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Queridos amigos,
Vale a pena insistir na importância da panóplia de entrevistas incluídas em “O Meu Testemunho” de Aristides Pereira*, bem como o apenso documental, textos do maior relevo para a compreensão da história do PAIGC e também, por tabela, da política portuguesa.
A narrativa do secretário-geral do PAIGC é frustrante, há momentos em que nos questionamos quanto à péssima estruturação dos dados, a gravidade das omissões, a extensão dos silêncios. Não é difícil concluir que vamos esperar muito tempo até aparecer uma história do PAIGC suficientemente abrangente e elucidativa e que não seja alvo de uma contestação fundamentada.
Um abraço do
Mário
O testemunho de Aristides Pereira (2)
Beja Santos
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Em 2003, data da publicação desta obra, Aristides Pereira já dispunha de um distanciamento que lhe permitia ir muito mais além do que a elaboração de um modesto relatório de prestação de contas, com uns pozinhos apologéticos e a compreensiva admiração por Amílcar Cabral. O seu testemunho é tímido, está pejado de silêncios e até de omissões graves. Não consegue ter o voo a que se permitiu Luís Cabral que escreveu o seu depoimento numa prisão e certamente sem documentos para consultar. Vai escrevendo recorrendo a outros plumitivos, testemunhado com outros testemunhos. Incapaz de dar substância à doutrina então vigente da unidade Guiné-Cabo Verde, recorre a um texto inverosímil sobre o sistema colonial português em Cabo Verde, que é um verdadeiro tiro no pé, parece estar ao serviço de todos aqueles que sempre contestaram o projecto da união orgânica dos povos da Guiné e das ilhas de Cabo Verde.
Por absurdo que pareça, o seu testemunho passa a ser importante pela variedade das entrevistas recolhidas por Leopoldo Amado e o enriquecimento que traz o apenso documental. É por isso que recomendo a leitura de “O Meu Testemunho, versão documentada”, por Aristides Pereira, Editorial Notícias, 2003 (insisto que se trata da versão documentada, com quase 1000 páginas).
Retomando o fio da narrativa, entra-se na luta clandestina da Guiné, o autor dá-nos o ambiente das independências nos territórios limítrofes e a emergência de diferentes grupos norteados pelo espírito libertador: Movimento de Libertação dos Territórios Sob a Dominação Portuguesa, criado em 1959 na República da Guiné, com o enquadramento do médico são-tomense Hugo Azancot de Menezes, que estava em contacto com Rafael Barbosa, ainda muito activo em Bissau. Recorde-se que o PAI (Partido Africano da Independência) fora fundado em Setembro de 1956, na Guiné, e passara a dispor de células em Bissau, Bolama e Bafatá. Rafael Barbosa foi um dos impulsionadores do MLG – Movimento de Libertação da Guiné a que aderiram Inácio Semedo e Fernando Fortes.
É um período de grande mobilização e de grande turbulência ideológica, a situação só começou a clarificar-se quando o MLG e o PAI aceitaram a liderança de Cabral e de Barbosa, diferentes dissidentes tornaram-se acérrimos adversários do PAIGC ou aderiram a novos grupos, sediados em Dakar e Conacri. Em 1961, acontece uma grande vaga de prisões, os militantes foram desterrados para o Tarrafal, outros foram sujeitos a medidas administrativas de fixação de residência por 4 anos, uns na Ilha das Galinhas, outros no campo de São Nicolau, no deserto de Moçâmedes. A prisão de Barbosa leva a que a actividade política que todos aqueles que hostilizavam o PAIGC se tivessem transferido para o Senegal e para a República da Guiné. É em Conacri que Cabral é forçado a uma campanha de esclarecimento junto das autoridades para explicar a diferença de atitudes entre os movimentos de libertação, revelando mesmo os cadastros de alguns dirigentes como gente que tinha colaborado com administração colonial portuguesa, ladrões, fugitivos à justiça, provocadores a trabalhar para a PIDE, etc. Trata-se de um documento inédito depositado no arquivo do PAIGC, é digno de reflexão.
Ganha interesse e deve ser lido a par do depoimento de Luís Cabral o capítulo sobre a mobilização, acção directa e o início da luta armada na Guiné-Bissau. O massacre do Pindjiguiti fora assumido como uma lição, tal como disse Amílcar Cabral, “Nós fizemos asneira aqui. Fomos mexer onde o inimigo é mais forte, na cidade. Vamos sair daqui, vamos mobilizar os camponeses, lá o inimigo tem pouca força. Em Conacri é criado o lar dos combatentes, que acolhia voluntários, vinham receber explicações sobre os objectivos da luta. Rafael Barbosa ufanava-se de ter mandado para lá mais de 500 pessoas. Finda a preparação ideológica e política em Conacri, uns passaram directamente à mobilização dos camponeses, outros foram doutrinados em Nanquim, na China, caso de Nino Vieira. O PAIGC começa a ser pressionado de várias direcções: o MLG de François Mendy ataca no norte da Guiné e em Agosto de 1961 Amílcar Cabral anunciou a passagem à acção directa, a par de ter desencadeado uma ofensiva de sensibilização junto das Nações Unidas.
O capítulo sobre a mobilização e as perspectivas da luta armada em Cabo Verde tem utilidade para se entender o trabalho desenvolvido por Cabral e perceber como a rede clandestina do PAIGC em Cabo Verde foi sendo desmantelada e, com o tempo, houve o entendimento não haver condições para a luta armada em Cabo Verde. Aristides Pereira refere-se sumariamente à batalha de Como e ao congresso de Cassacá.
Vale a pena citar aqui um parágrafo para se perceber como o autor recusa aprofundar as situações de tensão e como estas eram totalmente desconhecidas pela direcção do PAIGC: “Numa digressão que Luís Cabral fez a Quitafine, no sul da Guiné, houve gente que se encheu de coragem e lhe deu conhecimento de comportamentos condenáveis da parte de certos sectores responsáveis que cometiam desmandos e abusos de poder, que iam desde o consumo exagerado de bebidas alcoólicas e castigos corporais até ao abuso sexual e fuzilamento de populares. Esses crimes estavam a provocar uma desconfiança cada vez maior das populações em relação ao PAIGC e à sua direcção”. Não deixa de inquietar a serenidade do escrito, há cerca de um ano, pelo menos, que se lutava e vivia em acampamentos, como é que era possível a direcção do PAIGC desconhecer estes desmandos.
A luta político-diplomática do PAIGC foi ganhando solidez, certificou o reconhecimento de uma luta cada vez mais intensa que logo em 1963 obteve posições muito fortes no sul, no leste e na região do Morés. Saltando para a chegada de Spínola, que introduziu um quadro novo de acções sociais e económicas com o chamamento das populações fiéis através dos chamados Congressos do Povo, o PAIGC viu-se obrigado a responder a uma acção psicológica devastadora intensificando os seus ataques.
E assim se chegou à proclamação da independência do Estado da Guiné-Bissau que Amílcar Cabral começara a anunciar desde 1965. Esta proclamação, escreve Aristides Pereira, só veio a revelar-se aceitável quando, a partir de 1969, o PAIGC reforçou a sua acção diplomática, com resultados nitidamente desfavoráveis a Portugal. Nesta fase, do ponto de vista militar, a situação ainda era estacionária. A missão especial das Nações Unidas à Guiné, de 1 a 8 de Abril de 1972, deu às Nações Unidas uma base concreta para conceder ao PAIGC novas formas de ajuda, aos poucos passou a ter acolhimento, mesmo com o estatuto de observador, junto de certas agências da Nações Unidas. Em 1971 Cabral produziu um documento intitulado “Para a criação da Assembleia Nacional Popular”, que serviu de guia ao referendo que levou à constituição da Assembleia Nacional e dos órgãos do Estado, iniciativas que Aristides Pereira descreve com algum pormenor.
E assim se chegou, em termos históricos, ao assassínio de Amílcar Cabral.
(Continua)
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Notas de CV:
(*) vd. poste de 20 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8141: Notas de leitura (230): O Meu Testemunho, uma luta, um partido, dois países, por Aristides Pereira (1) (Mário Beja Santos)
Vd. último poste da série de 26 de Abril de 2011 > Guiné 63/74 - P8169: Notas de leitura (233): Triste vida leva a garça, de Álamo Oliveira (Mário Beja Santos)