
Queridos amigos,
Esta biografia romanceada, com episódios dignos da mitologia e da saga patriótica, vale pelo que vale. Foi a primeira biografia, o que se estranha é que o jornalista não tenha medido as consequências de que o panegírico tinha buracos e remendos, que tudo (ou quase tudo) se iria desvendar mais tarde.
Agora mudo de agulha.
Tenho outros panegíricos para ler, os de Horácio Caio e José Manuel Pintasilgo, ao serviço da propaganda de Marcelo Caetano. Ando a folhear o livro histórico, a grande preciosidade de JERO que o nosso confrade Belmiro Tavares depositou nas minhas mãos, o seu diário referente ao primeiro ano de comissão da CCAÇ 675 que saiu de uma tipografia, em 1965.
Afinal, não foi só o Armor Pires Mota quem escreveu diários em 1965. E o nosso confrade António Marques Lopes enviou-me as conversas com o comandante Bobo Keita que trazem algumas revelações surpreendentes.
Enfim, trabalho não me falta, como nos contos das 1001 noites.
Um abraço do
Mário
Amílcar Cabral, a biografia romanceada de Oleg Ignátiev (2)
Beja Santos
O principal mérito desta obra reside na cimentação cronológica, o jornalista soviético conhecia com alguma profundidade a formação de Amílcar Cabral e o percurso da sua formação. Daí que, nos traços essenciais, o itinerário do líder do PAIGC em Cabo Verde, Lisboa, Guiné, Lisboa, Angola, um saltitar entre a Europa e norte de África, a fixação em Conacri, etc., apareça correcto. Pode até entender-se que tenha procurado escrever, por imperativo ideológico, um retrato biográfico de hagiografia, um mártir de causas, um visionário impoluto, um marxista visionário mas agradecido às múltiplas ajudas de Moscovo. O que se torna completamente incompreensível é confundir a propaganda do PAIGC com a visão que ele próprio devia ter dos acontecimentos e da realidade da luta política e militar que se travava na Guiné.
Ele fala do congresso de Cassacá como se este tivesse sido um evento pré-programado. Luís Cabral e Aristides Pereira deixaram bem claro que Cassacá foi uma reunião que se transformou imprevistamente num congresso, durante 30 horas sem pausa Amílcar Cabral fez análise da situação política, fez aprovar o programa do PAIGC, estabeleceu uma orgânica para as forças militares, deliberou sobre infra-estruturas e subitamente encetou-se um ajuste de contas com elementos torcionários que amedrontavam a população, especialmente na região Sul.
O programa do partido era inconfundivelmente baseado no socialismo autoritário: um partido vanguarda, uma economia controlada pelo Estado, propondo uma política externa formalmente de não alinhamento em blocos militares. A descrição de Ignátiev quanto à prisão dos dirigentes com comportamento repreensível é de uma candidez espantosa. Foram presos e não se fala mais no assunto.
Por conveniência de serviço, o autor maquilha a análise marxista heterodoxa de Cabral quanto ao proletariado com um partido-guia fundamentado na pequena burguesia. Mais tarde, em Havana, em 1965, Cabral expendeu doutrina que inquietou o leninismo convencional. Pela primeira vez e abertamente, um dirigente revolucionário defendia e justificava uma pequena burguesia nacionalista a liderar um proletariado rural. Na sua utopia (que Ignátiev justificadamente ignora) Cabral confiava que a classe dirigente iria por osmose adquirir uma concepção da classe operária.
Na continuação dos dislates já anteriormente escritos, Ignátiev continua descarado na menção de mentiras descomunais:
“Nos territórios libertados o partido criou dezenas de escolas. É de destacar que até ao fim de 1966 os patriotas tinham libertado 60 % do território da Guiné portuguesa com quase 50 % da população”.
Um jornalista experimentado na luta de guerrilhas descreve a acção dos portugueses como uma invasão dos hunos, atacando aldeias pacíficas nas regiões libertadas. Aparece uma primeira referência a Inocêncio Cani, compreensivelmente desprimorosa:
“Recordo como Amílcar visitou uma base perto de Mansabá que era comandada por Inocêncio Cani. Os habitantes da região queixavam-se de que ele os tratava mal. Amílcar, depois de regressar da viajam, deu ordem para demitir Cani do posto de comandante da base”.
Depois embarca em mentiras revoltantes como o massacre de Jolmete, de 20 de Abril de 1970, isto depois de já ter dito que o PAIGC conquistara Madina de Boé, de que Spínola tinha atraído um tipógrafo coxo, Rafael Barbosa, para a sua causa e que os antigos prisioneiros libertos foram postos ao serviço da PIDE. Afinal não houve massacre nenhum, diz Ignátiev, o que se passava no chão Manjaco é que três majores que trabalhavam para a PIDE saíram de um carro durante uma operação em que se ia encontrar com um renegado do PAIGC, a coluna foi atacada com rajadas de espingardas-metralhadoras, e os oficiais ao serviço da PIDE foram capturados. E escreve sem nenhum tremor da consciência:
“No mesmo dia, o tribunal militar do PAIGC condenou os 4 ao fuzilamento, executando-os imediatamente. Foi este o desfecho de uma operação que na história do PAIGC figura como operação dos três majores. A pena de morte em relação aos dirigentes da acção psicológica devia mostrar ao general Spínola que os combatentes e os comandantes do PAIGC nem se compravam nem se vendiam e estavam determinados a lutar até expulsão do último soldado colonialista”.
Fica-se igualmente com a ideia, quando está a descrever os acontecimentos relativos a 1970, que Ignátiev está mortinho por acabar o livro, entra num rimo frenético e aborda superficialmente os eventos em catadupa: participação nas solenidades por motivo do centenário do nascimento de Lenine, a polémica audiência de Paulo VI aos representantes dos movimentos de libertação nacional. A invasão de Conacri, os périplos de relações internacionais em que Cabral andou numa roda-viva em 1971 e 1972, acrescentando o facto de ter havido uma missão especial da ONU em 1972 que aumentou a credibilidade internacional do PAIGC.
Chegamos depois à reunião em que Cabral mostrou a informação 42/71/DGS durante uma reunião partidária, versando o seu conteúdo a um plano para acirrar descontentamentos internos e levar ao derrube da actual Direcção com a promessa de Spínola assegurar postos elevados na vida política do futuro Estado guineense, donde estariam liminarmente arredados os cabo-verdianos.
A verdade é que este documento existe o que não existem são as provas de qualquer tipo do envolvimento da DGS no plano de assassínio de Amílcar Cabral ao contrário do que diz categoricamente Ignátiev. Pela primeira vez é escrito o nome, de acordo com depoimento de Ana Maria Cabral, de quem deu o tiro de misericórdia no líder do PAIGC. Terá sido Inocêncio Cani quem deu um tiro de revólver que o feriu, seguiu-se uma grande discussão e então Inocêncio Cani ordenou a Bacar que ultimamente era soldado na garagem para acabar com ele:
“Amílcar estava sentado no chão, de costas viradas para Bacar, que baixou o cano da metralhadora e disparou. Disseram-me depois que uma das balas o atingira na face e a outra na cabeça. Foi assim que eles mataram o meu marido”, remata Ana Maria Cabral que viveu todos estes acontecimentos ao lado do marido.
O jornalista não esconde o seu fraco para caracterizar Cabral como o mártir de uma causa justíssima. E volta à carga passando descaradamente dos dados biográficos para o panfleto:
“As forças armadas do PAIGC intensificaram os ataques ao inimigo, de Março a Setembro de 1973 a defesa antiaérea do PAIGC abateu mais de 40 aviões inimigos. As guarnições portuguesas eram destruídas uma após outra, libertavam-se novas áreas”.
É isto o essencial o miolo da biografia romanceada de um jornalista que visitou repetidamente a Guiné-Bissau, escrevendo sobre ela dezenas de artigos e notícias, seis livros e dois filmes documentários.
Voltaremos em breve a falar de Ignátiev e do seu livro com a versão oficial do assassinato de Cabral a soldo da PIDE.
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Nota de CV:
Vd. último poste da série de 4 de Novembro de 2011 > Guiné 63/74 - P8995: Notas de leitura (299): Amílcar Cabral, por Oleg Ignátiev (1) (Mário Beja Santos)