Guiné > Zona Leste > Setor L1 (Bambadinca) > Pessoal do 2º Grupo de Combate da CCAÇ 12 atravessando em coluna apeada a bolanha de Finete na
margem direita do Rio Geba. A tabanca, em autodefesa, guarnecida pelo Pelotão de Milicia nº 102, é visível ao fundo. No primeiro plano, para além de municiador da Metralhadora Ligeira HK 21, Mamadú Uri Colubali (se não erro), vê-se o fur mil op esp Humberto Reis, nosso colaborador permanente, e o saudoso 1º cabo
José Marques Alves, de alcunha "Alfredo" (1947-2013)...(Natural de Campanhã, Porto, vivia em Fânzeres, Gondomar).
Foto do Arquivo pessoal de Humberto Reis (ex-furriel miliciano de operações especiais,
CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
Foto: © Humberto Reis (2006) / Blogue Luíos Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados.
1. Quantas vezes, à noite em Bambadinca, fumando um cigarro, depois do jantar, descontraídos, de copo de uísque na mão, gozando
o merecido repouso dos guerreiros, nas traseiras do aquartelamento, no conforto relativo do bar e messe de sargentos, sobranceiro à bolanha, não assistimos ao "fogo de artifício", ao longe, ao mesmo tempo que tentávamos advinhar, em voz alta, quase em disputa uns com os outros, quem eram os "desgraçados", tabanca em autodefesa, destacamento ou aquartelamento, dentro ou fora do setor L1, que estavam a "embrulhar", a levar porrada, o tipo de granadas que explodiam, os quilómetros que distavam da nossa posição, enfim, cronometrando o ataque ou a flagelação, estimando baixas...Por vezes, os gajos do PAIGC usavam inclusive balas tracejantes, tornando ainda mais real, e ao mesmo tempo fantasmagórico, o "espetáculo"...
E tudo isto, sem nada fazer ou sem nada poder fazer... Nessas noites tínhamos pelo menos a certeza de poder dormir numa cama com lençóis lavados, na nossa cama, com colchão de espuma... Era dia (ou noite) de folgar as costas, de
poupar o coirão, e, se possível, sonhar com coisas boas...
2. Mas também é verdade que éramos capazes de pegar na trouxa e zarpar, em socorro de camaradas em perigo, de dia ou de noite. Ou de
trazer às costas os nossos mortes e feridos, ou os mortos e feridos de outras companhias... De resto, o ser humano em grupo é capaz de fazer o melhor e o pior, as coisas mais sublimes como as mais perversas (como, por exemplo, acordar de noite e limpar a parada de Bambadinca de todos os cães vadios que nos perturbavam o sono...).
Podía contar aqui alguns episódios do tal "espírito de corpo": lembro-me, por exemplo, de um coluna de socorro a Nhabijões, justamente quando eu lá estava destacado, a comandar aquela tropa fandanga, e houve uma alerta de
turras na tabanca (que estava em fase de reordenamento)... Sei que recebi, de imediato, o reconfortante apoio do piquete de Bambadinca, reforçado por mais alguns voluntários, entre os quais o Beja Santos... E nessa noite pude dormir mais descansado (mas já não me lembro se, mesmo assim, o consegui...). O destacamento era constituído por "básicos" e "convalescentes"... E a enorme tabanca (c. de 1600 habitantes, maioritariamente balantas e alguns mandingas) era considerada, desde o início da guerra, como estando "sob duplo controlo",,,
Nessa noite, alguns elementos IN (provavelmente pop e não propriamente guerrilheiros) tinham entrado na povoação, para se abastecer, como o faziam regularmente. Nhabijões era jum "entreposto" do PAIGC...A populaçaõ abastecia-se em Bambadinca (no Zé Maria,no Rendeiro...).
Nessa noite, em data que já posso precisar, os nossso "bufos" deram o alerta, mas a notícia de "turras na tabanca" era manifestamente exagerada...Se nessa noite vieram
turras, armados, a acompanhar a população, eles ficaram só para jantar e deixaram as Kalash no bengaleiro... Aliás, não era do seu interesse alterar o "status quo"...De dia a tabanca era "nossa", de noite eles entravam e saíam com a maior das calmas (, pelo menos aparente...), cambando o rio Geba para o outro lado (, Enxalé e Cuor) ou metendo-se a pé a caminho do Baio Buruntoni, no subsetor do Xime
Repare-se que, de noite, e nestas circunstâncias, as nossas viaturas arriscavam a pisar uma mina... Como nos acontecerá uns meses depois, aos 20 meses de comissão, à entrada (ou à saída) de Nhabijões, em 13 de janeiro de 1971... Mas, quando se vai em missão de socorro, subestimamos os riscos e sobrevalorizamos as nossas forças, fazendo apelo ao tal espírito de corpo para o qual fomos treinados...
Guiné > Região de Bafatá > Antiga Estrada Xime - Bambadinca > 1997 > A antiga Ponte do Rio Udunduma, vista da nova estrada Xime-Bambadinca. Neste destacamento estava permanente um Grupo de Combate da CCAÇ 12, que vivia em buracos como as toupeiras (rodava todas as semanas). Ou melhor dizendo: eram três apartamentos subterrâneos tipo T Zero" (HR)...
Foto (e legenda): © Humberto Reis (2005) (com a colaboração do Braima Samá, professor de Bambadinca)
3. Mas houve mais outros episódios em que a solidariedade entre combatentes funcionava como uma verdadeira
navalha de ponte e mola...
Recorde-se aqui uma história
, já contado pelo Humberto Reis, na I Série, há manga de tempo, e que tem a ver com o destacamento da ponte do Rio Udunduma:
"Com este destacamento [do ponte do Rio Udunduma] passou-se um episódio que diz bem do carácter que presidia à união de todos os operacionais [...].
"Um domingo à noite estávamos a jantar na messe [, em Bambadinca], nesse dia calhou-me estar dentro do arame, e de repente começámos a ouvir rebentamentos para os lados da ponte. Pensámos que era o destacamento que estava a embrulhar e automaticamente nos levantámos (eu e mais alguns até estávamos vestidos à civil), fomos a correr aos respectivos quartos buscar as armas e quando chegámos à parada já lá estavam alguns Unimog com os respectivos condutores à espera (ninguém lhes tinha dito nada mas a ideia foi a mesma - é a malta da ponte a embrulhar, temos de os ir socorrer).
"Até um dos morteiros 81 levámos e aí vai o Fur Mil Lopes, do Pelotão de Morteiros com uma esquadra - o Lopes, natural de Angola (tão bem organizada que era a nossa administração militar, que o colocaram na Guiné!).
"Felizmente, quando chegámos à ponte, verificámos que não era aí, mas sim dois Km mais à frente, na tabanca de Amedalai, pelo que seguimos até lá. [Amedalai ficava a caminho do Xime, antes da temível Ponta Coli]...
"Escusado será dizer que quando o IN notou que chegaram reforços desarmou a tenda, fez a mala e foi-se embora" [Relato de Humberto Reis]...
Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Estrada Finete-Missirá > 17 de outuibro de 1969 > O fur mil op esp Humberto Reis (à esquerda) e o alf mil at inf António Carlão (à direita), do 2º Gr Comb da CCAÇ 12, vistoriando, no dia seguinte, os restos da viatura (Unimog 404) em que seguia o alf mil Beja Santos, comandante do Pel Caç Nat 52, quando accionou uma mina anticarro, no dia 16 de Outubro de 1969, por volta das 18h00, na zona de Canturé (entre Finete e Missirá: vd.
carta de Bambadinca, de 1/50.000).
Foto: © Humberto Reis (2006)/Bogue Luís Graça & Camaradas da Guiné. Todos os direitos reservados
"Em 16 [de Outubro de 1969] , IN não estimado emboscou no lado direito da estrada Finete-Missirá, próximo de Canturé, uma coluna de reabastecimerntos do Pel Caç Nat 52, composto por 15 elementos, simultaneramente ao accionamento de mina A/C, causando 1 morto e 3 feridos graves às NT. O IN sofreu 1 morto quando provocava assalto." (Fonte:Históira da CCAÇ 12, Bambadinca, 1969/71).
Lembro-me bem deste fatídico acontecimento, que causou emoção em Bambadinca, até porque integrei a coluna de socorro que partiu daqui, atravessando o Rio Geba, de piroga, e a bolanha de Finete, a pé. Tudo se passou quase à nossa frente. O local da emboscada estava inclusive ao alcance dos nossos morteiros. Na altura ainda não havia obuses em Bambadinca, mas apenas um esquadrão do Pel Mort 2106 (espalhado, de resto, pelos ouytros aquartelamentos do Setor L1: Xime, Mansambo, Xitole, Saltinho).
Mal ouvimos a explosão, foi de pronto organizada um coluna de socorro, composta pelo pelotão de piquete, o 2º Gr Comb do lf mil Carlão e dos furriéis mil Humberto Reis e Tony Levezinho, reforçado com Pel Rec Inf da CCS/BCAÇ 2852.
Era voz corrente que o Beja Santos, conhecido entre os seus camaradas milicianos como o "tigre de Missirá" (nome de guerra que lhe terá sido posto pelo "major elétrico", 2º comandante do BCAÇ 2852) tinha a cabeça a prémio no regulado do Cuor... Exagero ou não, o próprio Beja Santos reconhece publicamente este facto num dos muitos postes que ele já escreveu, com as suas memórias deste tempo e lugar:
"A 15 [, ou melhor, 16] de Outubro devíamos ter regressado mais cedo. O Comandante local do PAIGC, Corca Só [antigo futebolista dos balantas de Mansoa] já me tinha ameaçado de morte, tendo mesmo deixado um bilhete na estrada. Saímos tardíssimo de Finete, o sol a cair a pique, como acontece nos trópicos" (...).
De facto, não foi a 15, mas sim a 16. Felizmente que o Corca Só não levou para Madina/Belel o escalpe do Beja Santos. Pelo contrário, voltou para casa com um morto às costas. Nesse dia, ficámos quites, foi um jogo de empate, se é que podemos brincar com uma tragédia como esta, em que houve mortos e feridos de um lado e do outro...
O Beja Santos não foi apanhado à mão por um triz. E isso é o mais importante: ele hoje está vivo e entre nós, partilhando connosco as alegrias e as tristezas de um tempo e de um espaço que nos coube em sorte, nos nossos verdes (e loucos) vinte anos.
PS - O episódio da emboscada com mina, em Canturé, em 16/10/1969, passou-se antes do episódio de Nhabijões...Que terá sido no 1º trimestre de 1970, estava já o Beja Santos em Bambadinca, com o seu Pel Caç Nat 52, a terminar a sua comissão, de rendição individual... Não posso, de momento, precisar a data e o mês. De qualquer modo, eu e o Beja Santos ficámos quites... Mas também na guerra o altruísmo é egoista: é um por todos e todos por um...