sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12327: (In)citações (57): O meu próximo livro pode responder a questões relacionadas com o pós independência da Guiné-Bissau (Mário Serra de Oliveira)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Serra de Oliveira (ex-1.º Cabo Escriturário, Bissau, 1967/68), com data e 6 de Novembro de 2013:

Prezado Carlos:
Na tentativa de "rematar" o meu segundo livro, envio o texto abaixo a tua consideração, para recolha de possíveis curiosidades a que eu possa responder, no mesmo.


PRESADOS LEITORES, ESPECIALMENTE AOS LEITORES EX-COMBATENTES NA GUINÉ
Estando a retocar certos capítulos do que já chamo o meu segundo livro, cujo título é “BISSAULONIA”, gostaria que me apresentassem as vossas questões, que acaso possam ter curiosidade, sobre os mais variados aspectos que possam existir, pelo facto de eu lá ter ficado na Guiné, cerca de 14 anos e meio que, como tal, talvez eu esteja habilitado a responder.

Os 4 pontos abaixo são uma iniciativa minha, pensando que os mesmos poderão fazer parte da lista dos pontos que poderão gostar de saber, como foi ou não foi.
Obviamente haverá questões às quais não poderei responder mas tudo farei para descrever o melhor que sei, com a verdade “do clima” politica e social, que passou a reinar na ocasião.

Recordo a todos que só de lá saí em Agosto de 1981, quase 7 anos após a Independência.

1) – Como foi “aquilo”, depois da independência?
2) – O que se passou depois da independência?
3) – Como nos trataram (a mim, minha família e outros) depois da independência?
4) - Que impressões “tiraram” na convivência do dia-a-dia, depois da independência?

Agora, aqui as vossas questões.

Abraço fraternal a todos.
Mário de Oliveira
____________

Notas do editor:

i) Recordemos que Mário Serra de Oliveira, sob o pseudónimo de Mário Tito, é o autor do livro "Palavras de um Defunto Antes de o Ser", Chiado Editora, 2012, ao qual o nosso camarada Mário Beja Santos dedicou uma recensão publicada no poste de 3 DE JULHO DE 2013 > Guiné 63/74 - P10938: Notas de leitura (449): Palavras de um Defunto... Antes de o Ser, por Mário Tito, o nosso camarada Mário Serra de Oliveira (Mário Beja Santos).

Aqui fica feito o convite aos camaradas que quiserem ver afloradas no próximo livro de Mário Serra de Oliveira, "Bissaulonia", as suas questões relacionadas com o pós-independência da Guiné-Bissau até ao ano de 1981, data em que este nosso camarada se mudou para os Estados Unidos.

As sugestões podem ficar registadas em comentário neste poste ou serem encaminhadas directamente para o endereço mariotitodoalcaide@gmail.com.

ii) Último poste da série de 20 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12317: (In)citações (56): Meditação (Abel Santos)

Guiné 63/74 - P12326: Notas de leitura (536): "Maré Branca em Bulínia", por Manuel da Costa (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 2 de Julho de 2013:

Queridos amigos,
Não é só um livro corajoso pela denúncia dos crimes e da gente envolvida no narcotráfico guineense. É uma prosa palpitante em que vamos percebendo as conivências dos bandos com os militares, os paramilitares e até o aparelho judicial.
Está aqui, preto no branco, a praga da corrupção que disforma a vida social e económica de todo um povo, a mancha da corrupção seduz e atemoriza, assistimos à ascensão dos bem-sucedidos no crime.
Um personagem de grande recorte, DJ Palmas, é usado como a voz da denúncia e o apelo a que os guineenses deixem de ter medo da onda de criminalidade de que são vítimas mas também participantes.
Recomendo vivamente a sua leitura.

Um abraço do
Mário


Maré Branca em Bulínia: um romance que ficará para a história

Beja Santos

“Maré Branca em Bulínia”, por Manuel da Costa, Editorial Minerva, 2013, é uma das grandes surpresas das letras guineenses deste ano. O seu autor é um engenheiro agrónomo e mecânico da eletricidade e instrumentos de aviões. Em 2004, foi nomeado Chefe de Repartição Agrícola da Divisão de Serviços de Produção do Estado-Maior general das Forças Armadas. Este romance é uma assombrosa e inesperada denúncia do narcotráfico na Guiné, das máfias constituídas para a sua exploração e não menos surpreendente teia de cumplicidades de todos os escalões de todos os órgãos de soberania. Com indesmentível coragem, fica-se a saber que o livro gozou do alto patrocínio do Presidente da República de Transição, Manuel Serifo Nhamajo, e teve o apoio da União Nacional de Artistas e Escritores da Guiné-Bissau. O autor é detentor de vários prémios literários e preside atualmente à ONG NÔ TCHON.

Bulínia é metáfora de Bissau e o autor diz no prólogo: “É minha escolha partilhar com toda gente o que penso e um pouco do que sei sobre o narcotráfico em Bulínia. Sei que, ao fazê-lo, estarei a pôr a minha vida em risco mas não tenho medo. Para que, de uma vez por todas, se tenha consciência da magnitude do narcotráfico neste país, diz-se aqui quem são os verdadeiros responsáveis pela introdução desta atividade criminosa. Como se diz, de boca em boca, ninguém tem dúvida de que são os políticos corruptos e os empresários ávidos pela riqueza que, aproveitando-se do clima de desordem reinante nos quartéis e nas esquadras, usam militares e paramilitares, numa cumplicidade nunca vista, para lhes dar proteção e garantir segurança”.

Tudo começa quando um pescador deitou as redes ao mar, com o auxílio do filho, e começaram a aparecer pacotes, ao princípio pensavam que se tratava de adubo, no dia seguinte muitíssimos outros pacotes deram novamente à costa, a notícia correu logo de boca em boca e toda a gente no povoado colheu e guardou toneladas dos ditos pacotes, julgava-os fertilizantes.

A notícia chegou à capital da droga, foi pronta a conclusão, tratava-se de cocaína que se vendia por 7 milhões de francos CFA o quilo a colombianos, venezuelanos, mexicanos, costa-riquenhos e nigerianos. Um jovem muito esperto apresentou-se como sobrinho do pescador e mostrou-se interessado em comprar o adubo. Saiu-lhe a sorte grande, comprou um saco de 50 quilos por 40 mil francos CFA. A vida de Marcelino (assim se chamava o jovem) iria mudar. Foi até ao Bairro dos Veteranos da Revolução e entendeu-se com o sargento Busnasum que conhecia um gang de traficantes colombianos. Começa a promoção social de Marcelino e de sua mulher, Zinha. Aos poucos, Marcelino vai-se apercebendo da dimensão do narcotráfico em Bulínia, estão envolvidos comandantes militares o Super-ministro, comandos navais, deputados de oposição, polícias, judiciária, máfias. Marcelino compra carros, compra casas, a mulher torna-se empresária, tudo graças ao adubo do mar. Toda aquela droga parte ou para a Europa ou para o Senegal, Mali e Nigéria.

Marcelino virá a descobrir que esta droga é descarregada por avionetas ou por barcos. Recorrendo a nomes arrevesados, o autor dá conta da dimensão da tragédia: “Voltando aos aviões, era mais um voo do Grupo Hipopótamo dirigido pelo respeitado deputado do partido da oposição. Porque havia três grupos de traficantes: o Grupo Hipopótamo, o Grupo Águia, o mais famoso de todos, liderado pelo Super-ministro Matchu Dunu e o grupo Kassissa, gerido pelo empresário Aladje Sanhá Sanhá”. Fica a saber como se transporta a mercadoria mal é descarregada em discretos aeroportos, e dá-nos conta de outros envolvimentos: “Quanto à exportação da droga para a Europa, fazia-se com a cumplicidade de agências transportadoras ou companhias aéreas, pessoal das alfândegas, despachantes e agentes portuários ou com meios próprios dos narcotraficantes. Porque muitas vezes a droga seguia dissimulada nas bagagens dos passageiros ou na mercadoria exportada em contentores e nas pastas diplomáticas dos franco-diplomatas”.

Presume-se sem elevado grau de certeza que a droga fez a sua entrada em 1980, ou um pouco antes. Os barões da droga passaram a agir mais livremente depois das eleições presidenciais de 2003. Aliás, o caldo de cultura estava bem fermentado com toda a gente mal paga ávida por ter meios para satisfazer as necessidades elementares. Com a livre circulação de pessoas e bens abriu-se a porta à droga. O autor faz entrar novos protagonistas, um grupo de jovens que faziam parte da tertúlia NÔ KA NA KALA, uma verdadeira tribuna de opinião, ali se discorre em termos plurais sobre as atuações dos traficantes, como a droga faz mal à juventude e é o rastilho do banditismo, há ali naquela tribuna quem associe a droga a certas bondades como o desenvolvimento da ciência e das novas tecnologias.

Os narcotraficantes são bem visíveis: usam roupa de marca, telemóveis de topo de gama, as melhores viaturas todo o terreno, as suas casas são palácios, aparentemente nada há a fazer, uma importante fração do povo parece estar a favor do infame negócio que faz de Bulínia um pequeno país do continente africano uma rota incontornável dos negócios da droga. Os gangues recorrem a bons advogados e pactuam entre si, partilham espaços, todos os tiroteios e mortes dão nas vistas, estabelecem códigos de conduta. Há mesmo governantes que recorrem ao dinheiro da droga para pagarem aos funcionários públicos. Há membros do Governo que participam diretamente no negócio, basta ver os seus carros de luxo, as suas quintas, a esmerada educação que dão aos filhos. O autor usa uma figura emblemática de aparente virtude DJ Palmas para nos dar a imagem pragmática de um jovem sem meios que vai gradualmente dando sinais de riqueza sem questionar a sua proveniência. A impunidade alastra, como se escreve: “Os pequenos parlamentares chegaram à conclusão que o alto grau de corrupção que o país vivia criava condições propícias para que a impunidade fosse autorizada, porque os juízes eram constantemente corrompidos e não fazia justiça ou fingiam que a faziam. Exatamente por isso é que o Estado perdera autoridade e não conseguia mais pôr ordem no país. Essa falta de autoridade criara a desobediência na família. Os pais não se entendiam com os filhos e ninguém conseguia pôr ordem em sua casa. O nome de Bulínia estava na boca do mundo. No estrangeiro, os cidadãos bulínios começaram a ser perseguidos e presos por tráfico de droga”. Até que um dia DJ Palmas faz a confissão dos crimes cometidos, é um dos momentos mais admiráveis deste inesperado romance de Manuel da Costa.

No epílogo, e retomando a autoridade do Estado, o autor diz que esta “só pode ser restabelecida quando existir um Governo com gente idónea e trabalhadora. Por isso vale a pena dizer a toda a gente que o homem tem um véu de ignorância no rosto mas procurar persistentemente o futuro. DJ Palmas mostrou ao mundo quem são os narcotraficantes, passando a bola ao Governo para que a justiça seja feita”. O glossário é extremamente útil dado que o romance de Manuel da Costa goza dos melhores predicados da chamada literatura luso-guineense.

Por estar facilmente disponível, recomenda-se a todos a leitura deste livro de denúncia do mundo do narcotráfico e das alianças perversas que consegue concitar.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12311: Notas de leitura (535): "Pequenas Histórias de Guerra", por Carlos Alexandre Morais e "Spínola o anti-general", por Eduardo Freitas da Costa (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P12325: Roteiro de Bafatá, a doce, tranquila e bela princesa do Geba (Fernando Gouveia) (1): Foto nº 1: Parte da Tabanca da Rocha


Guiné > Zona leste > Bafatá > c. 1968/70 > Foto nº 1 > Parte da Tabanca da Rocha.

Foto do álbum do Fernando Gouveia [, ex-alf mil rec inf, Cmd Agr 2957, Bafatá, 1968/70]

Fotos (e legendas): © Fernando Gouveia (2013). Todos os direitos reservados.


FOTO 1 > Parte da Tabanca da Rocha – Bafatá

Legendas:

1 – Cemitério.

2 – Secção de Engenharia, no perímetro do Agrupamento [, Cmd  Agr 2957, 1968/70].

3 – Porta de armas do Agrupamento.

4 – Esquadrão de Cavalaria [, Erec Rec Fox 2640, 1969/71]

5 – Pista

6 – Depósito de abastecimento de água a Bafatá.

7 – Mãe d’água.

8 – O telhado da casa onde morei.

9 – Casa e restaurante do Sr. Teófilo.

10 – Estrada para Bambadinca. [Vd. mapa em baixo]

11 – Estrada velha para Nova Lamego (Gabu).

12 – Estrada nova (asfaltada) para Nova Lamego. [Vd. mapa em baixo]

13 – Rua do agora apelidado de “Bataclã”.

14 – Rio Geba.[vd. mapa em baixo]

15 – Rua que vai passar pela mesquita.



1. No dia 10 do corrente, mandei o seguinte mail ao Fernando Gouveia, arquiteto reformado (que vive no Porto; foto à esquerda, na LDG que o levou, desde o Xime até a Bissau, de regresso a casa, no final da comissão, em 1970].

Fernando: eis um desfio para ti, e um pedido meu... Um dia vais nos poder fazer o mapa e o roteiro da cidade de Bafatá, para acabar com as nossas memórias confusas... Ninguém como tu conheceu (e amou) aquela cidade...Abraço fraterno. Luis

2. Resposta imediata, no mesmo dia:

Luís: Define o que pretendes, que farei o que puder.
 Um abraço. Fernando.
3. Minha resposta, no mesmo dia:

Fernando: È muito simples... Nas tuas (e outras) fotos aéreas de Bafatá, dás o nome às principais artérias e aos principais edifícios.... incluindo estabelecimentos comerciais e sítios por onde passámos e estão na nossa memória... Mesmo que não te lembres do nome da rua... Podes pôr, por exemplo, rua do batalhão, rua do cinema, av principal, estrada para Bambadinca...

Um abraço, Luis

4. Mensagem do Fernando Gouveia, com data de 20 do 
corrente, mandando-nos 17 fotos, devidamente legendadas:

 Luís:

Aí vai o “roteiro de Bafatá” que me pediste. Espero que esteja a teu contento.

Irei mandar mais que um e-mail por causa das 17 fotos.

Seguem-se as legendas das fotografias:

Um abraço, Fernando.



Guiné > Zona leste > 1955 > Mapa (Escala 1/50 mil) > Posição relativa de Bafatá (sede de circunscrição  e depois município, elevada a cidade em março de 1970, a maior a seguir a Bissau, no nosso tempo). Ficava situada na margem direita do Rio Geba Estreito, tendo a sudoeste Bambadinca e a nordeste Nova Lamego.

Infelizmente, Bafatá está hoje em decadência, parou no tempo... O polo de desenvolvimento do leste parece ser agora a antiga Nova Lamego (Gabu). No tempo da guerra, ou pelo menos no nosso tempo (1968/71), a estrada Bafatá-Mansabá estava "interdita". Circulava-se,  sem problemas de maior, no eixo rodoviário (alcatroado) Bambadinca-Bafatá-Nova Lamego (a que se juntará, em 1972, o troço do Xime)... Era um eixo importantíssimo para  toda a logística e defesa  do leste, e cujo controlo por parte das NT  o PAIGC nunca  conseguiu pôr em causa ou  em risco.

No final da guerra, Bafatá era sede do CAOP 2, formado pelos seguintes setores: L1 (Bambadinca), L2 (Bafatá), L3 (Nova Lamego), L4 (Piche), L5 (Gondomar) e L6 (Pirada)... mais 3 zonas de intervenção do Com-Chefe... Eram muitos milhares de homens  em armas (mais de 7 mil, contando por alto), seguramente superior ao total de efetivos disponíveis do PAIGC, em todas as frentes e bases fronteiriças.   (LG).

Infografia: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné (2013)

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12324: Ser solidário (154): Já corre água na Tabanca do Poilão do Leão (José Teixeira)

1. Mensagem do nosso camarada José Teixeira (ex-1.º Cabo Enf.º da CCAÇ 2381, Buba, QueboMampatá e Empada, 1968/70), com data de 20 de Novembro de 2013:

Caríssimo amigo Carlos Vinhal.
Mais uma boa notícia para colocares no blogue.
Há mais uma tabanca na Guiné em festa.

Abraço
J.Teixeira


Já corre a água na Tabanca do Poilão do Leão

A tabanca do Poilão do Leão fica a norte do Rio Cacheu, numa região extremamente isolada. Tem cerca de 370 habitantes na sua maioria da etnia cobiana ou caboiana e 97 crianças frequentam a escola construída recentemente pelo Comité do Estado sediado em S. Domingos com o apoio da Associação  ELX. A água para beber e cozinhar, iam buscá-la, como infelizmente é muito comum na Guiné-Bissau,  a cerca de 3 quilómetros de distância.

A etnia cobiana muito próxima da etnia cassanga, com os mesmos usos e costumes e com muitas parecenças linguísticas, é das que atualmente tem menos população e corre o risco de desaparecer a curto prazo. Em 2002 eram cerca de 650 pessoas.

Dado o isolamento em que se encontra, com difíceis condições de acesso, falta de água potável para beber e para desenvolver horticultura, a falta de assistência à saúde, etc, acentua-se a tendência da juventude para a fuga com destino às grandes cidades.

Uma das formas de combater o êxodo é melhorar as condições de vida, sobretudo na saúde, sendo a água um dos fatores fundamentais.

A Tabanca Pequena, com o apoio de ex-combatentes, seus familiares e outros amigos da Guiné-Bissau,  juntou o capital necessário para mandar abrir,  junto à escola, um poço equipado com bomba de imersão movida a energia solar, cujo painel solar foi oferecido pela ONG Alemã Tabanka.

A água já corre em jato, para alegria da população local e subúrbios. O fontenário que via ser construído vai facultar água de melhor qualidade a cerca de 700 pessoas, da tabanca e redondezas. Este é o sexto poço de água que a Tabanca Pequena com a ajuda de ex-combatentes, construiu na Guiné-Bissau.

Completado um projeto, pensa-se no seguinte. O próximo poço será aberto em Colibuia,  na Mata do Cantanhez, por onde andou o nosso amigo e camarada Vasco da Gama.

A Tabanca Pequena – Grupo de Amigos da Guiné-Bissau apela à colaboração dos camaradas que passaram pela Guiné para que contribuam para este projeto.

Texto e fotos: José Teixeira (2013)




____________

Nota do editor

Último poste da série de 28 DE OUTUBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12214: Ser solidário (153): Expedição solidária Dakar Desert Challenge arranca de Coruche, em 26/12/2013, e apoia a AD - Acção para o Desenvolvimento, com sede em Bissau. Inscrições até 31 do corrente.

Guiné 63/74 - P12323: Blogoterapia (241): Somos todos privilegiados sobreviventes (Vasco Pires)

1. Mensagem do nosso camarada Vasco Pires (ex-Alf Mil Art.ª, CMDT do 23.º Pel Art, Gadamael, 1970/72) com data de 16 de Novembro de 2013:

Caríssimos Carlos/Luís,
Cordiais saudações.

Na semana passada recebi a honrosa visita do meu amigo e nosso camarada Arménio Cardoso - CART 6252/72, que também bebeu das "águas escuras e amargas" do Rio Sapo.

Lembrando quantos dos Nossos por lá ficaram e outros tantos voltaram mutilados no corpo e/ou na Alma, tivemos pois que concluir que somos todos privilegiados sobreviventes.

Há tempos ouvi o depoimento de um membro da E Company, 506 Infantry Regiment (United States), do tão mediatizado Band of Brothers, dizia ele que muitas décadas depois, nas frias noites do rigoroso inverno Americano, quando ia para a cama, falava para a esposa:
- Ainda bem que não estou em Bastogne!

Eu também, sem fazer comparações, claro, no fim desses dias em que a vida parece "Madrasta", penso:
- Ainda bem que não estou em Gadamael.

Forte abraço
VP


Vasco Pires e Arménio Cardoso da CART 6252/72


Arménio Cardoso da CART 6252/72 e Vasco Pires


____________

Nota do editor

Último poste da série de 19 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12316: Blogoterapia (240): Penso na Mata do Morés e chego a sonhar que a conheci (Francisco Baptista)

Guiné 63/74 - P12322: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (6): Bubaque, a outra Guiné com sabor a férias

1. Sexto episódio da série do nosso camarada José Martins Rodrigues (ex-1.º Cabo Aux Enf.º da CART 2716/BART 2917, Xitole, 1970/72), dedicada às suas viagens de saudade à Guiné-Bissau, a primeira efectuada em 1998.




CRÓNICAS DAS MINHAS VIAGENS À GUINÉ-BISSAU 

A PRIMEIRA VIAGEM - 1998

6 - BUBAQUE (BIJAGÓS), A OUTRA GUINÉ... COM SABOR A FÉRIAS

Depois do pequeno-almoço no Capé (Bafatá), partimos para Bissau a tempo do almoço no Restaurante Asa Branca, propriedade de um alentejano, bem no centro da cidade. Partilhamos o repasto na companhia do nosso amigo Candé, que nos iria acompanhar depois até ao aeroporto para um voo com destino a Bubaque.
Esta parte final da nossa presença na Guiné, com um cheirinho a férias, foi o preço que tive que pagar para as senhoras me acompanharam nesta viagem. Mas, convenhamos que, depois de uns dias tórridos na zona centro/leste do país, impunha-se um pequeno período de relaxe, de usufruto da natureza e do convívio com alguns dos aspectos da cultura deste povo animista, muito conhecido pelas suas esculturas, quase sempre referidas na literatura especializada no estudo das origens desta antiga arte Africana.

Alguns episódios, completamente inesperados e que rodearam esta viagem até Bubaque, iriam transformar-se nos momentos mais agitados de toda a nossa estadia na Guiné. Desde momentos bizarros e rocambolescos, até ao receio pela nossa segurança, de tudo um pouco aconteceu.

Depois das elementares formalidades de embarque, dirigimo-nos para a placa do aeroporto e, de imediato, procuramos visualizar o nosso meio de transporte. Lá ao fundo, um pouco à esquerda, encontravam-se dois helicópteros e um pequeno avião. Saquei da minha Sony e apressei-me a registar imagens das aeronaves. De repente, um agente da autoridade puxa-me por um braço e informa-me que tenho que lhe entregar a cassete vídeo, porque estava a filmar em local proibido. (Para nos situarmos, registe-se que nesta data vigorava em Bissau o regime de partido único).

Tentei, com calma, explicar-lhe que desconhecia a proibição, que não via qualquer risco para a segurança do país, etc. etc. etc.
Não tendo conseguido demover o agente da autoridade, recusei veementemente a entrega da cassete, porque tal significaria perder imagens únicas e irrepetíveis desta viagem à Guiné. Perante a minha recusa e a estupefacção dos meus acompanhantes, o agente levou-me para a esquadra do Aeroporto.

Era a Guiné e a África destes tempos. Fiquei rodeado de alguns agentes da autoridade num espaço exíguo e, fizeram-me sentar numa cadeira. Exigiram-me o passaporte e ameaçavam retirar-me a máquina de filmar. Voltei aos mesmos argumentos, tentando de forma firme, mas respeitadora, explicar-lhes o que significava perder as imagens de uma viagem há tantos anos sonhada. Continuaram irredutíveis. Já não sabia o que mais fazer. Num relâmpago, ocorreu-me a ideia do suborno. Depressa desisti, porque poderia ser pior a emenda que o soneto.

Enquanto isso, lá fora, os meus familiares procuraram, e encontraram, o nosso amigo Candé a quem contaram o sucedido. Apercebo-me da entrada de mais uma pessoa. Era Candé. Coloca-me a mão no ombro e diz-me para estar calmo. Sinto-me agora mais confiante. Até aí, sentia-me perdido e prestes a desistir. Candé, dirige-se aos mais graduados e troca com eles algumas palavras em crioulo. Inesperadamente, diz-me para me levantar e para sair para junto dos meus.

Quando saí daquele abafado espaço, respirei bem fundo, devido ao ar sufocante e ao alívio da situação. Os meus familiares, meio incrédulos, viveram momentos de ansiedade. Candé voltou para junto de nós e, devolvendo-me o passaporte, disse-nos que estava tudo resolvido. Enquanto isso, o avião para Bubaque esperou por nós mais de uma hora.

Informados os pilotos de que estávamos prontos, recebemos indicações para nos deslocarmos para o aparelho. Os inevitáveis abraços ao Candé e lá nos dirigimos ao aparelho. Tratava-se de um mono-motor muito antigo, de dupla asa, pertencente à “ASTRÁVIA” e com capacidade para dez passageiros. Acomodamo-nos.

Tínhamos por companhia dois pilotos na cabine e uma simpática hospedeira, todos eles guineenses. Estávamos a meio da tarde e um calor asfixiante dentro do aparelho. O avião começou a movimentar-se na pista, preparando-se para a descolagem. A cabine de pilotagem não teria porta, o que permitia que os passageiros assistissem aos procedimentos do voo. Do tecto da cabine pendia um qualquer instrumento de medição que os pilotos consultavam. Tudo a postos e o avião descolou normalmente. Poucos minutos depois já estávamos sobre a água e, para além dos bancos de areia, começaram a ver-se os contornos de algumas ilhas. No aparelho, os tirantes que uniam as asas vibravam, mas o voo, de cerca de meia hora, decorria sem grandes oscilações. Os pilotos iam consultando o aparelho suspenso na cabine e tudo parecia bem. Um deles calçava um sapato rasgado na costura do calcanhar e as peúgas eram diferentes.

Viam-se agora com nitidez várias ilhas e sentimos que o aparelho iniciara a descida, apontando na direcção de uma delas. De relance vêem-se várias construções e uma linda praia bordejada de arvoredo, que sobrevoamos em direcção à pista de terra batida. Estávamos longe de imaginar o que nos esperava na aterragem. O avião faz-se à “pista”, desce normalmente e toca suavemente no solo e, de repente, sobe bruscamente aí uns dez metros. A pista começa a ficar curta e ao fundo, termina com árvores de elevado porte. Perante esta inesperada situação, os pilotos “atiram” o avião para o solo com tal força, que todos nós, sacudidos nas cadeiras, soltamos um assustado grito com a violência pancada.

Apesar do grande susto, lá conseguiram imobilizar o avião próximo do fim da pista. O trem de aterragem fixo, era dos rijos. Desde o episódio com a polícia no aeroporto de Bissau, até esta aterragem na ilha de Bubaque, estas “férias” nos Bijagós prometiam.

Num jipe sem cobertura e com os cabelos soltos ao vento, fomos conduzidos até ao “Maiana Village”. Esta unidade hoteleira, propriedade de um casal francês, ficava sobranceira a uma pequena falésia, bem junto ao canal que nos separa da Ilha de Rubane. Estava equipada com vários bungalows individuais, um salão restaurante, uma agradável esplanada e, de uma pequena piscina. No jardim, bastante arborizado, pontuavam muitos lagartos que se deliciavam com as sempre presentes formigas.

Resolvidas as formalidades da chegada, fomos deliciar-nos com um banho na piscina. Na esplanada e enquanto aguardávamos o jantar, comentamos as peripécias deste dia inusitado. Éramos os únicos hóspedes do hotel.

Ao jantar foi-nos servido um prato de massa com “estilhaços” de carne que, como habitual nos franceses, enchia mais os olhos que o estômago. A temperatura por aqui, neste delta com 88 ilhas e ilhéus, é bem mais amena que na parte continental da Guiné. Caiu a noite e, antes de nos recolhermos, decidimos que o dia seguinte seria de descoberta da ilha, das suas gentes e das suas praias.

(Continua)

Pequeno-almoço, despedida do Capé


Avião que nos levará a Bubaque, nos Bijagós

Canal e Ilha de Rubane

Na piscina em Bubaque

A minha primeira viagem à Guiné - 1998 (4) - Despedida do Capé, Bissau e voo para Bubaque (Bijagós)
____________

Nota do editor

Último poste da série de 14 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12290: Crónicas das minhas viagens à Guiné-Bissau (José Martins Rodrigues) (5): O dia seguinte no Xitole com as pessoas

Guiné 63/74 - P12321: Memória dos lugares (256): Vista áerea de Bambadinca... (Fernando Gouveia, ex-alf mil, rec inf, Cmd Agr 2957, Bafatá, 1968/70)



Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > d. 1968/70 > Foto nº 1 > Tirada  do conjunto composto por (i) aquartelamento, (ii)  posto administrativo e (iii)  tabanca,  no sentido norte-sul... Ao fundo,  ainda é possível descortinar (iv) a pista de aviação (lado direito) e (iv) tabanca de Bambadincazinho (reordenamento) onde ficava a antiga Missão do Sono e onde, todas as noites (e depois do ataque a Bambadinca, 28 de maio de 1969), ficava instalado um  Grupo de Combate, de piquete.


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > d. 1968/70 > Foto nº 1  A > Neste quadrado, é ver possível identificar a rua principal da tabanca de Bambadinca, em terra batida, que ligava à estrada (alcatroada) Bambadinca-Bafatá. Destaca-se, em plano mais elevado, o aquartelamento e o posto administrativo (correio, escola, onde era ministrado o ensino básico e o posto p.d., incluindo a casa do administrador).Vê-se também melhor a pista, ao fundo, do lado direito, incluindo o heliporto. 


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > d. 1968/70 > Foto nº 1  B > Parte da tabanca de Bambadinca.


Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > 1970 > Foto nº 1  C > Aproximação ao aquartelamento e posto administrativo, situados numa pequena elevação, donde partia também, para a direita, a pista de aviação e onde ficava o heliporto, perto da entrada do aquartelamento no topo sul. É visível, ao centro, a rampa de acesso ao aquartelamento (lado norte). Havia cavalos de  frisa, nas duas entradas, uma a  norte e outra a sul, do aquartelamento. 



Foto do álbum do nosso camarada e amigo Fernando Gouveia [, ex-alf mil
rec inf, Cmd Agr 2957, Bafatá, 1968/70; foto à direita, na LDG que o levou, desde o Xime até a Bissau, de regresso a casa, no final da comissão].

Esta foto foi recebida em 19 do corrente. Entretanto, tinha-lhe pedido antes para me fazer um roteiro de Bafatá, desafio que ele aceitou, com visível prazer e "espírito de missão", e que já está pronto, comprometendo-nos nós a publicá-la, numa nova série, o mais rápido  possível.

Foto: © Fernando Gouveia (2013). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem: L.G.]

_____________

Guiné 63/74 - P12320: In Memoriam (171): Alferes Miliciano Adelino da Costa Duarte do 3.º Pelotão/CCAÇ 1416/BCAÇ 1856, morto em combate no dia 22 de Novembro de 1965 (Manuel Luís Lomba)

1. Mensagem do nosso camarada do nosso camarada Manuel Luís Lomba (ex-Fur Mil da CCAV 703/BCAV 705, Bissau, Cufar e Buruntuma, 1964/66), com data de 9 de Novembro de 2013:

Prezado Amigo e camarada de armas Carlos Vinhal,
Vivi a ocorrência da morte do alferes Adelino, a leitura do livro Uma Campanha na Guiné, do Manuel Domingues, trouxe-me a sua lembrança e a efeméride da data levou-me a escrever esta narrativa, a evocar o acontecimento e o seu contexto, para editar, se lhe reconhecer mérito. 

Receba um abração, extensivo à malta que dá vida ao blogue
Manuel Luís Lomba


In Memoriam, 48 anos depois...

Alferes Miliciano Adelino da Costa Duarte

A vigília do alferes miliciano Adelino da Costa Duarte à sua própria morte em combate, comandante do 3.º Pelotão, da CCaç 1416, destacada em Nova Lamego, de reforço operacional ao BCav 705, na noite de 21 de Novembro de 1965.

A CCav 703 nomadizava há dois meses em Cufar e, naquele domingo, pelas 22H00, a voz troante de Manuel Alegre, vate da Trova do Vento Que Passa, então locutor da Rádio Portugal Livre, de Argel, anunciou que o seu amigo Amílcar Cabral acabava de abrir a Frente Leste da guerra da Guiné, que os famigerados barbudos de Cuba vinham reforçar o PAIGC e regozijava com a expectativa da derrota dos seus camaradas de armas, em sofrido cumprimento do seu dever na então Província Ultramarina portuguesa.

Depois dos 63 dias dessa nomadização em Cufar, fomos dar com os costados a Buba, via Bissau, e andávamos a passar as penas do inferno de ferro e fogo por Nhala e Incassol (o camarigo João Parreira, dos Comandos Os Fantasmas, recebeu um estilhaço de RPG, próximo de mim), quando a nossa intervenção foi abreviada, para regressamos apressadamente ao Forte da Amura, em prenúncio de algo de novo. A alvorada do dia seguinte aconteceu sem toque de clarim, para não perturbar o sono à Companhia de Polícia Militar 590 nossa vizinha e, cansados, estremunhados e sem outra bagagem, senão armamento e munições, atravessamos a Bissau adormecida, com destino à Base Aérea de Bissalanca, e os Dakota iniciaram uma ponte aérea, a colocarem-nos de emergência em Nova Lamego, capital do Leste da Guiné, com a companhia do próprio Comandante-Chefe, brigadeiro Arnaldo Schulz, logo no primeiro. Distribuíram-nos de imediato, a nível de secção, pelas pequenas tabancas de Pinto da Silva, Cheche, e Camajabá, nas missões de tampão às já então sacrificadas guarnições de Canquelifá, Madina do Boé e Buruntuma.

Iniciamos então o contacto com um território diferente, desarborizado, descampado e também despovoado, pelo trabalho do Vitorino Costa, um dos primeiros comandantes do PAIGC, que não obstante ter recorrido aos requintes de malvadez terrorista, não conseguirá nem escorraçar nem esmorecer a fidelidade das populações fulas a Portugal. Em contraste com o Oio e o Cantanhês, o Gabu era um campo de batalha aberto, que na altura não era exclusivo da malta do PAIGC, porque os Paraquedistas da República da Guiné, da base fronteiriça de Kandica, começaram por lhe proteger a retaguarda e depois associaram-se-lhe ao fogacho contra nós, bazofiadores, a ostentar as suas vistosas boinas vermelhas. Obrigámo-los a vazar “no gosse-gosse”, logo ao segundo contacto e nem todos regressaram à base da partida. Após um ano a guerrear o PAIGC por aqui, ali e acolá, foram esses combates na savana do Gabu que nos fizeram sentir como verdadeiros soldados portugueses de sempre.

A CCav 703 foi destinada à quadrícula em Buruntuma, em plena época das chuvas e a nossa decadência física agravou-se, como pacientes do paludismo, combatido com doses cavalares de comprimidos “Camoquin”. A febre foi debelada, mas eu entre outros, dos quais apenas o Cabo Pedrosa me acode à memória, perdemos as forças, ficamos esqueléticos e dobrados a meio, a movimentarmo-nos arrimados a paus, à laia de bengala, tal o grau da nossa debilidade, dizia-se que em consequência do plasmódio inoculado pelo mosquito anopheles se nos ter alojado nos rins. Buruntuma era como que um labirinto e o capitão Lacerda não dispensava a quem restasse força para puxar o gatilho, no entanto, graças ao alferes médico Dr. Sequeira, condescendeu em mandar passar-nos a guia de marcha para a sede do Batalhão, em Nova Lamego, em demanda do tratamento especializado, ministrado no posto médico da Circunscrição, com valências em paludismo e na doença do sono, criação do Dr. Maurício, lendário missionário da Saúde no chão da Guiné.

Buruntuma

Foto: © Luís Guerreiro (2012). Todos os direitos reservados

Fomos encontrar a CCaç 1416 adida ao nosso Batalhão, como subunidade de intervenção do Sector, que se revelou malta fixe, descontraída e miliciana (a começar pelo seu capitão, Jorge Monteiro), em contraste com os tiques ou complexos elitistas da Cavalaria. Com o tratamento endovenoso as pernas pareciam peadas, o manquejar agravou-se e aqueles camaradas não regateavam o apoio à decrepitude deste mais velho. E uma tarde fui com alguns para o já conhecido bar dum casal libanês, na rua principal da capital do Gabu, que tinha um anúncio escrito a giz, sobre uma padieira: temus bebida gelado. Preferi o verde branco Gatão, de Amarante, à cerveja Sagres, de Lisboa; mal terminara o “desabafo” com a garrafa e já as sequelas me compulsavam para a posição horizontal, fui esticar-me na tarimba e perdi a visão - dei comigo totalmente cego e angustiado.

Um enfermeiro acudiu-me e dialogamos, à moda da caserna:
- “Quantas loirinhas emborcaste?”
- “Nenhuma; perdi-me com coisa melhor, uma bajuda de verde branco!” (o verde branco daquele tempo era loiro).
- “ Oh desgraçado, durante este tratamento só podes beber água e muita! Se te apetece líquido loiro, bebe mijo!”

E da abstinência resultou o regresso da visão.

Os paraquedistas guineanos desapareceram do chão do Gabu, mas a malta do PAIGC mais crescia e se multiplicava, por obra e graça dos cubanos. Naquele tempo, o Senegal dificultava-lhe a circulação de armamento e munições pelo seu território; os seus camiões de reabastecimento às frentes Leste e Norte partiam do Boké, estrada fora por Kondara, Sareboido e Kandica, no estrangeiro, passavam ao largo de Buruntuma, a carga era baldeada para carregadores, além Catabá, que atravessavam o Piai, pequeno rio fronteiriço, para se embrenharem, fortemente escoltados, no sentido de Canquelifá, eleita como central à sua guerra da Frente Leste. A informação da passagem duma dessas colunas chegara ao comando do BCav 705 e o então Major Ricardo Durão aprontou-lhes a Operação Gerês.

Naquele noite de 21 de Novembro a malta foi reunir-se ao convívio de copos, do “abafa” e da “lerpa” nas instalações de aboletamento da 1416, paredes meias com o Posto Administrativo. Encontramos o alferes Adelino no topo daquela mesa corrida, defronte ao gravador, numa atitude de ausência e que continuará alheado daquele ambiente ruidoso, peculiar às casernas. E surgiu o primeiro-sargento, como mensageiro:
- Saída operacional da 1416, pelas 5H00 da manhã; regresso dos convalescentes da 703 a Buruntuma, na volta da escolta que partiria de lá.

O alferes Adelino reagiu alvoroçado, mas sem qualquer afectação na voz, a dizer:
- “Hoje é o meu fim!”

Premiu o botão e o gravador começou a desbobinar a música “Il Silenzio”, orquestrada não sei por quem de apelido Rossi - o disco mais pedido pelos militares à então Emissora Provincial da Guiné Portuguesa. E seguida, sem interrupção. A melodia e o virtuosismo do trompetista começaram a mexer-nos com a alma, a fazer-nos pele de galinha, mas fomo-la suportando, enquanto compensava o rom-rom do motor do electro-gerador, ali ao lado. À meia-noite desligaram-no e então pedimos-lhe para baixar o som, mas ele respondeu:
- “Estou a fazer a minha despedida”.

Alguém começou a rezingar, um seu furriel foi pôr-lhe um braço sobre os ombros, a pedir-lhe para se ir deitar, descansar, e ouvimos a resposta:
- “Calma; dentro em pouco adormecerei para sempre”.

O alferes Adelino não calava O Silêncio, os palavrões e as picardias cessaram, a jogatina entrara na monotonia, o ambiente começou a assemelhar-se a velório, a comoção foi-se apoderando da turma, uma ou outra lágrima nalgum canto do olho, até que cada um se retirou para o seu canto, silenciosamente.

Il Silenzio, interpretado por Nini Rosso

Naquela madrugada de 22 de Novembro de 1965, a malta da 1416 saiu para o palco da Operação Gerês, algures entre Canquelifá e Buruntuma, o 3.º Pelotão a progredir em vanguarda, segundo a escala, e o alferes Adelino ao encontro do seu destino.

A escolta de Buruntuma chegou atrasada, com alguns feridos ligeiros e uns tantos combalidos: accionara uma mina anti-carro, perto de Ajango. Em Camajabá, o rádio-telegrafista informou-nos que havia desgraça com a 1416, pois escutara repetidos pedidos para a evacuação de feridos. Pela recorrência em minas e emboscadas, a partir dali entraríamos na nossa “estrada do Vietname”. Éramos passageiros, sem armas, e cuidamos de providenciar as “pastilhas”, para o inimigo que nos pusesse a mão nos acompanhasse na viagem para a eternidade: duas granadas, a meter nos bolsos superiores das fardas. A do lado esquerdo, bem sobre o coração, cavilha de segurança preparada - bastaria um ligeiro puxar da golpilha...

A escolta voltou a accionar outra mina anti-carro, nessa fatídica “estrada do Vietname”, houve mais projectados pelos ares, mais feridos ligeiros e mais combalidos. Causa da sorte, dada a ausência de casos de maior gravidade: a época das chuvas terminara, mas o terreno ainda estava muito mole. Chegados a Buruntuma, toda a malta nos veio dizer que a 1416 sofrera um morto - o alferes Adelino da Costa Duarte!

Localização da Picada Canquelifá-Buruntuma. Vd. Carta Província da Guiné - 1:500.000

Fora atingido num joelho, logo no primeiro momento do combate; falecerá 6 horas depois, pela demora na evacuação. Constou que terá manifestado ao furriel enfermeiro que o socorria o pedido de ser sepultado ao toque de O Silêncio. A morfina não o livrou do estado de choque e terá sucumbido à embolia que lhe sobreveio, eram 14H00 de 22 de Novembro de 1965.

A música Il Silenzio tornou-se referencial da infelicidade peculiar à condição de soldado. Na Guerra da Secessão, nos Estados Unidos, um capitão da União, após repelir uma tentativa de assalto às suas trincheiras, começou a ouvir gemidos, além do arame farpado. Correu grandes riscos e rastejou até ao ferido, arrastou-o mas chegou com ele morto ao acampamento, onde o reconheceu como o seu próprio filho, estudante de música no Sul, que se havia alistado nos Confederados, sem seu conhecimento. Pediu honras musicais para o seu funeral, que lhe foi indeferido, por se tratar de combatente do outro lado, mas autorizaram-no a escolher um músico; a sua escolha recaiu no melhor trompetista da banda marcial, ao qual pediu que tocasse as notas musicais da pauta encontrada no bolso do filho. Assim nasceu e foi pela primeira tocado O Silêncio, que muitos exércitos adoptaram para toque de finados. O Toque da chamada aos mortos em combate, adoptado pelo Exército Português, será menos melodioso, mas é muito comovedor, causa-nos calafrios e estremecimento.

A destemida e valente malta da 1416 entrou noutros combates de igual teor e acabará a comissão na quadrícula de Madina do Boé e Beli, em rendição à nossa CCav 702. Na tenda montada na “sua” colina, Amílcar Cabral ordenou a sua aniquilação, incumbindo essa missão ao capitão cubano Ulises Estrada, chefe dos internacionalistas cubanos, e a Domingos Ramos(1), então o melhor comandante do PAIGC, furriel miliciano desertor do Exército Português, que chegara a ser o porta-bandeira da então Bateria de Artilharia de Santa Luzia (antes de ser o QG de Bissau), o qual morrerá no combate que lhe oferecera a sacrificada Companhia 1416. Aquele ex-português da Guiné e nosso ex-camarada de armas era o comandante da Frente Leste - o primeiro responsável da morte do malogrado alferes Adelino da Costa Duarte.
____________

Notas do editor:

(1) - Vd. poste de 12 DE DEZEMBRO DE 2007 > Guiné 63/74 - P2343: PAIGC - Quem foi quem (5): Domingos Ramos (Mário Dias / Luís Graça)

Último poste da série de 19 de Novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12314: In Memoriam (170): O princípio do fim do Amigo e Camarada Sargento-Chefe Fernando dos Santos Rodrigues (2): A sua morte no dia 29 de Outubro de 2013 (Arménio Estorninho)

Guiné 63/74 - P12319: Manuscrito(s) (Luís Graça) (13): Três histórias ganguelas, três pérolas da sabedoria angolana... E onde se fala da atualidade dos Baratas, dos Cavetos e dos Heróis

1. Da Ilha de Luanda, com um Alfa Bravo fraterno para os nossos amigos e camaradas da Guiné que nos leem...

Como aqui  não há muito tempo para escrever para o blogue e a rede sem fios nem sempre é muito fiável, deixo-vos um texto que vou utilizar hoje, de manhã,  nas minhas aulas, sobre psicossociologia do trabalho e das organizações, no âmbito no 1º Curso de Especialização em Medicina do Trabalho, a decorrer em Angola (2013/15), na Clínica da Sagrada Esperança, Ilha de Luanda, Luanda, Angola...(E, a  propósito, sinal de como este país mexe é a quantidade de formadores, tugas e de formandos, angolanos, que estão aqui, esta semana... Gente da clínica e  fora da clínica, que pertence à Endiama, que estão aqui a receber formação nas mais diversas áreas, chegaram, na 4ª feira passada, aos 130, desde  médicos a bombeiros, dissseram-me no gabinete de formação).

Volto a penates, sábado, no avião da TAP que, por enquanto ainda é nosso, português... Não sei se terei coragem de voltar a viajar na TAP quando mais esta "joia da coroa" for alienada, como de há muito o acionista Estada promete ou ameaça... Já nos restam poucos consolos, a nós, tugas, quando vemos, nos tempos que correm, a delapidação do nosso património e a destruição de símbolos fortes da nossa identidade colectiva como é ainda a TAP, a  nossa companhia de bandeira...

E a propósito, gostei de ver a felicidade estampada no rosto  dos tugas de Luanda (e de muitos amigos angolanos), na sequência do apuramento da nossa seleção para o campeonato mundial de futebol, em 2014, no Brasil... Não embandeiro em arco com estas coisas das  proezas futebolísticas, nem sequer vi o jogo contra a Suécia, em direto, transmitido aqui num canal português da África do Sul... Ou melhor, vi no meu quarto o final... Mas vamos abrir hoje, ao almoço uma garrada de tinto Ermelinda,  reserva,  que trouxe do "free-shop" de Lisboa... Há pequenas coisas que têm um sabor especial, fora de casa, longe da Pátria, como por exemplo comer uns jaquinzinhos tugas com arroz malandro, a par de um saladinha de lagosta angolana,  e beber um copo de vinho branco tuga,  na ilha de Luanda, numa marisqueira tuga, muito conhecida, em cima da praia, mesmo em frente da clínica, numa roda de amigos, tugas e angolanos, ou de tugas e de angolanos tugas...

Não sei se estou a ficar velho e sentimental ou se isto não serão já pré-sintomnas da maldita doença do alemão que nos está a matar... Não imagino como outros corações se podem comportar, aqui ou no hemisfério norte... Estou-me a lembrar, por exemplo, do único lusolapão que conheço, o Zé Belo,casaod com uma sueco e com filhos nada tugas,  e para quem vai um xicoração apertado, onde quer que ele esteja, em Kiruna, Estocolmo ou Keywest (Florida). Estendo esse xicoração, comprido como o Rio Corubal  do nosso tempo (que era misterioso, selvagem e belo),  aos demais camaradas da Guiné, tugas e guineenses, espalhados pelas mais diversas diásporas e exílios...

Desculpem lá qualquer coisinha, como diz o tuga, sentimental, quando anda fora de casa... E espero que gostem destas três histórias, da tradição oral dos ganguelas...Como as nossas fábulas e contos populares, também estas histórias ganguelas têm uma moral... Para mim, o  que é mais espantoso, é a sua atualidade, tanto aqui, em Angola,  como na nossa santa terrinha ou na Guiné-Bissau, três sítios onde não é preciso andar com uma lupa para encontrar Baratas e Cavetos... Enfim, apreciaria muito que, um vez lidas as histórias, acrescentassem uma linha, da vossa lavra,  aos ensinamentos morais que se podem tirar delas... Até por que "a" moral e "o" moral são duas coisas muito importantes para gente sair da manhã de nevoeiro (ou cacimbo)  em que estamos mergulhados, dizem que há séculos, desde que el-rei nosso senhor Dom Sebastião partiu para Alcácer Quibir e nunca mais voltou....LG.


Três histórias ganguelas, três pérolas da sabedoria angolana 

(i) O azar do soba Barata

O soba Barata foi ter com o soba Cágado, dizendo:
– Sei tudo sobre a vida, mas nunca tive a sorte de ver um Azar! Amigo Cágado, faz-me o grande favor de me dizeres o que sabes sobre o Azar e como ele é.
– Ah! Ah!... Então o teu problema é esse ? Eu vou-te mostrar. Amanhã às 8 horas apareces com os teus amigos e parentes no terreiro da aldeia e eu mostro-te o Azar.

O soba Cágado pegou em todas as galinhas da sua casa e fechou-as numa gaiola. De manhã, muito cedo levou-as ao terreiro da aldeia e sentou-se em cima da gaiola. Passado algum tempo começaram a chegar as baratas. Perguntou o soba Cágado ao soba Barata:
– Chegaram todas ?
– Sim, chegámos – responderam elas, em coro.

Foi então que o soba Cágado abriu a giola… As galinhas saíram e, num ápice, comeram todas as baratas, aterrorizadas. Um dos galos correu com o soba Barata até à sua casa. O pobre do soba estava desfeito: tinha perdido todos os seus súbditos numa batalha campal e agora estava sozinho. Era o cúmulo do Azar. Depois de tantos sucessos na vida, sabia agora, por dolorosa experiência própria, o que era isso do Azar.

Moral da história: Não é fácil ser soba. É necessário ser inteligente. E mais: ter inteligência emocional… Um chefe que é mau líder faz um mau grupo. Tal chefe, tal grupo. 

(ii) O capataz Caveto

Havia um homem que era excelente na caça. Era conhecido pela alcunha de Caçador Certo dia matou um elefante. Era preciso transportar a carne da floresta para casa. E para isso era preciso arranjar muita gente. Foi falar com os vizinhos e aliciou-os para a tarefa, com a promessa de uma pequena recompensa.

Um dos vizinhos que engrossou a coluna dos carregadores, chamava-se Caveto. Era um tipo esperto. Fez questão logo de assumir o papel de capataz, sem ninguém lhe encomendar o sermão. Com os ramos de uma árvore, fez uma espécie de bastão, para mostrar quem mandava, e começou logo a comandar a operação. Dividiu as tarefas, dando a cada um dos carregadores a quantidade de carne que podia transportar às costas. Passadas algumas horas, a carne do elefante estava toda em casa do Caçador.

Um homem de confiança do Caçador preparou-se para fazer o pagamento do serviço, que não era em espécie, era em géneros. Ordenou as todos os carregadores que ficassem junto à peça que cada um tinha carregado. De cada peça cortou um bom bocado e deu-a ao respectivo carregador como forma de pagamento. Todos voltaram felizes para suas casas, não só por terem ajudado um vizinho mas também por que nesse dia havia carne para o almoço. Foi então que o tal Caveto se dirigiu com maus modos ao pagador e interpelou-o:

– Ouve lá, e então a minha parte ?

Respondeu o pagador:

– Tu não tens nada a receber. Como não carregaste nenhuma peça, não tens donde tirar o teu pagamento!

– Como assim ? Então eu estive orientar as pessoas e a despachar o serviço!

Retorquiu o pagador:

–Pode ser até que fales verdade, mas eu não tenho com que te pagar, uma vez que não transportaste nenhuma peça de carne.

O Caveto, de cabeça baixa, lá voltou para casa e foi comer o seu fungi sem conduto.

Moral da história: Nunca penses que és mais esperto que os outros. E não escolhas o caminho do oportunismo, gerador de makas e conflitos. Não basta, por outro lado, quereres ser líder, é preciso que os outros te reconheçam como tal e que tu saibas assumir e desempenhar esse papel fundamental numa equipa de trabalho.



"Ganguela (ou Nganguela) é o nome de uma pequena etnia que vive dispersa a Leste e Sudeste do Planalto Central de Angola. O seu nome é desde os tempos coloniais usado para designar, não apenas esta etnia, mas um conjunto de povos que vivem no Leste de Angola"... 

Infografia: "Mapa étnico de Angola em 1970 (Área dos povos designados como Ganguela marcada a verde)".


(iii) Por favor, nunca apagues as peugadas do leão…

Um dia um rapaz e uma rapariga fizeram uma viagem através da floresta, onde tinham que passar por um sítio muito perigoso, cheio de animais ferozes.

No mais recôndito da floresta, o rapaz, armado em valentão, tomou a dianteira, pensando com isso proteger a rapariga. No trilho arenoso, o rapaz viu as peugadas, frescas, de um leão. Com medo que a rapariga se assustasse, o rapaz apagou de imediato as peugadas.

Quando o leão viu o casal, emboscou-se atrás de uma árvore. O rapaz ia muito tenso, olhando para um lado e para o outro. O leão viu que ele estava em alerta, pelo que deixou-o passar, até ele atravessar a clareira. A rapariga, mais atrás, vinha muito descontraída, não se apercebendo do perigo. Fez até uma paragem para fazer xixi (sim, por que as rapariugas não mixam, fazem xixi...). Foi nesse preciso momento que o leão se lançou sobre ela, devorando-a a seguir. Alertado pelos gritos lancinantes da vítima, e temendo pela sua vida, o nosso herói pôs-se em fuga.

Moral da história: ignorar ou escamotear a verdade, acaba por ter consequências negativas. As makas (problemas, em angolês) e os conflitos resolvem-se, enfrentando-os e encontrando soluções inteligentes e  construtivas. Não adianta fugir de (ou negar , ignorar, escamotear) a realidade.

Fonte: Adaptação  livre de L.G.

Menongue, Diocese. Secretariado da Pastoral (ed. lit) – O mundo cultural dos Ganguelas. Menongue: Diocese, [ D.L. 2000] (Porto: Humbertipo)], 642 pp



2. Comentário de L.G.:

É interessante a explicação dada pelo editor  literário desta obra, o Secretariado da Pastoral da Diocese de Menongue, lá na martirizada província do sudeste angolano, o Kuando Kubango, sobre o seu propósito didáctico (em 2000, data da sua edição, quando ainda a paz era uma miragem)... Vale a pena transcrever essa explicação que vem no livro, à laia de preâmbulo. Passo a citar:

"Durante uma conferência sobre o conflito angolano, 'Causas e consequências', um participante comparou a complexa situação vivida no país a um conto, 'A cobra sobre os ovos':
"Um fazendeiro encontra na capoeira uma cobra sobre os ovos. Como matá-la ? Se for à paulada ele quebra os ovos, e a cobra, esperta que é, foge. Se não a mata, ela devora todos os ovos.

"Que solução ?

"O conto foi partilhado por todos os participantes e, de forma inteligente, serviu de exemplo para refelectir sobre possíveis soluções para o conflito angolano e outros conflitos no mundo".
_______________

Nota do editor:

Último poste da série > 11 de novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12279: Manuscrito(s) (Luís Graça) (12): Servir duas pátrias, Portugal e Angola... O caso do sr. C..., furriel mil em 1974/75, no exército colonial português, tenente das FAPLA em 1975/89

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Guiné 63/74 - P12318: Memória dos lugares (256): Missirá, Zacarias Saiegh e Jobo Baldé em 1968 (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 15 de Novembro de 2013:

Meu caro Luís,
Pedi à minha irmã para pôr ordem numas largas dezenas de fotografias dos nossos avós, pais e da nossa meninice, preciso de referências para o livro tendencialmente autobiográfico que comecei a escrever “O Fedelho Exuberante”.
Daquele amontoado de papel, a Manuela encontrou estas três imagens. Seguirão pelo correio, terás a amabilidade de juntar ao conjunto de imagens que ficam em teu poder e que darás destino quando eu bater a bota.
Curiosamente, as três têm grande significado para mim: são as únicas fotografias que tinha (falo já no pretérito, estas imagens pertencem ao blogue e a quem as vai arrecadar) do Zacarias Saiegh, do Benjamim Lopes da Costa e do Jobo Baldé, nomes indispensáveis da minha passagem pela Guiné. Será com orgulho que as verei estampadas no nosso blogue.

Um abraço do
Mário


Fotos avulsas: Zacarias Saiegh, a ressureição de Missirá, Jobo Baldé

Beja Santos

Fotografia tirada em 5 de Setembro de 1968, véspera da primeira flagelação a Missirá. Foi enviada à minha querida Mãe, no verso referencio o Zacarias Saiegh, o meu furriel mais antigo, que vai sentado no Unimog 411, matrícula ME-81-53, o meu inesquecível “burrinho”, vi-o sair do meio da lama profunda da bolanha de Finete não poucas vezes, Finete está ao fundo, aproximamo-nos do rio Geba, o capim é enorme; quem conduz é o Quim, que nunca mais vi, bem gostava de lhe dar um grande abraço pelo bem que nos fez, escrevi-lhe o meu primeiro louvor, saiu de um jato, era bem sentido. Estou por trás do Saiegh, a rir com satisfação, vivo há pouco mais de um mês no Cuor, estou profundamente feliz. Termino a legenda dizendo: “No centro das mais desvairadas tribulações, louvor ao Altíssimo, o amor deste filho, Mário”.

Imagem da única epopeia da minha vida: a ressurreição de Missirá, praticamente destruída em 19 de Março de 1968. Estamos em Maio, constrói-se à lufa-lufa os últimos abrigos, este tinha dimensões quase gigantescas, aqui ficou a Breda e seis homens, não muito longe do cavalo de frisa. Andei à procura desta fotografia para mostrar ao Benjamim Lopes da Costa, que veio recentemente visitar-me, vem regularmente a Portugal para tratamentos à próstata. Na noite de 3 de Agosto de 1969 perdeu a cabeça numa emboscada e chamou-me “branco assassino”, fizemos as pazes pouco tempo depois, tínhamos e temos um entendimento perfeito. Ele aparece encurvado, a figura central é o meu querido amigo Mamadu Camará, mais tarde membro da 2ª Companhia de Comandos Africana, foi ferido em Salancaur, é desde 1973 deficiente das forças armadas. A mourejar, empunhando o martelo, está outro querido amigo, Mamadu Djau, visitei-o em Amedalai em Novembro de 2010, continua a insistir que quer ir trabalhar para Portugal, não entende todos os louvores e condecorações que recebeu terem ficado sem qualquer recompensa. Não há nada mais humilhante que não ter uma resposta plausível para lhe dar.

Chama-se Jobo Baldé, era o padeiro de Missirá, empreendedor topo de gama, sacrificava todos os seus lazeres para fazer pãozinho para a população civil. Não sei se esta fotografia já apareceu no blogue, não faz mal, vai ser remetida para o Luís Graça, fiel depositário de todos os meus materiais. Revejo sempre esta fotografia com orgulho e olhos humedecidos. O Jobo prepara o pãozinho num cunhete de granadas de bazuca. Enviei esta fotografia à minha noiva e digo: “Jobo, o padeiro que Rossini esqueceu para as suas óperas”. O Jobo tinha um fio de voz, quase ciciava, seguia bem perto do seu alferes. Escreveu-me anos a fio, também queria vir trabalhar para Portugal. Em Dezembro de 2010, procurei vê-lo. O Fodé Dahaba telefonou-lhe, não tinha dinheiro para se deslocar da região de Galomaro a Bambadinca, e nós não podíamos lá ir. Caí na asneira de lhe dizer que regressaria à Guiné, alguém ouviu, e é por isso que de vez em quando me escrevem para saber quando eu volto…
____________

Nota do editor

Último poste da série de 19 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12313: Memória dos lugares (254): Aquartelamento de Bambadinca, c. 1970 (Fotos de Humberto Reis, CCAÇ 12, 1969/71) (Parte II)... Daqui da ilha de Luanda e enquanto tenho acesso à rede sem fios, mando um abraço madrugador a um bom camarada que também passou pela "cova do lagarto" , e que hoje faz anos, o Mário Miguéis da Silva. (Luís Graça)

Guiné 63/74 - P12317: (In)citações (56): Meditação (Abel Santos)





1. Em mensagem do dia 13 de Novembro de 2013, o nosso camarada Abel Santos (ex-Soldado Atirador da CART 1742 - "Os Panteras" - Nova Lamego e Buruntuma, 1967/69), enviou-nos esta "meditação", escrita nos anos sessenta do século passado, algures nas matas da Guiné:





MEDITAÇÃO

Novo cigarro, mais um fósforo riscado na raspa da caixa, uma pequenina chama, umas baforadas de fumo que se perdem acima da cabeça, olhos fixos no além, pensamento veloz através da vidraça do tempo na procura da recordação do dia de ontem ou na meditação sobre como será o amanhã.

Tudo, sem esquecer o tempo de agora a que se convencionou chamar presente. Um bom par de minutos deixa que o cigarro se vá gastando até que, num gesto de rotina, seja jogado num cinzeiro, indo juntar-se a outros, que depois de consumidos ali aguardam o momento "solene" de se fazer limpeza.

Rápido como o vento, corre o pensamento em dia de cerração plúmbea, com o sol a aparecer timidamente por entre densas nuvens que cobrem o firmamento. Um leve mover de folhas lembra a aragem morna que corre e deixa que se respire melhor perante a intensa humidade que contempla o ar em circulação.

Um mundo de interrogações percorre a mente de encontro a valores esquecidos, a princípios quebrados, a objectivos pouco expectantes, a injustiças e a guerras indesejadas. O mundo surge incómodo, ornamentado de azedume e negritude que atemoriza as sociedades. Por sua vez, estas apresentam-se incapazes na procura e na oferta de soluções para crises intermináveis.

A massa humana é frágil e não suporta as adversidades que ela própria criou. Não é sem razão que se diz que o homem é um mistério profundo que nunca se chegará a compreender. Continuam hoje, os homens, a serem escravos da tirania, de honrarias e ambições, ansiando por atingir todas as posições e títulos, muitas vezes sem medirem os meios usados na prossecução daqueles objectivos. É a isto que vulgarmente se diz não olhar a meios para atingir os fins.

Apesar de tudo, os homens continuam a percorrer os caminhos da vida, nele encontrando vitórias e derrotas, mas em definitivo, ganhando poder sobre o universo e sobre a própria vida… Daí a tentação permanentemente renovada de se julgarem "auto-suficientes", capazes de se tornarem deuses sozinhos. E a estrada continua aberta, sem que o percurso tenha terminado. Nem o homem está acabado, ainda que se interrogue sobre onde o conduzirá o seu desenvolvimento.

De repente, pensa em humanizar-se mais, em personalizar-se sempre mais, tendo como força motivadora a vida que lhe foi dada e as próprias forças vitais que brotam das suas caminhadas. Mas… numa análise fria e desapaixonada, depressa se conclui que o que dá valor aos homens não são os títulos nem as honrarias e que muitos são aqueles que proclamam a sua ignorância e a sua incompetência quando chamados a lugares de responsabilidade. É aqui que se afirmam os interesses e as situações de favor.

Não é de hoje nem de ontem a afirmação de que só cumpre deveres quem tem ideias. Mas os tempos, todos os tempos, acabam sempre definir e mostrar que os ideais rareiam, que os carácteres se definham e que as vocações se burocratizam. Depois surge o rol infindável de interrogações sobre caracteres sólidos e firmes; sobre as existências de ideais. Quantas vezes se vende a Honra para afivelar uma máscara; quantas para usar um título, se conspurca a Dignidade; quantas, para ocupar um lugar se esfrangalha o Carácter; quantas, para se obter uma situação se atraiçoa a vocação.

Não raro se ouve e se diz do lodo que inunda os caminhos do mundo e da vida; não raro se evoca a dignidade, o amor e a justiça, para que o caminhar nas estradas da vida seja sereno em consciências rectas. Porém, as sociedades já não ouvem nem se ouvem. Constroem-se nesse acumular dúbio das negras nuvens da mentira, da intolerância, do facilitismo e do comodismo do ter, fazendo constante vista grossa ao ser e ao estar.

A esfera enorme consignada como planeta Terra, que dizem ser achatada nas extremidades do seu eixo imaginário, continua a girar e construir dois movimentos rotineiros que não deixam de nos mostrar essa realidade e, mais do que isso, a necessidade de uma luta sem tréguas a favor de personalidades capazes de formar e de manter sociedades sólidas, que saibam dizer sim e não quando as circunstâncias o exigirem. Contudo, nada pode resistir ao desenvolvimento e à expansão da vida em cada um, na medida em que a vida é o fruto perene do amor de Deus por si… Nada. Excepto a liberdade, que é a única fronteira que Deus não pode atravessar sem o nosso consentimento e a nossa participação.

Cada um é livre de receber e de desenvolver o melhor possível a vida que lhe foi dada e de a transmitir como muito bem entender. Como é livre de a desperdiçar afastando-a completamente do seu fim. A ninguém é exigido que seja cego ou ingénuo, mas sim que esteja plenamente consciente das suas carências e da sujidade repugnante da vida que gravita à volta do universo. Costuma dizer-se que se reforça a confiança na medida do crescimento da fé.

Foi-se o cigarro neste espaço de tempo. Subiu em novelos o fumo acinzentado espalhando no ar um doce cheiro a tabaco. Tal como a atmosfera, os pulmões acumularam um mais de pó de carvão e são agora, mais do que ontem, potenciais candidatos ao cancro que os atrofiará.

Neste viver e morrer, sucedem-se os dias e as noites e, com eles a vontade enorme para que o amanhã seja pleno de vitalidade para que a vida possa prosseguir na sua caminhada geradora de histórias e meditações.

P.S. - Texto escrito em 1968, aquando do cumprimento do serviço militar na Guiné-Bissau.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 30 DE SETEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12103: (In)citações (55): Eu desejo acreditar na Guiné-Bissau, nos seus jovens, mulheres e homens de boa vontade, que trabalham nas bolanhas, nas matas, nos rios e no mar... (Paulo Salgado, ex-alf mil, cav, op esp, CCAV 2721, Olossato e Nhacra, 1970/72; cooperante)