quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 – P12475: Memórias de Gabú (José Saúde) (36): Visita à piscina do QG, em Bissau. Uma ida a banhos.



1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua série. 

As minhas memórias de Gabu

Visita à piscina do QG, em Bissau

Uma ida a banhos


O dia, como sempre, estava divinal. Sol e calor q.b. prometia uma ida a banhos para refrescar ideias a um corpo que se deparava com uma sufocante temperatura que não dava tréguas a um furriel miliciano que, ocasionalmente, se encontrava na capital. A visita a Bissau, embora curta, apresentava-se oportuna para uma escapadela à piscina dos oficiais que, por acaso, estava também franqueada à classe de sargentos, creio.

Lembro que a piscina ficava por detrás das instalações de sargentos no QG. Sei que a minha presença em Bissau ficou a dever-se ao facto de me encontrar de férias e esperando pelo dia da viagem que me trouxesse, por 30 dias, à então metrópole lusa. Tudo isto se passou nos primeiros dias do mês abril de 1974.


Não sei quem terá tido a ideia de uma tarde a banhos em águas calmas e sobretudo refrescantes. Um camarada, certamente, propôs o desafio e a malta não rejeitou a experiência que contou, naturalmente, para o enriquecimento factual das minhas aventuras guineenses.

A piscina, na sua estrutura propriamente dita, continha bons espaços de lazer e de desporto. Recordo, com saudade, o campo de voleibol, por exemplo. Ressalta-me à mente os improvisados jogos entre camaradas. Os despiques exacerbados protagonizados por militares que pertenciam, quiçá, a especialidades ou a secções diferentes em horas de pleno ócio.

Anoto, também, que esses jogos poderiam ser jogados por equipas de piriquitos organizados que casualmente por lá terão passado. Porém, a minha conceção nessa visita à piscina do QG, encaminhou-me para uma visão mais ampla, isto é, depreendi que toda aquela rapaziada, essencialmente alferes, cheiro-me a gente que se conhecia mutuamente para além de outros oficiais com patentes mais elevadas que olhavam o novo visitante como um mero intruso. Olhares enviusados, alguns de esguelha, que espelhavam reinar num trono meramente sonhado. Deixai-os em paz, senhor! Teremos, eu e o camarada que me acompanhava, comentado.

Perante a benesse não me fiz rogado e eis-me a saltar para a água da piscina. Depois veio o salto do meu camarada. Nadámos, apanhámos um pouco de sol e retirámo-nos, ficando a dúvida para os graduados superiores quem seriam os dois marmanjos que invadiram aquele espaço porventura “armadilhado” e se retiraram rumo ao “Biafra” dos sargentos!

Nas minhas memórias de Gabu, conservo no meu baú histórias hilariantes de uma Guiné onde os contrastes de patentes militares traçavam irreverentes poderes e, simultaneamente, desusados princípios, onde a pressuposta guerra dos galões se sobrepunha, e de que maneira, ao contingente das divisas. 

Mas tudo isto são narrativas passadas, porque também sei que o pessoal da cidade era portador de uma conduta diferente daquela que constatávamos no mato. Todavia, existiam, e é verdade, hierarquias militares que marcavam posições diferenciadas e quanto a isso nada a dizer, melhor, a contradizer. Era a lei do mais forte que imperava.

Recordo de uma ocasião passar por Gabu um amigo meu, tínhamos sido companheiros de futebol no Sporting, o Luís Guerreiro, era soldado, e levá-lo à messe de sargentos, sendo que a sua presença foi bem acolhida. Disse de quem se tratava e não houve o menor problema, não obstante o Luís, a princípio, duvidar da fartura que lhe coloquei à sua disposição.

Numa outra ocasião, na cidade de Bissau, encontrei um velho amigo que era da PM que fingiu não me conhecer. Pomposo, tipo mandão, tentou entrar num trilho pressupostamente desconhecido e fazendo jus à braçadeira que ostentava no braço procurou amedrontar-me com uma pergunta tipicamente baixa e sem algum nexo aparente. Se a memória não me falha o gozo da brincadeira era o crachá de Operações Especiais/Ranger colocado no meu ombro esquerdo. Respeitosamente olhei-o de frente, olhos nos olhos e disse-lhe: “Primeiro bate-me a respetiva continência e depois falamos”. O rapaz viu que meteu água e a conversa enveredou por um outro tipo de palavreado. Contrastes, camaradas. O mato era mato, a cidade era a cidade.

Pormenores de um combatente que tenta deixar explícito a nossa vivência quotidiana na Guiné.

Um turista na piscina do QG em Bissau


Um abraço, camaradas 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523

Mini-guião de colecção particular: © Carlos Coutinho (2011). Direitos reservados.
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Nota de M.R.:
  

Guiné 63/74 - P12474: Tabanca Grande (415): Júlio Martins Pereira, ex-sold trms, CCAÇ 1439 (Enxalé, Missirá e Porto Gole, 1965/67): condecorado com a Cruz de Guerra de 4ª classe, pela sua ação em 6/10/1966, na sequência de mina A/C na estrada Missirá-Enxalé


Crachá da CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67). Divisa: "Bravos, Avante!"



Cruz de guerra de 4ª classe, com que foi condecorado o nosso camarada Júlio Martins Pereira (vd., lista do portal UTW - Utramar Terraweb > Condecorações atribuídas por feitos em campanha, Guiné 1963/743. Segundo esta preciosa fonte de informação, mais de mil e cem combatentes dos 3 ramos das forças armadas portuguesas receberam condecorações por feitos em campanha, no TO da Guiné: cruz de guerra, valor militar ou torre e espada).





Averbamentos na caderneta militar do Júlio Martins Pereira, pp. 20/21


Fotos: © Júlio Martins Pereira (2013). Todos os direitos reservados.


1. Continuação da apresentação do novo membro da Tabanca Grande, nº 635, Júlio Martins Pereira, sold trms, CCAÇ 1439 (Enxalé, Porto Gole e Missirá, 1965/67) (*)


 As minhas lembranças na Guiné.1965/1967...Agora são recordações, mas naquelas datas foram sofrimentos e muitas saudades de quem cá deixei e muitas coisas mais que por aí se passaram.
Ver, por exemplo,  colegas meus morrerem, como vós camaradas deveis saber.

Sim,  é verdade que fui condecorado com a Cruz de Guerra de 4ª classe, no dia 10 de junho de 1968, na Avenida dos Aliados, no Porto. É também verdade que fui várias vezes convidado pelo governo português para estar presente nas cerimónias comemorativas do Dia de Portugal.

Poderão ainda confirmar aquilo que vou descrever que é verdade e porque está escrito na minha caderneta militar, não pedi nada a ninguém, podem consultar os arquivos. O que fiz está feito, deram-me ordem de prisão por eu ter dito que tomasse o café e que lhe soubesse  merda, aqui no Enxalé. Deram-me ordem de prisão porque eu lhes disse que não havia direito eles já terem comido e nós estarmos à espera.

Aqui, em Missirá, mas eu nunca estive na prisão nem da primeira vez nem da segunda, todo o pelotão estava formado, em sentido e de marmita na mão, quando eles já tinham comido, debaixo da tabanca na nossa frente. Foi preciso eu tomar a atitude de mandar destroçar, batendo com o pé no chão, três vezes. Mas só aí alguém lhes perguntou quem foi que tinha mandado destroçar... Foi quando me vieram pedir os meus dados e nos mandaram formar novamente. Foram então novamente prá sombra da tabanca e só depois mandaram o cozinheiro servir-nos a dita refeição...

Não, eu não pedi para ser condecorado, eu não era filho de gente dita rica, chique, eu lutei por mim e pelos meus camaradas, porque quando eu dei a primeira resposta do café, foi porque eu tinha estado de serviço durante a noite, ao posto de rádio, que ficava nas traseiras do quarto do alf Luís Zagallo. Essa frase foi para o camarada que me veio substituir, de manhã, o Clidónio, este vive em Campo, Valongo, [é hoje meu vizinho].

Lutei por aquilo em que eu acredito, mas que muita coisa foi uma má imagem para Portugal, isso foi. Tantas coisas se fizeram e algumas pessoas ainda foram contempladas, mas, enfim, a vida é assim mesmo, e dos mortos já não devemos falar. Mas eu passei muitas noites no Enaxalé, de serviço ao posto de rádio e também a servir de..., dum que se dizia senhor e, que quando lhe dava na cabeça, já depois de bem bebido, depois de fazer aqueles ditos coquetéis com todo o género de bebidas e mais algumas, incluindo a famosa pasta 444 que era de pôr na cara, a altas horas da noite, mandava chamar o motorista e eu era incumbido de comunicar com Porto Gole,  informando que um certo senhor ia lá tomar um uísque... 

Àquela hora da noite, o jipe lá arrancava, povoação adiante,  saía fora da porta d'armas do Enxalé e, mais adiante, o piso era bastante bom, já dava para fazer algumas travessuras.

Júlio Martins Pereira

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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12456: Tabanca Grande (415): Júlio Martins Pereiratabanqueiro nº 635

Guiné 63/74 - P12473: O que é que a malta lia, nas horas vagas (21): Valentim Oliveira: a Plateia, livros e a correspondência; João Rebola: corridas de burros, futebol, fados, bailes com lindas "bajudas", andar de mota, saborear uns franguitos, etc.

1. Mensagem do nosso camarada Valentim Oliveira (ex-Soldado Condutor da CCAV 489/BCAV 490, ComoGuidaje e Farim, 1963/65), com data de 17 de Dezembro de 2013:

Caro Amigo Luís.
Voltando aos anos vinte, e recordando os quase 50 anos que já lá vão, ainda tenho presente na memória as leituras que devorava quando o tempo me permitia.
Lia livros meus e de amigos, mas a que mais gosto me dava era a Revista Plateia que a minha Bajuda hoje esposa me enviava.
Envio em anexos duas fotos as quais mostram a minha razão de ser.

Aproveito esta mensagem para desejar a todos os amigos da tertúlia um Natal feliz e um Ano novo com muita alegria.

Um abraço das terras de Viriato.
Valentim Oliveira




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2. Mensagem do nosso camarada João Rebola (ex-Fur Mil da CCAÇ 2444, , Cacheu, Bissorã e Binar, 1968/70), com data de 18 de Dezembro de 2013:

Boa noite, Carlos
Na verdade, nos primeiros meses, em Có e Cacheu, principalmente, não era fácil arranjar tempo e vontade para grandes leituras (excepto os famosos aerogramas), pois a desgastante actividade operacional - CAOP1- e suas consequências, não permitia envolvimento em situações "culturais".
Porém, quando tomámos conta do sector de Bissorã, onde permanecemos cerca de 14 meses, aí sim já se arranjou tempo para muita coisa: corridas de burros, futebol, fados, bailes com lindas "bajudas", andar de mota, que comprei em Bissau por 6 contos, saborear os frangos do Lavinas, etc, etc.
Foi o melhor tempo que passei na Guiné.
Tudo isto "fazia" esquecer os maus momentos passados.
Seguem algumas fotos ilustrativas.

Bom Natal e Feliz Ano Novo
João Rebola

Acelerando a minha Onda 

Montando um dos burros de Sitafá Camará

No restaurante do Manuel Lavinas 

Fado na messe de sargentos. A cantar o fado, o nosso camarada Armando Pires 

As minhas bajudas 

Frente-a-frente com Armando Pires 

Equipa da CCAÇ 2444

No Bingo de Bissorã
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Nota do editor

Último poste da série de 19 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12472: O que é que a malta lia, nas horas vagas (20): Desde a revista "Plateia" até ao romance "Os Lobos", de Hans Helmut Kirst, leituras que depois eram discutidas em grupo (Manuel Amaro, ex-fur mil enf, CCAÇ 2615 / BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969 a 1971)

Guiné 63/74 - P12472: O que é que a malta lia, nas horas vagas (20): Desde a revista "Plateia" até ao romance "Os Lobos", de Hans Helmut Kirst, leituras que depois eram discutidas em grupo (Manuel Amaro, ex-fur mil enf, CCAÇ 2615 / BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969 a 1971)

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Guiné > Região de Quínara > CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969 a 1971) >  Nhala > Maio de 1971 > Revista Plateia com a eleição da Riquita como Miss Portugal.



Guiné > Região de Tombali > CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969 a 1971> Aldeia Formosa (?) > Palestra sobre o romance "Os Lobos", de Hans Helmut Kirst [1914-1989]

Guiné > Região de Tombali > CCAÇ 2615/BCAÇ 2892 (Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969 a 1971> Aldeia Formosa (ou Quebo) >  Janeiro de 1970 > O Manuel Amaro lendo recortes com notícias sobre o fim da guerra no Biafra.


Fotos (e legendas): © Manuel Amaro (2013). Todos os direitos reservados (Edição: L.G.)


1. Mensagem, de 9 do corrente, do Manuel Amaro [ex-fur mil enf, CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969 a 1971]:


Caros Editores

Como estava em “digressão” aquando do lançamento do desafio, aqui vai, hoje, a minha colaboração.

Nas horas vagas eu lia tudo o que aparecia. Eu até era dos que tinham menos horas vagas. Mas ali, na Guiné, naquele tempo, cada hora vaga parecia uma eternidade.


Por isso tudo o que aparecesse era bem aparecido. De qualquer origem. Livros, Jornais e Revistas enviados pela família, pelas famílias dos camaradas, ou pelo sempre presente Movimento Nacional Feminino.

E depois, quase sempre, discutia-se, em pequenos grupos os temas das leituras de cada um.
Junto três fotos que documentam alguns desses momentos.

(i) A leitura de um conjunto de recortes, creio que do Comércio do Porto ou do Jornal de Notícias, que anunciavam o fim da guerra do Biafra, e que tinham sido enviados por familiares do José António Paiva da Silva, Furriel Enfermeiro da CART 2521.

(ii) A discussão, em grupo, sobre “Os Lobos”, de Hans Helmut Kirst que me deu um trabalhão a ler, mas que também me deu oportunidade de fazer um figurão perante os meus camaradas e amigos;

(iii) Outra foto testemunha a leitura da Revista Plateia, em Nhala, maio de 1971, em cuja capa está a Riquita (Celmira Baulet),  eleita Miss Portugal 1971, que eu viria a conhecer pessoalmente já no final da década de setenta.

Ler... aproveitar as horas vagas, foi bom. Dupla ou triplamente bom. No Liceu era uma grande “chatice” ter que explicar os textos. Aqui era um prazer.

E hoje, a esta distância, posso dizer que, a par da minha atividade como Enfermeiro e Professor, na Guiné, as leituras efetuadas, porque voluntárias e feitas nas horas vagas, foram de uma grande utilidade na minha orientação profissional após o regresso à vida civil.

Sempre ao dispor da Tabanca Grande.

Um Abraço


Manuel Amaro
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Nota do editor:

Último poste da série > 17 de dezembro de  2013 > Guiné 63/74 - P12465: O que é que a malta lia, nas horas vagas (19): Tínhamos uma biblioteca de 80/100 livros, herança da CART 2340 (Luís Nascimento, ex-1º cabo cripto, CCAÇ 2533, Canjambari e Farim, 1969/71)

Guiné 63/74 - P12471: Parabéns a você (666): Humberto Reis (ex-fur mil op esp, CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71) e João Melo (ex-1º cabo cripto, Cumbijã, 1972/74)

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Nota do editor:

Último poste da série > 16 de dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12455: Parabéns a você (665): António Paiva, ex-Soldado Condutor Auto (HM 241, 1968/70)

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Guiné 63/74 - P12470: Inquérito online: ocupação dos tempos livres no mato... A decorrer até à véspera de Natal... Os primeiros depoimentos: J.F. Santos Ribeiro, Francisco Palma, Xico Allen, João Martins



Guiné > Zona leste > Setor L1 > Bambadinca > CCAÇ 12 (1969/71) > Foto nº 56 > Nos dias de folga (, às vezes horas...), a malta fazia questão de se desfardar e vestir "à civil"... Mesmo que fosse para ir beber um copo, fora do arame farpado, na tasca do Zé Maria... Era uma questão psicológica e uma forma de esquecer a guerra, por um dia ou por umas horas... Na foto, o Arlindo Roda, à civil, junto à casa do chefe de posto, dirigindo-se muito provavelmente à tabanca, fora do arame farpado... Foto do álbum de Arlindo T. Roda, ex-fur mil da CCAÇ 12 (1969/71).

Foto: © Arlindo T. Roda (2010). Todos os direitos reservados. [Edição e legenda: L.G.]


A. Mensagem enviada ontem, às 21h30, pelo correio interno da Tabanca Grande, com algumas modificações:
Camaradas:

Assunto - Sondagem: O que é que a malta fazia, nos 'tempos livres'

O blogue é curioso... Ou melhor: o blogue quer ajudar-nos a (re)arrumar as nossas memórias de há 40/50 anos... Ora cá está um tema, a ocupação dos tempos livres,  que dá para todos participarem... No meio da atividade operacional e daqueles longos 21, 22 e mais meses de 'comissão de serviço', havia alguns tempos livres, de dia ou de noite... Ou não havia ?

Bom, a pergunta é: como é que a malta 'matava o tempo' ?... Por tempos livres deve entender-se o as horas e os dias que sobravam depois de cumpridas  as  obrigações militares inerentes à nossa condição de combatentes (fazer quartos sentinela, rondas, saídas, emboscadas, colunas, operações...). O que no mato, no interior do TO da Guiné, era relativo; dormia-se sempre com a G3 à cabeceira...

A pergunta é dirigida mais diretamente a quem vivia num aquartelamento ou destacamento no mato... No caso da malta que estava em Bissau, havia mais alternativas... de diversão e lazer (que não vamos, por agora, incluir na nossa última sondagem de 2013).

Até ás 11h do dia 24 do corrente, podem responder (votando...) DIRETAMENTE, no nosso blogue, na COLUNA DO LADO ESQUERDO, AO ALTO, a mais esta  sondagem do nosso blogue... Há 20 hipóteses de resposta. São admissíveis múltiplas respostas desde que não contraditórias.

Obrigado. Um alfabravo natalício e fraterno, Luís Graça, editor.

PS - Podem também escrever pequenos textos para o blogue e mandar juntamente fotos... Os editores agradecem.

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SONDAGEM: NO QUE DIZ RESPEITO À OCUPAÇÃO DOS 'TEMPOS LIVRES', NO(S) AQUARTELAMENTO(S) ONDE ESTIVE, LEMBRO-ME QUE... (PODES DAR MAIS DO QUE UMA RESPOSTA)


1. Havia uma pequena biblioteca com livros

2. Eu lia jornais/revistas com alguma regularidade

3. Eu lia livros com alguma regularidade

4. Não tinha tempo para ler

5. Não tinha disposição para ler

6. Não tinha nada para ler

7. Levei livros para a Guiné

8. Assinava revistas/jornais

9. De preferência ouvia música

10. De preferência jogava à bola

11. De preferência jogava às cartas

12. De preferência ia à pesca ou caça

13. De preferência convivia com os meus amigos

14. De preferência convivia com a população da tabanca

15. De preferência petiscava e/ou bebia uns copos

16. De preferência dormia (por ex., a sesta)

17. Tinha um diário onde escrevia

18. Lia e escrevia cartas e aerogramas

19. Fazia trabalho comunitário (escola, saúde, igreja...)

20. Não sei / não me lembro

B. Alguns comentários ou respostas recebidos ontem, à noite:


José Fernando dos Santos Ribeiro [ou J. F. Santos Ribeiro[ex-1º Cabo de Transmissões na CCS do BCAÇ 2912, Galomaro, 1970/72]

Eu (e a grande maioria), quando não estava de Serviço (Transmissões), ou íamos até ao Regala (tabanca de comes-e-bebes, dum Cabo-Verdiano), ou arranjavámos maneira de ir na Coluna a Bafatá (+/- 35 Km., por picada), ou íamos até às Tabancas fazer "psico" (sic.).

Estou a falar do período de 1970/1972, no Leste da Guiné, em Galomaro/Cossé. BCAÇ 2912/CCS. 

Um abraço a todos. D´Jarama, Inté.


Francisco Palma [ex-sold condutor auto, 
CCAV 2748/BCAV 2922, Canquelifá, 1970/72] 
O que eu respondi:

(2) Eu lia jornais/revistas com alguma regularidade;

(3) Eu lia livros com alguma regularidade;

(9) De preferência ouvia música;

(10) De preferência jogava à bola;

(11) De preferência jogava às cartas;

(13) 13. De preferência convivia com os meus amigos;

(14) De preferência convivia com a população da tabanca;

(15) De preferência petiscava e/ou bebia uns copos;

(18) Lia e escrevia cartas e aerogramas;


Xico Allen [ex-1.º cabo at inf, CCAÇ 3566, Os Metralhas, Empada, 1972/74]


Com alguns meses de estadia, me enviaram alguns livros escolares. Ainda recebi explicações de matemática mas não era facil ir ao liceu em Bissau fazer exames.

Ajudaram a passar o tempo...

Abraço, Xico.

João José de Lima Alves Martins [ou João Martins

[ex-alf mil art,  BAC1, Bissum, Piche, Bedanda, Gadamael e Guileje, 1967/69 ]


Para mim, para o meu bem estar psicológico, para ultrapassar o "stress" permanente que vivia e me obrigava a estar sempre preparado para responder a um ataque do inimigo, e para compreender a natureza daquela guerra que fomos forçados e chamados a enfrentar, tornou-se da maior importância compreender o que pensavam e sentiam as diversas populações com as quais tive o privilégio de contactar, e foram muitas. 

Por isso, todo o tempo disponível em que me afastava das bocas de fogo, era dedicado a um contacto mais próximo com as populações. Daí, as muitas fotografias que lhes tirei. Aliás, teria sido capaz de me oferecer para servir o meu País, no Ultramar, porque considerava fundamental esse conhecimento para poder falar, com conhecimento de causa, desse tema que tão discutido era no areópago das Nações Unidas, e era tema geral de confronto de ideias no nosso país. 

Compreendo os meus camaradas que se refugiaram em Paris, aliás, também me invadiu o desejo de me ir embora tal era a acção psicológica desenvolvida no COM [Curso de Oficiais Milicianos] de Mafra, mas não posso compreender que não sejam considerados de desertores, e, ainda menos, poderei aceitar como bons portugueses todos os que, de algum modo, andaram conluiados com a CIA e o KGB. 

Tendo conhecido o pensamento de centenas de africanos, cheguei à conclusão, tal como Amílcar Cabral (,que cheguei a elogiar quando prestei declarações "sobre quais eram as minhas impressões do teatro de operações da Guiné"), que a guerra que enfrentámos não se restringia a africanos contra europeus, mas, somente, a africanos contra um regime opressor, situação muito bem aproveitada pelas grandes potências da altura que trataram de infiltrar no nosso país, e até, nas forças armadas, quem aceitasse colocar-se ao seu serviço. 

Ora, os regimes são passageiros e circunstanciais, as nações é que, regra geral, perduram. É óbvio, que a nossa já não é o que era, e,"pelo andar da carruagem", nem vaticino onde vai parar...

Guiné 63/74 - P12469: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (12): Férias da Páscoa em Bubaque - Bijagós

1. Continuação das "Memórias da Guiné" do nosso camarada Fernando Valente (Magro) (ex-Cap Mil Art.ª do BENG 447, Bissau, 1970/72), que foram publicadas em livro de sua autoria com o mesmo título, Edições Polvo, 2005:


MEMÓRIAS DA GUINÉ

Fernando de Pinho Valente (Magro) 
ex-Cap Mil de Artilharia

12 - Férias da Páscoa em Bubaque - Bijagós

Na Páscoa de 1971 consegui uns dias de férias.
Resolvemos eu, a Lena e o nosso filho Fernando Manuel, passá-las no arquipélago de Bijagós.
Esse arquipélago "ocupa uma área de 1478 Km2, distribuídos por cerca de cinquenta ilhas e ilhéus, que emergem do extenso planalto submarino que se localiza a menos de vinte metros do nível das águas"(1).

As ilhas mais importantes do arquipélago de Bijagós são: Orango, a maior, com 313 Km2; Bubaque, sede de circunscrição, com 48 Km2; Caravela (117 Km2); Formosa (115 Km2); Orangosinho (94 Km2); Roxa (90 Km2); Uno (82 Km2); Coraxe (72 Km2); Maio (52 Km2); Ponta (35 Km2); Meneque (35 Km2); Cagono (27 Km2); Uracane (27 Km2); Rubane (18 Km2); Unhacomo (13 Km2); João Vieira; Cavalos; Meio; Poilão; Soga...

A origem do povo do arquipélago de Bijagós é duvidosa.
Lemos Coelho diz ter recolhido a tradição de ter este povo sido expulso do continente pelos Beafadas.
Durante séculos os Bijagós exerceram pirataria na costa, trazendo nativos da parte continental com os quais se cruzavam.
"Os Bijagós distinguem-se dos demais povos por viverem em regime de matriarcado, no qual a mulher, como dirigente da economia familiar, desfruta de prerrogativas especiais.
É ela que toma a iniciativa do casamento.
O convite é expresso por um cabaço de arroz cozido enviado ao pretendido.
No caso de separação é ela também que toma a iniciativa. Põe a esteira e os apetrechos do companheiro à porta da palhota, significando com isso não o desejar mais no lar"(1).

Álvares de Almeida já em 1594 diz que os homens Bijagós nada mais fazem na vida do que três coisas: guerra, embarcações e tirar vinho da palma.
As mulheres, essas fazem as casas, as searas, pescam e mariscam e todo o mais serviço que fazem os homens em outras partes.

Na Páscoa de 1971 desloquei-me em barco militar para a Ilha de Bubaque, sede administrativa do arquipélago.
A viagem foi muito agradável, de tal forma agradável que, por muitos anos que viva, não mais a poderei esquecer.
O mar estava calmo, o céu luminoso, o ar quente.
Quando comecei a aproximar-me do arquipélago fiquei surpreendido com as ilhas que se me desfilavam ao longe.
Os golfinhos davam grandes saltos na proximidade da embarcação.

Entrando propriamente na área do arquipélago, o mar era um canal e a vista sobre as ilhas deslumbrante.
Até ali nunca tinha feito um cruzeiro no Mar Jónio, visitando as ilhas gregas. Na altura supunha que seria uma situação parecida com a que estava a viver.
Mais tarde, quando tive oportunidade de fazer esse cruzeiro pelo Arquipélago Grego, cheguei à conclusão de que a viagem por Bijagós me foi mais agradável, dando-me maior prazer.

Em Bubaque instalámo-nos na Estalagem do Teodoro.
O Teodoro era um negro, já aculturado, que explorava a única instalação hoteleira de todo o Arquipélago.
Essa instalação era composta por umas tantas palhotas que, exteriormente, eram semelhantes às dos Guinéus, mas que interiormente eram dotadas de um quarto, uma saleta e um quarto de banho, divisões devidamente equipadas.

As refeições tinham lugar numa construção de madeira com dois pisos.
No piso superior havia um amplo terraço sobranceiro ao mar onde eram servidas as refeições.
Jantar nesse terraço com o mar praticamente por baixo, o mar que era um canal, uma vez que defronte, não muito longe, se viam perfeitamente outras ilhas; com os golfinhos a exibirem-se continuamente, jantar naquele terraço era uma situação de encantamento e muito prazer.

Aí encontramos o Major Lemos Pires (que mais tarde viria a ser o último Governador de Timor e hoje é General), que também se encontrava em Bubaque em gozo de umas curtas férias com a sua esposa.
Logo que nos viu convidou-nos para a sua mesa, pelo que desfrutámos da sua agradável companhia por alguns dias.
Mais tarde encontrei também o meu colega Linderbrün (engenheiro técnico como eu mas de uma especialidade diferente - enquanto a minha especialidade era engenharia civil a dele era engenharia mecânica).
Estava colocado como Capitão Miliciano em Bissau no Serviço de Material.
Era bom pescador e marisqueiro.
Muitas vezes nos convidou (a mim e à minha família) para a sua palhota, onde preparava peixe grelhado e assava ostras.
Também estava em Bubaque, nessa mesma altura, o Capitão Otelo Saraiva de Carvalho (o estratega do 25 de Abril de 1974) mas não se instalou na Estalagem do Teodoro. Era convidado, segundo julgo, do Administrador.

Os oito dias de férias em Bubaque decorreram com muita satisfação e calma.
Fazíamos praia. A algumas centenas de metros da areia havia, mar dentro, uma protecção contra tubarões, que existiam naquelas paragens. A sua presença era notada sempre que víamos cardumes de pequenos peixes fugindo da sua perseguição até terra firme.
Conversávamos com o casal Lemos Pires.
Comíamos peixe de grande qualidade na Estalagem do Teodoro. E muitas vezes apanhávamos um fartote de ostras na palhota do Linderbrün.

Quando as férias acabaram voltámos a Bissau num barco militar.
Nele vinha o Capitão Otelo Saraiva de Carvalho, a sua mulher e os três filhos, o Intendente e a esposa, o Linderbrün e a mulher e outros de que não me recordo.

A viagem foi iniciada dentro da maior normalidade.
O barco vinha superlotado.
Pouco tempo depois de zarparmos de Bubaque, o vento começou a fazer-se sentir com alguma intensidade.
O mar começou a encapelar. As ondas atingiram alguns metros de altura.
O nosso barco parecia uma casca de noz no meio daquele mar imenso.
As pessoas começaram a assustar-se.
O Intendente, homem já de certa idade, foi-se abaixo.
Numa ocasião em que o nosso barco caiu no cavalo de uma onda para aí de oito metros de altura, a esposa do Capitão Otelo agarrou-se às minhas mãos e, aflita, gritou:
- Senhor Capitão, vamos morrer todos aqui!

Serenei-a como pude, enquanto o marido protegia os filhos.
Surpreendentemente, a Lena e o Fernando Manuel enfrentaram a situação com alguma coragem.
Anoiteceu. Estávamos relativamente perto de Bissau.
As luzes da cidade eram perfeitamente visíveis.
Acabámos por entrar no rio Geba que, tal como o mar, estava também com ondas alterosas. Parecia que o tormento nunca mais acabava.
Finalmente aportámos sãos e salvos.
Foi um alívio.

Desta situação o Capitão Otelo Saraiva de Carvalho, mais tarde, em 1990, sendo entrevistado pelo jornal Público, e sendo-lhe perguntado qual a pior recordação de férias da sua vida, respondeu assim:
"- Na Páscoa de 71, na Guiné-Bissau, regressávamos eu, minha mulher e os nossos três filhos da ilha de Bubaque, no arquipélago dos Bijagós, depois de duas óptimas semanas de férias, quando o barco em que seguíamos, superlotado, esteve prestes a naufragar com um rio/mar encapelado e tormentoso como o Geba o pode ser."

Como não mais me esquecerei da viagem de Bissau até Bubaque por ter sido muito agradável e pelos momentos de encantamento que me proporcionou, não poderei também esquecer, por muitos anos que viva, a viagem de regresso a Bissau, pelas razões que descrevi.

(1) - Enciclopédia Luso-Brasileira
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Nota do editor

Último poste da série de 12 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12435: "Memórias da Guiné", por Fernando Valente (Magro) (11): Passagem de ano na Associação Comercial

Guiné 63/74 - P12468: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (11): Crónicas (ausentes) de "Tarrafo" (2): Gente amiga, Onde há macacos... e Despedida com lágrimas

Terminamos hoje a série "Últimas Memórias da Guiné", com o segundo grupo de 3, de 6 Crónicas (ausentes) de "Tarrafo"
Diz o autor desconhecer como estas (6) histórias não saíram na edição daquele livro. Lembremos que o "Tarrafo" é composto por crónicas enviadas da Guiné para serem publicadas no Jornal da Bairrada, pelo, hoje considerado o primeiro repórter da Guerra do Ultramar, Armor Pires Mota, que foi Alferes Miliciano da CCAV 488.


ÚLTIMAS MEMÓRIAS DA GUINÉ - 11

Por Armor Pires Mota (ex-Alf Mil da CCAV 488/BCAV 490, Bissau e Jumbembem, 1963/65)

CRÓNICAS (AUSENTES) DE TARRAFO - 2

Por qualquer motivo, não incluí na edição do TARRAFO alguns textos que foram inseridos no Jornal da Bairrada. Ora aqui os recupero, passado meio século. Tal como aconteceu com o“Diário de Bordo” que naufragou com a nau do esquecimento.

Gente amiga

“Maio de 1964

Os que se refugiaram no Senegal sentem que aquele não é o seu chão. E, quando souberam do nosso acantonamento junto à fronteira, alguns homens grandes vieram falar à tropa, ao capitão [Correia Arrabaça]. Queriam regressar, ajudariam a tropa a fazer o quartel e a patrulhar a zona, quando lhes déssemos armas, fariam ali as suas moranças, o seu chão seria ali. Além fronteiras, sofriam fome, privações e muitas vezes iam à suas antigas aldeias buscar alguns víveres. Ainda há dias encontrei meia dúzia de homens com mantimentos à cabeça, aos ombros. Perguntando-lhes o que faziam por ali, vi que lhes podia dar boleia até ao acantonamento. Dali ao Senegal a distância era mínima.

Falaram dos terroristas: “ bandido levar gente amiga de Português para o mato, roubar tudo. Assim, a gente sem arma, fugir”. Queixaram-se também de fome e privações: “no chão de Francês corpo dói, cabeça dói e gente mesinho cá tem… no chão de Francês vianda cá tem”. Era sabido que muitos naturais do país vizinho, e em tempos sucedia o mesmo no sul, vêm por vezes aos nossos postos de socorro da fronteira.

Gostariam de regressar, eram largas centenas. Não queriam estar mais debaixo da bandeira do Francês.
O caso foi exposto a quem de direito.”

Jornal da Bairrada, 6 Março 1965

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Onde há macacos…

Jumbembem, 11 de Dezembro de 1964

Caminhávamos, há três horas, na húmida noite do capim. Ao amanhecer, entrámos na tabanca. Deixámo-la intacta como não tivesse ares de comprometida. De cima da avioneta, o tenente-coronel [Fernando Cavaleiro], ia dando indicações, por aqui, por ali. E assim fomos ter à estrada, vencendo a bolanha.

Dois bandidos, vestidos de azul, sentados na berma, junto de um monte de árvores tombadas, ficaram surpresos e apalermados, não nos esperavam ali.
– Olhe bandidos! – disse o Estremoz, num cicio de espanto.

Cheguei-me junto dele. Apontou, carregou no gatilho e… nada. Ficou furioso. A arma encravara-se. Eles toparam a nossa presença e, fugindo, enrolaram-se no capim. Ainda atirei, mas em vão.

Certamente tinham vindo da emboscada montada à coluna auto em que houve dois feridos graves. O furriel enfermeiro, atingido nas costas, injectou e pensou o melhor que pode, os feridos, e somente no fim é que se injectou e pensou com a ajuda de um camarada. O Faustino, terrorista recuperado, contorcia-se com os estilhaços cravados num dos olhos.

Era a terceira ou quarta vez, que eu via tão de perto bandidos armados. Em combate, isso é difícil. De resto, nem mortos, é muito raro. Em geral, só rastos de sangue, guardas-de-corpo [amuletos]. É que, junto de cada atirador, há sempre quem saiba também dar ao gatilho. Assim, caso o atirador fique ferido ou morra, há outro que toma conta da arma e defenda a posição, o melhor possível, enquanto outros guerreiros arrastam para fora do local da emboscada o ferido ou o morto. E assim sucessivamente.

Um T6 sobrevoava-nos e o rádio-telefonista contactava o estacionamento:
– Estamos de costas…

Regressávamos. Eu falava para o Peixe e ele apontou-me:
– Olhe ali plantas de ananás!

Olhei. Por detrás das árvores, macacos saltavam, gritando. Achei a coisa natural, porque sempre ouvira dizer: “onde há macacos, não há terroristas"…

O Montes, que devorava um pedaço de pão com um naco de polvo assado do jantar da véspera, interrompia-me:
– Quando há-de ser o dia em que havemos de atirar-nos para o charco?

Mal eram ditas estas palavras, o fogo, vindo do mato, da esquerda e da direita, fez-nos arremessar para o chão em menos de um segundo. Os da frente tombaram de cabeça na bolanha. Encharcaram-se todos. Mas todos, num relâmpago, abriram uma estrondosa fuzilaria, estrondosa e cerrada. Por sua vez, a Fox batia a zona com fogo preciso e o T6 fazia acrobacias, metralhando, reforçando, desse modo, o estridular das armas.

Regressados ao quartel, pela calada da noite, houve grande choro para os lados de Bricama. Ouvia-se, quase imperceptível, o rumor dos tambores. Muitos haviam tombado definitivamente.

“Onde há macacos, não há bandidos"…
Pelo menos para nós, pela primeira vez, isto era mentira.

Jornal da Bairrada, 29 Maio 1965

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Despedida com lágrimas

Jumbembem, 14 de Agosto de 1965

A minha companhia teve conhecimento no dia 13 de Junho que ia abandonar Jumbembem, no dia seguinte, rumo a Farim. Houve lágrimas e euforia. “A aldeia ficou muito triste quando soube [dia 13 de Junho de 1965] que íamos ser rendidos. Alguns homens e bajudas [raparigas] começaram a pedir-nos fotografias para recordação. O Bassiro[chefe da tabanca], de voz entaramelada, desenhou no rosto olhos húmidos de saudade. Éramos amigos e íamos partir para sempre”.

“Para nós foi dia de festa e algazarra. Cervejas, abraços, gritos do viva a peluda! O Caracol puxou do acordeão e logo se lhe juntou uma comitiva terrível de euforia: soldados batiam latas, cantando, enquanto as miúdas batucavam, saltando, batendo palmas. As ruas encheram-se de música, à luz da lua que alongava os ramos dos mangueiros sobre os tectos das moranças. Cantar para melhor cicatrizar as carnes frescas de sofrimento, as feridas que a guerra nos abriu, embora nos recordemos sempre”.

[No dia seguinte, houve a cerimónia ritual da despedida, à volta da bandeira hasteada]

“Os homens alinhados no terreiro, fardas coçadas, esperavam o toque do clarim. Havia olhos febris, ensonados. Dormir, quando se faziam tantos planos? Além disso, a noite fora de festa e algazarra, ar morno e lua enorme em forte e irresistível magia a bater-nos no peito. Cervejas, abraços, gritos. O Caracol puxou do acordeão de novo e logo se lhe juntou uma comitiva terrível, eufórica: os soldados batiam latas, cantando num coro dissonante, esganiçado, mas verdadeiro, e as miúdas, a Ansaro, a Usita, todas de sorrisos brancos caindo dos lábios, encabeçavam o cortejo, batucando, saltando, cabriolandso, batendo palmas. Encheram-se as ruas de música. E pouco importava que eles viessem farejar o ararme-farpado. Seria uma despedida em cheio, com golfadas de aço e estridular fogoso das nossas armas, onde muitos haviam gravado o nome da mãe, namorada ou noiva.

Jumbembem, 1964/65 - Grupo de bajudas cujas blusas lhes foram ofertadas pelos alferes de CCAV 488 

Jumbembem - Mostra de grande empatia que se estabeleceu entre a população e a tropa. Cp Fernando Tomaz filmando a menina Usita, no fim de uma dança. Criança que, rapariga feita e bonita como era, se enamorou, de verdade, de um alferes. Teria uns belos 18 anos. Casou, foi viver para Bissau, mas não foi feliz. Morreu cedo.

A aldeia triste saiu toda a terreiro. A tropa que ela tanto amava, ia partir para Lisboa. Lisboa significava para longe, para nunca mais. Uns pediam fotografias; outros, simples lembranças. E o Bassiro, o homem grande da tabanca, adiantado, de voz entaranelada, deixava desenhar nos olhos húmidos duas brancas conchas de tristeza, enquanto a Salimaro, criança encantadora, chupava dois rebuçados que algum soldado havia distribuído.

O burburinho cresceu. As camionetas da companhia que nos vinha render, ultrapassaram os frisos de arame farpado num ronronar confuso e os soldados comentavam as duas caveiras de boi, chifres espetados no ar, provocadores, encimando a entrada. Depois desceram, dispersaram-se em pequenos grupos, mirando, inquirindo as instalações, os fortins de palmeira e terra, o rio a morrer de sede, a redondeza luxuriante.

Com a tropa nova no tereno, o clarim, soou. As notas marciais estremeceram o peito, a manhã clara a prometer um sol violento e perderam-se na selva imensa, num desafio quase irónico. Os soldados, perfis homérico de leais espartanos, rígidos e impecáveis como estátuas, plantaram os olhos na bandeira esfarrapada que subia a bailar, a enrodilhar-se no vento sul.

Jumbembem - Tarja de saudação da CCAV 488 à Companhia que a foi substituir

Num rápido desdobrar de memória, vejo o Montes, de boina castanha sempre tombada sobre a orelha, carregado de manhas de contrabandista que fora, voluntarioso e de uma ferocidade cruel na luta; o Salgueiro, medroso como uma mulher, que não era capaz de denominar o medo. Mas que ultimamente amassava e cozia saboroso pão. Mas quem o ouvisse falar, dava-lhe honras de herói. E lembrava os soldados negros: O João, o Lassana. O João de fina argúcia, inteligente e sonhador, e o Lassana, baixo, calado, mas ambos grandes e iguais a qualquer branco. E murmurei os nomes do Peixeiro e o Rogério, eternamente ausentes.

Jumbembem - A "padaria" do aquartelamento

Voltou a soar o clarim. Todas as mãos caíram ao longo da farda numa pancada seca e curta. O sol, de arranhar-se na selva, vinha sangrento e criador.

A hora da partida trouxe já um sol violento. As crianças e as raparigas, de olhos tristes, formaram cortejo para nos beijarem. Quando a hora chegou, então foi um nunca mais acabar de apertos de mão. As mulheres diziam-nos coisas comovedoras e tivemos de engolir uma ou outra lágrima.

Os motores das viaturas começaram a ronronar. Eram os últimos apertos de mão e os últimos beijos das crianças. Entoámos o Hino do Batalhão [da autoria do major Alexandre António Bahia Rodrigues dos Santos] e as viaturas começaram a mover-se devagarinho, a sair do quartel. Os negros saltaram para a estrada. E então foi a explosão dos acenos e das lágrimas, rumo a Farim”.

Jornal da Bairrada, 21 Agosto 1965

[Esta gente boa, com quem fizemos empatia e amizades, recolhera à nossa protecção. Erguemos-lhes casas novas em adobes de terra e viveu connosco todo o espectro de uma guerra, sofrendo com a tropa os desaires e alegrando-se quando não havia feridos e mortos. Éramos quase uma família, cujos membros se respeitavam. No meio da parada, havia o pau para hasteamento da Bandeira Nacional e à sua volta, foi desenhado com garrafas de cerveja o emblema do Batalhão, o que era também nosso ponto de honra].
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Nota do editor

Vd. postes da série de:

25 DE NOVEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12341: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (1): Diário de bordo - A primeira grande desilusão

27 de Novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12351: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (2): Diário de bordo - Ó mar salgado!

29 de Novembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12360: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (3): Diário de bordo - Manhã azul e Deus ao leme

2 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12378: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (4): Cinco dias no Niassa; A primeira grande experiência e Dois alferes de uma só vez

4 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12386: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (5): Ilha do Como - Operação Tridente

6 de Dezembro de 2013 > Guiné 63/74 - P12397: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (6): O casamento do Jaime e da Manuela, A macaca ciumenta e O dia de santo avião

9 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12419: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (7): Os macacos vermelhos

11 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12432: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (8): Aerogramas para a Lili (1)

13 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12444: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (9): Aerogramas para a Lili (2)
e
16 DE DEZEMBRO DE 2013 > Guiné 63/74 - P12458: Últimas Memórias da Guiné (Armor Pires Mota) (10): Crónicas (ausentes) de "Tarrafo" (1): Bandeira branca, O Vicente e Palhota sem luz

Guiné 63/74 - P12467: Memórias da minha comissão em Fulacunda (Jorge Pinto, ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, 1972/74) (Parte VII): Como é que a malta pssava os 'tempos livres'...


Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) >  Capa do jornal de caserna, mensal,  "O Serrote", edição nº 1, 1973, editado pela 3ª CART / BART 6520/72 (Fulacunda, 1972/74). Diretor: alf ml [Jorge] Pinto. 









Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª CART / BART 6520/72 (1972/74) > Jornal de caserna "O Serrote", mensal, edição nº 1, 1973, editado pela 3ª CART / BART 6520 (Fulacunda, 1972/74). Diretor: alf ml [Jorge] Pinto. Páginas do meio: 12/13. Total de páginas: 24.



Guiné > Região de Quínara > Fulacunda > 3ª C/BART 6520/72 (1972/74) > Um jogo de bridge entre oficiais. Em 2º plano, do lado esquerdo, o alf mil Jorge Pinto.


Fotos (e legendas): © Jorge Pinto (2013). Todos os direitos reservados. [Edição; L.G.]



1. Mensagem do Jorge Pinto [ex-alf mil, 3.ª CART/BART 6520/72, Fulacunda, 1972/74) , com data de 14 do corrente,  em resposta a um comentário anterior do nosso editor [ " Toda a Guiné era concentracionária e claustrofóbica... Mas quem estava em Bambadinca, como eu, tinha - nas horas vagas, fora da intensa atividade operacional - a doce ilusão da liberdade de pôr viajar 30 km em estrada alcatroada, e ter em Bafatá um 'cheirinho' da civilização... O mesmo se pode dizer da malta que estava em Bafatá e em Lamego...E talvez em Mansoa e Teixeira Pinto... Ou não ? Bissau não conta, para nós não era mato"]...


Vejo que voltaste a caprichar, obrigado.  Enviei estas fotos (*) com o objectivo de revelar um aspecto do modo como se passava algum do tempo, naquele "ambiente concentracionário", como tu bem dizes. Contudo, por incrível que pareça, grande parte do nosso tempo era passado fora do arame farpado: patrulhamentos, emboscadas, operações, reabastecimentos, idas à lenha... Devo salientar que fora do arame farpado as deslocações eram sempre feitas, no mínimo, ao nível de bigrupo, mais uma ou duas secções de milícias.

Dentro do aquartelamento havia sempre assuntos que nos envolviam.  Muita leitura, lembro-me, por exemplo, da chegada do primeiro exemplar do jornal Expresso. Sebentas de Direito e de História também eram companheiras inseparáveis de alguns oficiais.

Ouvíamos a BBC,  de Jorge Letria. Da Argélia vinha a voz do Manuel Alegre e o pensamento de Piteira Santos [Rádio Voz da Liberdade]. O próprio PIFAS, e o amigo [Armando] Carvalheda nas rubricas radiofónicas também muito ajudaram tal como a "Maria Turra" [Rádio Libertação, emitindo de Conacri].. 

Muita conversa, sobretudo após ouvirmos a BBC. Claro que também havia conversas filosóficas, sobretudo com o régulo Malã, que após ter estado em Meca, S. Francisco da Califórnia, Macau, Lisboa, Londres e outras urbes europeias,  afirmava com grande veemência que Fulacunda é que era BOM. 

Muitos jogos, não só de futebol e voleibol mas também jogos de sala: longas noites de bridge (foto acima)), King, sueca, ramin, poker de dados, ping-pong...


Atividades culturais, como por exemplo a feitura de um jornal mensal, O Serrote (capa reproduzida acima ) aberto à colaboração de todos. Ali se escreveram:  (i)  piadas de caserna relacionadas com episódios rocambolescos da comunidade residente; (ii)  resumos de livros lidos por alguns; (iii)  poemas que fazem lembrar as medievais cantigas de amigo e amor; (iv) assuntos de atualidade interna (anexo) e externa; além de (v) anedotas, concursos de cultura geral, contos.

Como vês,  Luís, o tempo lá se ia passando. Cada dia era religiosamente riscado um a um nos calendários pendurados nas grossas paredes dos abrigos.

Bom fim de semana para toda família. Forte abraço.

Jorge Pinto [, foto da época, à esquerda]

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