Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 22 de novembro de 2010
Guiné 63/74 - P7318: In Memoriam (61): Fanta Baldé, de Farim (Manuel Marinho)
Caro Carlos Vinhal:
Envio este texto como comentário ao P1475 (**) que pretende realçar o talento deste camarada que neste texto fala de uma grande mulher africana que eu conheci, de seu nome: Fanta Baldé.
Um grande abraço
Manuel Marinho
A bela homenagem à mulher africana
Caro Vítor Junqueira (, foto à esquerda, Pombal, 2007):
Ainda não tive o privilégio de conhecer (a não ser virtualmente) alguns camaradas que escreveram para o blogue e que o deixaram de fazer, deixando belos textos sobre a nossa passagem pela Guiné. Este é para mim um deles.
Por aludir a uma mulher que conheci, e por achar que este texto elogia todas as mulheres africanas que durante a nossa guerra nos aturaram, sem queixumes ou lamentos a propósito da nossa presença em guerra não desejada.
Vem isto a propósito do P1475** que descobri nas buscas que volta e meia faço para descobrir textos não lidos, e alguns deles ficam impressos para trabalho futuro. E não é que descubro um belo texto que se refere à Fanta de Farim?
Imediatamente leio, releio e fico pensativo a recordar essa mulher e o seu filho Mário.
Invejo-te por seres capaz de escrever um texto, que eu gostaria de ter escrito. Aceita os meus sinceros parabéns pelo excelente e brilhante texto sobre a Fanta, a tua puta de estimação, como carinhosamente a tratas, porque é de carinho que falas quando te referes à Fanta.
É um relato que eu guardo religiosamente como tributo à memória dessa mulher que tu de forma genial lhe prestas, não há melhor homenagem, ela ficaria muito feliz.
A minha 1.ª/ Bcaç 4512 chegou a Farim no dia 13 de Janeiro de 1973 onde 2 GComb ficaram em Nema e o restante da Ccaç foi para Binta. Só lá ficamos até 10/Junho/73, donde seguimos para Binta ficando sob o comando do COP-3 por causa de Guidaje.
Um “velhinho” da Cart 3359, que fomos render, era um camarada da minha cidade natal, que fez de cicerone para eu conhecer Farim e os seus recantos, levou-me a conhecer a Fanta que me foi devidamente apresentada, com todas as credenciais e os elogios ao seu trabalho.
Dizia ele que quando estivesse aflito com dores de amor fosse ter com a Fanta. Talvez por a tratar de forma decente e lhe mostrar afeição, não descurando a vontade que sentia dela, ela gostava de conversar comigo no pouco tempo que eu lhe podia dar atenção.
Mulher de boa conversação e de contagiosa alegria, não falava muito do pai do seu filho Mário, às perguntas que lhe faziam sobre ele, mas gostava de saber tudo o que acontecia por cá, e sabia de muitos lugares descritos fruto da sua vivência com os nossos militares.
Lembro-a sempre com ternura, pela sua permanente boa disposição, e por me tentar sempre que podia, no sentido de me desenfiar do aquartelamento de Nema para ficar em sua companhia.
Perguntava sempre por mim aos meus camaradas quando não me via, e uns mais sacanas lá diziam:
- O teu azeiteiro não está, mas descansa que ele vem.
Não que eu o não quisesse mas a actividade operacional intensa não permitia que eu ficasse fora, sob pena de levar uma porrada. E as regras eram muito claras no meu Gr Comb, ninguém podia ficar fora do aquartelamento.
Conheci muito bem o seu filho Mário, miúdo reguila, a quem quase toda a tropa dispensava especial carinho fruto da sua ligação a um camarada que por lá passou, e que só agora sabemos, graças a ti, o desfecho e o destino.
Dia 13 Abril 73
Esse foi um dos dias em que vim até Farim com camaradas beber umas cervejas e visitar as tabancas, no regresso a pé para o quartel, passo pela Fanta sentada junto a sua morança e ficamos a conversar eu e mais um camarada, os outros foram seguindo para o quartel.
O tempo foi passando, e a certa altura a Fanta diz-me para ficar com ela naquela noite. Não podia ser porque tinha de ir para o mato muito cedo, fica adiado disse-lhe, e ao olhar em redor ia pensando se não era perigoso ficar ali desprotegido e sem conhecer ainda bem aquela zona (apenas dois meses de Farim).
Chegados perto do quartel demos um berro para a porta de armas a identificar-nos, já passava das 23,00 horas, embora o camarada que estava à porta de armas tivesse sido alertado para o facto de ainda haver dois que estavam fora.
Fui tomar duche com a água barrenta de Nema, e só houve tempo de molhar o corpo porque logo a seguir ouve-se a saída característica de morteiro ou foguetão, toalha à cintura e corrida para a vala, ainda a avisar aos berros os camaradas que estavam já a dormir que havia ataque.
Na corrida para a vala fui projectado contra o arame farpado raspando o meu braço no mesmo, depois de alguns minutos de ataque (eram foguetões), já estávamos a receber ordens de preparar a saída para o mato para as primeiras horas da madrugada, só depois vi que tinha sangue no braço, tinha uns arranhões.
Logo aí pensei, o que seria se tivesse ficado com a Fanta? Disse-lho mais tarde e ela deu uma risada dizendo-me que nada me aconteceria enquanto estivesse ao seu lado.
Depois da nossa ida para Binta quando nos tocava ir a Farim (era raro porque a nossa sina era para Guidaje) escoltar colunas para reabastecimento a Binta, mal se passava junto da morança da Fanta ela já lá estava a saudar-nos.
Fiquei triste ao saber que morreu.
Aceita, caro Victor, que este modesto e pequeno texto se associe ao teu para também eu lhe prestar a minha homenagem à tua (nossa) Fanta de Farim.
Um grande abraço
Manuel Marinho
__________
Notas de CV:
(*) Vd. poste de 24 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7171: (Ex)citações (102): Sensatez e rigor no Nosso Blogue (Manuel Marinho / José Belo)
(**) Vd. poste de 31 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1475: Histórias de Vitor Junqueira (7): A chacun, sa putain... Ou Fanta Baldé, a minha puta de estimação
[...]
Não voltei a encontrar a Fanta. Confesso que durante muito tempo, após a passagem à disponibilidade, continuava a lembrar-me dela, com saudade. Tive vontade de regressar à Guiné para a visitar, saber se precisava de alguma coisa. Encontrei sempre desculpas para não o fazer.
Aproveito agora para comunicar a quem possa interessar que a Fanta Baldé faleceu em Julho de 2005 no Bairro Militar, em Bissau.
Como diz o povo na sua bondade: Paz à sua alma e que a terra lhe seja leve. [...]
Vd. poste posterior de 18 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4975: (Ex)citações (46): Se eu fosse mulher sentir-me-ia duplamente envergonhada... (Vitor Junqueira)
Vd. último poste da série de 9 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7249: In Memoriam (60): Morreu Fatemá, Mulher Grande de Sinchã Sambel (ex-Contabane), mãe do Régulo Suleimane Baldé (Paulo Santiago)
Guiné 63/74 - P7317: (Ex)citações (111): Mensagens de saudade… em tempo de Guerra! (José Marcelino Martins)
O nosso Camarada José Marcelino Martins, (ex-Fur Mil Trms da CCAÇ 5, Gatos Pretos, Canjadude, 1968/70), enviou-nos mais uma interessante mensagem, em 20 de Novembro de 2010:
Camaradas,
Junto um texto sobre um documento escrito em árabe, Não esquecer que para este texto contribuíram o nosso camarada Pacifico dos Reis e o nosso amigo Cherno, aliás sem a colaboração dele, este não existiria.
Envio, também, o relatório da operação que poderão publicar, caso o entendam.
Que tipo de documento seria/será? · Informação para uma força IN, algures na zona? · “Ordem de batalha” para as forças instaladas no Boé?
· Instruções para algum elemento “infiltrado na tabanca?
· ???
· ??????
A melhor resposta só podia chegar através de algum que fosse capaz de traduzir o texto ou, pelos seus conhecimentos, pudesse fazê-lo chegar à pessoa certa.
Reprodução fotográfica (parcial) do documento.
© José Martins
Aos primeiros minutos do dia 15 de Novembro de 2010, pelas 00:40 horas, remetemos a seguinte mensagem ao Cherno Balde, nosso amigo guineense:
“Meu caro amigo Cherno.
Chegou-me às mãos um papel que foi escrito há mais de 40 anos, que, como é natural, não consiga ler.
Assim peço-te o favor de, caso te seja possível e não ponha em causa ninguém, e especialmente o povo dessa nossa maravilhosa Guiné, o traduzas para depois o partilhar com os membros da nossa tabanca.
Em ti abraço todos os guineenses, desejando-lhes as maiores venturasUm fraterno abraço para ti.
José Marcelino Martins”
Poucas horas depois, pelas 14:16:30 o Cherno dava a resposta:
“Boa tarde amigo José Martins,
Se bem me recordo foi a partir do seu trabalho sobre as companhias metropolitanas de Fajonquito que consegui estabelecer ligação com o LG e por seu meio o Blogue da TG que tanto prezamos. No seu mais actual trabalho sobre a mesma matéria verifiquei que nós em Fajonquito estávamos enganados quanto a 2ª Companhia daquela quadrícula que indevidamente conotamos com Gadamael. Há uma pergunta minha sobre este aspecto nos comentários, que não obteve a resposta esperada. Se não se tratar do mesmo José Martins dos Gatos Pretos de Canjadude, então por favor queira identificar-se melhor para saber o que fazer em relação ao seu pedido.
Em princípio, deve tratar-se de um simples manuscrito em árabe arcaico que as pessoas que sabem ler alcorão facilmente poderão decifrar.
Um abraço amigo,
Cherno A. Balde”
Como não estou ligado em permanência à net, assim que li a mensagem, no dia 15 de Novembro de 2010 19:11, <josesmmartins@sapo.pt> escreveu:
“Sim meu querido amigo Cherno.
Sou o Gato Preto de Canjadude, José Martins, Furriel de Transmissões.
Também assino as minhas intervenções como José Marcelino Martins, quando apareceu um Capitão Miliciano, que se assinava por José Martins, e, para não haver confusões...
Um grande abraço
José Martins”
A 19 de Novembro de 2010 pelas 10:07:37 ao abrir a correio electrónico, tinha a resposta à pergunta que havia colocado ao nosso Cherno Baldé, na nossa altura um menino e, hoje, alem de Homem Grande é um GRANDE HOMEM. Apressei-me a agradecer-lhe e voltar a questiona-lo se via algum inconveniente na sua publicação.
Caríssimo Cherno
Estou muito grato pela tua colaboração na «descodificação» deste documento.
Haverá algum problema de divulga-lo no blogue, fazendo um post?
Recebe um abraço de grande amizade para ti e família
José Martins
Às 13:31:52 o Cherno respondia ao meu mail, dando “luz verde” á divulgação do texto em apreço, mas colocando, também, as suas perguntas que, tentamos responder com o presente texto.
Caro amigo José Martins,
O documento é teu, faz parte do teu/vosso espólio de guerra, suponho, e como tal não vejo qualquer inconveniente em que o tornes público, não se esquecendo que o tradutor limitou-se simplesmente a descodificar o conteúdo sem que fosse devidamente informado das circunstâncias concretas em que foi encontrado nem a finalidade que se pretende atingir com a sua publicação. De resto, também nós estamos curiosos e gostaríamos de conhecer a estória que está por detrás desta carta guardada cuidadosamente durante mais de 40 anos.
Um grande abraço,
Cherno AB.
Reprodução fotográfica do documento.
© José Martins
“Caro amigo José Martins
Na impossibilidade de o fazer pessoalmente, fui pedir ajuda a uns familiares formados na escola corânica que, sem qualquer problema, leram a carta, pois trata-se de uma epistola à maneira antiga, escrita por um Sr. cujo nome é Braima Sané que, naquele tempo se encontrava numa aldeia com o nome de Djaecunda, Djalicunda ou Djaucunda algures na região do Casamança (supõe-se) e dirigiu, provavelmente, a mesma para um familiar de nome Alfusseny Sané (Al-Hussein Sané) radicado em Canjadude, com mais ou menos o seguinte teor:
"Em nome de Allah, o Compassivo, o Misericordioso, o Senhor dos universos, que a paz e bênçãos de Allah estejam com o Profeta Muhammad S.A.W. (Sallal-láhu-alaihiwa sallam=Que Deus derrame a paz e a bênção sobre ele (o Profeta Muhammad).
De Braima Sané, na tabanca de Djaucunda para Alfusseny Sané na tabanca de Canjadude. Cumprimentos de paz para si e para toda a família. Eu Braima Sané, depois de algum tempo passado aqui (tabanca de Djaucunda), sinto uma grande vontade de regressar (para Canjadude), mas não tenho maneira/coragem de enfrentar o caminho sozinho. Estou com medo, muito medo de voltar sozinho. Por isso, peço-lhe que me envie uma pessoa de confiança para com ele fazer o percurso de regresso. O enviado deverá vir pelo caminho que passa pela localidade de Duridjal para chegar a Djaucunda. Os meus sentidos/espírito já não estão aqui e noite e dia estarei a espera da chegada do teu enviado, se possível que seja antes da festa do Idul-al-fitre (Ramadão). Tenha o cuidado de fazer tudo no maior segredo, longe das orelhas/ouvidos dos outros.
Wassalam (que a paz esteja contigo/connosco)."
Aceite um grande abraço,
Cherno Abdulai Baldé,
De Bissau, Republica da Guiné-Bissau.”
“A carta não chegou a Garcia”, quer dizer, não chegou ao destinatário, nem foi enviada ao escalão superior, nesta caso o Comando do Batalhão de Nova Lamego, na medida em que consultado um dos militares da companhia, de religião muçulmana, foi da opinião de que se tratava de “uma mezinha”, isto é, algo que permitiria ao detentor da mesma, a protecção contra o mal.
Não havia, portanto, razão para que a mesma fosse objecto de análise mais cuidada e, assim, ficou fazendo parte do espólio pessoal do comandante.
Este foi mais um “efeito colateral” da guerra que travamos. Não sabemos se Braima Sané, provavelmente um ancião, chegou a regressar a Canjadude, mas sabemos, pela leitura da carta, que sabia os riscos que essa deslocação envolvia.
Quase 42 anos depois deste episódio e 37 anos depois de terminada a nossa intervenção naquele território, resta-nos dizer, se é correcta a sua aplicação nestes termos, da última palavra do texto analizado:
Wassalam
(que a paz esteja contigo/connosco)
Pacifico dos Reis / Cherno Baldé / José Marcelino Martins
20 de Novembro de 2010
2. RELATÓRIO DA OPERAÇÃO “LAMAÇAL” (Coluna Canjadude – Cheche) em 26JAN69 – JP 6
01. Situação Particular (a mesma que em PR 2)
A Unidade encontra-se destacada em Canjadude com 02 Grupos de Combate, conjuntamente com a CART 2338, com um efectivo de 03 Grupos de Combate. Tem esta Unidade um destacamento em Cabuca com 1 Grupo de Combate e em Nova Lamego 1 Grupo de Combate.
02. Missão da Unidade
Escoltar uma coluna para trazer do Che-che todo o material e pessoal não necessário à defesa deste.
03. Força Executante
a) Capitão de Cavalaria Pacífico dos Reis
b) 1º Grupo de Combate da CART 2338 – Alferes Diniz
4º Grupo de Combate da CART 2339 – Furriel Martins
1º Grupo de Combate da CCAÇ 5 – Furriel Cardoso
3º Grupo de Combate da CCAÇ 5 – Alferes A. Sousa
Secção Comando Dragão
2 Guarnições do Pelotão de Reconhecimento Daimler 1258
c) 4 Grupos de Combate
d) 1 GMC (Sapadores + Secção de Comando Dragão + Comandante) – 1 Daimler - 1 GMC (1 Grupo de Combate da CCAÇ 5) – 1 GMC (Posto Rádio) - 2 Unimogs (1 Grupo de Combate da CCAÇ 5) - 1 Daimler – 2 Unimogs – 1 GMC (1 Grupo de Combate da CART 2338)
e) 1) ---------------
2) 2 Granadas de mão defensivas e 1 granada de mão ofensiva por homem; 2 elementos com dilagrama por grupo de combate.
3) -----------------
4) 5 Cunhetes 7,62 mm distribuídos pelas viaturas.
5) -------------------
6) Material de Transmissões: 5 National
2 Sharp
5 Onkyos
1 PRC-10
1 AN/GRC 9
04. Planos Estabelecidos
Seguir pela estrada Canjadude – Che-che, picando a estrada, com guardas de flanco esquerdo a cargo dos Grupos de Combate da CCAÇ 5 e guardas de flanco direito a cargo dos grupos de combate da CART 2338. Deixar em andamento os dois grupos de combate da retaguarda, emboscando em Sare Andebe e a 1 quilómetro do Che-che, que se retirariam para o Che-che caso a coluna não passasse por eles até às 15H00. Não havendo possibilidade de carregar tudo até às 14H00, a coluna aguardaria o dia seguinte para seguir para Canjadude.
05. Desenrolar da Acção
Partida de Canjadude em 260630JAN69. A seguir à bolanha a Sul de Canjadude começou a picagem e foram montadas guardas de flanco. Foram montadas duas emboscadas e imediatamente se alargaram os flancos para não dar a entender ao IN que tinha ficado pessoal para trás. Cerca das 10H45 ouviram-se rebentamentos seguido de forte tiroteio na região onde estava montada a emboscada a cerca de 1 Km do Che-che.
Saí imediatamente com dois grupos de combate para Oeste do Che-che de forma a cortar a retirada ao IN, pois os rebentamentos ouviam-se para esse lado. Apercebi-me, posteriormente, serem rebentamentos das granadas dos lança rocketes que passavam por cima das arvores e que o IN estava a Este.
Fomos dar com um vigia IN que se encontrava a cerca de 500 metros do Che-che a vigiar a nossa saída e que tinha feito algumas rajadas de PPSH quando da saída dos grupos de combate de socorro. Foi perseguido pela mata mas conseguiu fugir.
O pessoal de socorro recolheu ao Che-che e como se encontravam as viaturas carregadas e os T 6 só viriam as 15H00, mandei fazer fogo de morteiro 81 para os lados do Rio Campossabane, e mandei seguir a coluna para o local da emboscada para ser feita a batida da zona.
Foi feita uma batida com dois grupos de combate até ao Rio Campossabane, tendo sido encontrados diversos trilhos IN e algum sangue e diverso material.
Foi quando o comandante do pelotão emboscado relatou o seguinte: que se emboscara há cerca de meia hora quando foi informado que um grupo IN, de cerca de 40 elementos comandados por um branco, se dirigia para a clareira.
Foi ver e, realmente viu, o grupo IN dando mostras que estavam a escolher um local para montar minas a cerca de 200 metros. Alertou o pessoal e mandou iniciar fogo de Lança Granadas Foguete e Morteiro 60 cm e, quando o grupo se encontrava todo reunido uma granada caiu no meio do grupo.
Imediatamente de desencadeou a emboscada, tendo o IN fugido em todas as direcções. Da mata ripostaram com metralhadora pesada, lança rockets, PPSH e espingardas automáticas, devendo ser o grupo que se encontrava a montar a emboscada, enquanto o pessoal montava as minas.
O IN reagiu durante 10 minutos, seguindo-se a fuga. Em seguida à batida, a coluna seguiu para o local onde estava emboscado o outro grupo de combate, que se recolheu, seguindo a força montada, protegida pelos T 6, chegando a Canjadude em 261630JAN69.
06. Resultados Obtidos
Baixas possíveis:
1 Morto
5 Feridos
Material capturado:
3 Granadas lança rockets,
1 Carga de lança rocket,
4 Granadas de mão defensiva de origem checa ou chinesa,
1 Carregador da arma PPSH,
1 Carteira com diversos documentos de em nome de José Correia,
1 Estatuto da Caixa Nacional dos Trabalhadores da Guiné.
07. Serviços
2 Dias a ração de combate,
Água do Rio Corubal,
1 Sargento Enfermeiro e 2 Enfermeiros,
Munições consumidas:
Da CART 2338:
Munições 7,62 mm – G 3 1200
Granadas de mão ofensivas 2
Granadas de mão defensivas 25
Dilagramas 12
Granadas LGF explosivas 8
Granadas LGF fumos 4
Granadas morteiro 60 15
Da CCCAÇ 5::
Munições 7,62 mm – G 3 600
Granadas de mão ofensivas 8
Granadas de mão defensivas 12
Dilagramas 6
Granadas LGF explosivas 6
Granadas LGF fumos 3
Granadas morteiro 60 18
Granadas morteiro 81 8
08. Apoio Aéreo
Não houve apoio aéreo, nem T6 nem PVC, no deslocamento de Canjadude – Che-che.
Chegou às 2615300JAN69 acompanhando a coluna desde Sare Andebe até próximo de Canjadude
09. Ensinamentos Colhidos
- Não havendo contacto com a força emboscada por levar só um PRC-10, a força de socorro seguiu para o lado contrário, quando se fosse para a direita podia cortar a retirada ao IN:
- Um dispositivo que facilitou o sucesso foi os grupos de combate que emboscaram, terem-no feito em andamento, continuando sempre a coluna, o que permitiu que o IN não visse o pessoal a emboscar;
- O dispositivo era montar minas na clareira, montar emboscada na mata, enquanto um vigia avisava a nossa saída do Che-che. Emboscada igual feita a uma coluna em Maio de 1968.
10. Diversos
Munições:
Não saíram do tubo três granadas do LGF.
Transmissões:
Os E/R GRC-9, PRC-10, Onkyos e Sharp, funcionaram sempre em boas condições mantendo contacto durante todo o percurso.
Pessoal:
- Furriel Miliciano de Artilharia nº mecanográfico 04888665 António Lourenço da Costa Martins, da CART 2338, comandando um Grupo de Combate com um efectivo de 18 homens manteve a calma e a serenidade necessária para desencadear a emboscada no melhor momento com todas as armas do Grupo de Combate, sobre um grupo IN muito superior em número.
Com o seu avontade, energia e sangue frio, incitando os seus homens que aguentaram o fogo IN, superior em armamento, até à chegada da força de reforço. È de salientar por este comando a maneira disciplinadora e o trabalho operacional do Furriel Martins como comandante do 4º Grupo de Combate.
–1º Cabo nº mecanográfico 02496167, Mário Soares Moreira, Apontador de L.G.F., fez fogo de pontaria com o LGF para o meio do grupo IN, acertando no meio deste e continuando a fazer fogo de pé e seguido de forma a bater toda a zona onde se encontrava o IN. A sua calma, serenidade e avontade, foi salutar exemplo para todos os homens do seu pelotão.
- Soldado nº mecanográfico 04283266, António da Silva Loura Dias, da CART 2338, sendo apontador de morteiro 60 e tendo gasto todas as munições que estavam junto dele, correu por todos os elementos do grupo de combate, debaixo de fogo, para se renunciar levando-as para junto dele, continuou calmamente a fazer fogo sobre o IN, tendo batido toda a zona onde estes se encontravam.
- Soldado nº mecanográfico 82024168, Tungue Fute, avançou para um morro de mata cerrada onde se tinha detectado fogo IN de PPSH, em pé a peito descoberto a fazer lançamento de dilagramas.
Documentos Anexos
Material danificado e extraviado
01 – Causas que motivaram a danificação e extravio:
Passagem das guardas de flanco por mata cerrada. Contacto com o IN durante cerca de 20 minutos.
02 – Da CCAÇ 5
E/R Sharp 60736653 e 60736635, antenas partidas
Da CART 2338
E/R Sarp 60736122 e 60736143, antenas partidas
E/R Onkyo, antena extraviada.
José Marcelino Martins
Fur Mil Trms da CCAÇ 50
__________
Nota de M.R.:
Vd. último poste desta série em:
19 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7307: (Ex)citações (110): Se não discutir com os meus amigos que são diferentes, mas meus amigos, discutirei com quem? (José Brás)
Guiné 63/74 - P7316: Notas de leitura (175): África Dentro, de Maria João Avillez (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Preciso que alguém mais venha comigo, amanhã à noite, tenho carga a mais, ou deito fora as camisas e não levo artigos de higiene, ou é incomportável a caterva de livros, roupa e outras solicitações.
Se tudo correr bem, até vai ser comovente.
Tenho as fotografias das lavadeiras do Jaime Machado, vou visitar os Soncó em Bissau, ponto alto será a entrega ao director do INEP das cartas geográficas da Guiné, uma terna lembrança do Humberto Reis. E por aí fora. Aliás, devia ser o Humberto a vir comigo, tenho a certeza que vou borrar a escrita quando começar a tirar fotografias. Haja saúde, o que não tenho em talento é suprido pela profunda estima.
A aventura está prestes a começar.
Um abraço do
Mário
A Fundação Gulbenkian e a Guiné-Bissau
Beja Santos
Data dos anos 60 a intervenção da Fundação Gulbenkian num conjunto impressionante de projectos envolvendo as antigas colónias portuguesas, hoje os PALOP. A Gulbenkian dotara-se do Serviço do Ultramar, actual Programa Gulbenkian de Ajuda ao Desenvolvimento. As fundações, tal como os institutos ligados à cooperação e desenvolvimento da responsabilidade de alguns Estados desenvolvidos, tiveram a preocupação, durante os anos 70, de promover programas de combate à pobreza e à satisfação das necessidades básicas das populações. Esta e outras abordagens redundaram em fracassos, havendo hoje novas concepções que passam pela intervenção de forma conjugada de governos, organizações internacionais e grupos verdadeiramente representativos da sociedade civil, no pleno respeito pela cultura dos povos destinatários da ajuda. É esta a estratégia actual da Fundação Gulbenkian e em jeito de balanço desta nova lógica de trabalho, a Gulbenkian convidou a jornalista Maria João Avillez a visitar e a comentar a evolução dos projectos em marcha. Nasceu assim o livro “África Dentro”, por Maria João Avillez (Texto Editores, 2010).
Sumariamente, trata-se de uma reportagem que retrata o caminho percorrido pela Gulbenkian nas áreas da Saúde e da Educação em Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e S. Tomé e Príncipe. É um impressivo depósito de informação que abrange a construção de hospitais e centros de saúde, o investimento em saúde materno-infantil e na investigação de doenças infecciosas, programas de formação e valorização de recursos humanos, apetrechamento de bibliotecas, modernização do sistema educativo, são algumas das dimensões da intervenção da Gulbenkian nestes cinco países africanos, testemunhados pela jornalista neste livro.
Vamos falar da Guiné-Bissau. Maria João Avillez traça os principais aspectos da vida económica e social do país e refere os índices sombrios que abrangem os rendimentos, a esperança de vida, a mortalidade infantil e o analfabetismo, para destacar como a Guiné-Bissau se encontra destruturada, as instituições fragilizadas, com caos administrativo e índices elevadíssimos de corrupção. A visita começa pelo INEP – Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa, é aqui que se coordenam todas as actividades de investigação científica da Guiné-Bissau. O INEP opera num sistema de parcerias de cooperação com universidades e instituições portuguesas mas também com as de outros países como Brasil, Alemanha, Suíça e EUA.
Em conversa com o seu director, o antropólogo Mamadou Jo, são passados em revista os problemas e as actividades da instituição. O INEP foi altamente vandalizado durante a luta militar em 1998-1999, desapareceu uma parte fundamental do seu espólio. A Gulbenkian tem contribuído para a recuperação quer dos equipamentos quer do acervo documental. O INEP está orientado para três vectores da investigação: história e antropologia; área socioeconómica; e estudos ambientais, novas tecnologias e informática. O projecto da Faculdade de Direito de Bissau remonta ao final dos anos 80, baseia-se num protocolo de cooperação entre Portugal e a Guiné-Bissau no seu acordo de cooperação jurídica. Depois de muitas vicissitudes e interrupções nas suas actividades, fizeram-se provas de admissão dos novos alunos para o ano de 2001-2001. Este projecto é encarado como uma das pedras de toque para a consolidação do Estado Direito na Guiné-Bissau. Maria João Avillez viu aulas repletas de alunos, uma biblioteca frequentada, um rol de iniciativas em marcha. No ano de 2008 o número de alunos era de 390 e o total de licenciados, desde que a faculdade iniciou a sua actividade é de 2008. O Doutor Fernando Loureiro Bastos é o assessor científico da casa e relatou à jornalista não só as actividades docentes como a escolha dos bolseiros que permitirá que a Guiné-Bissau, a prazo, se dote de uma classe científica.
Um ponto alto da reportagem passa pela descrição da Fundação Evangelização e Culturas, criada pela Conferência Episcopal Portuguesa. Esta Fundação dá suporte a projectos do ensino básico e tem como grupo alvo professores, directores de escolas, formadores, bibliotecários e comunidades em geral. É uma reportagem esplêndida de vida e confiança no futuro, assenta num profundo estímulo à dignidade do ensino. A jornalista, aliás, visitou em Bissau um projecto de eleição que é a Escola António José de Sousa.
Passando para a área da saúde, a jornalista acompanha o trabalho da organização não-governamental de desenvolvimento comunitário VIDA, as suas unidades de saúde com destaque para o projecto Jirijipe que tem os seguintes objectivos: melhoria de acesso a cuidados de saúde materno-infantil; desenvolvimento de intervenções que possam envolver imunização, malária, infecções sexualmente transmissíveis; desenvolvimento do sistema comunitário de saúde. Também a Missão Católica Franciscana de Cumura tem sido apoiada pela Gulbenkian. Para além de um serviço de saúde pública de referência, dá-se assistência aos leprosos e aos doentes infectados com SIDA. A jornalista entrevista responsáveis da área da saúde e recolhe as expectativas desses dirigentes que confiam nas instituições de cooperação não só na luta contra as doenças como nos programas básicos de educação para a saúde. Recorde-se que a Gulbenkian está a apoiar a edificação dos três centros de saúde de Bissau. Não se escondem as tremendas dificuldades e carências com que vive todo o sistema de saúde, muitas vezes inoperante e quase sempre deficitário.
Esta “África Dentro” permite-nos uma informação básica sobre a cooperação da Gulbenkian nos projectos da educação e da saúde.
A seu tempo, deveremos constituir no blogue o menu de todas as instituições que actuam, com ou sem parcerias, na cooperação e no desenvolvimento na Guiné-Bissau.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 20 de Novembro de 2010 > Guiné 63/74 - P7310: Notas de leitura (174): Fuzileiros – Factos e Feitos na Guerra de África, Crónica dos Feitos da Guiné, de Luís Sanches de Baêna (3) (Mário Beja Santos)
domingo, 21 de novembro de 2010
Guiné 63/74 - P7315: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (8): Canquelifá e o desporto - Provas de Periquitos
Caro Vinhal
Ai vai mais uma das "Memórias boas da minha guerra".
Um grande abraço do Silva
Memórias boas da minha guerra (8)
PROVAS DE PERIQUITOS
Viviam-se dias calmos naquela “estância termal” de Canquelifá, no nordeste da Guiné, no final da comissão. O trabalho limitava-se a serviços de manutenção e a alguns pequenos patrulhamentos, a nível de Pelotão.
A população nativa cuidava pacatamente do seu gado, enquanto alguns deles vigiavam o “inimigo”, em cima de palanques feitos de troncos de árvores, colocados no meio do mancarral. De lá gritavam impropérios em idiomas locais, afugentando o “inimigo” – bandos de periquitos – ao mesmo tempo que lhes atiravam pedras, evitando que comessem os amendoins.
O Silva e a sua periquita
Dado o interesse da tropa por esses pássaros encantadores, para os apanharem e, por vezes, para os venderem, colocavam cola na rama da mancarra (amendoim), que os prendia pelas asas.
Ora, o pessoal da Cart 1689 andava entretido com um novo desporto: competições com periquitos e com um novo divertimento de domesticar periquitos.
As cenas abaixo descritas decorrem na parada, local espaçoso e apropriado para a actividade desportiva, aqui levada ao mais alto nível. A assistência era considerável.
Faziam-se apostas e ouviam-se os mais variados comentários.
- Força Spartacus! Anda, que vamos ganhar! – gritava o Mafamude.
- Força Ben Hur! Ataca, que até os comemos! - gritava o Matosinhos.
Um e outro em tronco nu e a transpirar ao sol, procuravam, através da imagem verbal, aproximar o seu desempenho ao dos respectivos ídolos bíblicos, promovidos pelo cinema, mas o físico de 1,50 e picos não estava compatível com tais ideias.
A inspiração nas quadrigas romanas, encontrou eco nas latas de conserva, que reluziam mais que os ditos carros das quadrigas, seguramente devido à limpeza prévia das formigas.
Tanto um como outro, os periquitos em competição (quais “aprendizes de equídeo”), de voos cortados e presos ao atrelado, lutavam entre si para alcançarem em primeiro lugar o ramo de mancarra colocado na meta traçada no chão, uns metros à frente.
Nesta final ganhou o periquito do Matosinhos porque, de repente, lhe mostrou uns amendoins já descascados. O Mafamude gritava pelo árbitro Nogueira (futuro árbitro da elite do nosso futebol) para reclamar:
- Não vale, não vale, este gajo fez trafulhice!
Ali mesmo, a cerca de 20 metros, decorria, em simultâneo, outra final de competição:
- Corre Djando, corre e come-lhe a mancarra – gritava o Sousa.
- Sprinta Jaburu, não sejas morcon - repetia o Tripeiro.
A mancarra era colocada no centro da meta e os periquitos, soltos em simultâneo, corriam para lá.
Ganhou claramente o Jaburu que atravessou a meta em primeiro lugar, seguindo em direcção ao Tripeiro que, mesmo em frente, lhe acenava com um porta-chaves brilhante, com o emblema do FCP.
Nova reclamação, junto do Nogueira, que foi “injustamente” aceite. O reclamante alegou “que o periquito fora escravizado para seguir cegamente esse emblema e não ligou nada à competição ”.
Ainda na mesma zona, já perto da messe, podia assistir-se aos mais variados treinos, tendo também em vista a superação do esforço e a optimização da técnica, aliás bem patente mais na vontade dos treinadores do que na dos competidores - periquitos. Numa primeira fase, o treino consistia em mandar o periquito saltar de um dedo indicador para o outro.
- Salta periquito! Salta!
O treinador Bazaruco aposta tudo no:
- Salta, filho da puta! Salta, se não dou-te cabo do canastro!
Mas o Varzim, tinha outros modos. Acariciava o seu pupilo e dizia-lhe baixinho:
- Salta Tarzan, que eu arranjo-te uma Jane! Salta!
O Dias, açoriano, também andava entusiasmado com essas sessões de treino matinal. Curiosamente, tal como o Fiscal, não tinha sorte com os seus amestrados, possivelmente devido ao hálito repelente que exalavam. O Fiscal, que ressacava continuamente nas manhãs do dia seguinte, nunca estava em forma e não conseguia os seus intentos. Mas isso era, também, porque quase todos os dias mudava de instruendo. Já tinha os dedos cheios de adesivos, devido às trincadelas que lhe davam. Normalmente, vingava-se de forma cruel. Por sua vez, o Dias, além da habitual ressaca, exibia um sorriso tenebroso, devido às deficiências dentárias, capazes de repelir qualquer periquito…
Ali próximo, estirado na rede à sombra das mangueiras, com as mãos atrás da nuca, o Alferes, que acabara de mastigar algum mata-bicho, ia soltando gargalhadas. E eu, noutra rede, não ria tanto como ele, apesar de estar a ler uma das obras proibidas do José Vilhena.
De repente, o Dias dá um grito enorme:
- Ah seu grande filho da puta! – ao mesmo tempo que sacudiu fortemente a mão direita com o periquito ainda mordendo tenazmente o dedo indicador. Quando o periquito se desprendeu, bateu no chão com tal força que, depois de um palrar meio cacarejado, ficou morto no chão.
O Dias seguiu, uma vez mais, para a Enfermaria e o Alferes levantou-se, agarrou no desgraçado por uma pata e chamou em voz alta na direcção da cozinha:
- Ó Faxina, Faxina! Prepara mais este!
Silva da Cart 1689
"O sorriso do Dias" (ao fundo, vę-se o Condesso compenetrado a escrever, alheio aos festejos apalhaçados dos gajos da 1689 - festejava-se mais um mês de degredo)
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Notas de CV:
(*) Vd. poste de 22 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7159: Outras memórias da minha guerra (José Ferreira da Silva) (5): Até beber urina
Vd. último poste da série de 8 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6951: Memórias boas da minha guerra (José Ferreira da Silva) (7): O Miranda e a sua adoração pelo Fê Quê Pê
Guiné 63/74 - P7314: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (36): Teixeira Pinto, uma nesga do Paraíso
Amigo Vinhal
Para a “Viagem à volta das minhas memórias” segue mais um apontamento que recordo, talvez pela coincidência das situações não usuais ocorridas, que publicarás se assim o entenderes.
Um abraço para ti e outro para todos
Luís Faria
Viagem à volta das minhas memórias (36)
Teixeira - Pinto – uma nesga do Paraíso
Após o dia fatídico, a 2791 continuou nos seus registos operacionais por mais uns tempos naquelas matas.
A 1 de Outubro de 1971 apresenta-se na FORÇA, em substituição do Cap. Mil. Art. Mamede de Sousa, que foi para o COMCHEFE, o Cap. Q.P. Inf. de sua graça Teixeira Branco que nos irá comandar por dois períodos de intervenção intercalados.
De estatura mediana, ao arredondado e cabeça com pouco pêlo, corria a informação que tinha os tomates no sítio e tirara um curso nas Forças Especiais Americanas, pelo que algum do Pessoal começou a pensar que a partir dali íamos estar ainda mais fod…
Não foi essa a minha opinião e logo aquando da apresentação à Companhia, pelo seu posicionamento fisionómico, seu modo de olhar e atitude observadora, pareceu-me ser um condutor de homens, sem manias de bom ou de complexos de comando, que zelaria pelos seus subordinados e os defenderia se a isso houvesse necessidade, direito e justeza, sem medo de eventuais consequências. Acabaria por dar provas disso mesmo, a muito curto prazo.
Os dias foram-se passando e uma bela noite, chamou-me ao seu quarto e debruçados sobre o mapa informou-me que iríamos sair de madrugada para determinada zona, sem objectivo específico, em que ele participaria, mas no entanto o comando estaria a meu cuidado. Lembro-me que não estranhei a situação, mas já não recordo por que razão não ia Alferes, o que também já havia acontecido antes. Era sabedor que os GRCOMB estavam cansados, em especial que o meu estava a precisar de uma paragem operacional e olhando-me deu-me a entender, não o dizendo, que não seria necessário andar aos tiros a não ser que a isso fossemos obrigados. Traduzi para mim que uma “baldazita” não seria má de todo, mas para isso não podíamos ser detectados na entrada da mata… o resto talvez fosse viável. Íamos ver.
Na madrugada é feita na parada a apresentação do Pessoal a um Cap. Branco que, como único armamento traz a Walter no coldre à cintura. Fico surpreendido e ao mesmo tempo afiro da sua confiança em nós. A Rapaziada bem armada, como costume salta para as viaturas e arrancamos.
Entrados na mata, a progressão e o seu sentido é de molde a procurar não provocar maus encontros, sendo os vários descansos feitos, alongados e silenciosos. Creio que nessa saída não houve PCA
As horas foram-se escoando, ouvindo-se um ou outro curto matraquear ao longe. Num desses descansos pela tarde, estávamos numa mata atapetada de verde, com arvoredo de médio porte e copas frondosas. O dia solarengo parece convidar a uma sorna que, na certa desejada, é inviável. Para além dos cantares da passarada que parece não se dar conta da nossa presença, recordo a presença elegante de uma gazela na proximidade que, de narinas no ar e aparentemente não detectando ou não se intimidando com a nossa presença, continua na sua actividade.
Feito o controlo de segurança, escolho o meu lugar e posiciono-me de encosto a uma árvore. O tempo vai passando e aquele lugar, recordo, parece-me um pequeno Paraíso, até que, ao atentar na minha direita, fico surpreendido e em tensão, quando detecto à distancia de uma G3, um grosso cepo aflorando da erva, que mais não é do que uma bela e avantajada surucucu (?), enrolada e dormindo a sono solto, descansada. Olha se se tinham sentado nele!? Agora já só faltava a Eva - Adão já éramos muitos - para aquilo ser o Paraíso verdadeiro!
Catana não havia, dar-lhe um tiro estava fora de questão e usar a faca, nem pensar… não fosse ser o diabo tecê-las! Assim, aqueles longos minutos foram-se arrastando e passados a observar atentamente, mesmo atentamente a bicha, com a G3 empunhada pelo cano como se de um cacete se tratasse, pronto a desferir o golpe que deveria ser, se não fatal ao menos atordoador, caso a vizinha abrisse um olho e despertasse.
Feito o descanso, levanta-se arraial e a Rapaziada vai passando em silêncio por mim e pela cobra, que continua o seu sono reparador, ao calor da tarde. Pena aquela pele ter que por lá ficar, pois daria um bom par de sapatos e uma bela carteira (!?) penso. Aviso e incorporo a fila entre os últimos, seguindo para diante.
A operação continua, acabando felizmente sem quaisquer incidentes. Chegados a casa e dada a ordem de destroçar, para minha surpresa reparo que o diabo dos sapatos e da carteira nos tinha acompanhado.
A partir daí, o meu 2.º GRCOMB irá entrar em alguns dias de descanso, bem merecidos.
Luís Faria
Nota de CV:
Vd. último poste da série de 24 de Outubro de 2010 > Guiné 63/74 - P7172: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (35): Teixeira Pinto - Enfiamento da morte
Guiné 63/74 - P7313: As Nossas Tropas - Quem foi quem (6): Hélio Esteves Felgas, Maj Gen (1920-2008)
(viii) Considerava que a solução para a Guiné não era militar mas política;
(x) Condecorado com a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito (1970), passou compulsivamente à Reserva, a seguir ao 25 de Abril, data em que estava em comissão de serviço em Angola.
Já aqui publicámos a última parte do depoimento ("algumas considerações acerca da Guiné Portuguesa"), onde ele é intencionalmente polémico, comparando a Guiné com o Vietname... Nessa parte do livro (pp. 135 e ss.) , ele revelava - 27 anos depois ! - algumas ideias do relatório que terá enviado, no final do ano de 1968, ao General Spínola, "onde defendia que a concessão da independência à Guiné Portuguesa não iria agravar, antes pelo contrário, a situação em qualquer das outras Províncias Ultramarinas" (p. 135).
Outra peça de antologia é o seu relatório da Op Lança Afiada, onde não se coibe de fazer críticas à falta de apoio aéreo e de outros meios (não-participação das forças pára-quedistas e dos fuzileiros).
2. Alguns comentários de camaradas nossos, face à notícia do seu desaparecimento (em 24/6/2008):
Paz à sua alma a guerra, não resolve nada, veja-se os casos de todos os Países ou negociaram livremente ou aconteceu-lhe o mesmo que a Portugal, ter que negociar sem condições para o fazer.
25/6/2008
Foi meu comandante,fiz parte da Operação Lança Afiada que contou com 12 Companhias, entre elas a minha, e o resultado ao fim de 11 dias foi um absoluto fracasso, mas não sabia que [ele] defendia que a Força Aérea arrasasse populações inteiras desde que controladas pelo IN. Só que tenho a certaza de que a FA nunca aceitaria essa missão. Paz à sua alma.
Hilário Peixeiro
Cap de Infantaria na altura
3. Reprodução da 4ª (e última) parte do depoimento do então brigadeiro Hélio Felgas (*). Selecção minha [ além da revisão e fixação de texto] e do Humberto Reis. Fonte: Os últimos guerreiros do império (Amadora: Erasmo, 1995. 135-139) (com a devida vénia...)
Trata-se do Capº III de um relatório que o então coronel, comandante do agrupamento de Bafatá , enviou ao General Spínola, "então meu Comandante-Chefe, onde defendia que a concessão da independência à Guiné Portuguesa não iria agravar, antes pelo contrário, a situação em qualquer das outras Províncias Ultramarinas".
Nesse documento Hélio Felgas defendia igualmente o seu ponto de vista segundo o qual "só no campo político podia ser encontrada uma solução honrosa e vantajosa, já que as nossas possibilidades militares se encontravam muitos reduzidas", face a um inimigo que se fortalecera em demasia.
No capítulo III do relatório, o autor debruça-se sobre "as nossas possibilidades militares". Algumas das suas frases, merecem destaque:
(i) "Não é com os actuais meios, mesmo reforçados, que podemos vencer o Inimigo de hoje".
(ii) "Ou se faz a guerra ou se acaba com ela. Assim é que não chegaremos a qualquer solução favorável".
(iii) "Há que abandonar radicalmente largos pedaços de território e concentrar os meios em áreas reduzidas que deverão ficar totalmente passadas a ferro".
(iv) "Há que empregar largamente os desfolhantes e outros agentes químicos que destruam as culturas".
(v) "Ou se destrói tudo ou de nada serve a operação".
(vi) "Deve ou não deve a Aviação atacar e destruir estas tabancas e a sua população ? Valerá a pena um tal massacre ou não valerá? Isto é que é preciso saber (...)".
(vii) "Calculando, por baixo, os efectivos In na Guiné, diremos que ele [o IN] tem 10 000 homens em armas (só combatentes). Nós temos 20 000, mas uma boa parte é consumida nas guarnições dos aquartelamentos. Precisaríamos ter 60 000, pelo menos. E, mesmo assim, a proporção seria de 1 para 6, o que, neste tipo de guerra, é ainda pouco".
(viii) "(...) o problema não é essencialmente militar. É acima de tudo, político".
(...) As nossas possibilidades militares
Neste final de 1968 a situação militar na Guiné chegou a um ponto tal que só muito dificilmente e com muito optimismo se poderá antever uma melhoria significativa.
Nos gabinetes e em frente da carta talvez não seja difícil encontrar-se uma solução vitoriosa. Os cercos, as batidas, os golpes de mão, o reordenamento das populações e sua autodefesa, tudo isso é aí fácil de fazer. No mato, porém, é muito difícil, e quem escreve isto tem 3 anos de mato.
Mesmo que venham mais helicópteros, mais páras, mais Artilharia e mais Aviação e ainda que os efectivos das forças terrestres sejam aumentados e estas sejam adequadamente dotadas com as granadas, munições e armas colectivas que agora lhes faltam, mesmo que isso suceda em breve prazo, nem assim o nosso êxito militar será garantido. O inimigo está demasiado bem armado, bem apoiado pela população, bem organizado e bem enraizado num terreno que lhe é favorável, para poder ser batido e expulso, pelo menos com a facilidade que se julga.
Realize-se uma operação em larga escala e veja-se o resultado: uns mortos e uns feridos (nossos e deles), umas armas apreendidas, uns acampamentos destruídos e que mais ? Mais nada. Se ao Inimigo não convier o contacto, basta esconder-se no mato e esperar que as nossas tropas se retirem. Ele lá ficará e reaparecerá quando quiser, talvez até emboscando as NT quando elas, julgando-se vitoriosas, regressarem aos aquartelamentos.
Aliás, o que se entende por uma operação em larga escala ? 4 on 5 companhias de forças terrestres, uma ou duas de páras e comandos e a Aviação. Que faremos com estes efectivos? Uma operação, mais nada. Alguns dias depois tudo estará na mesma.
Não é com os actuais meios, mesmo reforçados, que podemos vencer o Inimigo de hoje. Em minha opinião, toda a actividade militar na Guiné tem de ser mudada. Há que abandonar radicalmente largos pedaços de território e concentrar os meios em áreas reduzidas que deverão ficar totalmente «passadas a ferro». A actual dispersão não pode dar qualquer resultado.
Ou se faz a guerra ou se acaba com ela. Assim é que não chegaremos a qualquer solução favorável.
Há que empregar largamente os desfolhantes e outros agentes químicos que destruam as culturas. De que serve atacar um acampamento IN se a um quilómetro de distância ficaram tabancas e lavras que voltarão a ser utilizadas pelo IN, apoiando-o e permitindo-lhe que lá se mantenha? Ou se destrói tudo ou de nada serve a operação.
O que é preciso definir bem é este problema da população civil sob controlo do IN. Dezenas de milhares de nativos vivem nas regiões sob domínio do IN, em tabancas perfeitamente visíveis do ar. Deve ou não deve a Aviação atacar e destruir estas tabancas e a sua população ? Valerá a pena um tal massacre ou não valerá? Isto é que é preciso saber, pois enquanto estas populações existirem, o IN aguentar-se-á, estruturar-se-á e estará em condições de nos incomodar.
Apesar desta desproporção, o Vietcong não foi vencido e esta prestes a vencer. Na Guiné, o IN não é tão bom combatente como o Vietcong e o apoio externo que tem recebido, agora importante, não se compara com o que a Rússia e a China concedem ao Vietcong. Essas são as duas principais diferenças que notamos. Aliás, em parte compensada pela deficiência dos nossos efectivos, do nosso armamento, da nossa instrução militar, do nosso apoio aéreo e naval.
Para podermos dominar a guerrilha na Guiné precisaríamos triplicar, pelo menos, os efectivos agora existentes nos três ramos das forças armadas. E mesmo assim ficaríamos longe da proporção vietnamita (que não foi suficiente, note-se, para se obter a vitória militar). Calculando, por baixo, os efectivos In na Guiné, diremos que ele tem 10 000 homens em armas (só combatentes). Nós temos 20 000, mas uma boa parte é consumida nas guarnições dos aquartelamentos. Precisaríamos ter 60 000, pelo menos. E, mesmo assim, a proporção seria de 1 para 6, o que, neste tipo de guerra, é ainda pouco.
Eu bem sei que quem não conhece o mato da Guiné, nem as dificuldades deste tipo de guerra, sente-se inclinado a considerar exageradas as minhas palavras. Infelizmente, tenho a certeza do que afirmo. Deixou-se o IN inchar demais para se poder agora desalojá-lo com os meios que temos.
Esta afirmação pode parecer chocante, em especial para as pessoas que não conhecem o assunto com a profundidade que eu conheço. E com certeza que não me acarretará simpatias ou louvores, em especial por parte das pessoas que só gostam de ouvir aquilo que lhes agrade. É evidente que eu ficaria muito mais bem visto se traçasse o quadro da situação militar na Guiné, muito mais optimista, ainda que menos verdadeiro. Talvez até fosse louvado se afirmasse que a guerra na Guiné, tendo chegado ao ponto a que chegou, se pode vencer no campo militar e sem grande dificuldade.
Mas isso não o faço eu, até porque a euforia duraria pouco e seria, em breve, desmentido pelos factos. Eu desejo salientar que só pode mostrar-se optimista a quem conhecer a guerra da Guiné apenas do seu gabinete ou da sala de operações. Eu desejo afirmar que não estou imbuído de qualquer sentimento derrotista. Continuo a demonstrá-lo no mato, mantendo uma actividade ofensiva a que não poupo os meus subordinados nem me poupo a mim. Mas o que acho é que chegou a altura de se dizer a verdade. E a verdade é que, na Guiné, estamos apenas aguentando a situação. Estamos à espera que o IN adquira suficiente estrutura e capacidade militar para correr connosco. Limitamo-nos a espicaçá-lo e ao de leve. Mostramo-nos incapazes de o desalojar definitivamente seja de que área for.
E tudo isto porque não temos meios nem efectivos militares adequados e suficientes. Mas ainda que os tivéssemos e que conseguíssemos empurrar o IN em todas as frentes, até às fronteiras, que faríamos depois? Como conseguiríamos evitar novas infiltrações enquanto o Senegal e a República da Guiné derem a ajuda que dão ao PAIGC ?. A guerra no Vietname ensina-nos que o bombardeamento do Senegal ou do República da Guiné não resolveria o problema, pelo contrário, complicá-lo-ia. E isto porque o problema não é essencialmente militar. É acima de tudo, político, a guerra na Guiné só pode acabar se Portugal conseguir convencer o Senegal e a República da Guiné a deixarem de auxiliar o PAIGC ou qualquer outro movimento cujo objectivo seja independência da Guiné-Bissau.
Não nos parece, porém, que em face da mentalidade internacional agora vigente, alguém bem informado considere possível Senegal ou a República da Guiné apoiarem a nossa política ultramarina. Porque só apoiando essa política os governos de Dakar e Conacri poderiam suspender o auxílio ao PAIGC (...). (**)
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Notas de L.G.:
(*) Vd. poste de 9 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLIII: Antologia (32): depoimento de Hélio Felgas (4): "Ou se faz a guerra ou se acaba com ela