1. Mensagem de Rui Silva (ex-Fur Mil da CCAÇ 816, Bissorã, Olossato, Mansoa, 1965/67), com data de 24 de Fevereiro de 2010:Caros Luís, Vinhal, Briote e M. Ribeiro:
Recebam um grande abraço mais votos de muita saúde, extensivos a todos os ex-Combatentes da Guiné, mais ainda para aqueles que, de algum modo, ainda sofrem de sequelas daquela maldita guerra.
Em 21 De Maio de 1965 pelas 12h (meio-dia) entrava no Niassa de forma descontraída e com ares de turista para cruzeiro, para embarcar para a Guiné; Volvidos 20 dias entrava às 12h (meia-noite) no mato, algures numa zona de África, armado de G3 e de cartucheiras cheias de carregadores, à caça do inimigo, meu semelhante, mas “pintado” doutra cor.
- Das minhas memórias: “Páginas Negras com Salpicos cor-de-rosa”-
A minha primeira vez (na Guerra).…Entretanto fez-se a minha primeira saída para o mato, que não se fez esperar muito, pois deu-se na segunda noite que passávamos em Bissorã. O meu Grupo de combate, que era o 3.º Pelotão da Companhia, seria portanto o primeiro a sair para o mato para um “golpe-de-mão”. (2 Secções de outro Pelotão já tinham feito uma escolta a uma coluna de reabastecimento até
Maqué - estrada Bissorã-Olossato-).
Em conjunto com o Grupo de Comandos - os chamados “Lordes”- da Companhia 643 (os Águias Negras) íamos actuar de assalto o refúgio inimigo de
Queré.
Embora não esperasse uma saída tão cedo, não fiquei surpreendido, pois até não estava ali para outra coisa. Foi depois de jantar e quando já nos encontrávamos nos quartos, que ouvi uma voz lá fora, uma voz e uma frase que se iriam repetir muitas vezes futuramente, para mal dos nossos pecados. O “Braga” mais para diante até dava o recado a uma razoável distância e com alguma precaução, pois havia quem, mais na brincadeira, lhe atirasse uma bota ou outra coisa que tivesse à mão. Não podíamos ver o “Braga” quando ele se aproximava. Então a voz e o recado do Braga: “Os sargentos do 3.º Pelotão - na circunstância era este - ao nosso Capitão”. Ficou para valer esta macabra mensagem. Como era a primeira vez que aquele recado acontecia, desconhecíamos a razão de tal convite, mas, passados breves minutos logo ficámos ao corrente. O nosso Capitão – o Capitão Riquito – acompanhado do Comandante do meu Grupo de Combate - o Alferes Esteves - e com o Hipólito e o Graça (estes dois, Sargentos dos “Lordes”), deu conhecimento da Operação a efectuar.
Antecedidas de breves horas, as saídas para o mato iriam ter sempre aquela necessária e imprescindível reunião, para aí ouvirmos da missão, progressão no terreno, táctica, dispositivo a adoptar, hora de saída, e dados referentes ao inimigo, nomeadamente do seu efectivo, do seu armamento, se haviam sentinelas, e se haviam qual a sua localização, etc.
Toda esta informação era para transmitirmos depois às respectivas Secções, ficando assim todo o efectivo operacional ao corrente da Operação.
Não encarei com muita preocupação esta minha primeira saída para o mato, como até seria de supor, pois para mim tudo seria novidade, desconhecendo e ignorando como era aquilo de andar aos tiros, uma espécie de brancos contra os pretos.
Vesti então o camuflado, apertei bem o cinto com as cartucheiras, coloquei a G3 em bandoleira, fiz a minha oração e segui então para o lugar de partida para o mato com um cigarro apertado nos lábios.
Assim, parti com um relativo à-vontade e uma certa confiança, não conseguindo porém, disfarçar um nervoso miudinho.
Lá estavam os soldados já agrupados para tomarem o tonificante café, ritual que se repetiria sempre antes de formarmos a fila indiana para sair do quartel.
Aproximei-me do local – cozinha dos soldados - para fazer o mesmo. Sabia sempre bem aquela tigela de café antes de sairmos. Servia-nos de lenitivo e aquecia-nos o corpo. Como de costume a noite já ia bem dentro. Com o Sargento Tavares, sentados no degrau do passeio, troquei algumas palavras com ele e as nossas expressões denotavam relativa preocupação, mais a minha que a dele, pois ele já tinha uma certa prática nestas andanças, uma vez que já tinha feito uma comissão em Angola.
Entretanto os “Comandos” da 643, já muito habituados àquilo, demonstravam uma nítida descontracção e ligeireza de movimentos que me causaram impressão. Barbudos, queimados, camuflados coçados e desbotados pareciam que iam para uma festa. Eu já não via a coisa tão bem assim.
Em breves segundos puseram-se ordenadamente em fila indiana prontos para saírem. Depois de agruparmos as nossas Secções nas posições definidas pelo Comandante do Grupo de Combate, começámos então a caminhar, abandonando o quartel e rumo ao objectivo. À frente os “Comandos” (os Lordes) e atrás os “periquitos” do 3.º Grupo de Combate da 816. Ou seja à frente os que tinham os camuflados coçados, desbotados rotos e rostos queimados e atrás os ainda branquinhos periquitos de camuflado novo e passado a ferro (passe o exagero).
Eram cerca das 11 horas da noite quando deixámos o aquartelamento de Bissorã rumo à casa-de-mato de Queré, algures nesta zona, aonde um grupo de terroristas se acoitava. A estrada tomada era a que ia para a “outra banda” mas não chegámos a cruzar o rio Armada, pois cortámos num carreiro à esquerda.
Segundo as informações dadas na reunião que antecedeu a Operação, o refúgio tratava-se mais de um Posto Administrativo (?), apenas com as armas e efectivo suficientes para a segurança deste. Portanto contava-se com relativa fragilidade por parte do inimigo. Caso insólito: nesta Operação o guia era uma “bajuda”! (rapariga nova, indígena).
Para as Operações de “golpes-de-mão”, necessitávamos, naturalmente, de um guia indígena, conhecedor da zona e do caminho. Muitas das vezes os nativos do nosso lado (milícias) também conheciam mais ou menos as paragens, salvaguardando as alturas em que entravam em contradição (uns diziam que era para a esquerda outros para a direita) e baralhavam mais as contas. As deslocações para este tipo de Operações eram feitas normalmente de noite, através do sinuoso mato (muitas das vezes evitávamos trilhos e caminhos para fugir às minas e a não darmos azo a sermos mais facilmente detectados), atravessando, não raras vezes, alagadas bolanhas e outros obstáculos. Assim era indispensável alguém da região que nos conduzisse e se para além de conhecedor do percurso, soubesse-nos informar do local exacto do refúgio, quantidade de terroristas, seu armamento, da existência e posição de eventuais sentinelas, etc., ainda bem melhor.
Muitas das vezes sabíamos de antemão todos estes pormenores pois o nosso guia tratava-se de alguém que tinha já pertencido ao refúgio e que o abandonou, por fome, por maus tratos ou outro motivo qualquer, ou então fora apanhado inadvertidamente no mato pelas tropas e instigado a colaborar.
A maioria dos guias no entanto, não queria colaborar, (outra situação a reflectir) nem à força, chegando muitas das vezes a pagar caro a sua recusa. Saíam sempre com a tropa, mas, uma vez no mato, e na maior parte das vezes, faziam-nos andar às voltas e mais voltas até sermos detectados, o que se julgava ser de forma propositada e gorando assim o objectivo da Operação. Eram castigados duramente ou liquidados mesmo ali.
Voltando à Operação Queré, a rapariguinha negra, envolta numa grande túnica(?) que lhe cobria a cabeça e grande parte do rosto e até a terminar nos pés – para não ser reconhecida - lá nos foi conduzindo pelo mato fora e com grande determinação. O motivo que levou a “bajuda” a querer ajudar a tropa é que ela tinha sido vítima de tentativas de violação, e não só, por parte dos componentes de tal acampamento, daí o desejo de se vingar e para nós uma boa oportunidade, uma vez que tínhamos um guia que conhecia completa e detalhadamente o refúgio e muito decidida à retaliação.
À medida que nos afastávamos de Bissorã as luzes desta povoação iam-se tornando, naturalmente, menos visíveis, sempre que as olhava, virando-me para trás, para certificar-me da distância, até que a coluna mergulhou na completa escuridão do mato, entregues ao destino e, vejam lá (!), aquela frágil mas corajosa e decidida rapariguinha. Logo à entrada do mato, o que mais tarde acharia ridículo, comecei a olhar para todos os lados como prevendo, num possível esconderijo – uma árvore, um “baga-baga” (montículo de terra endurecida que chegava a atingir 2 metros e mais de altura e que era construído por uma formiga - leia-se milhares e milhares - com uma disciplina militar e guerreira na defesa do seu laborioso
habitat - o tal montículo de terra - e a que se dava o mesmo nome também de formiga “baga-baga”. Não sei se foi o nome do montículo que deu nome à formiga se foi o contrário), um arbusto, o capim, etc. - uma possível posição inimiga pronta a atacar, o que me provocava alguma tensão. A minha arma ia terrivelmente apertada nas mãos e, com o corpo hirto, a respiração entrecortada e de olhar extasiado, ia galgando assim o acidentado e desconhecido terreno do mato.
Ainda deu para apanhar um cagaço mal tínhamos entrado no mato:
Próximo de mim caiu com algum barulho (presumi, mas só depois, que algum fruto ou coisa parecida tenha caído ao chão) qualquer coisa que quase e instintivamente me fez deitar no chão (uma granada queres ver!). O que vinha atrás ainda riu-se do que eu ia fazendo, mas se calhar só parou de tremer muito depois de mim. Refeito, coração em batida normal, toca a seguir. Este meu estado de espírito foi-se desanuviando à medida que ia ganhando experiência nestas andanças, pois mais tarde, só quando estávamos próximo do inimigo é que tomava cuidado e o coração batia mais vezes. Nessa altura é que a G3 mudava de posição já com o indicador próximo do gatilho e a mão esquerda a segurar a arma junto ao cano. Até essa altura, e com a arma segura na mão como um saco, pensava em tudo menos na guerra. Assim o tempo parecia passar mais depressa e o sistema nervoso era mais controlado. Mas naquela minha primeira saída para o mato o meu estado de espírito era de facto como atrás conto.
A missão do meu Grupo de combate era a de segurança ao grupo de assalto, grupo este que era o dos “Lordes”. Devíamos formar um semi-anel em torno do refúgio e à retaguarda dos “Lordes”. Este nosso dispositivo permitiria assim uma segurança pelas costas aqueles, ao mesmo tempo que evitaríamos, por esse lado qualquer fuga inimiga.
As horas, que pareciam longas, foram passando até que chegamos perto do refúgio e, tal como estava previsto, alguns minutos antes da hora prevista para o ataque. Estes minutos de espera serviam para nos refazermos do esforço e da tensão acumulados ao longo da caminhada e para ultimarmos pormenores ou desfazer qualquer dúvida sobre o assalto a perpetrar. Sentamo-nos então, procurando a todo o transe não fazer qualquer espécie de ruído. Ouvia-se eventualmente o barulho provocado pelo movimento de um ou outro animal furtivo e como já estávamos perto do alvorecer do dia ouviu-se também o chilrear incessante e ensurdecedor da imensa e variada passarada que infesta aquelas paragens. Nunca tinha imaginado e muito menos ouvido tão variada e estridente sinfonia. O chilrear de uns dava a sensação de uma serra mecânica a cortar madeira; o de outros parecia o de autênticas gargalhadas de pessoas; outros ainda pareciam crianças a berrar, etc., etc…. Espectáculo!!
Enfim uma complexa orquestra espalhada e oculta naquela emaranhada floresta, utilizando os mais diversos instrumentos. Todas as notas musicais e mais algumas eram ali ouvidas.
Seria sempre esta a música de fundo quando fazíamos Operações do género: ataques a “casas-de-mato” e, como normalmente se fazia, era ao amanhecer.
Como na altura desconhecia tão diversidade de cantares e chilreares, confundia por vezes com a presença próxima de crianças ou até de adultos que, afinal ali perto deviam estar e que eu, “periquito”, os adivinhava em todo o lado naquela tenebrosa mata.
E então ecoa um batuque!!..., todos (os da 816) tomámos uma expressão de alerta. O rufar enervante daqueles tambores parecia avançar para nós para logo voltarem ao seu ponto de origem num frenético vai-e-vem. Lembrei-me dos filmes de índios só não via era sinais de fumo. Claro que o nosso estado de espírito na altura redobrava as sensações também. Que sensação! Que pesadelo! O que é isto? O que será? É um sinal? Ordem para atacar? Interrogavam-se uns aos outros. Confesso que senti um pouco de medo naquela altura. Logo, porém, o meu coração começou a compassar normalmente quando os “velhinhos” dos “Lordes” nos fizeram sossegar dizendo que se tratava de um “choro”.
Choro, mais um termo a descodificar.
Não muito longe dali, em alguma tabanca, um grupo de indígenas e de uma certa raça ou etnia, manifestavam-se no tradicional “choro” em honra de um defunto. Eles batiam os tambores fortemente e a um ritmo estonteante, que no silêncio e quietude da madrugada pareciam estar ali mesmo à beira dos nossos ouvidos. Acompanhando o ritmo dos bombos eles pulavam e dançavam também. “Uivavam”, atiravam-se para o chão, dando cambalhotas, etc., como mais tarde tive ocasião de assistir a um em Bissorã, e na outra Banda.
Não cheguei a saber se eles riam ou choravam, se lamentavam a perda de uma vida ou se davam graças e rejubilavam arreigados a alguma crença ou fiéis ao Deus deles. Nunca os chegaria a compreender. Também foi coisa que não me interessou muito. Mas que o faziam com grande fervor e devoção, lá isso era verdade. Meditei muito sobre os ideais daquela gente e como eles religiosamente os seguiam embora tão humildes e com grande
deficit de civilização. Uma coisa a respeitar, tive sempre cá comigo.
E ali estávamos, prostrados no chão, dissimulando os nossos vultos com a vegetação, aguardando tensamente a chegada da hora conveniente para o ataque. O barulho infernal dos tambores não cessava… nunca mais cessaria. Os nervos pareciam ser agora comandados pelas pancadas dos tambores. Pancada mais forte acelera coração.
A hora aproxima-se! Não era uma hora fixada pelo relógio, antes uma altura cruciante do dia, que era logo que a claridade começasse a despontar, isto é, ao “lusco-fusco”.
E pronto, é o momento, decidiram os “Lordes”. As sucessivas interrogações não paravam no meu cérebro e os nervos, esses, eram difíceis de dominar. E os bombos sempre a rufar.
Começámos então a actuar. Fomos dando terreno ao grupo de assalto que, felinamente, se foi introduzindo de forma estratégica no mato. Impressionou-me a rapidez e a destreza nos movimentos daqueles calejados homens. Nós, os da 816, começámos também a formar o semi-círculo, como fora previamente planeado e…, para surpresa minha, quando ainda dispunha os homens da minha Secção, vi o Graça dos “Lordes” juntar-se a nós e para minha perplexidade dizer que já tinham feito o assalto! “Devem estar no choro”, acrescentou ele. Ouve-se um agitar de arbustos e eis que surge o Hipólito que traz na mão uma espingarda “Mauser” (!) e duas rudimentares granadas de mão, armas que o inimigo, inadvertidamente ou não, deixara na casa-de-mato. Pedi ao Furriel Graça que me levasse ao dito refúgio para satisfazer a minha curiosidade ao que ele logo acedeu. Ainda se notavam vestígios de uma recente presença, atendendo a uma pequena fogueira que se dissipava lentamente. O refúgio, apesar de chão de terra, mostrava-se, como sempre verifiquei noutros, bem varrido, asseado, bem ordenado com todos ao apetrechos naturalmente usando arbustos, folhagem de palmeiras, troncos destas e de outras árvores, etc. com boa ordenação. Seria sempre assim e então aquela escola em Iracunda!! Muita disciplina ali.
Pendurado num pau estava um “ronco” – um cordel com um cornicho de um animal qualquer-.
Dentro do cornicho encontravam-se vários papeis cuidadosamente dobrados, e escritos em hieróglifos, (árabe, ou escrita muçulmana, talvez), que se trataria de qualquer oração, prece ou algo relacionado com uma religião, talvez muçulmana, pois algumas etnias na Guiné seguem esta doutrina. Aquilo era de trazer pendurado ao pescoço, como supus. Peguei naquilo e trouxe comigo pois parecia-me tratar-se de um amuleto para quem o usasse.
Embora trouxesse aquilo no bolso do camuflado não vinha muito tranquilo. Sou dos que não acreditam em bruxas, mas…
Voltando à Operação, esta tinha-se saldado por um pequeno fracasso mas, achei que para começar foi melhor assim para os “periquitos” da 816 já que os “Lordes” denunciavam uma grande frustração por o inimigo não aparecer. Estes pareciam que dias sem refrega nem era dia.
Irreflectidamente, nós, os “periquitos” fomo-nos amontoando e em ares de quem foi só ali para assistir a qualquer coisa. Ainda me lembro então do Radiotelegrafista dos “Lordes” que ao ver-nos em grupo vociferou, gritando: “Tomem as vossas posições que vamos ter aqui manga de “chocolate”. Viria mais tarde a saber que ele, com “chocolate” queria dizer tiroteio e que “manga” queria dizer muito. Estes e outros termos em crioulo ou não, foram também por nós adaptados futuramente fazendo parte do nosso vocabulário corriqueiro.
Mas porque é que ia haver muita porrada se não estava ali ninguém, interroguei-me eu?
Tal interrogação ainda não tinha saído da minha mente quando uma rajada inimiga fez-me rebolar pelo chão. Era a resposta de um sentinela. Sim, porque se a nós, “periquitos” nos desse a impressão de total deserção, eles não iam deixar a “casa-de-mato” completamente abandonada assim de barato, como se fez entender um dos “Lordes” que contava sempre com alguma retaliação inimiga. Eis uma outra rajada, outra ainda, até que uma nossa “bazookada” bem apontada, fez calar o matraquear da arma inimiga e se calhar também o seu utilizador. Pus-me de pé e respirei fundo. Sorri um pouco como que para demonstrar alguma descontracção, que era o que tinha menos naquele momento. Mal refeito, o pânico instala-se de novo: Ouve-se “cuidado está um a subir à árvore!”. Deitei-me de imediato atrás de um arbusto, pois foi pró que o meu instinto me deu. Que valeria um simples e pequeno arbusto ante a ameaça de pistolas-metralhadoras? Bom, pelo menos podia servir de abrigo às vistas inimigas.
O alerta tinha sido dado pelo Sargento Tavares da 816, mas, afinal, não se tratava de um terrorista…, era o fumo provocado pelas chamas que envolviam o refúgio ao qual momentos antes os “Lordes” tinham posto fogo. O fumo ao emergir para o espaço infiltrava-se por entre a folhagem da árvore, agitando-a e dando realmente a sensação de que alguém estava a trepá-la. Mais uma exclamação de alívio, e então dirigimo-nos para a tabanca que estava ali próxima e onde acontecia o referido “choro”. Presumivelmente os “turras” do refúgio estavam lá também. Também estavam alertados, por certo, da nossa presença, pois concerteza ouviram o tiroteio instantes antes e junto à sua “casa-de-mato”.
Avançando cautelosamente, como a situação aconselhava, e em fila indiana fomo-nos aproximando da tabanca.
O terreno era agora descampado e por isso dificultávamo-nos a possibilidade de surpresa, pois íamos todos ali vem à vista. A cada metro que avançávamos esperava-se por fogo inimigo, pois este podia muito bem estar já emboscado - pelo menos tiveram tempo para isso - e nós ali a peito descoberto e a formarmos um bom alvo. Não, não houve um único tiro. Encontramos a tabanca também abandonada, recentemente abandonada.
Animais domésticos, como porcos, galinhas, cabritos, etc., deambulavam de um lado para o outro, alvoraçados. E então começava sempre aqui o jogo do gato e do rato. Principalmente os nativos, que nos acompanhavam fazendo parte da nossa tropa, e já se vê por mais necessitados, alheavam-se completamente da guerra, para também, e numa corrida desenfreada, tentarem apanhar este ou aquele animal, que bem jeito lhes fazia. Era uma cena grotesca que dava para rir à farta pois, logo atrás de um animal em fuga surgia o seu perseguidor que era fintado pelos ziguezagues da presa. Ora da esquerda para a direita, ora da direita para a esquerda a coisa ainda demorava o seu tempo e muitas das vezes o animal é que se ficava a rir. Muitas das vezes nem era o perseguidor “oficial” que apanhava o animal, pois bastava este esbarrar nas pernas de um, que este aproveitava logo para, sem qualquer trabalho, ficar com ele. Para tudo se queria sorte…
No regresso, todos os “caçadores” exibiam os seus troféus garbosamente.
E pronto, foi o regressar à base. Estava assim cumprido o programa, que não a jornada. Programa que pouco resultou: refúgio e tabanca próxima e cúmplice arrasadas pelo fogo e o inimigo posto em debandada, e o saldo bélico de uma espingarda “Mauser” e duas granadas de mão.
Foi um caso sério para que a malta se agrupasse e se dispusesse em fila indiana, pois era sempre este o dispositivo de progressão pelo desconhecido mato, já que a malta da 816 estava aos magotes e em jeito de arraial, como aquilo fosse uma festa ou uma feira, mas, com mais grito ou menos grito, as posições foram tomadas, a ordem restabelecida, e a coluna pôs-se então em marcha de regresso a Bissorã. ”Ainda lá ficou um cabrito”!... “e aquele frango que quase o apanhava”!. Frases como estas ou parecidas ouviam-se sempre naquelas circunstâncias, aquando do regresso de uma “visita” ao inimigo.
E pronto, com a arma sobre o ombro, numa posição que expressava alguma fadiga, lá foi andando. Os comentários sobre as diversas peripécias não cessavam: este diz que foi assim; aquele diz que não, foi antes “assado”, etc., etc..
Entretanto os “Lordes” foram-nos avisando que no regresso era de contar com emboscadas ou, no mínimo, flagelações, pois uma vez sendo nós detectados, o inimigo vinha no nosso encalço, exercendo para além do mais, uma represália por aquilo que lhes fizemos ou lhes queríamos fazer. Sempre que tentávamos atacá-los, isto salvo um possível, mas pouco provável, encontro que o acaso poderia proporcionar, teríamo-los sempre à pega, muitas das vezes até às portas do quartel. Portanto, a parte final duma Operação, ou seja o regresso ao aquartelamento, e depois de termos sido detectados no mato, era sempre temerosa. No entanto, e agora que já fiz diversas Operações a “casas-de-mato”, posso dizer que esta a Queré foi uma das raras em que não tivemos qualquer emboscada ou simples flagelação durante o regresso.
Naquele clima de suspense e expectativa, fomos encurtando a distância que nos separava da estrada aonde se encontrariam as viaturas que nos levariam depois até ao quartel, poupando-nos assim o esforço de uma caminhada total. Sempre que possível, as viaturas, devidamente escoltadas, ia-nos buscar até onde o trajecto fosse possível ou conveniente.
Acontecia porém, e o que era normal, e por razões de segurança também, que nós chegávamos primeiro ao local de encontro e com bastante antecedência muitas das vezes, e então aproveitávamos essa altura para repousarmos um pouco de fadiga, quer física quer psicológica. Lia-se bem nos nossos rostos, transtornados e desfigurados, as consequências de uma noite perdida em caminhada através do sinuoso mato, através das por vezes alagadas e cheias de lama, bolanhas. Chegávamos às vezes a atravessar zonas de água que nos cobria quase completamente. O efeito causado por este tipo de Operações era bastante desgastante e isso então era bem visível nos nossos rostos.
Enfim, quase rendidos ao esforço, para ali jazíamos, sempre com o ouvido alerta no roncar das bem-vindas viaturas, que a todo o momento se aguardavam e que muito se ansiavam. E o rufar dos tambores ainda parecia estar nos ouvidos. Nesse tempo de espera tomávamos, no entanto, as devidas cautelas quanto a segurança e assim distribuíamo-nos em leque, pois o inimigo não enjeitaria uma distracção nossa. Mas valha a verdade que nesta altura de ressaca o que queríamos era deitarmo-nos ao comprido e que a guerra fosse pró… outro lado.
E elas aí estavam!!. Primeiro o ruído dos motores, depois as viaturas mesmo aparecendo ao fundo da curva. Subimos para as viaturas e fiquei sentado junto ao Alferes Costa. Ao lado deste a bajuda que nos tinha servido de guia e, logo a seguir, quem havia de estar? O Baião, claro. Havendo mulheres, não era difícil encontrar o Baião. Lá estava ele com o braço por cima do ombro da rapariga com todo o seu ar paternal. A moça continuava com a manta a envolver-lhe o rosto, pois ela adivinhava o que lhe acontecia se os homens de Queré a apanhassem, sabendo do seu cometimento. Pessoalmente e em face das circunstâncias que rodearam e levaram à execução daquela Operação, não dava nada por a vida daquela rapariga, para mais Bissorã estava cheia de bufos e informadores que colaboravam com o inimigo. Sabia-se e sentia-se isso, como com o tempo se foi constatando.
E pronto, eis-nos finalmente a caminho de Bissorã.
Risos de alegria e alívio, comentários piadéticos, chacota com este ou aquele, etc, foi este o quadro durante aquele curto trajecto, pois ao fim e ao cabo tudo tinha corrido mais ou menos bem, não houve qualquer ferido ou acidentado, pois também, verdadeiramente, não chegou a haver um recontro com o inimigo. Isto estaria reservado para mais tarde, e de que maneira, mas, para começar, para nós “periquitos” da 816, talvez fosse melhor assim, o que não deixaria de contrastar com a frustração dos “comandos” dos “Águias Negras”, que, por certo, queriam que aquilo tivesse corrido de maneira bem diferente.
Chegados a Bissorã, tinha-se assim consumado o baptismo da 816, mais propriamente o do meu Grupo de Combate, que, na circunstância, foi o primeiro a “procurar” o inimigo.
Grande parte da população, (o que me causou alguma surpresa) e como sempre acontecia, aguardava-nos à entrada da povoação e, formando alas, partilhavam, pelo menos aparentemente, da nossa alegria e satisfação, mas, muitos daqueles olhares eram olhares que mal disfarçavam o ódio e a decepção por chegarmos em euforia. Viríamos mais tarde a constatar, e, como anteriormente disse, que a maior parte da gente de Bissorã tomava acção, de forma velada, na actividade terrorista. Portanto, convivíamos com uma população indígena, que se nos pudesse fazer mal….
Completamente esgotado, tomei um apetecido duche, recostei-me na cama e deixei-me adormecer. A cerveja fresca, essa, já cá cantava. Quando acordei, a Operação Queré tinha tomado lugar no passado e não era para recordar.
Vamos jogar a bola, que está a chover…
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 8 de Janeiro de 2010 >
Guiné 63/74 - P5610: Páginas Negras com Salpicos Cor-de-Rosa (Rui Silva) (8): O périplo da 816 em dois anos de Guiné - Mansoa