1. O nosso camarada Jorge Teixeira (Portojo), (ex-Fur Mil do Pelotão de Canhões S/R 2054, Catió, 1968/70), enviou-nos este seu trabalho publicado no Blogue Coisas da Vida de que é autor e administrador:
COISAS DA VIDA
A VIDA COMO ELA É
A BOCHECHA DE BOI
Sábado passado, num almoço com ex-camaradas no Choupal dos Melros, em Fânzeres, Gondomar, o prato principal foi Bochecha de Boi assada.
Lembrei-me então de um episódio da minha vida de vaguemestre (ou vagomestre), por acaso e obrigado, durante o meu período militar na Guiné, mais concretamente em Catió e que durou cerca de 4 meses. Já lá vão 45 anos.
Para quem não sabe, este ofício determina, no Exército Português, o responsável pela alimentação de uma unidade militar. Em França é o Carteiro, que distribui a correspondência aos militares. Para o caso não interessa nada e prossigamos.
Não interessam agora as razões porque me foi imposto o lugar e serviço. Já estão por aí divulgadas.
Então aqui vai a razão das minhas recordações.
Estamos em Dezembro (68) e num sábado estava a jogar à bola quando apareceu esbaforido a chamar-me um dos rapazes do "Rancho" que tinha de ir já ao Refeitório. Não era a hora do Rancho, portanto não poderia haver nenhum levantamento. Para a refeição da noite era ainda cedo, estava tudo controlado. Perguntei ao moço - não me lembro quem foi - qual o motivo do alarme. -
Está ali um preto com uma vaca para vender, disse ele. Pensei para mim, mau maria, não é bom sinal. É roubada, pois nunca tinha visto uma vaca na zona operacional de Catió. E eram famosos os roubos dos Balantas, Sem desprimor para as outras etnias.
Cá vai a informação (para os amigos ex-camaradas que não se lembrem ou não sabem e para os que desconhecem o que foi aquela vida, em Catió), a população era-nos hostil. (Alô pessoal da 1913 e da 2865, confirmam?). Mesmo para conseguirmos comprar uma frango era preciso uma boa relação com alguém.
Adiante.
Lá fui ver a vaca. Eu sei o que é uma vaca, sempre soube, claro, mas aquele bicho mais parecia uma carga de ossos a fingir de vaca. Já agora não sei se era vaca ou boi.
É certo que a memória é difícil de recuperar 45 anos, mas lembro-me que estava todo de pé atrás a olhar para o moço - que já não o era - que se dizia dono da vaca.
- Como a trouxeste, tem corda?
- Está aqui furriel.
- És o dono verdadeiro ou roubaste-a? - Logicamente que não ia dizer que a roubou.
- De onde vens e onde guardavas a vaca? - Não me lembro sequer da resposta. Mas o homem deveria ter os papeis de identificação e permanência (sei lá, mas imagino) em ordem. Mas deve ter vindo pela bolanha e não pela vila.
Para a rapaziada era uma festa ver a vaca no refeitório. Já lhe tinham ido buscar capim e água. A vaca (ou boi) estava serena/o a mastigar e eu ali a pensar o que deveria fazer. Compra furriel, era a voz d'ordem.
- Bom, quanto custa a vaca?
- 2.000 pesos.
Eu a olhar para o bicho e a pensar quantas refeições daria e a como sairia cada uma. E onde vou guardar o bicho se não tenho frigoríficos. Não quero a vaca, pensei, mas o cozinheiro-chefe pensou por mim e disse:
- Ofereça 1.500 pesos e vamos aos frigoríficos das messes e do rancho, compramos gelo fazemos frio e a vaca vai dar 3 refeições.
Acertado o preço com o vaqueiro, fui acordar o primeiro sargento para lhe pedir o dinheiro. O senhor Luz, mais conhecido com o pica-estradas. Só por causa do nariz, porque nunca deve ter posto o pé fora do portão em toda a comissão. O homem deitou-me uns olhos de raiva por ir acordá-lo da sua
sesta e pior ainda, por lhe ir pedir dinheiro.
Lá comprei a vaca, foi logo morta para evitar problemas com o possível dono, mandei chamar o médico que por acaso estava em Catió para lhe ver as entranhas, estava tudo bem, menos o fígado que estava cheio de bichinhos mas isso não era grave para a saúde dos militares desde que não fosse confeccionado.
Para os interessados e antes de chegar ao ponto, devo dizer que a vaca, incluindo a cabeça, (cá está a bochecha) os miúdos aproveitáveis, os pés (chamados de mão de vaca, uma delícia gastronómica pelo menos aqui no Norte) mais a sua carcaça pesava menos de 90 Kg. O que saía o Kg a 17 pesos mais ou menos. Essas contas nunca me saíram da cabeça.
Carne fresca tem de ser repartida. Fiz as contas à totalidade dos militares na base, dava salvo erro 17 kg para os sargentos e 6 para os oficiais. Tudo na proporção. Mas não poderia ser só a carne, tinham de levar ossos também.
Aqui chegados começou a confusão. Iria vender a carne a 19 pesos. Quem quer quer, quem não quiser que deixe que os rapazes agradecem. Chamei os vagomestres da messe dos oficiais e dos sargentos para saber o que queriam. O dos sargentos era o Picota Dias, que deve estar lá para Águeda. Só pensava em dinheiro para o bolso dele, claro. Não quis carne nenhuma aquele preço. Perdia dinheiro. Ainda lhe disse, estás a dar uma messe de m.... aos gajos, só estás mamar, dá-lhes um consolo e eles ficam felizes. Eu quero que eles se fod.... Palavras directas do Dias.
O senhor Alferes da messe dos oficiais - sei quem era, não me lembro do nome e se não estou em erro trabalhava na Oliva ou na Eduardo Ferreirinha. Encontrei-me com ele anos mais tarde por motivos profissionais e creio que também num dos almoços da CCS/BART1913 - queria carne para dar uma refeição de bifes e uma segunda de qualquer coisa.
- Ó Alferes, espere aí, não vou mandar cortar carne para bifes para os senhores oficiais. Vai a eito e é o que der. E você resolva lá na sua cozinha.
Teixeira prá aqui e prá li, pois senhor alferes, se eu quiser comer um bife vou ao Taras Buba que é só sair a porta d'armas, trinco a carne que ele vai buscar não sei aonde, fecho os olhos e finjo que é bife. Pago 20 pesos e está feito.
Creio que o homem se chamava - e se for verdade espero que ainda se chame - Silva, saiu chateado e lá fui eu chamado ao comandante Cardoso. E o bicho vaca ou boi à espera de ser cortado, ali pendurado no refeitório, os abutres já sobrevoavam o quartel.
Disse-me o Comandante:
- Teixeira sabe do nosso problema alimentar, porque não distribui a carne ao Alferes?
- Meu comandante, não neguei a distribuição, o que neguei foram uns quilos de bife. Imagine, meu comandante, se a rapaziada sabe que mandei para a messe de oficiais carne para bifes? O que eles iriam fazer, um novo levantamento de rancho? E os sargentos?
- Pode retirar-se - disse-me o Comandante Cardoso.
Ao final do dia, levei um bife ao Comando. Não sei o que o homem lhe fez, mas a bandeja da apresentação da refeição regressou vazia.
A cabeça da vaca, mais concretamente as suas bochechas, com o resto dos miúdos deu uma refeição de feijoada. Dei mais duas refeições de carne, talvez tenham sido uma com esparguete e outro uma jardineira. Claro que entravam os chouriços juntamente, para encher. Não me lembro, mas não devo ter muitas dúvidas sobre isso.
Os sargentos ficaram furiosos com o Dias. Os oficiais não faço ideia como ficaram. Nem o meu, o Xarez, conversou nadinha comigo. Aliás já era normal.
Passados uns dias, apareceu um indivíduo com o cipaio, a reclamar uma vaca roubada que foi dada à tropa. Não me lembro como ficou a situação.
A bochecha de vaca - ou boi - que me fez recordar esta história.
Na ponta esquerda, eu no tempo em que era vago ou vaguemestre. Junto a mim, o "gajo" que me orientava o serviço. Era o cabo rancheiro. Espero que ainda esteja por cá. Ajudou-me muito pois eu não percebia nada daquilo. Mas só sei que não tinha de me preocupar. E tinha imensas horas livres e o jipe à disposição.
Dois bons camaradas me ajudaram nesse tempo. Ambos condutores. Um creio que é o gerente dos Armazéns Peixoto - Gondomar e Valongo -. O outro trabalhou na Pacence.
A foto foi num dia de futebol, provavelmente um norte-sul em que não alinhei.
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Nota do editor
Último poste da série de 3 DE JULHO DE 2013 >
Guiné 63/74 - P11795: Blogues da nossa blogosfera (65): Poema de Saudade sobre a Guiné, no Blogue da Lusofonia (Mário S. Oliveira)