ou oficiosos.  Não somos historiadores.  Não fazemos investigação científica. Procuramos separar factos e opiniões, sentimentos, emoções, etc., muito embora saibamos que não há texto sem contexto. Nem há conto sem contador, mesmo quando quem conta um conto, acrescenta um ponto...

Madina do Boé, a sua retirada, o desastre do Cheche... nada disto tem uma leitura única. Mesmo aqueles que estiveram no cerne dos acontecimentos, têm (ou podem ter) diferentes versões, parcelares, dos acontecimentos. O comandante da operação, Cor Hélio Felgas, não estava na jangada, mas uns meses antes de morrer insistia na teoria do bode expiatório, neste caso, o elo mais fraco da cadeia hierárquica, que era o Alf Mil Dinis (camarada do cadete Torcato Mendonça, no COM, em Mafra, em 1967)... O Rui Felício, que estava na jangada e foi ao fundo com os seus homens, não tem dúvidas quanto ao diálogo entre o Alf Mil Dinis, responsável pela segurança da jangada, e o comandante da CCAÇ 1790... Cada um de nós tem o díreito a ter opinião,  mas não pode emitir juízos de valor, não fundamentados, em público, e nomeadamente no nosso blogue. Não incentivamos, nem apoiamos, não desejamos esse tipo de comportamento.

Há membros do nosso blogue que acham que há assuntos-tabu... O desastre do Cheche seria um deles. Alegam que nunca iremos saber a verdade... Ou que a verdade é dura demais para se dizer e ouvir... Quanto a nós, não há razão para fechar o dossiê, prematuramente... Os membros do nosso blogue são livres de abriir e reabrir este tipo de dossiês temáticos (que são as nossas séries), desde que possam haver factos novos ou índícios que sugiram factos novos...

E também há membros, mais recentes, do nosso blogue que pura e simplesmente nunca tinham ouvido falar do desastre do Cheche nem da sua gravidade. Eis mais uma razão para o lançamento desta nova série, Ainda o desastre do Cheche... LG

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Notas de L.G.:

(*) Vd. último poste da série:

21 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5861: Ainda o desastre do Cheche, em 6 de Fevereiro de 1969 (4): Cem anos que viva nunca esquecerei as imagens da catástrofe e o diálogo entre o Alf Diniz e o Cap Aparício (Rui Felício)

(**) Notas sobre a CCAÇ 1790 – Mobilizada pelo RI 15, partiu para a Guiné em 27/9/1967. Regressou em 20/8/1969. Esteve em Fá Mandinga, Madina do Boé, Nova Lamego e São Domingos. Comandante: Cap Inf José Ponces de Carvalho Aparício. Pertencia ao BCAÇ 1933 (Nova Lamego, Bissau, S. Domingos, 1967/69).

(***) Vd., entre outros, os seguintes postes:

7 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5778: Efemérides (45): O desastre do Cheche, visto por quem esteve lá e perdeu 11 homens do seu grupo de combate (Rui Felício, Alf Mil, CCAÇ 2405, Galomaro, 1968/70)

25 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2984: Op Mabecos Bravios: a retirada de Madina do Boé e o desastre de Cheche (Maj Gen Hélio Felgas † )

(...) (viii) O desastre da jangada

Cerca das 9 ou 10 horas da manhã apareceu um helicanhão que sobrevoou demoradamente toda a zona. Depois pousou e eu fui ter com ele procurando informar-me do que a tripulação tinha visto. Mas tinha chegado, apareceu um soldado correndo para mim a gritar que a jangada se estava afundando, logo após ter partido da margem sul. Pedi imediatamente ao piloto para... [ linha inteira cortada na fotocópia] depois para a margem do Cheche onde eu estava. Parecia vir normalmente carregada com homens e material.

(ix) Um comandante também chora

Quando chegou é que eu soube que diversos homens tinham caído ao rio, não aparecendo mais. Verifiquei tratar-se do pessoal que realizava a última travessia.

Quando se fez a chamada, viu-se que faltavam quarenta e tal homens, seis dos quais nativos.

Não consegui controlar-me e desatei a chorar, tal como aliás vi muitos valorosos militares a fazerem. Foi assim que me encontrou o General Spínola que nesse dia também quisera ir ter comigo.

Aguardámos horas, com o helicóptero sobrevoando o local na esperança de localizar alguns dos desaparecidos. Dois ou três bons nadadores também mergulharam na zona onde acorrera o acidente. Nada foi encontrado.

Interroguei diversos militares mas alguns nem podiam falar. Outros disseram-me que a jangada, logo após ter partido da margem sul, tinha-se afundado um bocado, ficando o estrado rés-vés com a água. Este afundamento era aliás natural desde que não fosse excessivo. O estrado, como dissemos atrás, ficava a cerca de um metro da água quando a jangada estava vazia. Esta distância diminuía conforme o peso do carregamento mas o estrado normalmente nunca chegava a ser coberto pela água.

Segundo parece, alguns dos homens que seguiam junto às vedações laterais assustaram-se quando alguma água começou a cobrir o estrado. Teriam então descido para o rio procurando segurar-se às travessas laterais do estrado e continuar assim a travessia. Desta forma o peso da carga diminuiria e a jangada subiria. Só que não se lembraram de que com o equipamento e as munições cada um pesava mais de cem quilos.

Foi desta forma que uma operação que decorrera sem qualquer baixa (ao contrário do que inicialmente se esperava), viu o seu final tragicamente enlutado. Durante toda a noite, desde as seis da tarde da véspera até às 10 ou 11 da manhã seguinte, as jangadas tinham trabalhado sem qualquer anomalia. Fizeram dezenas de travessias. E o azar logo havia de aparecer na última e de forma tão dolorosa.

Nem o facto de na altura terem ocorrido acidentes semelhantes (ou talvez ainda mais graves), com jangadas em Moçambique, podia servir de lenitivo para o que nos sucedera na Guiné. Dezenas de homens que tinham vivido longos meses sob bombardeamentos quase diários, acabaram por morrer afogados. (...)


12 Fevereiro 2006 > Guiné 63/74 - DXXVI: O desastre do Cheche: a verdade a que os mortos e os vivos têm direito (Rui Felício, CCAÇ 2405)

(...) A CCAÇ 2405, comandada pelo Cap Mil Inf Novais Jerónimo, integrava a coluna militar que tinha partido na manhã do dia anterior de Madina do Boé, rumo ao Cheche, e tinha como missão escoltar a Companhia de Caçadores [1790] evacuada daquele aquartelamento e que era comandada pelo Cap Inf Aparício (que, após o 25 de Abril, veio a assumir a função de Comandante Geral da PSP de Lisboa).(...)

(...) O Capitão Jerónimo, comandante da CCAÇ 2405, e eu próprio, estávamos na jangada no momento do acidente, onde se encontrava também o Alferes Miliciano Jorge Rijo, oficial da CCAÇ 2405, com o seu pelotão.

O Alferes Miliciano Paulo Raposo, também oficial da CCAÇ 2405, já tinha feito a travessia do rio na viagem anterior, e encontrava-se na margem norte do Corubal com o seu pelotão, observando a tragédia. (...)

(...) Não me recordo de ter ouvido qualquer disparo de morteiro, antes do desastre... E não me lembro de ter detectado antes qualquer sinal de pânico entre os soldados... Aliás, a sua experiência operacional no teatro de guerra era já apreciável e não entrariam em pânico por um simples disparo de morteiro que estou seguro que não existiu.

Houve alguns disparos de morteiro, é verdade, mas após o desastre e feitos pelas NT, no intuito de prevenir qualquer aproveitamento do IN que eventualmente estivesse emboscado nas imediações.

Exceptuando os militares que infelizmente pereceram afogados no Corubal, passados poucos minutos, todos restantes retornavam à jangada que, pouco depois, se reequilibrou e retomou a sua viagem para a margem norte do rio. E eu fui um deles... Depois de me ter libertado da espingarda, das cartucheiras, das botas e das granadas, cujo peso me puxava inexoravelmente para o fundo...
 
Em nenhum momento descortinei qualquer tipo de pânico quando regressei à jangada e, talvez nervosos ainda do desastre, todos sorriamos e aceitávamos o banho forçado como uma dádiva divina depois de vários dias de sede e calor. (...)
 
(...) Em resumo e concluindo:

(i) O desastre do Cheche ficou a dever-se, em minha opinião, ao excesso de peso entrado na jangada.

(ii) E ela é corroborada por todos aqueles que, como eu, viajavam na jangada e que em conversas a seguir ao desastre manifestaram a mesma opinião.

(iii) Note-se que a mesma jangada tinha já feito dezenas de travessias sob as ordens directas do Alf Diniz sem nunca se ter detectado qualquer problema.

(iv) Esse problema surgiu de forma trágica na última travessia, ou seja, naquela em que o responsável Alf Diniz não pôde efectivamente proceder segundo o que estava estabelecido, deixando entrar na jangada o dobro da sua capacidade, por ordem do 2º Comandante da Operação a que, pela natureza da hierarquia militar, não poderia opor-se.

(v) Mas fê-lo, e disso dei testemunho no âmbito do inquérito que se seguiu, advertindo previamente o seu superior hierárquico para o facto de estar a infringir as determinações que tinha sobre a forma de fazer a travessia do rio e da lotação definida para a embarcação.

(vi) E estou convencido que a rapidez do desaparecimento das vítimas nas águas calmas, escuras e profundas do Corubal, se ficou a dever ao facto de todos transportarem consigo pesado equipamento de guerra que lhes tolheu os movimentos e os conduziu para o fundo do rio, de forma tão rápida, com a agravante de que a maior parte deles não sabia nadar.

(vii) Finalmente, não posso deixar de fazer referência ao que o José Martins diz ter ouvido de "alguém que esteve no centro do acontecimento" de que as águas tomaram um tom avermelhado.

(viii) Sei da existência de crocodilos naquele troço do rio Corubal.

(ix) Sei que alguns dos corpos de soldados encontrados dias mais tarde, apresentavam sinais de terem sido dilacerados por crocodilos.

(x) Mas sei também que as águas, naquele dia, e após o acidente, apenas apresentavam o tom natural verde escuro de um rio calmo e profundo e tenho dúvidas que os crocodilos tivessem estado presentes naqueles momentos, com o ruído de helicópteros sobrevoando as águas a baixa altitude, na tentativa de encontrar e socorrer algum soldado em dificuldades. (...)

Vd. o diossiê do José Martins:

18 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1292: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (Parte I)

15 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1370: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (Parte II)

21 de Dezembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1388: Madina do Boé: contributos para a sua história (José Martins) (III parte)

Vd. ainda:

24 de Junho de 2008 > Guiné 63/74 - P2980: In Memoriam (5): Morreu ontem o Major General Hélio Felgas, antigo comandante do Agrupamento nº 2957, Bafatá (1968/69)

(...) Estava há vários anos doente e acamado. Ainda há uns meses atrás, telefonei-lhe para casa, aqui em Lisboa, para lhe pedir autorização para publicar no nosso blogue um escrito dele, com a sua versão do desastre do Cheche. Atendeu-me, muito gentilmente, a esposa. Expliquei-me a razão de ser do telefonema. Ouvi a conversa da senhora com o marido, que devia estar perto... Ainda me recordo das suas palavras, em que se percebia a voz do velho comandante:

- Diz-lhe que a culpa foi do alferes, a culpa foi do alferes... [Julgo que se queria referir ao Alf Mil Diniz, responsável pela segurança da travessia do Corubal...  (...)

7 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P853: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (10): A retirada de Madina do Boé

13 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXXIX: A verdade sobre o desastre de Cheche (Paulo Raposo)

2 de Agosto de 2005 > Guiné 63/74 - CXXXIII: O desastre de Cheche, na retirada de Madina do Boé (5 de Fevereiro de 1969)

(...) Este documento, que me chegou às mãos através do Humberto Reis, relata a dramática operação em que participou a CCAÇ 2405, sedeada em Galomaro, e pertencente ao BCAÇ 2852 (Bambadinca, 1968/70), operação essa que tinha em vista retirar as NT da posição insustentável de Madina do Boé, cercada pelo PAIGC (e depois ocupada logo a seguir, no mesmo dia, a 6 de Fevereiro de 1969, após a retirada das NT).

Recorde-se que a companhia que estava em Madina do Boé, há 13 meses, era a CCAÇ 1790, a mesma a que pertencia Gustavo Pimenta, o alferes miliciano que perdeu metade do seu pelotão nessa trágica retirada (ele é o autor do livro sairómeM - Guerra Colonial. Porto: Palimage Editores, 1999) [vd. post de 17 de Julho de 2005 > Guiné 69/71 - CIX: Antologia (7): Os bravos de Madina do Boé (CCAÇ 1790) ]

Em Cheche, já no regresso de Madina, pelas 9 da manhã do dia 6 de Fevereiro de 1969, as NT sofrem a perda de meia centenas de homens e grandes quantidades de material, quando a jangada que fazia a travessia do Rio Corubal se virou. Aparentemente, sem explicação (Já ouvi várias teorias sobre isso, mas essas especulações ficam para mais tarde...).

O desastre terá sido devido a excesso e desiquíbrio de peso. Iam na jangada mais de cem homens (4 grupos de combate mais a tripulação da embarcação), além de viaturas e outro equipamento. Dos que desapareceram, 17 pertenciam à companhia de Galomaro.

Esta operação foi uma das mais dramáticas que se desenrolaram no TO da Guiné, devido não só à pressão do IN (invisível mas sempre ubíquo como Deus) como a outros factores desfavoráveis para as NT (o calor, a falta de água, as condições do terreno, as terríveis abelhas da Guiné que estavam objectivamente ao serviço do PAIGC, as insónias, o stresse, a exaustão física e emocional (...).

(...) O texto que se segue tem uma ou outra palavra ilegível. Foi feita a sua recuperação. Impresso a stencil há 35 anos, do documento foi feita uma fotocópia, fornecida ao Humberto Reis por um camarada da CCS do BCAÇ 2852.

Curiosamente, o autor do relatório da Op Mabeco[s Bracvios], o comandante da CCAÇ 2405, não apresenta quais quer razões, técnicas, militares ou outras, para o afundamento da jangada, limitando-se a descrever, de maneira sucinta e factual, o desastre, como mandava o livro de estilo dos operacionais, nunca deixando que os seus sentimentos ou emoções interferissem com a capacidade de identificar e descrever os acontecimentos mais relevantes ocorridos durante uma operação. (...)

Guine 63/74 - P5865: Convívios (192): 2º Encontro (mensal) da Tabanca do Centro, em Monte Real, em 26 do corrente (Luís Graça)

1. Sob a batuta experiente do nosso camarada Joaquim Mexia Alves (aqui na foto, nas Termas de Monte Real, posando ao lado do busto de seu pai, Opympio Duarte Alves, empresário e antigo governador civil de Leiria), a Tabanca do Centro, como sede em Monte Real, Leiria,  vai reunir-se, pela 2ª vez, este ano (*)...

Reprodução do poste de 17 de Fevereiro de 2010 > 2º Encontro da Tabanca do Centro - Último Aviso!!!

2º Encontro da Tabanca do Centro está agendado para dia 26 de Fevereiro, 6ª feira, no mesmo local, Pensão Montanha,  em Monte Real, às 13 horas. [Estrada Vieira Leiria,  Monte Real, Leiria 2425-039, telef.  244 612 115]. (**)


A ementa desta vez será bacalhau assado na brasa, (não é a correr), com batatas a murro e migas.

Poderá muito bem ser que haja alguns mimos para entrada, e as sobremesas serão as habituais.

O valor mantém-se na enorme quantia de 8,50€! (oito euros e cinquenta cêntimos).

Terei que receber as inscrições, (de preferência para o mail tabanca.centro@gmail.com, ou aqui na caixa de comentários), o mais tardar até dia 24 de Fevereiro às 12 horas, pois o restaurante precisa de saber com o que conta. (...)

2. Lista (provisória) das inscrições para o 2º Encontro da Tabanca do Centro - 26 de Fevereiro - Monte Real

Agostinho Gaspar
Alice e Luís Graça
Antonieta e Belarmino Sardinha
António Martins de Matos
Artur Soares
Dulce e Luís Rainha
Gil Moutinho
Giselda e Miguel Pessoa
Idálio Reis
Isabel e Alexandre Coutinho e Lima
João Barge
Joaquim Mexia Alves
José Belo
Jorge Narciso
Juvenal Amado
Manuel Reis
Teresa e Carlos M. Santos
Vasco da Gama
Victor Barata
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Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 30 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5728: Convívios (177): 1.º Encontro da Tertúlia do Centro, aconteceu no dia 27 de Janeiro de 2010 em Monte Real


(**) Fica na rua principal de Monte Real, também conhecida por Rua de Leiria. A entrada faz-se por uma porta de lado.

Guiné 63/74 - P5864: Notas de leitura (69): Guerra Colonial - Angola - Guiné - Moçambique, Edição Diário de Notícias (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 de Fevereiro de 2010:

Queridos amigos,
É de facto impossível iniciar um estudo da guerra colonial sem começar por aqui.
É a homenagem elementar que pretendo aqui deixar.

Um abraço do
Mário



A primeira história importante sobre a guerra colonial

Beja Santos

Nada existiu de tão significativo antes da publicação da “Guerra Colonial, Angola, Guiné, Moçambique”, da autoria de Aniceto Afonso e Carlos de Matos Gomes. A obra foi editada em fascículos no Diário de Notícias, no fim dos anos 90, e em 2000 a Editorial Notícias deu-a à estampa. Os mesmos autores abalançaram-se recentemente a publicar “Os Anos da Guerra Colonial”, que recebeu muita inspiração, como é compreensível, da iniciativa anterior. É impossível estudar-se a guerra colonial sem ter em conta esta obra de referência. Basta pensar só no elenco de colaboradores: Adriano Moreira, António José Telo, David Martelo, Diana Andringa, José Falcão de Campos, José de Matos-Cruz, Josep Sanchez Cervelló, Luís Salgado Matos, Nuno Santa Clara Gomes, Rosário Simões, Rui de Azevedo Teixeira. Como escrevem os autores na apresentação, importa não pôr de lado a delicadeza do tema: ainda há paixões à tona, há fontes irrepreensíveis e há questões que podem ser encaradas como factores de distorção, sobretudo quando os actores transmitem a visão dos acontecimentos no enfoque pessoal, sem contraditório. E adiantam: “O presente trabalho pretende constituir algo em que se possam rever aqueles homens e mulheres que, em qualquer situação participaram na guerra e os que com eles se relacionaram. Algo que dirá respeito a Portugal e aos países africanos que, neste longo conflito, conquistaram a sua independência política”.

A estrutura da obra é aliciante, comporta uma organização que permite visualizar os locais do conflito e as grandes operações ali desencadeadas; pode ficar-se com uma ideia das forças em presença (recorde-se que ainda hoje não há dados fiáveis sobre as forças efectivas dos guerrilheiros, nos três teatros de operações), quem e porquê se fez a guerra, a evolução da matriz doutrinal, os principais dirigentes, heróis e políticos, alguns aspectos do quotidiano da guerra, o impacto da guerra na sociedade portuguesa, guiões, modelos de armas e cronologia da guerra colonial.

Os autores não iludem as questões que possam ser vistas como controversas como seja falar de guerra colonial em oposição a guerra do Ultramar ou guerra de África. Entram na cronologia dos acontecimentos com o que se passou em 15 de Março de 1961, em Angola, e a determinação de Salazar após abortar o golpe de Botelho Moniz. Tem destaque na reocupação do Norte de Angola a operação Viriato e a entrada em Nambuangongo. Sanchez Cervelló sintetiza o novo quadro africano, entre 1945 e 1962. Explicado o essencial de uma guerra subversiva, os autores apresentam o teatro angolano e os movimentos da independência. Segue-se a Guiné, a história do PAIGC, a operação Tridente, um resumo do meio físico, humano e económico da região. A operação Águia é o preâmbulo da guerra de Moçambique, dá-se um apontamento da Frelimo e igualmente do meio físico, humano e económico de Moçambique, bem como o enquadramento do teatro de operações.

Apresentados os actores e o meio, dada a moldura ideológica e as mudanças registadas em África no período precedente à luta dos movimentos de libertação, faz-se desfilar os contingentes em contenda, os dispositivos militares, as operações, as condecorações, os eventos marcantes, mas também o sistema de informações, a guerra psicológica, o papel das organizações femininas (Cruz Vermelha e Movimento Nacional Feminino), as tensões dentro da Igreja Católica.

As relações internacionais têm o merecido destaque, tal como a africanização da guerra, a noção do quadro económico (que era praticamente desconhecido da chamada metrópole, em 1974, à vontade da independência africana ameaçava sobrepor-se a da independência branca, como escreve Salgado de Matos). Minas e armadilhas, o papel das forças especiais, os transportes, os diferentes tipos de equipamento, a guerra dos céus, as lanchas e os navios, as transmissões, as obras de engenharia, a administração militar, a acção psicológica, têm o merecido relevo. Grandes protagonistas como Costa Gomes, Kaúlza, Spínola, estratégias e operações, recebem o merecido acolhimento como irão sobressair momentos de viragem como aqueles que viveu a Guiné em Maio de 1973, com Guidage, Guileje e Gadamael. E estamos chegados a outras questões fulcrais como as mentalidades da geração de 60, o papel da literatura, do cinema, o fenómeno do movimento dos capitães e, por último, a génese do 25 de Abril e no seu rescaldo as feridas de guerra, como é o caso dos deficientes. A obra remata com um balanço e uma reflexão final e a bibliografia utilizada.

É uma edição impar, com esta “Guerra Colonial”, a historiografia deu um salto. Nestas 600 e tantas páginas alcançou-se uma admirável síntese sem descurar o rigor do pano de fundo, em si tão complexo. Nós, os camaradas da Guiné, fomos directos beneficiários, Aniceto Afonso escreveu depois uma importante súmula sobre a guerra da Guiné que a seu tempo fiz referência. Inevitavelmente, ela tem que fazer parte da nossa biblioteca, é por isso que eu a ofereço ao blogue, com um abraço de elevada consideração e admiração pelos seus autores.
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5824: Notas de leitura (68): Memória, de Álvaro Guerra - A tiros de raiva e metal escaldante (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P5863: Histórias de heroísmo (3): A odisseia de uma escolta a Cabedu, em LDP, no Rio Cumbijã (José Colaço)


1. O nosso Camarada José Colaço (ex-Sold Trms da CCAÇ 557, Cachil, Bissau e Bafatá, 1963/65), enviou-nos a seguinte mensagem em 20 de Fevereiro de 2010:



A odisseia de uma escolta (*)


Tudo começou na manhã de 14 de Dezembro de 1963.

A companhia independente, CCaç 557 , comandada pelo então capitão Ares, vinda da Metrópole, tinha desembarcado no cais de Pidjiguiti, em Bissau, no dia 03/11/1963 e tudo corria normalmente, com o pessoal aquartelado num barracão na Bolola, com vista para o referido cais.

Nesse dia cerca das 9 horas, mais ou menos, o capitão chamou-me e fez-me a seguinte pergunta:
- Ó Colaço (nome por que sempre me tratou, dado eu na companhia ser conhecido pelo nome e não pelo número como seria normal), quantos homens de transmissões temos neste momento na companhia?.

A pergunta derivava do facto de haver vários especialistas de transmissões que tinham sido escalados para escoltas aos batelões destinados a levar os chamados géneros (mantimentos), para companhias que estavam no mato.

Lá dei a informação o melhor possível e a resposta do capitão foi: “
- Então,  tu e os teus colegas arranjem as vossas coisinhas, que à tarde têm de embarcar para o mato!.

Não nos disse para onde. Só na hora do embarque vim a saber que o destino era Catió, mas estava muito longe de saber que Catió era só uma miragem para um mini-estágio e, o destino final seria o Como [e a Operação Tridente].

A hierarquia sabia o grau de deficiência com que os chamados especialistas eram chamados para a guerra, porque uma coisa era apertar o gatilho de uma G3 que, em segundos, um atirador estava pronto a efectuar, outra,  que fiava um pouco mais fino, era receber mensagens e emitir outras tirando partido da saída da antena para que as ondas hertzianas se propagassem no espaço.

Assim, as transmissões eram um ponto fulcral para toda a organização estratégica de uma companhia ou de um grupo de combate, pois ficar incontactável era um dos problemas de difícil, ou nula, resolução.

A viagem até Catió foi normal e pernoitei no quartel de Bolama com tudo programado (cama e pequeno almoço).

Chegado a Catió fiquei adido ao BCAÇ 619, sendo o meu trabalho, único e quase exclusivo, passar os dias no posto rádio do batalhão a treinar, principalmente, a recepção de mensagens e o alfabeto fonético, que era o meio, com prioridade, utilizado no mato.

Só nas emergências e a comunicação entre grupos, em combate, era autorizado a utilizar a comunicação oral normal.

Mesmo assim, com alguns códigos à mistura, à noite, fui escalado (não sei quantas vezes), para fazer parte da secção que fazia protecção aos obuses que bombardeavam o Como (por períodos de cerca de 45 minutos a uma hora).

Isto serviu-me, para me ir habituando ao que me estava reservado.

Como a roda do tempo não pára, estávamos na semana do Natal de 1963, e, foi aqui, que surgiu a odisseia da dita escolta.

Era urgente reabastecer a CCaç 555 sedeada em Cabedu e adida ao BCaç 619 (**). Então o comando de Catió organizou um reabastecimento de mantimentos (os tais chamados géneros), numa LDP [, Lancha de Desembarque Pequena] com uma secção de atiradores comandada por um furriel miliciano, e eu fui integrado nessa escolta como elemento de transmissões para manter o contacto com Catió, e, quando este não fosse audível, sintonizaria Cabedu.

O rádio que me disponibilizaram, foi um ANPRC 10, cujo alcance era bastante limitado (só era muito bom para comunicar com os aviões, DO 27 ou T-6), quando nos sobrevoavam.

Lembro-me de ter dado muitas informações aos pilotos dos T-6, para metralhar mais 40 ou 50 metros à esquerda, à direita ou à frente, em relação à picagem que tinha sido feita anteriormente. Não posso precisar, mas o alcance era de cerca de 5 a 6 km em boas condições de propagação das ondas hertzianas.

O contacto com Catió perdeu-se, logo que navegámos meia dúzia de milhas, e de Cabedu nem ruídos eu conseguia ouvir. Tudo totalmente mudo.

Como nem o comandante da escolta, nem o marinheiro maquinista da LDP, conheciam a zona, o já então carismático João Bacar Jaló forneceu-nos um dos seus homens, que ele pensava ser de inteira confiança, como guia conhecedor da zona.

Com tudo previsto quanto às marés, na parte da manhã rumámos com destino a Cabedu, e, após navegarmos pelo rio Cumbijã, cortamos numa bifurcação à esquerda, não sei se era um afluente ou uma ria.

O que eu sei é que conforme prosseguíamos, o caudal do rio era cada vez mais fraco, e a pergunta sacramental que se fazia ao guia era:
- Tens a certeza que vamos no rumo certo ?

Ele dizia:
- Sim, sim, é este o rio para Cabedu!

A dado momento, já nenhum de nós acreditava no guia, porque a informação que tínhamos é que até Cabedu não havia problemas quanto à falta de água para navegar, o que não era o caso. O comandante da escolta bem me dizia:
- Ó telegrafista,  comunica.

Disse-lhe, meio desorientado:
- Para já não sou telegrafista, sou de transmissões, e como é que comunico com esta m... se isto não presta, só dá para avisar quando estivermos próximo de Cabedu, ou se, por sorte, se neste momento formos sobrevoados por um avião dos nossos, uma DO ou um T-6 ?!

Estávamos numa zona de campo aberto, fazia lembrar o Alentejo na Primavera, viam-se ao longe vacas a pastar e nós, com receio que a lancha batesse no fundo e parássemos por falta de altura de água para navegar, ou, pior ainda, de atravessar a fronteira sem sabermos. Nós não fazíamos a mínima ideia onde nos encontrávamos.

Mas como é hábito dizer,  o tuga tem sempre sorte, se parte uma perna foi sorte não ter partido as duas, se parte as duas foi sorte não ter morrido e se morre teve sorte senão ficava a sofrer o resto da vida.

Surgiu então um pequeno lago, onde o marinheiro com muita perícia conseguiu inverter a marcha. Que alívio! Não há palavras para qualificar aquele momento feliz, por ter sido encontrado aquela pequena bacia de água, que nos permitiu pôr a salvo.

Logo que invertemos a marcha, o guia que vigiávamos com muita atenção, veio debaixo de prisão. A partir daí, uma das razões dele nunca ter tentado a fuga, era encontrarmo-nos numa zona ampla, com boa visão, onde ele seria abatido com muita facilidade. Se a zona fosse de Bolanha, e, ou, tarrafo, com a nossa preocupação presa no IN, bastava ele dar um salto para fora da lancha e nós não mais o víamos.

Chegados a Catió, o comandante da escolta fez o relatório e o guia foi entregue ao João Bacar Jaló. O João reprimia as traições com bastante dureza. Ele mostrou o pau com que agredia os traidores no estômago, mas a resposta do falso guia foi:
- Mim murre… mas não diz nada.

Um alfa bravo
José Colaço
Sold Trms da CCAÇ 557
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Notas de M.R.:

 
(**) Notas sobre o BCAÇ 619: Mobilizado pelo  RI 1, partiu para a Guiné em  8/1/1964. Regressou a 9/2/1966. Esteve sedeado em Catió. Comandante: Ten Cor  Inf Narsélio Fernandes Matias. Unidades de quadrícula: CCAÇ 616 (Bissau, Empada); CCAÇ 617 ( Bissau, Catió, Cachil); CCAÇ 618 ( S. Domingos, Binar)