Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
terça-feira, 6 de abril de 2010
Guiné 63/74 - P6117: José Corceiro na CCAÇ 5 (8): Primeiro rebentamento de mina entre Canjadude e Nova Lamego
1. Mensagem de José Corceiro* (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos -, Canjadude, 1969/71), com data de 3 de Abril de 2010:
Caros amigos Luís Graça, Carlos Vinhal, J. Magalhães
Desejo-vos uma Páscoa Feliz na companhia dos vossos familiares.
Mais uma vez venho relatar um pouco da actividade operacional da CCAÇ 5, em Canjude, Guiné. Deixo ao vosso critério a publicação, ou não, da mesma, assim como a inclusão das fotos.
Um Abraço
José Corceiro
José Corceiro na CCAÇ 5 (8)
PRIMEIRO REBENTAMENTO DE MINA ENTRE CANJADUDE E NOVA LAMEGO
Estamos no dia 31 de Agosto 1969. Na CCAÇ 5, as saídas para o mato, têm sido quase diárias e continuamos submetidos a muita tensão, pois são constantes as informações a dizer que vamos ser flagelados.
A vinda de correio ultimamente tem sido inconstante, os intervalos de tempo sem receber cartas são muito espaçados. Eu, a última vez que recebi correspondência, entre aerogramas e cartas, recebi 19 unidades, foi normal, é que fiz 22 anos o dia 28 de Agosto. A falta de correio, que aparentemente pode não parecer um facto muito importante, deixa-nos a todos com os nervos em franja. Aqui, para o nosso equilíbrio emocional, é demasiado importante receber notícias da namorada, dos pais, amigos, pessoas que nos são queridas. Estamos no dia 3 de Setembro e mais uma vez já passaram oito dias sem correio. Até há frescos (comer mais mimoso) em Nova Lamego, para a CCAÇ 5, e não há coluna nem vem a DO trazer os mesmos e o correio!
Dia 5 de Setembro, veio a DO trazer o correio e alguns dos frescos que estavam em Nova Lamego, eu recebi mais um montão de correspondência, o pessoal estava todo impaciente e ansioso à espera de notícias.
Dia 6 de Setembro, Sábado, recebi o meu primeiro pré na Guiné, recebi 3.978$00 deve rondar 1.200$00 mensais. Se não fossem os meus queridos Pais a mandarem-me dinheiro todos os meses, só com esta quantia, seria bem mais complicado viver aqui. Eu vejo o que acontece com os meus camaradas, que são obrigados a impor muitas restrições nas suas despesas. Houve alguns que fizeram anos há dias e ocultaram a data, porque não tinham dinheiro para pagar uma cerveja, fiquei sensibilizado com esta conduta de honestidade e humildade, foi um comportamento que revela dignidade e apreço. Agora que receberam o pré, é que se abriram e propuseram que amanhã se fizesse um “petiscozinho”, porque já há dinheiro fresco para cervejas, são logo três nestas circunstâncias. Embora eu tivesse pago umas cervejas ao pessoal quando fiz anos, quero-me associar aos gastos deste elegantíssimo gesto, pois eu teria muita dificuldade em estar sem dinheiro e por isso mais valorizo e compreendo a atitude sincera e disponibilidade que manifestaram.
Aqui em Canjadude, está-se a disputar um campeonato de futebol entre as equipas formadas pelos: 1.º, 2.º, 3.º, 4.º pelotão, a Formação, os graduados e as Transmissões, hoje Domingo jogaram o 1.º pelotão e a Formação.
Foto 1 > Equipa de Transmissões > Frente lado direito: Fur Mil José Martins, José Carlos Freitas (jogador V. Guimarães), Alex, José Corceiro e Enfermeiro Soares (massagista). De pé lado direito: Nora, Rogério, Costa, Silva e Loupa
Foto 2 > Equipas em campo: Transmissões e Formação > Da esquerda para a direita: Loupa, Soares (massagista), José Corceiro, Silva, Costa, José Carlos, Alex, Nora, Rogério, José Martins, Fur Mil Carvalho (árbitro), Fur Mil Gil (Delgado do Campeonato), João Monteiro (Formação), Martins (Formação), e ? (Formação)
Dia 8 às 6.00h, saí para mais uma operação no mato, durante dois dias, de Transmissões fui eu e o Rogério. Foi sair do Aquartelamento e entrámos logo feitos patos dentro água, tivemos que atravessar rios em que a água nos dava pelo peito, este tipo de progressão é muito desgastante. A operação no mato foi rotineira, grande parte do tempo a caminhar com água até aos joelhos, acampar para comer a ração de combate, descansar um pouco, mandar mensagem a relatar estado e definir localização, progredir novamente, acampar para passar a noite.
Foto 3 > José Corceiro em Operação no mato a repor rnergias para ir para os braços de Morfeu.
A noite, tudo indica que vamos ter um manto de nuvens cinzentas a cobrir-nos, pois não terei oportunidade de observar constelações e, apressa-se a hora de escolher o poiso para entregar o corpo nos braços de Morfeu. Só que neste estado de alma e com este desconforto físico com a roupa toda ensopada, agora e, aqui neste lugar, a sonolência não vai chegar, para as minhas pestanas poderem fechar. Nada adiantaria que o leito fosse feito de ébano, com colchão macio engendrado com penas de pato, que a cama fosse feita com lençóis aveludados de cetim encarnado, que o cenário fosse dentro duma gruta toda decorada com flores e salpicada de pétalas de todas as matizes, que a iluminação fosse prismática dispersada por raios de luz cintilantes, em feixes de luminescência deslumbrante, de cromáticos arco-íris, nada, nem ninguém, consegue prender o meu espírito e a minha imaginação, que vagueiam por outras paragens, por outros aléns e não vão ser com certeza, as forças hipnóticas e sugestivas, ou as suas farsas “fantasiantes”, dos filhos de Hipnos, os Oniros (Oneiroi), nem a capacidade e ilusão das suas “morfinices” terão a inspiração e capacidade, para me transportar para mundos oníricos, ou sonhos demenciais, porque o momento não é de aconchego, o tempo promete tempestade, a brisa trará os endiabrados mosquitos que não me vão dar sossego, nem deixar descansar. Vai ser mais uma noite de vigia, tão propícia a divagações com projecções angustiantes de imagens fantasmagóricas, com devaneios assombrosos de sonhos irreais.
Praticamente toda a noite choveu. Ao raiar da luz matinal, levantamo-nos do chão enlamaçado e, moldado pelos nossos corpos, que estavam encharcados, encolhidos e entorpecidos com a inactividade e, fresquidão que se sentiu durante a noite. Preparámo-nos para enfrentar mais uma jornada de progressão nas Bolanhas alagadas, a caminhar até Canjadude, onde chegámos por volta das 11.00h.
Dia 10 de Setembro, houve informação que hoje o inimigo nos vai flagelar. Na parte de tarde choveu torrencialmente. Mudámos as frequências dos equipamentos de emissão recepção, no Posto de Rádio. O IN não nos flagelou, isto já começa a ser desmensurado, a continuar assim entra-se no foro do patológico, degenera em neurose, cria tensão e ao mesmo tempo, esta exacerbada emoção inibe o discernimento, alimenta o descrédito que nos pode levar a ser menos previdentes, quando nós precisamos de estar bem precavidos.
Foto 4 > José Corceiro no abrigo do Posto de Rádio da CCAÇ 5 > Lado direito na vertical vê-se o AN-PRC-10 - Frente vê-se AN-GRC-9 com amplificador acoplado. - Lado esquerdo vê-se a Central Telefónica - Tinha extensões distribuídas que sinalizavam, accionando o Magneto por manivela, nos abrigos: Capitão, Morteiros 81 e Postos de Sentinela.
Foto 5 > Posto de Rádio de Nova Lamego. O Mota, a ajustar os cabos de ligação, ele estagiou, como periquito, em Canjadude e a primeira vez que saiu para o mato, em Canjadude, foi comigo.
Dia 12 de Setembro de 1969, há coluna de abastecimento a Nova Lamego, não era a minha vez de acompanhar a coluna, mas troquei por minha conveniência, para poder comprar com o dinheiro que me mandaram como prenda de anos, uma máquina fotográfica, pois preciso ter duas, uma para fotos a cores e diapositivos e outra para foto a preto e branco, para poder optar em função do momento a fotografar. Na última coluna que fiz, já andei a namorar uma máquina “reflex” na casa Caeiro, a rondar os 4.000$00, é uma óptima máquina da marca Canon. A filha do Sr. Caeiro bem me provocou para que eu a comprasse, mas não vim preparado com dinheiro suficiente, embora eles dissessem que isso não tinha importância nenhuma e pagaria o resto depois, mas esse facilitismo comportamental não se coaduna com a minha postura tranquila e harmoniosa de estar em paz com vida.
Nas colunas que tenho acompanhado, cerca de uma dezena, nem sempre é habitual montar flancos e fazer picagem ao trilho, para passarem as viaturas, em algumas que fui, montámos em Canjadude e apeámos em Nova Lamego. Não foi o que aconteceu hoje, logo após termos saído de Canjadude a cerca de 4 quilómetros, apeámos, montaram-se flancos laterais e iniciou-se a picagem. Progrediu-se em picagem mais de uma hora.
Ainda não eram 8.30h, subimos para as viaturas para avançar. Eu estava a estabelecer contacto via rádio com Canjadude. A viatura da frente arrancou, eu ia na segunda viatura, a última da coluna ainda não estava em movimento de progressão. Neste intervalo de tempo ouviu-se um violento rebentamento, tudo à minha frente voou pelos ares, envolto em cortina de fumo e terra, devido ao rebentamento de mina anticarro accionada pela primeira viatura. Não sei como saltei do transporte onde eu ia, só ganho consciência que estou no chão de pé e com uma G3 na mão, que não era minha, pois não tinha arma distribuída. Olho em frente e vejo a escassos metros uma viatura atravessada na picada, com a parte frontal toda destruída e, o chão assolado com corpos humanos, pensei o pior, aproximei-me ajudei alguns a levantarem-se, mas deparei-me logo com um ferido que me inspirou muito cuidado e preocupação, caso que nunca esqueci e me marcou. Estava caído no chão, inerte, desconsolado, a gemer desfalecido com muito padecimento, não havia mobilidade e a visão daquela fácies hipocrática com a sua fisionomia de músculos contraídos, atestavam bem o sofrimento e dor porque estava a passar aquele ser humano, imagem que já mais apaguei da minha mente. Verifiquei que não tinha contracções musculares nem sensibilidade nos membros inferiores, ajudei-o a apoiar a cabeça e pedi para que não o movimentassem, continuava a gemer desesperadamente e acabou por desmaiar. Nunca mais tive notícias deste militar nativo, presumo que tenha sido mais uma vítima da guerra que ficou paraplégica.
Fui para a viatura de Transmissões para enviar mensagem a Canjadude, a pedir evacuações urgentes e apoio de enfermagem, pois havia muitos feridos deitados no solo e, em sequência, pediu-se a Nova Lamego que enviasse um grupo de protecção e um pronto-socorro para levar a viatura acidentada. (Do local do acidente a Nova Lamego eram aproximadamente 15km)
O Comandante da CCAÇ 5, Capitão Pacífico dos Reis, também ficou ferido, mas aparentemente parece ser sem gravidade.
Como enfermeiro acompanhava a coluna o meu estimado amigo António Manuel. Cerca das 9.30h, chegou ao local, vindo de Canjadude, numa viatura com uma secção de combate o Sarg Enfermeiro Cipriano, com o material auxiliar de enfermagem. Passadas quase 3 horas, após o rebentamento, chegaram reforços de viaturas e pessoal de Nova Lamego assim como pronto-socorro para levar a viatura acidentada.
Passaram mais de 3 horas e meia após o rebentamento quando, chegou o primeiro heli para dar inicio às evacuações dos feridos. Feridos houve um total de quinze, ainda que outros viessem a sentir mazelas posteriores, evacuados foram nove, alguns com gravidade. Após concretizar as evacuações, o pessoal que veio de Nova Lamego ficou emboscado no local do acidente e a coluna de Canjadude seguiu o percurso normal, onde se reabasteceu. Regressámos e juntámo-nos com o pelotão que estava emboscado que nos acompanhou para Canjadude onde chegámos próximo das 17.30h. (Ver neste blogue P5987)
Foto 6 > Heli a aterrar numa clareira, com sinalização com tela, para dar início às evacuações dos feridos da mina anticarro.
Foto 7 > Heli quando aterrou na clareira.
Foto 8 > Heli a efectivar as evacuações. O metropolitano que está com óculos escuros era o Enfermeiro meu amigo António Manuel, desde que veio da Guiné, há 40 anos, perdi-lhe o rasto.
Foto 9 > José Corceiro, em primeiro plano, durante as evacuações dos feridos.
A mina foi colocada debaixo de uma árvore, cujos ramos atravessavam a picada, quando rebentou e projectou o pessoal para o espaço, muitos deles feriram-se ao bater nos ramos da árvore, ainda que o impacto de compressão e descompressão no organismo, causado pela força aplicada que projectou a massa do corpo para o vazio, fosse causa mais que suficiente para ocasionar distensões musculares, provocar roturas de tecidos, ou fracturas ósseas. Após o rebentamento alguém se lembrou e, teve a ideia luminosa, de picar até mais à frente do local do rebentamento, 30 ou 40 metros, e, detectou-se e foi levantada mais uma mina, colocada com o mesmo engenho e manha da que rebentou, também debaixo de uma árvore.
Dia 13 de Setembro, mais uma operação em que saíram para o mato os quatro grupos de combate da CCAÇ 5, por três dias. Ficou o pelotão de outra companhia, que ontem nos acompanhou, a proteger o Aquartelamento. Logo às 6.00h, as viaturas foram-nos levar a cerca de 4 quilómetros na direcção da picada do Cheche, apeamos e começamos a progredir para a esquerda obliquamente, orientação Siai, a caminhar como habitual em terreno pantanoso, algumas vezes com água até à cintura. Acampamos para comer a ração de combate e descansar cerca de duas horas. Na parte de tarde progredimos constantemente dentro de lodaçais e por duas ou três vezes tivemos que fazer paragens, para repor energias, pois há pessoal estoirado visto ser muito desgastante caminhar em zonas alagadas. Acampamos para passar a noite que felizmente pouco choveu. O pessoal de Transmissões juntamente com Enfermagem, ficámos próximo do Capitão, como é normal. O Capitão, provavelmente ainda resquícios dos ferimentos da mina de ontem, passou a noite com dores e lamentações, possivelmente mialgia muscular.
Ainda estava o alvorar envergonhado, já toda a companhia caminhava dentro de lamaçal, em direcção a Ganguiró, com os corpos amarfanhados e friorentos devido à noitada agreste. O pessoal chegou exausto a Ganguiró e tivemos que pedir meia dúzia de evacuações, entre as quais a do nosso Comandante Capitão Pacífico dos Reis.
Depois das evacuações, progredimos durante 2 horas, sempre em terreno hostil e a circundar na zona, fomos acampar junto da margem do rio Bauro, (deve ser afluente do rio Corubal) onde passámos a noite, não muito longe de Ganguiró. A passagem da noite não foi muito agradável, pois ainda choveu. Ausente ainda, o alvorecer, pois vinha a aurora a subir a encosta de Madina de Boé, já nós estávamos todos a pé, um pouco encharcados, enlameados e conformados a palmilhar terrenos alagados em direcção ao objectivo, Siai. Chegámos a este sem nada digno de registo, nada de vestígios. A partir daqui tomámos o rumo de Canjadude, onde chegámos por volta das 16,30h, com todo o pessoal extenuado. Está-se a tornar impossível a mobilidade das viaturas para nos ir levar ou buscar ao mato, porque ficam atoladas nos trilhos e só o guincho, com corda amarrada ao tronco de árvores, as consegue libertar para avançar.
Dia 16, houve coluna a Nova Lamego a levar o pelotão que estava aqui a manter segurança, mas algo de estranho aconteceu, porque só regressou a coluna dia 17, nunca aconteceu regressar no dia seguinte. Veio um capelão para Canjadude.
Dia 19, logo de manhã, foram dois pelotões para o mato. Ao meio da tarde recebeu-se uma mensagem Zulu, a pedir que fosse imediatamente um pelotão da CCAÇ 5, para Nova Lamego. Foi enviado o pelotão e mandaram-se regressar as forças que estavam no mato, que chegaram ao Aquartelamento por volta das 23.00h. A vinda inesperada dos dois pelotões, que estavam no mato, sem se ter dado conhecimento ao resto do pessoal que estava no aquartelamento, provocou uma enorme confusão e celeuma, pois os ausentes não estava previsto regressarem neste dia e, quando chegaram às suas casas encontraram algumas das suas mulheres envolvidas com outros homens, na sua própria habitação.
Dia 20, está tudo de prevenção, mais uma informação a dizer que o IN está na zona e que vai flagelar hoje Canjadude.
Dia 21, o pelotão continua em Nova Lamego, tivemos missa de manhã e, na parte de tarde continuação do campeonato, jogo entre Formação e 3.º pelotão.
Dia 23, também reflexos do acontecido no dia 19, e não só, hoje para irmos para o refeitório comer as refeições, tivemos que ir devidamente fardados o que não é habitual. Como já atrás referi, a má qualidade alimentar, não tem sido apelativa para o exercício das nossas pupilas gustativas e como tal protestámos, porque o comer que nos têm servido mais parece ser confeccionado com géneros deteriorados.
Foto 10 > Arranchados descontentes com o comer. Estão de pé dois cozinheiros e o Cabo de Dia, Dias. Sentados à mesa – lado direito – Silva, José Corceiro, Saldanha (nativo), Malhada e Alex (com óculos). Lado esquerdo - Rogério.
Foto 11 > Depois de se ter acordado, outro suplemento alimentício com o Oficial de Dia, foi indicado o José Corceiro para distribuir a refeição.
Foto 12 > Tudo com cara de poucos amigos. Primeiro plano – Camilo, Silva (atirador), José Carlos Freitas.
Dia 24, saí para o mato com dois pelotões, para os lados de Cantocoré a caminhar, como é uso, por Bolanhas alagadas que aqui começa a ser rotina. Progredimos com muita precaução pois havia informação que o IN estava na zona. Durante a noite foi tanta a chuva e o vento, que ameaçava sermos todos arrastados pelo vendaval, ninguém se lembra de ter passado uma noitada, no mato, tão atemorizante quanto esta, mesmo assim durante a noite ouvimos os intensos e nítidos rebentamentos, da flagelação que sofreu Cabuca, que esteve embrulhada, debaixo de fogo, mais de meia hora. Por volta das 6.00h, começamos a caminhar em direcção ao Destacamento, onde chegámos às 8.30h. Fomos atacados no regresso por abelhas, às quais o pessoal reage com muita desorientação e medo, a mim não me mordeu nenhuma.
Dia 26, fomos meia dúzia de militares para o rio, junto à ponte, para experimentar a minha nova máquina fotográfica, a malta arrisca-se. Em Canjadude têm convergido um conjunto de acontecimentos que aglutinados têm contribuído para um stress generalizado: A actividade operacional tem sido excessiva e, efectivada em condições atmosféricas muito adversas, em terreno alagado e avesso, que requer esforço físico e muita exigência para a progressão, que causa muito desgaste somático, deixando-nos exaustos; as informações constantes a dizer que vamos ser atacados, já virou psicose, psicologicamente ficamos mais inseguros; a vinda do correio tem sido tão espaçado, que não era habitual, deixa-nos ansiosos; a alimentação grande parte dos dias não se pode tragar e, nós que somos tão poucos arranchados, podíamos ter alimentação mais condigna e melhor confeccionada. É muito raro o dia em que não haja vozes descontentes devido à alimentação. Ainda que eu seja um caso à parte na problemática alimentar, eu já não me queixo, por mais justas e pertinentes que sejam as minhas razões para reclamar ninguém me ouve a desacatar. Além disto foi ainda a flagelação ao Aquartelamento, o rebentamento da mina, avistou-se por duas vezes o inimigo e as supra-renais têm actuado!...
Dia 30 de Setembro de 1969, veio o Capitão Manuel Ferreira de Oliveira, para render, que acabou a comissão, o Capitão José Manuel Marques Pacífico dos Reis. Hoje também regressou o Furriel de Transmissões, que chefia a minha secção, José da Silva Marcelino Martins.
Para todos um abraço.
José Corceiro
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 30 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6078: Convívios (122): Encontro do pessoal da CCAÇ 5 - Gatos Pretos, dia 24 de Abril em Porto de Mós (José Corceiro)
Vd. último poste da série de 22 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6036: José Corceiro na CCAÇ 5 (7): Canjadude debaixo de ameaça
Guiné 63/74 - P6116: O Nosso Livro de Visitas (85): Maria Helena Carvalho, filha do Pereira do Enxalé, localidade onde nasceu há 60 anos, hoje residente nas Caldas da Rainha (Luís Graça)
Guiné-Bissau > Região do Oio (Mansoa) > Jugudul > Abril de 2006 > O antigo aquartalemento das NT, em Jugudul, cujas instalações foram cedidas, a seguir à independência, ao Sr. Manuel Simões, guineense branco de Bolama, para a sua fábrica de aguardente de cana (*). Também no Enxalé havia, até 1962, uma destilaria de aguardente de cana, pertencente ao sr. Pereira, pai da Maria Helena Carvalho. Segundo a filha, o Pereira do Enxalé era um colono branco, ntural de Seia, conceituado, respeitado pela população da região.
Foto : © A. Marques Lopes (2006). Todos os direitos reservados
1. Texto do editor Luís Graça:
Seu pai, Amadeu Abrantes Pereira, natural de Seia, era um conhecido comerciante, o Pereira do Enxalé. Era dono de uma importante destilaria de aguardente de cana, bem como de outras instalações e casas, que ainda hoje estão de pé. A família era muito estimada pela população local.
O património da família ainda lá está, no Enxalé, arruinado. Também tinham prédios em Bissau. Em 1989, a Maria Helena voltou aos lugares da sua infância. Ainda encontrou, no Enxalé, gente que trabalhara para o seu pai bem como amigos de infância.
Ela ainda fala do Enxalé e da Guiné com emoção. Em Coruche teve ocasião de falar, por uns breves instantes, com o Beja Santos (Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70) que nos seus livros tem bastantes referências ao Enxalé. Também ouviu falar do nosso blogue, mas ainda não o conhece, não se sentindo muito à vontade na Internet. Através dos serviços da Junta de Freguesia da Lourinhã, donde sou natural, acabou por localizar-me e telefonar-me.
Aqui fica o apelo, aos nossos camaradas que passaram pelo Enxalé (incluindo o Abel de Jesus Rei, autor de Entre o Paraíso e o Inferno: De Fá a Bissá: Memórias da Guiné, 1967/69), para nos fazerem chegar mais informações sobre a família Pereira e, se possível, fotos das instalações civis do Enxalé, ocupadas pelo Exército.
8700-442 Olhão
Telef. 289 714 748
Telem. 963 334 811
e-mail: henrique.matos10@sapo.pt
Em Junho de 1970, quando o BART 2917 substitui o BCAÇ 2852 no Sector L1, no destacamento do Enxalé havia um Grupo de Combate da CART 2715 (a unidade de quadrícula do Xime) bem como um esquadrão do Pelotão de Morteiros 2106. A partir de Outubro de 1971, passou a ter o GEMIL 309 e, em Dezembro de 1971, o GEMIL 310 (ambos pertencentes à Companhia de Milícias de Porto Gole).
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Notas de L.G.:
30 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6076: Blogoterapia (148): A propósito da gente do Enxalé, Porto Gole e Missirá (CCAÇ 1439 + Pel Caç Nat 52): a questão da e-literacia da nossa geração (Henrique Matos / Luís Graça)
Guiné 63/74 - P6115: Notas de leitura (89): Ciclone de Setembro, de Cristóvão de Aguiar - (II) (Beja Santos)
1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Março de 2010:
Queridos amigos,
Aqui vai o segundo episódio do Cristóvão de Aguiar, um escritor de tamanhão. Ainda há muita Guiné na sua obra. Como terão oportunidade de ver.
Renovo os meus pedidos, não me canso de bradar no deserto. Quanto aos anos 60, fico grato a quem se lembrar de outros autores para além de Manuel Barão da Cunha, Álvaro Guerra e Armor Pires Mota. Confio na bondade de alguém que conheça outro alguém que me possa emprestar “O Capitão Nemo e Eu” para se concluir a viagem à volta da obra do Álvaro Guerra.
Estamos já nos anos 80, o Zé Grave anunciou que anda à procura de outros açorianos, para além do Álamo de Oliveira, que o Cristóvão de Aguiar me emprestou.
Aceitam-se sugestões. Não há nenhum bairrismo nesta série de escritores açorianos: é bem possível que haja um cocktail explosivo entre ser ilhéu e ter combatido na Guiné.
Não me compete decifrar o mistério.
Um abraço do
Mário
Companhia Independente de Caçadores 666:
Nomes da miséria, a miséria dos nomes
Beja Santos
Continuamos na boa companhia do Cristóvão de Aguiar e do seu “Ciclone de Setembro”, a obra em que ele, em 1985, regressa à Guiné. A 666, o número da Besta, anda há onze meses na nomadização, um grupo de combate acode aqui, outro além. O aquartelamento está a norte de Bafatá, a Companhia Independente está integrada num batalhão de infantaria. Proceda-se ao primeiro inventário das desgraças, ao tempo: três evacuados, o mais grave com duas pernas amputadas e um falecido de todo. Tudo aconteceu três semanas após o desembarque, era uma simples operação de rotina, um treino em simulacro da realidade, ali para os lados de Nhacra, uma bricalhotice. É durante a comédia que irrompe o drama: “O guarda-costas do capitão, o soldado Barrancos, respirando valentia, despoleta uma granada ofensiva. Segura-a na mão para o que der e vier. Não é precisa. Não há inimigo à vista. Respiramos de alívio. O Barrancos também. Só que, com a atrapalhação, enfia a granada no bolso do dólman. Nunca mais se lembra que lhe havia tirado a cavilha de segurança e que, sem a mão fechada fazendo as suas vezes, ela rebenta. Demora-se no bolso apenas uns segundos, depois explode e, por simpatia, as restantes que leva ao dependuro no cinturão. Os que estão próximos levitam e voam com a deslocação do ar. O Barrancos é projectado para a bolanha ainda seca, a uns 30 – 40 metros de distância... Chego junto do Barrancos. Ele ri, ri às gargalhadas. Ao princípio ainda cuido ser choro convulsivo por causa das dores. Mas não. São gargalhadas perfurantes, acusativas lâminas... Continua rindo, bóiam-lhe nos olhos transtornados ondas de um revolto mar de loucura: Meta-me esta merda para dentro, meu furriel... Refere-se às tripas caídas por terra, dela besuntadas, esguichadas da escancarada buraqueira do baixo-ventre. Só pára de rir após a injecção de morfina, dose reforçada: Oxalá não escape, meu alferes caso contrário nunca será homem que preste”.
As críticas ao oficialato em Bissau não são poucas e a outro mais ou menos na periferia, e mesmo a norte de Bafatá. Cristóvão de Aguiar não é peco no arranjo das imagens e na descrição das misérias temporais, como se segue: “A encenação psicológica dos oficiais da repartição número não sei quantos, nem interessa, descambou no que se acabou de relatar (episódio do soldado Barrancos). Podem todos limpar as mãos à parede esburacada da consciência. Do mesmo modo, pode também o capitão de Buruntuma as mandar limpar ou cortar, como na sentença bíblica. Pertencia ele ao Batalhão Ás de Ouros, nome de guerra do Bat. Inf. 557. Valente Infante com o curso do Estado-Maior, resolveu um dia integrar-se numa operação realizada nos matos circundantes de Canquelifá. O nosso capitão Farias, como responsável pelo gabinete de operações do Batalhão, não tinha qualquer obrigação de acompanhar as tropas em acções no mato. Mas quis dar o exemplo. E deu-o como só um capitão altamente qualificado o pode dar”. No itinerário, rebenta uma mina anti-pessoal debaixo do jipão do oficial de operações do Ás de Ouros. Não houve estragos, apenas estoirou um pneu. Galhardo, o oficial escreveu em letras de imprensa e deixou no buraco: Turras, arranjai minas mais fortes; o Ás de Ouros pode com esta e muitas mais; cabrões de merda. A viagem prossegue, a operação prevista, por razões espúrias, será cancelada. Há viaturas que regressam a Buruntuma, uma delas vai a reboque da outra, avariada, lá seguem vinte homens na escolta, metade em cada uma, regressam com grande alívio, sempre é menos um combate a averbar no calendário da guerra. De súbito, um estrondo, lá na direcção em que seguiram as duas viaturas. O capitão do Estado-Maior enviou o narrador para saber o que se passou, caso tenha sido coisa séria que mande uns tiros para o ar. Avistam-se as duas viaturas imobilizadas. Alguém trás a má notícia: estão todos mortos na primeira viatura, na segunda não há ninguém e com isto atroam os céus e a terra com o sofrimento de quem assiste ao espectáculo daquela carroçaria abarrotando de carne ensanguentada. Não é possível qualquer identificação, tal o número de corpos em minúsculos destroços. Aqui, um pormenor: “O papelinho do nosso capitão do Ás de Ouros ainda se encontra, enfiado no pau, a meia haste, no fundinho da cratera causada pela mina anti-pessoal. A viatura transformada em açougue ficou imobilizada mesmo à sua ilharga”. O capitão do Estado-Maior quer os cadáveres alinhados, assim se cumpre. Os que tinham desaparecido foram encontrados em Piche: “Fizeram cerca de 20 quilómetros em pouco mais de hora de meia. Alguns iam feridos com estilhaços das granadas que os guerrilheiros lançaram para dentro da primeira viatura”. O capitão Farias do Ás de Ouros estava prostrado: com tal desastre, lá se ia ao galheiro a promoção a major.
Muito há a contar desse tempo de nomadização: tiros em Pirada, o alferes Leite estraçalhado por um crocodilo quando anda à pesca, um soldado que passou o que era possível passar em Madina do Boé e que caiu à água a bordo do Niassa, chegamos assim ao destacamento de Dunane, situado num mamelão entre Piche e Canquelifá, meio hectare de terra rodeada de arame farpado. O que era preocupação transforma-se no tédio do isolamento. Apareceram lá as senhoras do Movimento Nacional Feminino, o nosso alferes atreveu-se, numa brejeirice, a pedir a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, para sua surpresa foi-lhe enviada pouco tempo depois. Felizmente que os cães dão companhia e ajudam a reconstituir a normalidade: a Andorinha desbarrigou, deu à luz lindos cachorros, é o grande acontecimento em Dunane. E estamos chegados ao drama do Niza, que não recebeu a carta da sua Lena. A carta dos pais prenuncia a grande tragédia que vem aí: “Não queríamos mandar-te dizer nada disto bem basta a tua consumição nessa guerra. A rapariga que namoravas, a Lena da Maria Calva, roeu-te a corda a grande galdéria. Anda agora de namoro pegado com o filho mais velho do Rolo o que está emigrado para França”. O Niza vai desvairar, dispara carregadores de G-3, Dunane entra em estado sítio. A grande porra é que o desgraçado do Niza tem no braço tatuado o amor da Lena, ele anda aos gritos a mostrar a sua desgraça, grande puta que ficas para sempre com o teu nome gravado na minha pele, é uma seta que atravessa o coração tatuado, Amor de Lena. Não há injecção que acalme um homem que se considere corno. O Niza irá enforcar-se no hospital. Este braço tatuado, iremos ver mais adiante, transformar-se-á numa auto-estrada da memória dilacerada de Cristóvão de Aguiar. E um dia as lanchas virão rio Geba abaixo, até Bissau. Passaram seguramente por Mato de Cão, mas naquele tempo não fui eu que lhes dei segurança. Diz o autor que não dormiram na travessia do rio, tal era o medo de serem atacados. De Bissau subiram o portaló do Uíge, a comissão terminara. É o regresso à ilha, tudo fantasiado, ele vai para Coimbra, acaba os estudos, encontra trabalho como leitor de inglês, anos mais tarde, escalavrando o caminho, descobrirá o formigueiro da escrita, a peçonha e o êxtase fugaz que tiranizam a existência do escritor. Bom, ele volta à ilha só para reconstituir as coisas sofridas da adolescência entre o Pico da Pedra e Ponta Delgada. A ilha é uma danação, é a raiz profunda da açorianidade. Este Cristóvão de Aguiar fez bem em voltar à guerra, tal é o fulgor original desta narrativa de vanguarda que se embebe no casticismo dos mestres telúricos, como Nemésio, Tomaz de Figueiredo ou Araújo Correia. Vamos seguidamente ver como ele volta à Guiné em “Relação de Bordo”, em 1999.
(Continua)
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 5 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6109: Notas de leitura (88): Ciclone de Setembro, de Cristóvão de Aguiar (I) (Beja Santos)
Queridos amigos,
Aqui vai o segundo episódio do Cristóvão de Aguiar, um escritor de tamanhão. Ainda há muita Guiné na sua obra. Como terão oportunidade de ver.
Renovo os meus pedidos, não me canso de bradar no deserto. Quanto aos anos 60, fico grato a quem se lembrar de outros autores para além de Manuel Barão da Cunha, Álvaro Guerra e Armor Pires Mota. Confio na bondade de alguém que conheça outro alguém que me possa emprestar “O Capitão Nemo e Eu” para se concluir a viagem à volta da obra do Álvaro Guerra.
Estamos já nos anos 80, o Zé Grave anunciou que anda à procura de outros açorianos, para além do Álamo de Oliveira, que o Cristóvão de Aguiar me emprestou.
Aceitam-se sugestões. Não há nenhum bairrismo nesta série de escritores açorianos: é bem possível que haja um cocktail explosivo entre ser ilhéu e ter combatido na Guiné.
Não me compete decifrar o mistério.
Um abraço do
Mário
Companhia Independente de Caçadores 666:
Nomes da miséria, a miséria dos nomes
Beja Santos
Continuamos na boa companhia do Cristóvão de Aguiar e do seu “Ciclone de Setembro”, a obra em que ele, em 1985, regressa à Guiné. A 666, o número da Besta, anda há onze meses na nomadização, um grupo de combate acode aqui, outro além. O aquartelamento está a norte de Bafatá, a Companhia Independente está integrada num batalhão de infantaria. Proceda-se ao primeiro inventário das desgraças, ao tempo: três evacuados, o mais grave com duas pernas amputadas e um falecido de todo. Tudo aconteceu três semanas após o desembarque, era uma simples operação de rotina, um treino em simulacro da realidade, ali para os lados de Nhacra, uma bricalhotice. É durante a comédia que irrompe o drama: “O guarda-costas do capitão, o soldado Barrancos, respirando valentia, despoleta uma granada ofensiva. Segura-a na mão para o que der e vier. Não é precisa. Não há inimigo à vista. Respiramos de alívio. O Barrancos também. Só que, com a atrapalhação, enfia a granada no bolso do dólman. Nunca mais se lembra que lhe havia tirado a cavilha de segurança e que, sem a mão fechada fazendo as suas vezes, ela rebenta. Demora-se no bolso apenas uns segundos, depois explode e, por simpatia, as restantes que leva ao dependuro no cinturão. Os que estão próximos levitam e voam com a deslocação do ar. O Barrancos é projectado para a bolanha ainda seca, a uns 30 – 40 metros de distância... Chego junto do Barrancos. Ele ri, ri às gargalhadas. Ao princípio ainda cuido ser choro convulsivo por causa das dores. Mas não. São gargalhadas perfurantes, acusativas lâminas... Continua rindo, bóiam-lhe nos olhos transtornados ondas de um revolto mar de loucura: Meta-me esta merda para dentro, meu furriel... Refere-se às tripas caídas por terra, dela besuntadas, esguichadas da escancarada buraqueira do baixo-ventre. Só pára de rir após a injecção de morfina, dose reforçada: Oxalá não escape, meu alferes caso contrário nunca será homem que preste”.
As críticas ao oficialato em Bissau não são poucas e a outro mais ou menos na periferia, e mesmo a norte de Bafatá. Cristóvão de Aguiar não é peco no arranjo das imagens e na descrição das misérias temporais, como se segue: “A encenação psicológica dos oficiais da repartição número não sei quantos, nem interessa, descambou no que se acabou de relatar (episódio do soldado Barrancos). Podem todos limpar as mãos à parede esburacada da consciência. Do mesmo modo, pode também o capitão de Buruntuma as mandar limpar ou cortar, como na sentença bíblica. Pertencia ele ao Batalhão Ás de Ouros, nome de guerra do Bat. Inf. 557. Valente Infante com o curso do Estado-Maior, resolveu um dia integrar-se numa operação realizada nos matos circundantes de Canquelifá. O nosso capitão Farias, como responsável pelo gabinete de operações do Batalhão, não tinha qualquer obrigação de acompanhar as tropas em acções no mato. Mas quis dar o exemplo. E deu-o como só um capitão altamente qualificado o pode dar”. No itinerário, rebenta uma mina anti-pessoal debaixo do jipão do oficial de operações do Ás de Ouros. Não houve estragos, apenas estoirou um pneu. Galhardo, o oficial escreveu em letras de imprensa e deixou no buraco: Turras, arranjai minas mais fortes; o Ás de Ouros pode com esta e muitas mais; cabrões de merda. A viagem prossegue, a operação prevista, por razões espúrias, será cancelada. Há viaturas que regressam a Buruntuma, uma delas vai a reboque da outra, avariada, lá seguem vinte homens na escolta, metade em cada uma, regressam com grande alívio, sempre é menos um combate a averbar no calendário da guerra. De súbito, um estrondo, lá na direcção em que seguiram as duas viaturas. O capitão do Estado-Maior enviou o narrador para saber o que se passou, caso tenha sido coisa séria que mande uns tiros para o ar. Avistam-se as duas viaturas imobilizadas. Alguém trás a má notícia: estão todos mortos na primeira viatura, na segunda não há ninguém e com isto atroam os céus e a terra com o sofrimento de quem assiste ao espectáculo daquela carroçaria abarrotando de carne ensanguentada. Não é possível qualquer identificação, tal o número de corpos em minúsculos destroços. Aqui, um pormenor: “O papelinho do nosso capitão do Ás de Ouros ainda se encontra, enfiado no pau, a meia haste, no fundinho da cratera causada pela mina anti-pessoal. A viatura transformada em açougue ficou imobilizada mesmo à sua ilharga”. O capitão do Estado-Maior quer os cadáveres alinhados, assim se cumpre. Os que tinham desaparecido foram encontrados em Piche: “Fizeram cerca de 20 quilómetros em pouco mais de hora de meia. Alguns iam feridos com estilhaços das granadas que os guerrilheiros lançaram para dentro da primeira viatura”. O capitão Farias do Ás de Ouros estava prostrado: com tal desastre, lá se ia ao galheiro a promoção a major.
Muito há a contar desse tempo de nomadização: tiros em Pirada, o alferes Leite estraçalhado por um crocodilo quando anda à pesca, um soldado que passou o que era possível passar em Madina do Boé e que caiu à água a bordo do Niassa, chegamos assim ao destacamento de Dunane, situado num mamelão entre Piche e Canquelifá, meio hectare de terra rodeada de arame farpado. O que era preocupação transforma-se no tédio do isolamento. Apareceram lá as senhoras do Movimento Nacional Feminino, o nosso alferes atreveu-se, numa brejeirice, a pedir a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, para sua surpresa foi-lhe enviada pouco tempo depois. Felizmente que os cães dão companhia e ajudam a reconstituir a normalidade: a Andorinha desbarrigou, deu à luz lindos cachorros, é o grande acontecimento em Dunane. E estamos chegados ao drama do Niza, que não recebeu a carta da sua Lena. A carta dos pais prenuncia a grande tragédia que vem aí: “Não queríamos mandar-te dizer nada disto bem basta a tua consumição nessa guerra. A rapariga que namoravas, a Lena da Maria Calva, roeu-te a corda a grande galdéria. Anda agora de namoro pegado com o filho mais velho do Rolo o que está emigrado para França”. O Niza vai desvairar, dispara carregadores de G-3, Dunane entra em estado sítio. A grande porra é que o desgraçado do Niza tem no braço tatuado o amor da Lena, ele anda aos gritos a mostrar a sua desgraça, grande puta que ficas para sempre com o teu nome gravado na minha pele, é uma seta que atravessa o coração tatuado, Amor de Lena. Não há injecção que acalme um homem que se considere corno. O Niza irá enforcar-se no hospital. Este braço tatuado, iremos ver mais adiante, transformar-se-á numa auto-estrada da memória dilacerada de Cristóvão de Aguiar. E um dia as lanchas virão rio Geba abaixo, até Bissau. Passaram seguramente por Mato de Cão, mas naquele tempo não fui eu que lhes dei segurança. Diz o autor que não dormiram na travessia do rio, tal era o medo de serem atacados. De Bissau subiram o portaló do Uíge, a comissão terminara. É o regresso à ilha, tudo fantasiado, ele vai para Coimbra, acaba os estudos, encontra trabalho como leitor de inglês, anos mais tarde, escalavrando o caminho, descobrirá o formigueiro da escrita, a peçonha e o êxtase fugaz que tiranizam a existência do escritor. Bom, ele volta à ilha só para reconstituir as coisas sofridas da adolescência entre o Pico da Pedra e Ponta Delgada. A ilha é uma danação, é a raiz profunda da açorianidade. Este Cristóvão de Aguiar fez bem em voltar à guerra, tal é o fulgor original desta narrativa de vanguarda que se embebe no casticismo dos mestres telúricos, como Nemésio, Tomaz de Figueiredo ou Araújo Correia. Vamos seguidamente ver como ele volta à Guiné em “Relação de Bordo”, em 1999.
(Continua)
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 5 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6109: Notas de leitura (88): Ciclone de Setembro, de Cristóvão de Aguiar (I) (Beja Santos)
Guiné 63/74 - P6114: As minhas memórias da guerra (Arménio Estorninho) (5): As colunas auto de Aldeia Formosa- Gandembel
1. Mensagem de Arménio Estorninho* (ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas, CCAÇ 2381, Ingoré, Aldeia Formosa, Buba e Empada, 1968/70), com data de 25 de Março de 2010:
Dando o meu testemunho de “Estorias” das colunas auto de Aldeia Formosa – Gandembel e vice-versa, em que participei e/ou tive conhecimento de algo de realce.
As minhas memórias da guerra - V
Guiné - As colunas auto de Aldeia Formosa-Gandembel
Ponto 1 - A coluna-auto que se realizara de Aldeia Formosa – Gandembel - Aldeia Formosa, em 20 de Agosto de 1968 e na qual fui incorporado, em que é extraída da História da Unidade a descrição que se segue:
Durante a escolta à coluna de Aldeia Formosa – Gandembel - Aldeia Formosa, foram detectados 02 fornilhos e 05 minas A/P, tendo-se procedido ao seu rebentamento por não darem condições de segurança no seu levantamento. Uma das armadilhas foi accionada provocando um ferido às N/T.
Das lembranças tenho, que desde o início da marcha da coluna até Chamarra, fomos instalados “comodamente” nas viaturas e a partir desse lugar apeamo-nos para prosseguir, sendo organizado o sistema defensivo inerente a cada situação (foto 1). Quando da formação da escolta apercebi-me que tropas de elite Pára-quedistas que iam integradas, ainda não estavam elucidados no seu todo e nomeadamente nas precauções a tomar numa coluna-auto deste tipo. Assim, um elemento dessa Unidade de elite perguntara-me como proceder, disse-lhe que ele estava a experimentar os meus conhecimentos para me dar algumas dicas, ao que me retorquiu que era a sério, porque tratava-se da primeira coluna que se incorporava e necessitava de informação.
Foto 1 > Guiné > Região de Tombali > Subsector de Aldeia Formosa > 1968 > Eu e o meu grupo, levando a arma de forma nada ortodoxa e ia tomar posição.
Dizendo-lhe que deveria seguir afastado cerca de dez metros dos camaradas e na mesma linha, e nunca fazendo ajuntamentos porque seria um alvo apetecível para o In, levaria a arma apontada para o lado oposto à forma como levasse aquele que lhe ia na vanguarda e marchando sempre pelo trilho do rodado das viaturas. Quanto ao resto seria com ele, porque estava treinado e como um dos melhores do mundo, não tenho lembrança do seu nome, mas a sua naturalidade é de uma cidade conhece bem.
Iniciou-se a marcha, indo eu com a minha fé na folhinha com a oração da Nossa Senhora de Monserrate e quanto às ocorrências havidas já foram antes mencionadas.
Chegados a Ponte Balana, o Comandante da Coluna deu a permissão para que vários elementos da CCaç 2381, não se deslocassem a Gandembel a fim de evitar que neste Aquartelamento houvesse grande concentração de pessoal e por sua vez os que ficavam montavam segurança.
Tendo eu ficado e dando uma olhadela pelo reduto de Ponte Balana, as lembranças que me ficaram são de que situava-se em lugar isolado, no lado esquerdo da estrada, junto à ponte e na margem direita do rio que lhe davam o nome, era bunker/fortim com sistema defensivo e cercado por duas fiadas de arame farpado que estavam armadilhadas.
Ponto 2 - Da História da Unidade também foi extraída a actividade, relativa à coluna auto Aldeia Formosa – Gandembel e que no regresso se deu uma emboscada entre Chamarra e Mampatá, no dia 22 de Agosto de 1968:
Assim, no decorrer da Coluna Auto Aldeia Formosa - Gandembel, foram detectadas 27 minas A/P e das quais 15 foram rebentadas por não oferecerem condições de segurança. Tropa Pára-quedista coadjuvava as nossas forças de segurança à coluna, detectaram e levantaram no mesmo local mais 37 minas A/P. No regresso entre Chamarra e Mampatá, grupo In estimado em 70 elementos emboscou as NT com fogo de RPG-2, metralhadoras pesadas e armas automáticas, causando 05 feridos graves (01 Caçador Natuvo) e 02 ligeiros, e estragos ligeiros numa viatura. Efectuada batida foi encontrado um elemento In morto, variadíssimos rastos de sangue e material diverso.
Que subjacente à mesma presenciei situações de forma pertinente e que foram fundamentais para contrariar a intenção do In e tendo-lhes causado baixas:
Por conseguinte a coluna auto marchara de Aldeia Formosa para Gandembel e logo apareceram os Bombardeiros T-6, os quais foram estacionar na pista e aguardando para que em caso fosse necessário dar-lhe a devido apoio.
Foto 2 > Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa (Quebo) > Pista de Aviação > 1968 > Parque de estacionamento das aeronaves que demandavam esta Pista.
Só que o T-6 com dois ninhos de foguetes (dois tambores Lança Rockets) avariou-se e foi preciso vir uma DO 27, transportando um Sargento Mecânico e equipamento, para efectuar a devida reparação (tendo presenciado e oferecido os meus préstimos).
Concluída que fora a reparação e após, porque a coluna estava de regresso e a chegar a Chamarra, por isso a DO e o T-6 com as bombas, levantaram voo seguindo para a Base Aérea 12 – Bissalanca. Contudo outro T-6 ainda ficara estacionado no parque, talvez porque o Piloto tivesse que aquecer o motor e/ou tratar de algumas anotações.
Assim, o In provavelmente foi informado que as aeronaves para apoiar a coluna tinham partido, suponho que foi só aguardar no intuito da surpresa, em zona considerada segura para as NT e que agora seguiam montados nas viaturas, mas a Avioneta “DO 27” é que fez confundir o In.
Conquanto a coluna fora emboscada, ouvia as explosões das granadas, o matraquear das metralhadoras pesadas e tendo eu conhecimento que há pouco saíram de Chamarra. Como um T-6 ainda estava na pista e estando eu com o jipe dirigi-me para lá e entrei em diálogo com o Piloto (que estava dentro do cockpit) e informando-o da situação, ao que me disse que por via rádio também estava a ser informado do mesmo e que de imediato iria levantar voo e dirigir-se para aquele local. Solicitara-me para que me posicionasse junto da Tabanca e do Quartel (onde havia acessos transversais), de forma a evitar a entrada na Pista, de pessoas e/ou animais (foto 3).
Foto 3 > Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa (Quebo) 1968 > Panorâmica da Pista de Aviação, estando eu no jipe, vimos um bidão pintado marcando o limite da pista e assim como lateralmente a estrada que ligava a Mampatá.
E em poucos minutos, por contraste com o aproximar do pôr-do-sol, era visível o T-6 estar em acção na zona de intervenção e efectuando por várias vezes voos picados, lançando de rajada os Rockets, apanhando o In de surpresa e pondo-o em debandada.
Caberá ao Piloto Aviador do T-6, que teve esta intervenção, se houver mais algum facto a mencionar e ainda com mais a propósito das situações havidas.
Ponto 3 - Noutra coluna para Gandembel em que fui incorporado, o qual deu-se por rotatividade de serviço e realizada no dia 08 de Outubro 1968, e consta na História da Unidade da CCaç 2381 o seguinte:
Durante a escolta à coluna - auto de Aldeia Formosa – Gandembel - Aldeia Formosa, foi detectada e levantada por forças desta CCaç 2381, 01 mina A/P. Foram encontrados vestígios In, assim como rastos de sangue deixado por elementos In, que ao aproximarem-se do Destacamento de Chamarra caíram numa armadilha montada pelas NT e accionando-a. A coluna realizou-se sem consequências.
Para eu entender o que era o Aquartelamento de Gandembel, foi necessário lá entrar e houve uma grande tensão, indaguei se havia algum conterrâneo e/ou a ver o seu sistema defensivo. Não identifiquei ninguém e relativamente às instalações e aos abrigos eram de uma forma geral de tipo de construção meia enterrada (diferente de outras que conheci), somente as frestas e as coberturas com duas camadas de cibos sob terra e chapa de bidão é que pouco mais se elevavam do solo, havia as normais fiadas de arame farpado em toda a volta do Aquartelamento e claro está entre as mesmas estavam as armadilhas.
Pelo que me disseram no local, a artilharia de defesa, em muitos dos ataques In só eram accionadas no início, tal era a profusão e concentração de fogo In.
Ponto 4 - Pela última vez a 28 de Novembro de l968, incorporei uma coluna auto Aldeia Formosa – Gandembel – Aldeia Formosa, na História da Unidade somente consta, sem consequências (foto 4).
Foto 4 > Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa > Estrada de Gandembel > 1968 > Eu, algures entre Chamarra e Ponte Balana, quando a actividade In já tinha amainado.
Nesta data, fui pela segunda vez ao mítico Aquartelamento de Gandembel, houve tempo para conversas e ai tive conhecimento de várias situações sendo algumas adversas para “Os mártires de Gandembel”: - Que aquando de um ataque In, com baterias de morteiros e canhões s/r, instalados nas proximidades da vedação de arame farpado e tendo havido elementos do In que chegaram à vedação no lado esquerdo de quem entrava na porta de armas, pretendiam o assalto e ai morreram (não era só café e/ou a bala do branco que não matava..!).
Também nesse ataque, um dos abrigos sofrera três impactos na mesma zona, por granadas de canhão s/r e perfurando-o, ocasionando vários feridos e a morte de um Alferes;
- De quando alguns camaradas da CCaç 2317, efectuavam apoio logístico a uma coluna de Aldeia Formosa – Gandembel, no pontão de Changue Laia, caíram num campo de minas, ocasionando 4 mortos e 2 feridos. A minha Unidade CCaç 2381 “os Maiorais” ia integrada nas forças de segurança dessa coluna. Foi encontrado posteriormente um morto (Furriel Miliciano) e levantado por camaradas da minha companhia, as ossadas foram colocadas em campa, no cemitério de Bissau.
À margem das colunas é de salientar o que me ficou na memória, aquando eu estava em Aldeia Formosa, penso que foi no mês de Setembro de 1968, e que supostamente era mês de aniversário do PAIGC, em que perdi a contagem, do numero de ataques a Gandembel, pois sofrera mais de meia centena (era um “Regabofe” de dia e de noite);
A situação acalmou no Subsector de Aldeia Formosa, só após tropas de elite Pára-Quedistas, sediadas em Gandembel/Aldeia Formosa, serem preponderantes em várias operações de surpresa e com sucesso junto à fronteira da Guiné Conakry, de terem aniquilado praticamente dois Bi-grupos In e capturado imenso material de guerra, de que parte esteve exposto em Aldeia Formosa e assim como um ferido In capturado (estava em maca, fora dito que tinha os testículos esfacelados, pelo aspecto deveria ser quadro do PAIGC e recusava-se a falar).
Do que mencionei sobre a CCaç 2317 “Os Mártires e heróis de Gandembel,” e que tenho como referência, é uma pequena e singela descrição, relativa às condições difíceis que enfrentavam estes valorosos camaradas e sendo a ponta de um iceberg.
Por força das circunstâncias “descrito em outra estória” estive a vê-los chegar a Buba e ficamos acomodados na mesma camarata.
Neste Sector não tive conhecimento de quem passasse tanto as passinhas do Algarve (as voltas que os figos dão, desde a apanha e até que sejam torrados no forno).
Foto 5 > Guiné > Algures no Sector de Buba > 1968/69 > São os amigos da CCaç 2381 (uma Secção) em posição de expectativa, identificando Furriel Mil Tareco, seguido do 1.º Cabo Enf Jorge Catarino.
São lembranças que estavam cheias de pó e guardadas no Baú, tratam-se de algumas versões em segunda mão, mas contadas no local e como quem conta um conto altera um ponto, mas a sua essência está toda escrita.
Com cordiais cumprimentos a todos os bloguistas,
Arménio Estorninho
Ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas,
CCaç 2381 ”Os Maiorais”
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 1 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6089: Os nossos regressos (21): No dia 1 de Abril de 1970, a CCAÇ 2381 finalmente despede-se em Parada Militar (Arménio Estorninho)
Vd. último poste da série de 21 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5857: As minhas memórias da guerra (Arménio Estorninho) (4): Operação Grande Ronco (2)
Dando o meu testemunho de “Estorias” das colunas auto de Aldeia Formosa – Gandembel e vice-versa, em que participei e/ou tive conhecimento de algo de realce.
As minhas memórias da guerra - V
Guiné - As colunas auto de Aldeia Formosa-Gandembel
Ponto 1 - A coluna-auto que se realizara de Aldeia Formosa – Gandembel - Aldeia Formosa, em 20 de Agosto de 1968 e na qual fui incorporado, em que é extraída da História da Unidade a descrição que se segue:
Durante a escolta à coluna de Aldeia Formosa – Gandembel - Aldeia Formosa, foram detectados 02 fornilhos e 05 minas A/P, tendo-se procedido ao seu rebentamento por não darem condições de segurança no seu levantamento. Uma das armadilhas foi accionada provocando um ferido às N/T.
Das lembranças tenho, que desde o início da marcha da coluna até Chamarra, fomos instalados “comodamente” nas viaturas e a partir desse lugar apeamo-nos para prosseguir, sendo organizado o sistema defensivo inerente a cada situação (foto 1). Quando da formação da escolta apercebi-me que tropas de elite Pára-quedistas que iam integradas, ainda não estavam elucidados no seu todo e nomeadamente nas precauções a tomar numa coluna-auto deste tipo. Assim, um elemento dessa Unidade de elite perguntara-me como proceder, disse-lhe que ele estava a experimentar os meus conhecimentos para me dar algumas dicas, ao que me retorquiu que era a sério, porque tratava-se da primeira coluna que se incorporava e necessitava de informação.
Foto 1 > Guiné > Região de Tombali > Subsector de Aldeia Formosa > 1968 > Eu e o meu grupo, levando a arma de forma nada ortodoxa e ia tomar posição.
Dizendo-lhe que deveria seguir afastado cerca de dez metros dos camaradas e na mesma linha, e nunca fazendo ajuntamentos porque seria um alvo apetecível para o In, levaria a arma apontada para o lado oposto à forma como levasse aquele que lhe ia na vanguarda e marchando sempre pelo trilho do rodado das viaturas. Quanto ao resto seria com ele, porque estava treinado e como um dos melhores do mundo, não tenho lembrança do seu nome, mas a sua naturalidade é de uma cidade conhece bem.
Iniciou-se a marcha, indo eu com a minha fé na folhinha com a oração da Nossa Senhora de Monserrate e quanto às ocorrências havidas já foram antes mencionadas.
Chegados a Ponte Balana, o Comandante da Coluna deu a permissão para que vários elementos da CCaç 2381, não se deslocassem a Gandembel a fim de evitar que neste Aquartelamento houvesse grande concentração de pessoal e por sua vez os que ficavam montavam segurança.
Tendo eu ficado e dando uma olhadela pelo reduto de Ponte Balana, as lembranças que me ficaram são de que situava-se em lugar isolado, no lado esquerdo da estrada, junto à ponte e na margem direita do rio que lhe davam o nome, era bunker/fortim com sistema defensivo e cercado por duas fiadas de arame farpado que estavam armadilhadas.
Ponto 2 - Da História da Unidade também foi extraída a actividade, relativa à coluna auto Aldeia Formosa – Gandembel e que no regresso se deu uma emboscada entre Chamarra e Mampatá, no dia 22 de Agosto de 1968:
Assim, no decorrer da Coluna Auto Aldeia Formosa - Gandembel, foram detectadas 27 minas A/P e das quais 15 foram rebentadas por não oferecerem condições de segurança. Tropa Pára-quedista coadjuvava as nossas forças de segurança à coluna, detectaram e levantaram no mesmo local mais 37 minas A/P. No regresso entre Chamarra e Mampatá, grupo In estimado em 70 elementos emboscou as NT com fogo de RPG-2, metralhadoras pesadas e armas automáticas, causando 05 feridos graves (01 Caçador Natuvo) e 02 ligeiros, e estragos ligeiros numa viatura. Efectuada batida foi encontrado um elemento In morto, variadíssimos rastos de sangue e material diverso.
Que subjacente à mesma presenciei situações de forma pertinente e que foram fundamentais para contrariar a intenção do In e tendo-lhes causado baixas:
Por conseguinte a coluna auto marchara de Aldeia Formosa para Gandembel e logo apareceram os Bombardeiros T-6, os quais foram estacionar na pista e aguardando para que em caso fosse necessário dar-lhe a devido apoio.
Foto 2 > Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa (Quebo) > Pista de Aviação > 1968 > Parque de estacionamento das aeronaves que demandavam esta Pista.
Só que o T-6 com dois ninhos de foguetes (dois tambores Lança Rockets) avariou-se e foi preciso vir uma DO 27, transportando um Sargento Mecânico e equipamento, para efectuar a devida reparação (tendo presenciado e oferecido os meus préstimos).
Concluída que fora a reparação e após, porque a coluna estava de regresso e a chegar a Chamarra, por isso a DO e o T-6 com as bombas, levantaram voo seguindo para a Base Aérea 12 – Bissalanca. Contudo outro T-6 ainda ficara estacionado no parque, talvez porque o Piloto tivesse que aquecer o motor e/ou tratar de algumas anotações.
Assim, o In provavelmente foi informado que as aeronaves para apoiar a coluna tinham partido, suponho que foi só aguardar no intuito da surpresa, em zona considerada segura para as NT e que agora seguiam montados nas viaturas, mas a Avioneta “DO 27” é que fez confundir o In.
Conquanto a coluna fora emboscada, ouvia as explosões das granadas, o matraquear das metralhadoras pesadas e tendo eu conhecimento que há pouco saíram de Chamarra. Como um T-6 ainda estava na pista e estando eu com o jipe dirigi-me para lá e entrei em diálogo com o Piloto (que estava dentro do cockpit) e informando-o da situação, ao que me disse que por via rádio também estava a ser informado do mesmo e que de imediato iria levantar voo e dirigir-se para aquele local. Solicitara-me para que me posicionasse junto da Tabanca e do Quartel (onde havia acessos transversais), de forma a evitar a entrada na Pista, de pessoas e/ou animais (foto 3).
Foto 3 > Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa (Quebo) 1968 > Panorâmica da Pista de Aviação, estando eu no jipe, vimos um bidão pintado marcando o limite da pista e assim como lateralmente a estrada que ligava a Mampatá.
E em poucos minutos, por contraste com o aproximar do pôr-do-sol, era visível o T-6 estar em acção na zona de intervenção e efectuando por várias vezes voos picados, lançando de rajada os Rockets, apanhando o In de surpresa e pondo-o em debandada.
Caberá ao Piloto Aviador do T-6, que teve esta intervenção, se houver mais algum facto a mencionar e ainda com mais a propósito das situações havidas.
Ponto 3 - Noutra coluna para Gandembel em que fui incorporado, o qual deu-se por rotatividade de serviço e realizada no dia 08 de Outubro 1968, e consta na História da Unidade da CCaç 2381 o seguinte:
Durante a escolta à coluna - auto de Aldeia Formosa – Gandembel - Aldeia Formosa, foi detectada e levantada por forças desta CCaç 2381, 01 mina A/P. Foram encontrados vestígios In, assim como rastos de sangue deixado por elementos In, que ao aproximarem-se do Destacamento de Chamarra caíram numa armadilha montada pelas NT e accionando-a. A coluna realizou-se sem consequências.
Para eu entender o que era o Aquartelamento de Gandembel, foi necessário lá entrar e houve uma grande tensão, indaguei se havia algum conterrâneo e/ou a ver o seu sistema defensivo. Não identifiquei ninguém e relativamente às instalações e aos abrigos eram de uma forma geral de tipo de construção meia enterrada (diferente de outras que conheci), somente as frestas e as coberturas com duas camadas de cibos sob terra e chapa de bidão é que pouco mais se elevavam do solo, havia as normais fiadas de arame farpado em toda a volta do Aquartelamento e claro está entre as mesmas estavam as armadilhas.
Pelo que me disseram no local, a artilharia de defesa, em muitos dos ataques In só eram accionadas no início, tal era a profusão e concentração de fogo In.
Ponto 4 - Pela última vez a 28 de Novembro de l968, incorporei uma coluna auto Aldeia Formosa – Gandembel – Aldeia Formosa, na História da Unidade somente consta, sem consequências (foto 4).
Foto 4 > Guiné > Região de Tombali > Aldeia Formosa > Estrada de Gandembel > 1968 > Eu, algures entre Chamarra e Ponte Balana, quando a actividade In já tinha amainado.
Nesta data, fui pela segunda vez ao mítico Aquartelamento de Gandembel, houve tempo para conversas e ai tive conhecimento de várias situações sendo algumas adversas para “Os mártires de Gandembel”: - Que aquando de um ataque In, com baterias de morteiros e canhões s/r, instalados nas proximidades da vedação de arame farpado e tendo havido elementos do In que chegaram à vedação no lado esquerdo de quem entrava na porta de armas, pretendiam o assalto e ai morreram (não era só café e/ou a bala do branco que não matava..!).
Também nesse ataque, um dos abrigos sofrera três impactos na mesma zona, por granadas de canhão s/r e perfurando-o, ocasionando vários feridos e a morte de um Alferes;
- De quando alguns camaradas da CCaç 2317, efectuavam apoio logístico a uma coluna de Aldeia Formosa – Gandembel, no pontão de Changue Laia, caíram num campo de minas, ocasionando 4 mortos e 2 feridos. A minha Unidade CCaç 2381 “os Maiorais” ia integrada nas forças de segurança dessa coluna. Foi encontrado posteriormente um morto (Furriel Miliciano) e levantado por camaradas da minha companhia, as ossadas foram colocadas em campa, no cemitério de Bissau.
À margem das colunas é de salientar o que me ficou na memória, aquando eu estava em Aldeia Formosa, penso que foi no mês de Setembro de 1968, e que supostamente era mês de aniversário do PAIGC, em que perdi a contagem, do numero de ataques a Gandembel, pois sofrera mais de meia centena (era um “Regabofe” de dia e de noite);
A situação acalmou no Subsector de Aldeia Formosa, só após tropas de elite Pára-Quedistas, sediadas em Gandembel/Aldeia Formosa, serem preponderantes em várias operações de surpresa e com sucesso junto à fronteira da Guiné Conakry, de terem aniquilado praticamente dois Bi-grupos In e capturado imenso material de guerra, de que parte esteve exposto em Aldeia Formosa e assim como um ferido In capturado (estava em maca, fora dito que tinha os testículos esfacelados, pelo aspecto deveria ser quadro do PAIGC e recusava-se a falar).
Do que mencionei sobre a CCaç 2317 “Os Mártires e heróis de Gandembel,” e que tenho como referência, é uma pequena e singela descrição, relativa às condições difíceis que enfrentavam estes valorosos camaradas e sendo a ponta de um iceberg.
Por força das circunstâncias “descrito em outra estória” estive a vê-los chegar a Buba e ficamos acomodados na mesma camarata.
Neste Sector não tive conhecimento de quem passasse tanto as passinhas do Algarve (as voltas que os figos dão, desde a apanha e até que sejam torrados no forno).
Foto 5 > Guiné > Algures no Sector de Buba > 1968/69 > São os amigos da CCaç 2381 (uma Secção) em posição de expectativa, identificando Furriel Mil Tareco, seguido do 1.º Cabo Enf Jorge Catarino.
São lembranças que estavam cheias de pó e guardadas no Baú, tratam-se de algumas versões em segunda mão, mas contadas no local e como quem conta um conto altera um ponto, mas a sua essência está toda escrita.
Com cordiais cumprimentos a todos os bloguistas,
Arménio Estorninho
Ex-1.º Cabo Mec Auto Rodas,
CCaç 2381 ”Os Maiorais”
_________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 1 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6089: Os nossos regressos (21): No dia 1 de Abril de 1970, a CCAÇ 2381 finalmente despede-se em Parada Militar (Arménio Estorninho)
Vd. último poste da série de 21 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5857: As minhas memórias da guerra (Arménio Estorninho) (4): Operação Grande Ronco (2)
Guiné 63/74 - P6113: Convívios (212): Pessoal da CART 2412 - "Sempre Diferentes", no dia 15 de Maio de 2010, em Fátima (Jorge Teixeira)
1. Mensagem do nosso camarada Jorge Teixeira (ex-Fur Mil Art da CART 2412, Bigene, Guidage, Barro, 1968/70), com data de 1 de Abril de 2010:
Caro Carlos Vinhal
Amigo e camarada
Não querendo sobrecarregar o teu meritório trabalho, agradeço que dentro das possibilidades,
publiques no blogue da Tabanca Grande o seguinte comunicado/convocatória:
CONVOCATÓRIA
Convocam-se todos os ex-combatentes da CART 2412 "SEMPRE DIFERENTES" que estiveram na Guiné em 68-70 em Bigene - Guidage - Binta - Barro, a estarem presentes no encontro / convívio anual que se realiza a 15 de Maio em Fátima e a relembrarem, comemorando, os 40 anos do nosso regresso a Lisboa no fim da comissão, que viajando (de lado!!!) no Carvalho Araújo, atracou no Cais de Conde de Óbidos, em 14 de Maio de 1970.
A concentração será às 10:00 horas no recinto do Santuário (Hotel Fátima).
O almoço de confraternização está previsto para o Restaurante "PÉROLA DO FÉTAL" em Celeiro a 10 Kms (+ou-) de Fátima na estrada Fátima/Batalha.
Para quem estiver interessado e para facilitar o transporte, está previsto um autocarro que sairá de Santo Tirso.
Para mais informações e marcações contactar os organizadores do evento:
Moura 22 415 30 87 e 96 924 03 61
Godinho 252 852 325 e 91 750 82 92
...e é só
Obrigado pela atenção e pelo trabalho.
Um abraço
cumprim/jteix
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 5 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6111: Convívios (125): 6.º Almoço Convívio do Pel Mort 4574 em Penacova, dia 22 de Maio de 2010 (António Santos)
Caro Carlos Vinhal
Amigo e camarada
Não querendo sobrecarregar o teu meritório trabalho, agradeço que dentro das possibilidades,
publiques no blogue da Tabanca Grande o seguinte comunicado/convocatória:
CONVOCATÓRIA
Convocam-se todos os ex-combatentes da CART 2412 "SEMPRE DIFERENTES" que estiveram na Guiné em 68-70 em Bigene - Guidage - Binta - Barro, a estarem presentes no encontro / convívio anual que se realiza a 15 de Maio em Fátima e a relembrarem, comemorando, os 40 anos do nosso regresso a Lisboa no fim da comissão, que viajando (de lado!!!) no Carvalho Araújo, atracou no Cais de Conde de Óbidos, em 14 de Maio de 1970.
A concentração será às 10:00 horas no recinto do Santuário (Hotel Fátima).
O almoço de confraternização está previsto para o Restaurante "PÉROLA DO FÉTAL" em Celeiro a 10 Kms (+ou-) de Fátima na estrada Fátima/Batalha.
Para quem estiver interessado e para facilitar o transporte, está previsto um autocarro que sairá de Santo Tirso.
Para mais informações e marcações contactar os organizadores do evento:
Moura 22 415 30 87 e 96 924 03 61
Godinho 252 852 325 e 91 750 82 92
...e é só
Obrigado pela atenção e pelo trabalho.
Um abraço
cumprim/jteix
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 5 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6111: Convívios (125): 6.º Almoço Convívio do Pel Mort 4574 em Penacova, dia 22 de Maio de 2010 (António Santos)
Guiné 63/74 - P6112: Parabéns a você (99): Joaquim Mexia Alves, ex-Alf Mil OP Esp (Os editores)
1. Hoje dia 6 de Abril, um bom Carneiro está de parabéns. E nós também, como mais à frente se verá. Joaquim Mexia Alves, um camarada especial que dispensa mais adjectivos, completa 61 anos.Camarigo Joaquim, vimos assim desejar-te uma longa e boa vida junto da tua família e dos montes de amigos que soubeste fazer.
É uma honra para o Blogue ter tertulianos como tu, com as tuas qualidades de ser humano.
Sempre pronto a defenderes o teu ponto de vista até à exaustão, respeitas, contudo, as opiniões divergentes das tuas. Nós é que estamos de parabéns por te termos como amigo.
O Mexia Alves é um colaborador incansável do nosso blogue com as suas histórias e opiniões. Inúmeras vezes intervém para pacificar as hostes, quando as trocas de palavras começam a ultrapassar os limites do razoável. Raramente se chega a este limite, mas por vezes, no calor da discussão, lá saem umas frases mais ou menos contundentes. Nestes casos o Joaquim aparece sempre para arrefecer os ânimos.Nos últimos anos, o Mexia tem-se dedicado à organização dos Encontros da Tertúlia, papel que tem desempenhado com muito afinco e brilhantismo. Este ano resolveu mudar de ares pelo que a espectativa é grande. Vai-nos receber em Monte Real, sua terra natal.
Do último Encontro de Ortigosa, ficam estes dois instantâneos:
É uma honra para o Blogue ter tertulianos como tu, com as tuas qualidades de ser humano.
Sempre pronto a defenderes o teu ponto de vista até à exaustão, respeitas, contudo, as opiniões divergentes das tuas. Nós é que estamos de parabéns por te termos como amigo.
O Mexia Alves é um colaborador incansável do nosso blogue com as suas histórias e opiniões. Inúmeras vezes intervém para pacificar as hostes, quando as trocas de palavras começam a ultrapassar os limites do razoável. Raramente se chega a este limite, mas por vezes, no calor da discussão, lá saem umas frases mais ou menos contundentes. Nestes casos o Joaquim aparece sempre para arrefecer os ânimos.Nos últimos anos, o Mexia tem-se dedicado à organização dos Encontros da Tertúlia, papel que tem desempenhado com muito afinco e brilhantismo. Este ano resolveu mudar de ares pelo que a espectativa é grande. Vai-nos receber em Monte Real, sua terra natal.
Do último Encontro de Ortigosa, ficam estes dois instantâneos:
Depois do traquejo adquirido a distribuir Rações de Combate nos Convívios da Tabanca Grande, fundou a Tabanca do Centro onde os almoços-convívio são à base de Cozido à Portuguesa da Manutenção Militar. É o que se pode arranjar, diz ele.
2. Voltando a falar a sério, no seguimento do que há tempos pedimos, que qualquer camarada pode enviar um texto alusivo ao seu próprio aniversário, o Mexia Alves mandou-nos os seus parabéns, destinados a nós todos, os seus camarigos, como ele gosta de dizer.
Ora bem, então hoje sou eu que faço anos!
61, para ser mais preciso!
E por isso quero dar-vos os parabéns, já que é dia de parabéns!
E porquê?
Porque todos vós vos sabeis manter vivos, activos, e, apesar de tudo, nada acomodados e ainda dispostos a ir à luta.
E dou-vos os parabéns porque todos sabeis colocar frontalmente e sem peias as vossas histórias, as vossas guerras, os vossos sentimentos, as vossas raivas, os vossos choros, e assim abris os corações a cada um que aqui passa, dizendo sem subterfúgios: Estamos vivos e não nos calamos!
E dou-vos os parabéns ainda, porque apesar das diferentes políticas, das diferentes maneiras de ver a guerra e tudo o que a envolve, de viver a vida em cada dia, no passado e no presente, sabeis encontrar mais laços de união do que de conflito, mais razões para festejar a amizade do que renunciar o abraço que nos abraça na “coisa” comum a todos.
Dou-vos os parabéns porque não vos envergonhais do que fizestes, até mesmo por obrigação e involuntariamente, porque vos mantivestes íntegros, porque não deixastes que as más recordações e o eventual ressentimento vos levasse a odiar o antigo inimigo, (antes pelo contrário), o que vos dá o direito a discutir e criticar o que fizestes no passado, para ser verdade no presente.
Dou-vos os parabéns também, porque apesar de nosso país sermos coisa marginal, vidros transparentes em que os olhares passam sem se deterem, grupúsculos incómodos que todos gostariam de ver extintos, mantendes a cabeça levantada dizendo altaneiramente: Fomos, somos e seremos!
Dou-vos os parabéns finalmente, (mas sem esgotar as razões para vo-los dar), porque por aquilo que vou vendo dos meus filhos mais novos que ainda andam a estudar, somos mais do que necessários para repor a verdade e consolidar a história da guerra recente, que alguns teimam em ensinar à sua maneira e do seu ponto de vista.
Falei mais da guerra e dos seus efeitos nestes três últimos anos, mercê da Tabanca Grande, (obrigado Luís), do que nos últimos 33 anos antes de vos conhecer a todos, e isso tem sido para mim uma experiência de libertação e reencontro que muito me tem ajudado, até na minha vivência familiar.
Por isso neste dia de festa, pois então, bebo um copo à vossa saúde e abraçando-vos, agradeço-vos a vossa amizade.
Ah, e afinal ainda há mais um motivo para vos dar os parabéns, e que é a vossa paciência em me aturarem com as minhas “frontalidades” e com as minhas “lamechices”!
Mas eu sou assim… e já não mudo!!!
Monte Real, 6 de Abril de 2010
JMA
O RANGER Casimiro Carvalho, enviou-nos 2 fotos do RANGER JMA, para juntarmos neste poste, obtidas há 23 anos na festa da Associação de Operações Especiais.
O Carvalho já nesta altura andava a tentar descobrir se o JMA é um grande RANGER, um RANGER muito grande, ou as duas coisas juntas????
Parece que ainda hoje a dúvida persiste!!!!!
__________
Notas de CV:
Vd. postes de Mexia Alves (ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73) nos marcadores Joaquim Mexia Alves e J. Mexia Alves
Vd. último poste da série de 4 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6104: Parabéns a você (98): José Eduardo Reis de Oliveira (JERO), ex-Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/66) (Os Editores)
segunda-feira, 5 de abril de 2010
Guiné 63/74 - P6111: Convívios (211): 6.º Almoço Convívio do Pel Mort 4574 em Penacova, dia 22 de Maio de 2010 (António Santos)
1. Mensagem de António Santos (ex-Sold Trms do Pel Mort 4574/72, Nova Lamego, 1972/74), com data de 3 de Abril de 2010:
Camarada, Vinhal
Boa Páscoa, junto dos teus queridos.
Em anexo envio um ficheiro com as indicações da nossa reunião para almoço e confraternização, logo que te for possível a malta do 4574, agradece.
Um alfa bravo, do
ASantos
SPM 2558
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de l5 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6110: Convívios (124): 4º Encontro-Convívio da CCS/BART 2917 e Unidades Agregadas ao Comando do BART, MAI70 a MAR72 (Benjamim Durães)
Camarada, Vinhal
Boa Páscoa, junto dos teus queridos.
Em anexo envio um ficheiro com as indicações da nossa reunião para almoço e confraternização, logo que te for possível a malta do 4574, agradece.
Um alfa bravo, do
ASantos
SPM 2558
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de l5 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6110: Convívios (124): 4º Encontro-Convívio da CCS/BART 2917 e Unidades Agregadas ao Comando do BART, MAI70 a MAR72 (Benjamim Durães)
Guiné 63/74 - P6110: Convívios (210): 4º Encontro-Convívio da CCS/BART 2917 e Unidades Agregadas ao Comando do BART, MAI70 a MAR72 (Benjamim Durães)
1. O nosso Camarada Benjamim Durães (ex-Fur Mil Op Esp/RANGER do Pel Rec Inf, CCS/BART 2917 – Bambadinca -, 1970/72) enviou-nos uma mensagem dando-nos notícias do 4º Encontro-Convívio da sua CCS/BART 2917:
Camaradas,
No passado dia 27 de Março, teve lugar em Coruche o 4º Encontro-Convívio da CCS/BART 2917 e das Unidades agregadas ao Comando do BART, entre Maio de 1970 e Março de 1972.
Marcaram presença 117 convivas, sendo 58 ex-militares (41 da CCS, 2 da CART 2714, 2 da CART 2715, 4 da CART 2716, 5 da CCAÇ 12, 2 do PEL CAÇ NAT 63, 1 do PEL MORT 2268 e 1 do PEL ENG/BENG 447), incluindo 12 estreantes nestes Convívios.
Nos Encontros-Convívios já realizados, marcaram presença ao todo 96 ex-Militares, com 27 totalistas.
Camaradas,
No passado dia 27 de Março, teve lugar em Coruche o 4º Encontro-Convívio da CCS/BART 2917 e das Unidades agregadas ao Comando do BART, entre Maio de 1970 e Março de 1972.
Marcaram presença 117 convivas, sendo 58 ex-militares (41 da CCS, 2 da CART 2714, 2 da CART 2715, 4 da CART 2716, 5 da CCAÇ 12, 2 do PEL CAÇ NAT 63, 1 do PEL MORT 2268 e 1 do PEL ENG/BENG 447), incluindo 12 estreantes nestes Convívios.
Nos Encontros-Convívios já realizados, marcaram presença ao todo 96 ex-Militares, com 27 totalistas.
O grupo dos ex-Militares
O grupo ex-Militares com os seus Familiares
Um abraço para vós
Benjamim Durães
Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS/BART 2917
Benjamim Durães
Fur Mil OpEsp/RANGER da CCS/BART 2917
Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.
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Notas de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
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Notas de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
Guiné 63/74 - P6109: Notas de leitura (88): Ciclone de Setembro, de Cristóvão de Aguiar (I) (Beja Santos)
1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Março de 2010:
Queridos amigos,
Chegou a vez do Cristóvão de Aguiar entrar em cena.
Haverá razão para lhe dar o reconhecido destaque: tanto como me é dado saber, é o nome sonante que se imporá a partir dos anos 80 e praticamente até à actualidade.
Não é uma leitura amável, tal como José Martins Garcia sobressai pelo vigor da “açoarianidade” e um registo brutal das circunstâncias e dos gestos dos homens.
Um Abraço do
Mário
Um açoriano ciclónico com a cabeça cheia de Guiné
Beja Santos
Chama-se Cristóvão de Aguiar (1940), veio de São Miguel para Coimbra, interrompeu o curso e seguiu para a Guiné. Escreveu bastante prosa até que em 1985 aconteceu o “Ciclone de Setembro (Romance ou o Que Lhe Queiram Chamar)”, publicado pela Editorial Caminho. A Guiné tornou-se-lhe assunto recorrente. Formou-se em Filologia Germânica, foi redactor da Revista Vértice e leitor de Língua Inglesa na Universidade de Coimbra, tem recebido importantes prémios literários. Este Ciclone de Setembro de que vamos falar já apareceu com vários nomes, compreende-se como o seu autor o não queira deixar em paz. Como vamos ver.
É um ciclone autobiográfico, sem tirar nem pôr, até é possível imaginar a infância no Pico da Pedra, os estudos no liceu Antero de Quental, em Ponta Delgada e, subitamente, chegamos ao primeiro grupo de combate da CCaç 666, que ele comandou.
No princípio, corre Setembro e a tarde espreguiça-se no supliciado soalheiro da lembrança, escreve ele e eu lembro-me de Nemésio, um dos patriarcas desta geração. Chegara a hora de enfiar as memórias, de se abrir a diferentes ventos, os das ilhas, os da guerra, os que preludiam o futuro, a obsidiante Guiné. Mas o génese do ciclone é portentoso.
Imagem da infância: “Ao ombro, preso pelas alças de cadarço, levo o saquitel enxadrezado da merenda; na mão, uma maleta envernizada, com um losango cor-de-canário ao meio da tampa. Trajo uma vestimenta em bom uso, a bem dizer nova do trinque: casaco estrenido e tom cinzento-claro, calça bege vincada a poder de ferro bem aquecido de brasas por sobre um pedaço de papel de jornal velho – nada melhor para o vinco ficar como um prumo. Vou descendo a ladeira da Rua do Norte nestes preparos domingueiros porque me encaminho para Santana, o campo de aviação que serve a ilha. O Dakota americano aterra às segundas, quartas e sextas... só quando estiver perto da casa amarela da araucária gigante, a um escassilho de tempo do Campo numa esgueirada corrida das minhas, é que hei-de enfim ter a certeza de que o Dakota, vindo Banda d’Além da Lomba de Santa Barbara, se vem fazendo à pista, desencolhidas já as três rodinhas do trem de aterragem”.
Um açoriano não sabe expressar-se se não falar do mar salgado, dos campos verdes, da bagacina, da solidão infinita que é o apanágio do viver em ilha, um marulhar atlântico que nunca mais se despega da pele. Um açoriano está sempre em condições de falar das noites esborralhadas de vento, dos temporais, da suspeita dos sismos, do vento que sopra pelas canadas, do labor imigrante e da construção das casas, o sonho de um melhor viver. Nunca se esquece do nascer da casa e de quem a constrói, naquelas ilhas: “A casa nova, ou melhor dizendo o mestre Manuel Pinzinho, um dos pedreiros da obra, oriundo dos Fenais da Luz. Assenta-se numa pedra de ladrilho contra a parede-do-meio-da-casa, a única que permaneceu do anterior casebre quase em ruínas. Vai colherando com vagares ilhéus o mata-bicho das nove da manhã: uma tigela de barro rasa de sopas de leite de pão de milho migado, uma lasquinha de queijo amarelo na mão esquerda, que vai condutando por via de iludir o travor bodumoso do leite acabadinho de ordenhar da cabra malhada do Guerra e aligeirar a massa embolada do pão enqueijado no seu caminho deslizante para o caninho do alimento”. Lembranças das rapaziadas, das ternuras familiares, das festas. Lembrança maior é a do pão, dos alguidares da amassaria. Mas também Vavó Aparecida, afecto singular na vida deste autor disfarçado de Arquelau de Mendonça. Depois o amor temporão, que deixam a marca da inocência. E os estudos, a convivência, as rivalidades inter-ilhas. E o peso das relações desencontradas com o pai, sobretudo.
Chegar e partir são momentos extraordinários, nunca se sabe quando se regressa, tais as inclemências do tempo, é por isso que as casas das ilhas estão preparadas para a hospitalidade imprevista de quem não pode partir ou é forçado a demorar graças ao mau tempo. Parte-se com malas e embrulhos, recebe-se a bênção, há sempre o olhar marejado da despedida, há sempre o calor da chegada.
Chegou a hora de uma aventurosa viagem, estão semeados os ventos da guerra, Arquelau acaba de chegar à Guiné, responde por 33 homens operacionais, um rancheiro, um primeiro-cabo telegrafista junta-se um casal de rafeiros, é assim que se parte para o Leste: Por ordem de SEXA, o comandante-chefe, segue para a sede do Batalhão de Nova Lamego, onde aguardará ordem de marcha para Dunane, o primeiro grupo de combate desta companhia. Vai abonado de alimentação até hoje. Até o soldado Covilhã da companhia acantonada em Fajonquito, e adido à 666 durante umas semanas devido a reparações efectuadas, por causa das cheias, num pontão sobre o Geba seguiu com guia de marcha: por ter morrido afogado no rio Geba quando se procediam obras de restauro num pontão sobre o mesmo, regressa, sobre escolta, à sua companhia, em Fajonquito, o soldado número mil setecentos e cinquenta, barra sessenta e três, o qual vai abonado de pré e alimentação até hoje inclusive...”
Em Jabicunda faz-se um pouco de psico-social, aliás custa pouco, são uns comprimidos de laboratório militar. Segue-se para Sonaco, povoação Fula, ainda pejada pelo comércio de brancos e libaneses. Arquelau assiste ao pesar da mancarra, o peso está sempre do lado do comerciante. Sonaco é um pouco de paraíso dentro do inferno da guerrilha. Arquelau (ou quem se esconde sobre este nome) medita sobre as reais qualidades do soldado português: “Desde que tenha vinho e correio, nenhuma chatice entra com ele”. O baptismo de fogo aconteceu no mato do Caresse. O comandante da companhia que os acolhe não se terá lá comportado muito bem, é preciso andar sempre com um olho bem arregalado neste capitão Castelar, pelo que fica escrito por Cristóvão de Aguiar um carrasco e um energúmeno: o guia, um prisioneiro, qualquer que seja o resultado da operação, será sempre abatido. “Depois faz constar do relatório: temos a lamentar a morte do guia indígena, guerrilheiro capturado em anterior operação, o qual, ao preparar-se para fugir em direcção mato, onde certamente se iria juntar às hostes inimigas, foi abatido a tiro por homens não identificados das nossas tropas... O palavreado do capitão Castelar tornou-se já um papel químico. Utiliza-o sempre nos circunstanciados relatórios enviados aos superiores hierárquicos. Também nas suas conversas quezilentas lança mão de um outro papel químico: não sou salazarista, nem político, nem democrata, nem muito menos comunista; não sou nada, meus senhores, sou apenas um militar que cumpre ordens; tenho raiva a quem se deixa levar por ideias subversivas, entendeu, doutor?”
Em certas circunstâncias, o torcionário Castelar impõe conivências, empurra a execução sumária do prisioneiro guia para um alferes. A descrição de Cristóvão de Aguiar faz-nos ribombar até ao sofrimento extremo: “O alferes não dispara apenas um tiro mas um carregador inteiro. O prisioneiro fez-lhe perder o domínio dos nervos. Após ter aberto o coval, disse para o alferes: Mate-me de costas, nosso alfero; mas antes, deixe-me fazer uma oração a Alá... E voltou-se para Meca, prostrado. Terminada a reza, disse já de costas para o oficial: Pode disparar, nosso alfero”. Não sei por onde anda o capitão Castelar, reduzido neste livro à condição mais mísera dos desgraçados morais. Durante uma emboscada, ele revelará a sua verdadeira condição, raspando-se ao tiroteio. Mas depois veio-lhe a gana e volta a dar ordens para matar o guia.
Este ciclone de Setembro, insiste-se, vai passar de obra para obra, como aqui se vai registar.
(Continua)
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 2 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6092: Notas de leitura (87): Antologia O Corpo da Pátria, de Pinharanda Gomes (Beja Santos)
Queridos amigos,
Chegou a vez do Cristóvão de Aguiar entrar em cena.
Haverá razão para lhe dar o reconhecido destaque: tanto como me é dado saber, é o nome sonante que se imporá a partir dos anos 80 e praticamente até à actualidade.
Não é uma leitura amável, tal como José Martins Garcia sobressai pelo vigor da “açoarianidade” e um registo brutal das circunstâncias e dos gestos dos homens.
Um Abraço do
Mário
Um açoriano ciclónico com a cabeça cheia de Guiné
Beja Santos
Chama-se Cristóvão de Aguiar (1940), veio de São Miguel para Coimbra, interrompeu o curso e seguiu para a Guiné. Escreveu bastante prosa até que em 1985 aconteceu o “Ciclone de Setembro (Romance ou o Que Lhe Queiram Chamar)”, publicado pela Editorial Caminho. A Guiné tornou-se-lhe assunto recorrente. Formou-se em Filologia Germânica, foi redactor da Revista Vértice e leitor de Língua Inglesa na Universidade de Coimbra, tem recebido importantes prémios literários. Este Ciclone de Setembro de que vamos falar já apareceu com vários nomes, compreende-se como o seu autor o não queira deixar em paz. Como vamos ver.
É um ciclone autobiográfico, sem tirar nem pôr, até é possível imaginar a infância no Pico da Pedra, os estudos no liceu Antero de Quental, em Ponta Delgada e, subitamente, chegamos ao primeiro grupo de combate da CCaç 666, que ele comandou.
No princípio, corre Setembro e a tarde espreguiça-se no supliciado soalheiro da lembrança, escreve ele e eu lembro-me de Nemésio, um dos patriarcas desta geração. Chegara a hora de enfiar as memórias, de se abrir a diferentes ventos, os das ilhas, os da guerra, os que preludiam o futuro, a obsidiante Guiné. Mas o génese do ciclone é portentoso.
Imagem da infância: “Ao ombro, preso pelas alças de cadarço, levo o saquitel enxadrezado da merenda; na mão, uma maleta envernizada, com um losango cor-de-canário ao meio da tampa. Trajo uma vestimenta em bom uso, a bem dizer nova do trinque: casaco estrenido e tom cinzento-claro, calça bege vincada a poder de ferro bem aquecido de brasas por sobre um pedaço de papel de jornal velho – nada melhor para o vinco ficar como um prumo. Vou descendo a ladeira da Rua do Norte nestes preparos domingueiros porque me encaminho para Santana, o campo de aviação que serve a ilha. O Dakota americano aterra às segundas, quartas e sextas... só quando estiver perto da casa amarela da araucária gigante, a um escassilho de tempo do Campo numa esgueirada corrida das minhas, é que hei-de enfim ter a certeza de que o Dakota, vindo Banda d’Além da Lomba de Santa Barbara, se vem fazendo à pista, desencolhidas já as três rodinhas do trem de aterragem”.
Um açoriano não sabe expressar-se se não falar do mar salgado, dos campos verdes, da bagacina, da solidão infinita que é o apanágio do viver em ilha, um marulhar atlântico que nunca mais se despega da pele. Um açoriano está sempre em condições de falar das noites esborralhadas de vento, dos temporais, da suspeita dos sismos, do vento que sopra pelas canadas, do labor imigrante e da construção das casas, o sonho de um melhor viver. Nunca se esquece do nascer da casa e de quem a constrói, naquelas ilhas: “A casa nova, ou melhor dizendo o mestre Manuel Pinzinho, um dos pedreiros da obra, oriundo dos Fenais da Luz. Assenta-se numa pedra de ladrilho contra a parede-do-meio-da-casa, a única que permaneceu do anterior casebre quase em ruínas. Vai colherando com vagares ilhéus o mata-bicho das nove da manhã: uma tigela de barro rasa de sopas de leite de pão de milho migado, uma lasquinha de queijo amarelo na mão esquerda, que vai condutando por via de iludir o travor bodumoso do leite acabadinho de ordenhar da cabra malhada do Guerra e aligeirar a massa embolada do pão enqueijado no seu caminho deslizante para o caninho do alimento”. Lembranças das rapaziadas, das ternuras familiares, das festas. Lembrança maior é a do pão, dos alguidares da amassaria. Mas também Vavó Aparecida, afecto singular na vida deste autor disfarçado de Arquelau de Mendonça. Depois o amor temporão, que deixam a marca da inocência. E os estudos, a convivência, as rivalidades inter-ilhas. E o peso das relações desencontradas com o pai, sobretudo.
Chegar e partir são momentos extraordinários, nunca se sabe quando se regressa, tais as inclemências do tempo, é por isso que as casas das ilhas estão preparadas para a hospitalidade imprevista de quem não pode partir ou é forçado a demorar graças ao mau tempo. Parte-se com malas e embrulhos, recebe-se a bênção, há sempre o olhar marejado da despedida, há sempre o calor da chegada.
Chegou a hora de uma aventurosa viagem, estão semeados os ventos da guerra, Arquelau acaba de chegar à Guiné, responde por 33 homens operacionais, um rancheiro, um primeiro-cabo telegrafista junta-se um casal de rafeiros, é assim que se parte para o Leste: Por ordem de SEXA, o comandante-chefe, segue para a sede do Batalhão de Nova Lamego, onde aguardará ordem de marcha para Dunane, o primeiro grupo de combate desta companhia. Vai abonado de alimentação até hoje. Até o soldado Covilhã da companhia acantonada em Fajonquito, e adido à 666 durante umas semanas devido a reparações efectuadas, por causa das cheias, num pontão sobre o Geba seguiu com guia de marcha: por ter morrido afogado no rio Geba quando se procediam obras de restauro num pontão sobre o mesmo, regressa, sobre escolta, à sua companhia, em Fajonquito, o soldado número mil setecentos e cinquenta, barra sessenta e três, o qual vai abonado de pré e alimentação até hoje inclusive...”
Em Jabicunda faz-se um pouco de psico-social, aliás custa pouco, são uns comprimidos de laboratório militar. Segue-se para Sonaco, povoação Fula, ainda pejada pelo comércio de brancos e libaneses. Arquelau assiste ao pesar da mancarra, o peso está sempre do lado do comerciante. Sonaco é um pouco de paraíso dentro do inferno da guerrilha. Arquelau (ou quem se esconde sobre este nome) medita sobre as reais qualidades do soldado português: “Desde que tenha vinho e correio, nenhuma chatice entra com ele”. O baptismo de fogo aconteceu no mato do Caresse. O comandante da companhia que os acolhe não se terá lá comportado muito bem, é preciso andar sempre com um olho bem arregalado neste capitão Castelar, pelo que fica escrito por Cristóvão de Aguiar um carrasco e um energúmeno: o guia, um prisioneiro, qualquer que seja o resultado da operação, será sempre abatido. “Depois faz constar do relatório: temos a lamentar a morte do guia indígena, guerrilheiro capturado em anterior operação, o qual, ao preparar-se para fugir em direcção mato, onde certamente se iria juntar às hostes inimigas, foi abatido a tiro por homens não identificados das nossas tropas... O palavreado do capitão Castelar tornou-se já um papel químico. Utiliza-o sempre nos circunstanciados relatórios enviados aos superiores hierárquicos. Também nas suas conversas quezilentas lança mão de um outro papel químico: não sou salazarista, nem político, nem democrata, nem muito menos comunista; não sou nada, meus senhores, sou apenas um militar que cumpre ordens; tenho raiva a quem se deixa levar por ideias subversivas, entendeu, doutor?”
Em certas circunstâncias, o torcionário Castelar impõe conivências, empurra a execução sumária do prisioneiro guia para um alferes. A descrição de Cristóvão de Aguiar faz-nos ribombar até ao sofrimento extremo: “O alferes não dispara apenas um tiro mas um carregador inteiro. O prisioneiro fez-lhe perder o domínio dos nervos. Após ter aberto o coval, disse para o alferes: Mate-me de costas, nosso alfero; mas antes, deixe-me fazer uma oração a Alá... E voltou-se para Meca, prostrado. Terminada a reza, disse já de costas para o oficial: Pode disparar, nosso alfero”. Não sei por onde anda o capitão Castelar, reduzido neste livro à condição mais mísera dos desgraçados morais. Durante uma emboscada, ele revelará a sua verdadeira condição, raspando-se ao tiroteio. Mas depois veio-lhe a gana e volta a dar ordens para matar o guia.
Este ciclone de Setembro, insiste-se, vai passar de obra para obra, como aqui se vai registar.
(Continua)
__________
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 2 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6092: Notas de leitura (87): Antologia O Corpo da Pátria, de Pinharanda Gomes (Beja Santos)
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