quinta-feira, 26 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14409: Memória dos lugares (287): A entrega do Cumeré ao PAIGC


1. O nosso Camarada José Saúde, ex-Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523 (Nova Lamego, Gabu) - 1973/74, enviou-nos mais uma mensagem desta sua magnífica série.

Fernando Rodrigues, furriel miliciano, com efémera passagem pela Guiné.
Um camarada que assistiu à entrega do Cumeré ao PAIGC.

Conhecemo-nos há décadas! Somos moços de uma geração onde a guerra no então Ultramar impunha restrições objetivas a uma juventude cujos olhares se fixavam numa imensurável procura de um futuro perpetuamente próspero. Porém, nem tudo era assim. O conflito de além-mar, em plena efervescência, suscitava razões óbvias que entrosavam num rol de preocupações e que se entrelaçavam com respostas invariavelmente inacabadas.

Fernando Augusto Rodrigues, ex-furriel miliciano, natural de Beja, após o 25 de Abril de 1974 deparou-se com a sua mobilização para a Guiné. Uma comissão inesperada, tendo em conta que a guerra nas antigas províncias ultramarinas já sinalizava o seu fim. Todavia, a sua hora chegou e o camarada lá partiu.

Estávamos em junho do 1974 e a sua rendição individual tinha como objetivo substituir um 1º sargento que se encontrava em Bafatá. A decisão do nosso sargento não terá sido pacífica, uma vez que o antigo camarada recusou sair, sendo que a decisão final sobre o Fernando foi uma estadia temporária num outro quartel.

Desta situação inesperada, eis o bom do meu amigo Fernando, nosso camarada de armas, a fazer parte do expediente normal do conhecido quartel do Cumeré. Um aquartelamento que normalmente recebia os piriquitos recém chegados a solo guineense. Um sítio, aliás, onde eram dadas à rapaziada as primeiras instruções básicas para o conflito real que se seguia num palanque indesejado.

Acontece que na fase de evacuação das nossas tropas, o Cumeré registou um maior afluxo de soldados que esperavam desalmadamente o seu embarque para o nosso País, agora livre, onde a família, em uníssono, aguardavam os seus ente queridos.

Sintetizando: o nosso antigo camarada furriel miliciano Fernando Rodrigues não foi um soldado de guerra, mas um militar que se confrontou com um regime de transição e de subsequentes entregas dos nossos antigos quartéis. Assim, teve o privilégio em assistir, “ao vivo e a cores”, não obstante o dia apresentar-se cinzento e chuvoso, à entrega do Cumeré ao PAIGC.

Cumeré, onde o pessoal da minha companhia aguardou pela hora do regresso à nossa Pátria Lusa. Recordo que foi justamente nesta derradeira estadia na Guiné que me deparei com o meu último “ataque” de paludismo. Sei que a febre não deu tréguas, os arrepios de frio muito menos, restando porém a certeza que a guerra no terreno tinha, finalmente, acabado.

A guerra, aquela com a qual então me deparei, era sim em “vale de lençóis”, sobrando a certeza que não fiz parte de um grupo de camaradas que, na altura, dizimavam líquidos fresquinhos para aconchegar mágoas passadas. Tanto mais que já cheirava a “Lisboa Menina e Moça” e a um “Cravo Vermelho”, símbolo da Revolução, esperar-nos-ia em solo firme.

Neste relato o nosso camarada lembra duas das suas viagens, já em tempo de paz, sendo uma delas a Nhacra, onde foi jogar futebol e comer leitão assado e uma outra que o levou a conhecer Mansoa e a sua ponte, um local apetecível para imagens fotogénicas, asseguravam os conhecedores da zona.

Por outro lado, o Fernando reconhece que embora o tempo fosse de paz, as histórias de guerra teimaram em persistir. Fala sobre um caso mortal de um furriel miliciano que se encontrava no QG, mas que “ao entrar de serviço e ao acender um cigarro, ter-se-á encostado a um arame e inesperadamente a arma que transportava disparou, sendo o seu fim trágico”. Outro camarada que fará parte de um infindável rol de falecidos e cujo fim foi uma comissão militar na guerra do ultramar.

Resquícios de uma peleja onde a facilidade do pessoal permitia descuidos que, humanamente, eram considerados impensáveis. Contudo, a verdade que todos nós conhecemos, diz-nos que houve camaradas que partiram para o além face às suas pretensas fragilidades em saber lidar com um conteúdo de uma guerrilha extremamente traiçoeira. O facilitismo permitia devaneios, depois lá vinha a desgraça. 

Faltou, talvez, uma preparação profícua a contingentes de soldados que partiam para os campos de batalha mal preparados, desconhecendo os conteúdos que a guerra impunham. Sei, e reconheço, que essa era a verdade amiudadamente constatada. Só o tempo do conflito permitia uma adaptação aos horrores a cada instante deparados. 

O nosso antigo camarada Fernando Rodrigues, acabou a sua curta comissão na Guiné a prestar serviço no QG (Quartel General), sendo o seu regresso a Lisboa no dia 3 de outubro de 1974.

Para trás ficou a certeza que foi um dos militares portugueses que se deparou com o içar da bandeira do PAIGC no Cumeré, precisamente no mastro que fora antes ocupado pela bandeira nacional portuguesa. 

Fotos do furriel miliciano Fernandes Rodrigues

Aspeto geral do quartel do Cumeré 
Atrás as tropas do PAIGC perfiladas para cerimónia 
O dia da entrega do Cumeré ao PAIGC e o içar da bandeira
No quarto 
Com o furriel Joaquim Fernandes de Vila de Condes
Como cenário de fundo o rio Geba 
Passeando numa rua em Bissau 
Um abraço camaradas, 
José Saúde
Fur Mil Op Esp/RANGER da CCS do BART 6523
___________
Nota de M.R.: 

Vd. último poste desta série em: 


Guiné 63/74 - P14408: (Ex)citações (268): Emoção e bom senso (Juvenal Amado, ex-1.º Cabo CAR do BCAÇ 3872)

1. Mensagem do nosso camarada Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor Auto Rodas da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1971/74), com data de 25 de Março de 2015:


EMOÇÃO E BOM SENSO 

Nas nossas memórias, a intenção normalmente passa por transparecer emoções, racionalidade, por vezes agressividade, porque não vivemos numa redoma de vidro e somos afectatos pelo que se passa à nossa volta, tonando-nos alvos fáceis das chuvas ácidas e do Sol inclemente.

Há dias que tudo nos agride e qual espoleta sensível, facilmente deixamos rolar as lágrimas, assim como respondemos violentamente a qualquer situação que em dias normais deixaríamos passar com sorriso nos lábios, ou com um encolher de ombros, denotando assim a pouca importância da questão.

Temos uma geração inteira que teve pouco tempo para ser criança e muito menos para ser jovem, passou pela ditadura e pela guerra, teve medos anseios e viu o que nenhum ser humano está preparado para ver. Há quem tenha visto demais e aí chegados, uns reagem de uma maneira tornando-os insensíveis enquanto os outros o horror, permanece para além do imaginável e desejável.

De uma forma de outra, uns e outros ficaram condicionados ao reflexo daquele tempo. Muitos de nós começámos a usar a G3 antes mesmo de termos feito sexo pela primeira vez. Digo sexo, porque fazer amor, só mais tarde descobrimos o que era isso. Depois alguns choraram a sua desdita e outros mataram antes de amar.

Assim como quem usa uma bengala muito tempo, há momentos que sente necessidade de a voltar a usar, também ao longo da vida, quem tivesse uma G3 teria impulso de a usar numa briga da vizinhança, num desaguisado na estrada ou lavagem da sua honra, sim porque a ocasião fez o ladrão e os resultados não seriam diferentes do que se passa nos países onde as armas são de livre acesso, onde por exemplo os veteranos têm a opção de adquirir a arma com que prestaram serviço, com resultados funestos que todos ouvimos falar.

Há tempos li que os crimes, acidentes, etc com armas de fogo, já custaram três vezes mais vidas do que as que os americanos perderam em todas as guerras em que foram intervenientes, inclusive na guerra civil. Mas é assim, a G3 é um símbolo dos tempos de guerra mas também da paz, da mudança, da liberdade, da alegria e da esperança, não discuto se concretizada ou não, pois cada um é livre de estar contente ou não e de o dizer livremente.

Quem não se lembra da emoção com que lhe pegou a primeira vez e mais tarde a usou quase como adereço? Nessa altura não sabíamos que a passaríamos a usar como um turista usa a máquina fotográfica, para captar coisas boas e coisas más. A G3 empunhada pelo povo fardado, também tem que ser símbolo da Justiça e da equidade entre cidadãos, que têm o direito de ser defendidos acima da própria vida, e mal vai um país que não tem orgulho nas suas forças armadas.

Num arremedo de poema escrevi uma alegoria intitulada “se eu tivesse uma G3”.(*)

Essa G3 representa um símbolo daqueles anos de juventude, de algum desencanto, assim como um grito de revolta, pois todos têm o dever de perseguir a felicidade e não se contentar com o que nos querem dar.
Sejam ousados e exijam nada menos que o impossível, porque o não, esse está sempre garantido! Mas eu estou de acordo que por estas e outras razões, ainda bem que nós por cá não podemos ter uma G3. Razão tinham os hippies que gritavam no auge do movimento, façam amor e não a guerra.

Um abraço para todos e boas amêndoas.
Juvenal Amado
____________

 Notas do editor

 (*) Vd. poste de 20 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14392: Blogpoesia (405): Paranóia ou lamentos de veterano - Ah! se eu tivesse uma G3! (Juvenal Amado)

Último poste da série de 18 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14383: (Ex)citações (267): Será que nós estamos escrevendo milhares de postes à procura da juventudo "perdida" na guerra? (José Manuel Matos Dinis)

quarta-feira, 25 de março de 2015

Guiné 63/734 - P14407: História da CART 3494 (5): O DESTACAMENTO DA PONTE DO RIO UDUNDUMA. - Hipopótamo do Corubal emboscado no Udunduma (Jorge Araújo)


1. Mensagem do nosso camarada Jorge Araújo (ex-Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494, Xime e Mansambo, 1972/1974), com data de 6 de Fevereiro de 2015: 

Caríssimos Camaradas

Os meus melhores cumprimentos.

A presente narrativa fez-nos regressar ao meu tempo de residente no Destacamento da Ponte do Rio Udunduma, recuperando as memórias e as imagens de uma das muitas ocorrências que aí contabilizámos durante o 2.º semestre de 1973, as quais estão já a uma distância temporal de quarenta e dois anos.

Trata-se de um episódio pouco vulgar naquele contexto, envolvendo um mamífero artiodátilo [hipopótamo] que, por ter ousado invadir território proibido, naquele dia de OUT1973, foi emboscado… e morreu.

O DESTACAMENTO DA PONTE DO RIO UDUNDUMA
- Hipopótamo do Corubal emboscado no Udunduma -

1. - INTRODUÇÃO

Com as rotações entre a CART 3494, a CCAÇ 12 e a CART 3493, ocorridas nos primeiros dias de Março de 1973, os cenários, os contextos e as missões destes diferentes contingentes militares passaram a ser bem diferentes dos [as] vividos [as]. 

Enquanto a CCAÇ 12, sediada em Bambadinca, foi colocada no Aquartelamento do Xime, por troca com a CART 3494, esta passou a ocupar o Aquartelamento de Mansambo, onde se manteve até ao final da sua comissão [8 de Março de 1974], por efeito da CART 3493, aí instalada desde Janeiro de 1972, ter sido transferida para Cobumba, Região de Tombali, Território do Cantanhez, deixando de estar sob a jurisdição da sua unidade mãe – o BART 3873.

Como consequência de todas estas mudanças, e recuperado o que já deixei expresso nas narrativas anteriores [P12565 + P12586 + P12734], fui contemplado com a missão especial de comandar uma secção do meu GComb [o 1.º], num total de doze elementos, com o objectivo de proteger a [s] Ponte [s] do Rio Udunduma, actividade que registava já, à data, quatro anos, e por isso se chamar de «Destacamento da Ponte», local situado a quatro kms. de Bambadinca, na estrada Bambadinca-Xime.

Porque as condições aí existentes, quer logísticas quer físicas, eram incrivelmente pouco dignas e degradantes, como podem ser confirmadas através da descrição e visionamento das imagens já publicadas nos postes acima referidos, as recordações desse local são muitas e variadas, não se esgotando num simples texto, uma vez que aí permanecemos os últimos seis meses do ano de 1973, ou seja, fará brevemente quarenta e dois anos.

Já vos contei anteriormente algumas das acções especiais [desafios permanentes de superação] desenvolvidas durante esse 2.º semestre de 1973, assim como os contrastes do mesmo cenário. Agora, volto à vossa presença com os mesmos propósitos de sempre, o de fazer história escrevendo sobre o quotidiano da nossa passagem pelo CTIG, mesmo que o objecto [assunto] não esteja intrinsecamente relacionado com o confronto militar.

Aproveitando mais algumas fotos de diferentes espaços desse contexto e adicionadas as outras relacionadas com a ocorrência em referência [OUT1973], nada expectável de vir a acontecer por ali, permitiu-me estruturar este texto passando para o papel os principais factos narrados oralmente por quem a presenciou, uma vez que nesse dia me encontrava ausente do local. 

Como o subtítulo acima referido faz supor, iremos contar a história macabra sobre um hipopótamo adolescente que foi emboscado no Rio Udunduma e que não conseguiu escapar com vida. Identificámo-lo como sendo oriundo do Corubal, numa lógica de proximidade, mas nada nos garante que assim seja, uma vez que os dois principais habitat de hipopótamos da Guiné-Bissau [hippopotamus amphibius, nome científico], estão identificados como sendo na Ilha de Orango, no Arquipélago dos Bijagós, e no Parque Natural das Lagoas de Cufada, na região de Buba.

Sobre estes dois espaços onde vivem e se desenvolvem os hipopótamos da Guiné-Bissau, citaremos alguns apontamentos encontrados na nossa investigação na área das actividades de ecoturismo e biodiversidade, seguindo por correio interno os respectivos originais para leitura mais aprofundada, não deixando de os referir na altura própria [com a devida vénia aos seus autores].

2. - O DESTACAMENTO DA PONTE

As fotos que seguem têm por objectivo identificar os principais pontos da nossa missão, ajudando a circunscrever o contexto onde a acção se desenvolveu. 





3. - O LOCAL DA EMBOSCADA AO HIPOPÓTAMO 






4. - O HIPOPÓTAMO

Hipopótamo é o nome genérico um mamífero ungulado de grande porte pertencente à família Hippopotamidae. É um mamífero artiodátilo [que possui um número par de cascos (ou dedos) nas extremidades dos membros 

anteriores e posteriores], próprio de África, de pele muito grossa e nua, patas e cauda curtas, cabeça muito grande e truncada num focinho largo e arredondado.

Estes animais vivem geralmente próximo de rios, onde passam grande parte do seu tempo imersos. Têm uma pele sensível à luz solar. Os hipopótamos são herbívoros e alimentam-se durante a noite da vegetação existente nas margens dos rios que habitam, mas há indícios de canibalismo de machos adultos com filhotes.

Os hipopótamos são preguiçosos em terra, mas podem atingir velocidades de 50 km/hora. Na água são rápidos e mostram diversas adaptações na sua existência, na maior parte aquática, inclusive orelhas e narinas que podem fechar-se e uma secreção da pele que funciona como protector solar, anticéptico e antibacteriano. A sua pele é muito sensível a queimaduras solares e, para se proteger, segrega uma substância de cor vermelha que ao longe pode ser confundida com sangue. 

5. - O HIPOPÓTAMO NA GUINÉ-BISSAU [no presente]


5.1 - NA REGIÃO DE CUFADA - BUBA

As LAGOAS DE CUFADA estão classificadas como «zona húmida de importância internacional», tendo a Guiné-Bissau aderido à Convenção de RAMSAR e, em sequência, criado um regime legal de protecção dos ecossistemas locais. O Instituto de Conservação da Natureza, juntamente com outras entidades portuguesas, participou na preparação e realização do projecto do parque.

A Convenção de RAMSAR é um tratado intergovernamental que estabelece marcos para ações nacionais e para a cooperação entre países com o objectivo de promover a conservação e o uso racional de zonas húmidas no mundo. Essas acções estão fundamentadas no reconhecimento, pelos países signatários da Convenção, da importância ecológica e do valor social, económico, cultural, científico e recreativo de tais áreas.

Estabelecida em Fevereiro de 1971, na cidade iraniana com o mesmo nome, a Convenção de Ramsar está em vigor desde 21 de Dezembro de 1975, e o seu tempo de vigência é indeterminado. No âmbito da Convenção, os países membros são denominados "partes contratantes". Até Janeiro de 2010, a Convenção contabilizava 159 adesões.

Quanto ao PARQUE NATURAL DAS LAGOAS DE CUFADA, este abrange uma área de noventa mil hectares, na qual está inserida uma comunidade de cerca de três mil pessoas distribuídas por trinta e três tabancas. Os passeios pelas lagoas permitem a observação de várias espécies de aves, residentes ou migradoras, como flamingos, pelicanos e tucanos. Entre a fauna aquática abundam mamíferos como hipopótamos, manatins e crocodilos. Em terra, ocasionalmente, podem ser vistas gazelas, porcos do mato e antílopes.

5.2 - NO PARQUE NACIONAL DE ORANGO - BIJAGÓS

O PARQUE NACIONAL DE ORANGO ou o Parque Natural das Ilhas de Orango está situado na parte sul do Arquipélago dos Bijagós [ver mapa], ocupando uma superfície de 1582,35 km2 e compreende 3 ilhas principais: Orango, Orangozinho e Atanhible. A profundidade do sector marinho não ultrapassa os 30 metros. A biodiversidade da fauna, particularmente no sul do parque, compreende populações de hipopótamos (Hipoppotamus amphibius), onde se pode observar os únicos hipopótamos que vivem em água salgada, e de crocodilos (Crocodylus niloticus e C. tetraspis). O parque é frequentado por 5 espécies de tartarugas-marinhas: tartaruga-verde (Chelonia mydas), tartaruga-de-pente (Eretmochelys imbricata), tartaruga-oliva (Lepidochelys olivacea), tartaruga-cabeçuda (Caretta caretta) e tartaruga-de-couro (Dermochelys coriacea). De entre os mamíferos destacam-se também a gazela-pintada (Tragelaphus scriptus), o macaco-verde (Cercopithecus aethiops) e, na parte marinha, lontra (Aonyx capensis), manatim (Trichechus senegalensis) e golfinhos (Sousa teuszii e Tursiops truncatus).

Por outro lado, o Arquipélago dos Bijagós, constituído por um conjunto de oitenta e oito ilhas e ilhéus espalhados no Oceano Atlântico, em que um quarto desses espaços de terra não estão habitados, foi declarado Reserva Mundial da Biosfera, em 16 de Abril de 1996.

Em reportagem realizada em Dec2012 por Fernando Peixoto, jornalista da Agência Lusa, este refere no título da peça que «Orango, na Guiné-Bissau, é a ilha dos hipopótamos especiais».

Continua, afirmando que “a Ilha de Orango, na Guiné-Bissau, tem hipopótamos únicos no mundo e que "salvam" vidas. Por causa deles, a ilha tem uma lancha rápida para levar doentes, escolas e centros de saúde arranjados e a funcionar, graças à construção do ORANGO PARQUE HOTEL, onde os lucros revertem para melhorias na ilha, com o envolvimento e aplauso da comunidade.

Hoje, os hipopótamos dos Bijagós precisam de água doce para beber, mas muitos deles vivem permanentemente na água salgada, o que os faz únicos no mundo. "Há dias estávamos na Ilha de Unhocomozinho e vimos chegar um [vindo do mar]. As pessoas fizeram-no fugir sendo visto depois na ilha de Unhocomo".

Por outro lado, a coordenadora do Seguimento das Espécies e dos Habitat, do Instituto da Biodiversidade e das Áreas Protegidas (IBAP) da Guiné-Bissau, Aissa Regala, avança que em Janeiro de 2013 será iniciada em Orango uma nova contagem de hipopótamos. A espécie vive também em rios e lagoas do continente, lembra, acrescentando que na zona de Cacheu [norte] vão ser vedados campos de arroz por causa dos animais. Em Orango a proteção das bolanhas [campos de arroz] com cercas eléctricas para evitar a intrusão dos hipopótamos foi um sucesso e a produção quase duplicou.

Como refere o guia Belmiro Lopes, o hipopótamo é um "animal emblemático", que surge nas pinturas e nas danças dos Bijagós; e que em 2011 quase mil pessoas visitaram a ilha para ver os animais. Porém, esses mesmos animais destruíam os campos de arroz, provocando a ira das populações.

Nota: este tema foi já aflorado no P10.854.

Outras fontes:

- http://sustainabledevelopment.un.org/content/documents/977guineabissau.pdf.

- Arquipélago dos Bijagós - Guiné-Bissau O modo... - Rituais.

- RDP África - Hipopótamos únicos no mundo "salvam" vidas em Orango, na Guiné Bissau.

- http://noticias.sapo.mz/lusa/artigo/15431686/html

Termino, enviando a todos os tertulianos um forte abraço.
Jorge Araújo.
Fur Mil Op Esp / Ranger, CART 3494
___________
Nota de M.R.: 

Vd. Também o último poste desta série em: 



Guiné 63/74 - P14406: Os nossos seres, saberes e lazeres (79): Alguns encantos da Ilha Terceira (Mário Beja Santos)

1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 13 de Março de 2015:

Queridos amigos,
É imperdoável ficar só em Angra do Heroísmo, há muito mais património histórico e riquezas naturais em derredor. Basta pensar em Praia da Vitória. Recomendo aos potenciais viandantes que leiam previamente Vitorino Nemésio, ele tinha aqui a sua terra natal. E se viajarem mais para o Ocidente, é obrigatório ler ou reler "Mau tempo no canal".
Outro aspeto surpreendente da Terceira é sentir-se uma melhor repartição da riqueza, é certo que há o dinheiro dos emigrantes mas sente-se que há vida com bastante qualidade, uma classe média atuante.
Espero que não resistam agora a visitar a Terceira, vem aí os voos low cost, não esqueçam.

Um abraço do
Mário


Alguns encantos da ilha Terceira

Beja Santos


Não se pode sair de Angra sem visitar o Castelo de S. Filipe e a reserva florestal do Monte Brasil. O Castelinho, conhecido por S. Sebastião, está no outro extremo, também é impressionante, tem hoje no seu interior uma pousada. Angra dispôs de mais fortes e fortins, havia que dissuadir o corso e a pirataria tentados pelas enormes riquezas vindas do Oriente e das minas do México e do Perú. São Filipe, também conhecido São João Baptista do Monte Brasil é uma imensidão de muralhas e possui uma lindíssima porta de armas, aqui viveram Gungunhana e D. Afonso VI, há memórias dos dois. Na previsão de um desembarque hostil na Terceira posicionaram-se em pontos estratégicos peças de artilharia que ali estão, relíquia do passado.


Há alguns anos atrás o artista Manuel Botelho fez uma exposição com armas, espingardas metralhadoras, eram fotografias que pareciam não possuir volume, não meter respeito, estavam ali como metal organizado, como estética em instalação, autênticos ready made. Não me canso de olhar esta peça, tive sorte com a luz e o ambiente, sei que é memória de uma guerra, porventura nem funcionou, os Aliados ficaram a muitos quilómetros daqui, nas Lajes, era o porta-aviões e ancoradouro que se iria revelar indispensável para as frotas aéreas, caso da Guerra dos Seis Dias e os ataques ao Iraque.


Temos aqui as indicações para o museu a céu aberto, de um lado está esta dissuasora artilharia, mas se o visitante inclinar a cara tem de frente a magnífica angra e um recorte transversal do casario entre S. Mateus da Calheta e Porto Judeu. Que contraste, no cimo deste Monte Brasil.


Saiu-se de Angra do Heroísmo, Ribeirinha é a primeira povoação, depois Feteira, a Serretinha, mais adiante Porto Judeu, e depois paragem obrigatória em S. Sebastião. Há razões de sobra para visitar este portentoso tempo, cheira ainda a século XV, mas é o século XVI que aqui predomina, é bem patente o tardo-gótico, dá gosto a harmonia do alçado e dos volumes, afagar esta cantaria. No interior está reservada uma enorme surpresa, imagine-se, há por ali pinturas murais, caso único nas ilhas.


Posso ler na brochura da matriz da vila de S. Sebastião: “Em termos insolares, estas pinturas murais são caso único. São as mais antigas que se conhecem nas ilhas e, em termos nacionais, pertencem a um grupo restrito de frescos primo-quinhentistas que simultaneamente estão em bom estado de conservação”. Julga-se que estes frescos terão sido elaborados entre 1510 e 1530. O fresco da direita é de S. Martinho o outro é de uma santa que não fixei. Por ali divaguei a mirar os tetos e as alfaias religiosas, as portas laterais também são impressionantes. Infelizmente, foram imagens que se perderam.



O culto do Espírito Santo prevalece nesta região arquipelágica, é devoção incontornável, tal como o Senhor Santo Cristo. A hierarquia católica teve grande contencioso com estes ritos, a coroação do menino imperador, cerimonial talvez com resquícios de paganismo. O que interessa é que não há freguesia que não possua o seu Império bem garrido, sempre bem mantido. Foi autorizado a entrar no império pelos pintores em plena lavra, as cerimónias estão para breve, apanhei o altar nu, a imagem de Santa Isabel e as coroas do Espírito Santo estão guardadas em casa do mordomo. É impossível não nos impressionarmos com estes templos, únicos no país.


Prossegue o passeio pela Fonte do Bastardo, o objetivo é a Praia da Vitória, terra de muitas belezas e com belo porto, nele começou a derrocada do miguelismo, aqui perderam a veleidade da supremacia naval. Entrámos primeiro na matriz, templo de enorme riqueza, também tardo-gótico, tivemos sorte com a hora, andava por ali o sacristão que nos levou a ver as preciosidades da sacristia. E o inesperado aconteceu.


Pena é que o menino Jesus não apareça mais nítido, ele faz parte da história de Portugal, quase de maneira insólita. Como se sabe, D.ª Maria II deu à luz 11 filhos, e era tal a devoção neste menino na Praia da Vitória que sempre que se aproximava a sua hora feliz vinham buscá-lo, a monarca pariu sempre com este Jesus a seu lado.


Desde a minha primeira visita à Terceira que este soberbo edifício não me sai da memória, nada conheço de tão vigoroso, com tal peso ancestral de modernidade quinhentista ímpar. É a câmara de Praia da Vitória, permitiram a visita ao salão nobre, edificante e com uma pompa e circunstâncias contidas. Tudo bem mantido, em ponto nenhum se veem lixos no chão, circula-se com prazer. E antes de almoço, visita-se ali ao pé a casa de Vitorino Nemésio, ali nasceu em 19 de dezembro de 1901, há objetos pessoais, pode ver-se o seu primeiro livro da juventude, a sua guitarra e fotografias. E fomos à casa das tias, quem leu o magnífico “Mau tempo no canal”, sabe como estas tias foram tão importantes na juventude deste grande nome da literatura portuguesa.


Antes de comer um filete de abrótea e saborear um bocadinho de alcatra de carne (bem procurei uma alcatra de peixe boca negra, não fui bem sucedido), passou-se da Igreja da Misericórdia, tem uma fachada vasta, o fotógrafo amador preferiu este detalhe, convenhamos que há muita garridice nestes azuis e brancos, os terceirenses incentivam as cores garridas, quase fluorescentes, é uma defesa contra o céu de chumbo, como se a natureza se confrontasse com os verdes dos prados, estes azuis esmaltados, castanhos, amarelos, a paleta é delirante.


Banqueteados, vamos agora a caminho das Lajes, a povoação é enorme, vimos o lado português e o lado norte-americano, do aeroporto arrancou um avião pesadão que infletiu para as Américas. Uma passageira da excursão pediu ao guia que se parasse num pasto, gostava de dar ao neto uma foto com vacas. Aproveitei a deixa, e já está, é daqui que vem leite, manteiga e queijo que tanto aprecio, é surpreendente a evolução destes lacticínios, tão saborosos com os queijos de S. Jorge à frente.


Estamos à beira mar, caminhamos para o ponto oposto de Angra do Heroísmo, há muitos miradouros, Ponta do Mistério, Ponta das Quatro Ribeiras, Ponta da Furna, Ponta dos Biscoitos. Procurei registar imagens destas costas escarpadas, há aqui muita falésia a pique, em contraste com tons azuis e turquesa das águas com a espuma muito branca sobre os pedregulhos e calhaus rolados. Espero que apreciem.


Não estivesse um dia tão nebulado e víamos claramente visto a Ilha de S. Jorge, que parece um paquiderme adormecido. Mas não, o que mais gosto neste escarpado são os tons azuis da água, e aquele instante em que a tromba de água se deflagra no rochedo. Que querem, vaidades do amadorismo.


O guia está esmorecido, os céus turvaram-se, é impossível ir ao interior, nesta altura não se pode visitar a Gruta do Algar do Carvão, e com este nevoeiro não é agradável andar pelas reservas florestais no coração da ilha. Toca de aproveitar onde há visibilidade, visitamos demoradamente os biscoitos, vamos agora até Altares, pasmem com a igreja paroquial de S. Roque dos Altares. É quase uma cópia numa igreja norte-americana, desobedece na sua estrutura à configuração do património religioso açoriano, mas é imponente, ao lado visitamos o museu etnográfico, singelo, o império é também imponente. E há mais surpresas no interior da igreja, vejam.


O altar-mor é marcadamente neogótico, as cores são bem vistosas, tudo muito aprumado, não pode haver negligências em tudo quanto seja local de culto, é o esmero na reparação para fazer face às inclemências das chuvas diluvianas, dos ventos que lembram tornados e de uma humidade capilar que não sendo rapidamente sustada tudo apodrece. Uma natureza que faz com que o açoriano viva em permanente sobressalto. As térmitas são outra forma de cataclismo, desfazem as casas, parecem epidemia, são tão temidas quase como os tremores de terra, esses sismos crónicos que a vulcanologia quer prever, para salvar vidas. O passeio acabou, vamos agora para Angra. Sento-me frente ao mar, recapitulo outras visitas. Mal cheguei e perguntei pela casa museu do senhor Ernesto Oliveira Martins, um grande colecionador. Morreu, a casa está fechada, desta feita não vou ver pratas preciosas, mobiliário indo-português, marfins requintados. É assim a viagem, fica uma coletânea de momentos especiais da nossa existência. Desde que aqui aportei, em 1967, sinto-me irremediavelmente tocado por esta cultura e afabilidade. E pela primeira vez na vida parto sabendo que dentro de dias vou regressar a uma ilha mais à frente, o Pico. Espero dar notícias.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 18 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14384: Os nossos seres, saberes e lazeres (78): Relato de visita a Angra do Heroísmo (Mário Beja Santos)

Guiné 63/74 - P14405: Parabéns a você (879): Rui Silva, ex-Fur Mil Inf da CCAÇ 816 (Guiné, 1965/67)

____________

Nota do editor

Último poste da série de 24 de Março de 2015 > Guiné 63/74 - P14402: Parabéns a você (878): Braima Djaura, ex-Soldado Condutor Auto Rodas da CCAÇ 19 (Guiné, 1972/74)

terça-feira, 24 de março de 2015

Guiné 63/74 - P14404: Notas de leitura (696): "Os Segredos da Censura", por César Príncipe (Manuel Joaquim)

1. Mensagem do nosso camarada Manuel Joaquim (ex-Fur Mil de Armas Pesadas da CCAÇ 1419, Bissau, Bissorã e Mansabá, 1965/67), com data de 21 de Março de 2015:

Meus caros editores:
A leitura do livro "Os Segredos da Censura", de César Príncipe, levou-me a redigir este texto.
Acho que o tema tem algum interesse mas o texto está um pouco comprido. Eu bem tentei mas não consegui pô-lo mais curto nem saber por onde o separar para publicação em duas partes.
Se no vosso entender for publicável, estejam à vontade no seu modo de edição.

Muito obrigado pelo vosso trabalho. Nem imaginam quanto vos estou grato e vos admiro!

Fraternalmente, um grande abraço para cada um de vós, meus caros amigos e camaradas.
Manuel Joaquim


Guerra Colonial 
O controlo da informação na política ultramarina portuguesa

Manuel Joaquim

Durante os governos de Salazar e de Caetano, um dos meios usados para controlar politicamente o país era o exame prévio da matéria que os órgãos de informação quisessem publicar. Para isso havia uma “Comissão de Censura”, nome alterado por M. Caetano para “Comissão de Exame Prévio”. Esta Comissão vigiava todo o tipo de informação, desde a escrita (jornais, livros e revistas, etc.) até à radiofónica e televisiva. Também as artes e espectáculos estavam sujeitos ao mesmo exame prévio (teatro, cinema, canções, cartazes, etc.). Era proibida a publicação ou a exibição de tudo o que a “Censura” achasse não estar de acordo com as ideias do poder vigente (político e religioso).

A este propósito tenho presente o livro do jornalista César Príncipe, “OS SEGREDOS DA CENSURA” (3ª edição, 1994). Nele estão transcritos os telegramas telefonados pela Comissão de Exame Prévio do Porto para o Jornal de Notícias (JN) desde 05/01/1967 até 24/04/1974, assim como “Circulares dos Correios e Telecomunicações de Portugal sobre livros e revistas proibidos de circular” emitidas nos anos 1970 a 1974.
São quase sete centenas de telegramas e é de ficar de boca aberta perante o que neles se lê. Tendo sido dirigidos a um só jornal e num certo período de tempo, podemos imaginar a enormidade da soma de todos os telegramas deste género enviados pelos “coronéis da censura” para todos os órgãos de informação, durante as dezenas de anos de vigência do regime do Estado Novo!

Capa de "OS SEGREDOS DA CENSURA", de César Príncipe 
Editorial Caminho - 156 páginas - 3ª edição, 1994

Pelos referidos telegramas se vê que tudo era assunto sujeito a censura prévia: qualquer tipo de ideologia e actividade políticas, órgãos de comunicação social, trabalho e relações laborais, religião, epidemias, desastres naturais, guerras, fome, apoios sociais, cooperativas, aumentos de preços, barracas, abortos, emigração, ensino, suicídios, adultérios, homossexualidade, proxenetismo, prostituição, pedofilia, assassínios, fraudes, roubos, etc. etc. O resultado de tudo isto foi a criação de um país-ficção, um país idealizado e propagandeado pelo Governo como um país exemplar habitado por um povo exemplar. A verdade do país real era bem diferente.

Para o Governo de então, não havia guerra no Ultramar mas acções de manutenção da ordem pública. Portugal nunca admitiu, oficialmente, a existência de guerra nas colónias portuguesas em África. Veja-se este telegrama da Comissão de Exame Prévio, dirigido ao JN em 12-01-1970:

«Na posse do 2.º comandante da PSP de Lisboa – disse-se que ele já fez três comissões de serviço no Ultramar, a primeira “logo na eclosão da guerra”. Ora, não há guerra. Não se pode dizer isso. Deve ter sido confusão do repórter … Coronel Saraiva.»

Repare-se na data, Janeiro de 1970! O Governo continuava a dizer que não havia guerra, nove anos depois dela iniciada! “Deve ter sido confusão do repórter” – ironiza (?) o coronel censor!

Numa recente emissão da RTP, onde se falava de “mulheres na guerra colonial”, a esposa de um combatente diz que ao chegar a Lourenço Marques alguém lhe disse que não havia guerra nenhuma em Moçambique, que essa ideia de guerra era uma invenção dos militares para justificarem a sua presença ali, o que eles queriam era ganhar bom dinheiro. De nada lhe valeu reafirmar a certeza de que o marido estava mesmo a combater.
Também recentemente o historiador António Costa Pinto disse que a gravidade da guerra colonial passou despercebida a muita gente em Angola e Moçambique. Disse-o na apresentação de um estudo sobre a chamada “população retornada” que, no fim da guerra, abandonou precipitadamente os territórios africanos. Gente que vivia alheada do conflito bélico, com pouca ou mesmo nenhuma consciência dos perigos que a guerra representava para o seu futuro, foi violentamente surpreendida pelo processo de descolonização e pelo modo como esta foi feita. A verdade do que se passava tinha-lhes passado ao lado. E não só por sua culpa mas também por causa do minucioso controlo oficial da informação, falada e escrita. Tudo isto lhes criou uma falsa realidade, o que em grande parte poderá explicar o seu não entendimento dos problemas político-sociais que depois as atingiriam.

Percebo agora a verdade de uma frase ouvida algumas vezes a pessoas escorraçadas de África, após o fim da guerra colonial: “nunca pensei que isto (me, nos) pudesse acontecer”.

Mas não foi só nos palcos de guerra que isto aconteceu. Também na então chamada “Metrópole” aconteceu algo parecido. O poder político tentava impedir que se viesse a criar uma consciência nacional do que se passava nos palcos de guerra em África.
É verdade que os ex-combatentes regressados traziam milhares de notícias sobre a realidade do que se passava na guerra colonial. Mas, como todos sabemos hoje, a maior parte deles portou-se como se tivesse assinado um pacto de silêncio sobre a guerra, muitas vezes só quebrado no seio da própria família. Esquecer os seus tempos de combatente era o que mais queria e o mais depressa possível.

Assim, as reais histórias da guerra iam ficando abafadas. Só passavam notícias, crónicas e reportagens que estivessem devidamente alinhadas com a política em vigor e cuja divulgação não viesse alterar a pacatez da vida pública e social e não causasse contestação à política seguida pelo Governo. Quem quisesse falar publicamente da sua vida de combatente, só com muita sorte não seria incomodado se esses seus relatos fossem contra a orientação governamental.
O país, em geral, não tinha grande noção do que se passava em África com os seus combatentes. À primeira vista, não havia notícias de mortos e feridos já que era difícil encontrá-las nos órgãos de informação. Os nomes dos militares falecidos eram divulgados em sintéticos comunicados do Serviço de Informação Pública das Forças Armadas e publicados num pequeno e obscuro espaço de um ou outro jornal.
Tudo se fazia para fazer crer que a chamada guerra do ultramar pouco mais era que um conjunto de fortes escaramuças, a deixarem de existir mais dia menos dia.
“Se não há guerra, não há combatentes”. Foi esta orientação que impediu a criação oficial da figura cívica de “ex-combatente do ultramar” e a sua agregação em associação de veteranos de guerra. Era politicamente perigosa tal instituição pelo que poderia fazer na divulgação da verdade do que se passava. E economicamente também o seria. Veja-se a este propósito o telegrama de 27/03/1973, enviado ao JN:
«O Diário Popular queria dar uma notícia muito grande sobre as regalias que os Estados Unidos concedem (muitas) aos desmobilizados do Vietnam – CORTAR. Dr. Ornelas». “Muitas” regalias, diz o censor.

Em Março de 1964, a Comissão de Censura definia assim o modo de tratamento das notícias sobre um levantamento popular em Moçambique, na área do Niassa:
“Quanto aos acontecimentos na Niassalândia (Moçambique), eliminar as estatísticas que as Agências estão fazendo do total de mortos e feridos. CORTAR todas as notícias relativas a violências executadas sobre os pretos pelos brancos. Não dar publicidade às atitudes anti-nativas das tropas locais europeias na repressão da revolta. Não dar notícias sobre tiroteio ou fogo aberto sobre multidões a fim de evitar especulações. Não há inconveniente em que se relatem violências exercidas pelos negros sobre os brancos nem que se diga que os motins são instigados pelos comunistas”.

É exemplar esta orientação noticiosa do regime de Salazar. Veja-se a duplicidade: nada de relatar violências dos brancos sobre os negros mas não há inconveniente em relatar violências dos negros sobre os brancos. Esta orientação é exemplar também por tudo o mais que pede: a negação total da verdade e a permissão política para criar uma mentira que passe por verdade. Imagine-se alguém, na altura, a dizer-se bem informado sobre o que se tinha passado na Niassalândia baseado na informação dada pelos órgãos de comunicação social!

Comissão de Exame Prévio do Porto. Telegramas telefonados ao JN, de 05/01/1967 a 24/04/1974:

De entre todos os telegramas referidos, seleccionei 62 dos 112 relacionados com a política ultramarina portuguesa e a guerra colonial.

30/4/67. «Pampilhosa. Actos de loucura de um sargento do exército. Não dizer que é sargento do exército. Senhora de Vila Maior, S. Pedro do Sul, morreu ao tomar conhecimento de que o filho embarcava para o Ultramar. Não falar em Ultramar. (…)»

10/11/67. «A Direcção dos Serviços de Censura pede aos jornais que, ao referirem-se à política portuguesa em África nunca digam: política do Governo. É que isso pode induzir em erro os estrangeiros, levando-os a crer que se trata de uma política de facção. Por isso convém: política portuguesa em África e política de Portugal em África.»

6/6/68. «O bispo de Carmona, D. Francisco da Mata Mourisca, efectuou (…) uma conferência sobre o 3º Congresso Mundial de Apostolado dos Leigos – CORTAR TUDO. (…).

30/7/68. «Em Soutelo, uma rapariga suicidou-se depois do namorado ter seguido para Angola, mobilizado. Não falar na ida para Angola. (…).»

6/8/68. «Forças rodesianas ou sul-africanas (passagem pelo nosso território) – CORTAR. (…).»

14/9/68. «Na Candeia-Bar foi preso um rapazola que ali praticou distúrbios. Não dizer que regressou há pouco do Ultramar. (…).»

22/2/69. «O ministro da Defesa pede que não se noticie o aparecimento dos corpos irreconhecíveis de militares mortos na Guiné. (…).»

30/10/69. «Quanto ao Ultramar – NADA. Verbas despendidas na Defesa – NADA. (…).

12/1/70. «Na posse do 2º comandante da PSP de Lisboa – disse-se que ele já fez três comissões de serviço no Ultramar, a primeira logo na “eclosão da guerra”. Ora, não há guerra. Não se pode dizer isso. Deve ter sido confusão do repórter … (…).» [Depois de 9 anos de guerra, não se pode dizer que há guerra !!! ... ]

20/1/70. (…). Agressão mortal a um soldado indígena – não dizer, em título, que o morto era soldado. (…).»

2/7/70. «O Papa recebeu, no Vaticano, terroristas portugueses – CORTAR TUDO. MUITO CUIDADO. (…)»

4/7/70. «Nota do Ministério dos Negócios Estrangeiros acerca da audiência concedida pelo Papa a chefes terroristas de Angola, Guiné e Moçambique – CORTAR o último período: “Por esse motivo o governo entende que não podem tais factos deixar de ser levados, desde já, ao conhecimento da Nação.” (…)» [Até comunicados do Governo eram censurados!]

9/7/70. «Entrevista do general Deslandes, em Moçambique – CORTAR referência à necessidade de 1 milhão de europeus. (…)»

13/11/70. O bispo do Porto visitou, na cadeia de Caxias, o Rev. Mário de Oliveira – CORTAR. (…).» [Mais conhecido por padre Mário da Lixa, foi capelão militar em Mansoa (BCaç. 1912), de Novembro/1967 a Março/1968. É membro deste blogue.]

18/11/70. «Julgamento de um alferes miliciano considerado responsável por um desastre em que morreram 47 militares. Só pode sair a composição do Tribunal, nomes de advogados e a sentença. (…).»

22/11/70. «Regresso do Niassa a Cascais para desembarcar um furriel ferido. Não dizer que foram a bordo almirantes ou autoridades. (…).»

15/12/70. «Assembleia Nacional. Deputado falou do progresso de Angola, mas disse que ainda há travões. Em título ou subtítulo – não falar em travões. (…)»

23/12/70. «Oferta de auxílio militar da África do Sul a Portugal. Poderá ser: “Portugal recusou auxílio militar da África do Sul”. (…)»

21/1/71. «No Supremo Tribunal de Justiça foi julgado o recurso de um chefe de posto de Angola que bateu num preto e o preto veio a falecer. Foi julgado e condenado – CORTE TOTAL. (…)»

23/3/71. «Criança morta em Guimarães. Lançou uma granada à lareira. Não pode sair em título: “Recordação do Ultramar”, como um jornal de Lisboa pretendeu pôr. (…).»

14/5/71.«Não pôr, em título, 1 milhão e meio de contos para acorrer a despesas da Armada e da Aeronáutica. (…).»

12/6/71. «Foguetões na Guiné. Não usar: “Bissau alvejada por foguetões de longo alcance”. Desvio de táxi aéreo para o Congo – Não falar, em título, no alferes miliciano. (…).»

24/6/71. «(…). Tenente do exército, agora regressado do Ultramar, António Madeira, suicidou-se. Lançou-se, de uma janela da pensão, à rua – CORTAR TUDO. (…).»

31/7/71. «Angoche – não se pode publicar notícia alguma. Só notas oficiosas. (…)»

15/9/71. «Em Tete um automóvel terá tocado numa mina, morrendo os ocupantes. É para CORTAR. (…).»

7/11/71. «Amílcar Cabral nos Estados Unidos – CORTAR. (…)»

2/12/71. «(…). Não destacar os títulos da intervenção do almirante Reboredo e Silva sobre a chefia política e militar em Angola e Moçambique. (…)»

14/12/71. «Sessão de homenagem aos combatentes do Ultramar, em Viana do Castelo (Câmara ou Governo Civil) – MANDAR. É que parece que só apareceu um mutilado porque os outros faltaram, visto terem recebido convites para a sessão mas não para o banquete… (…).»

10/1/72. «(…). Candidatura independente pelo círculo da Guiné do Dr. Baticão [sic] Ferreira ou qualquer homenagem a ele – TUDO CORTADO. (…)»

22/1/72. «(…). Soldado da Guiné escreveu uma carta aos jornais dizendo que esteve ferido e ninguém ligava às suas exposições.SUSPENDER.(…).»

17/2/72. «Proposto o bloqueio dos portos de Lourenço Marques e Beira. Não pôr, em título, bloqueio. Um título que não chame a atenção.(…)»

14/3/72. «Visita do ministro da Defesa ao Quartel-General do Porto. Ele disse: “há toda a conveniência em eliminar problemas criados em unidades da Metrópole que se reflectem grandemente no Ultramar”. Esta parte é CORTADA TOTALMENTE. (…).»

14/4/72. «Inspecções militares em Chaves. (…) não pôr em título que os aleijados substituem os sãos. É verdade. Passou-se. Mas … (…).»

9/6/72. «Assalto em Sintra. Não dizer que os autores desertaram, quando em serviço em unidades combatentes na Guiné. (…).»

7/8/72. «Presença do ministro das Finanças de França (Giscard d’Estaing) no continente e no Ultramar – NADA. (…)»

3/9/72. «Homenagem em Angola ao coronel Rebocho Vaz. Não pode sair qualquer referência ao facto de o jantar lhe ter sido oferecido por haver terminado a sua comissão de serviço. (…)»

6/10/72. «Quanto ao ministro Iam Smith, não dizer que no regresso está prevista uma reunião com o presidente do Conselho, ou que a vinda dele cá seria para um acordo prevendo a intensificação da luta contra o terrorismo. (…).

7/10/72. «Comunicado das Forças Armadas de Moçambique sobre dois acidentes de viação. No título pôr só “Comunicado”. Não se pode falar em mortos. (…).»

13/11/72. «Avião desviado pelos pretos – CUIDADO com os títulos. (…)»

25/11/72. «Carta aberta de capelães militares – MANDAR. (…).»

21/1/73. «Sobre a morte de Amílcar Cabral pode sair o que consta dos telegramas. Pode ser na 1ª página com o relevo que entenderem – duas ou três colunas. (…). Comentários é que terão de ser MANDADOS.(…)»

1/2/73. «(…). Amílcar Cabral é assunto que morreu. Não se pode falar mais. (…)»

7/2/73. «(…). Caso do avião que foi para Tânger. Não dizer que o piloto é cabo miliciano. (…).»

5/3/73. «(…). Rui Patrício. Qualquer referência a que a viagem à África do Sul é motivada pelo “aumento de tensão nas fronteiras setentrionais da Rodésia e de Moçambique” – CORTAR. (…)»

27/3/73. «O Diário Popular queria dar uma notícia muito grande sobre as regalias que os Estados Unidos concedem (muitas) aos desmobilizados do Vietname – CORTAR. (…)»

21/5/73. «Relato da reunião da Assembleia Legislativa da Guiné. Discurso do padre Cruz Amaral – MANDAR. Tem CORTES. (…). Dr. Ornelas.»

23/5/73. «Ajudas de custo mais altas para os militares. No título, não pôr mais altas. Só ajudas de custo para militares. (…).»

6/6/73. «Telegrama sobre o Congresso dos Combatentes. 400 combatentes da Guiné contra o Congresso – MANDAR para CORTAR. (…).»

22/8/73. «Oficiais milicianos. O decreto pode publicar-se. Mas sem comentários. (…).»

3/9/73. «Comunicado do Episcopado de Moçambique sobre o alegado massacre [Wiriamu] – TOTALMENTE PROIBIDO. (…).»

5/11/73. «Permanência em Portugal do ministro das Finanças da África do Sul – PROIBIDO. Só é autorizado a sua partida. (…)» 7/11/73. «Relatório da Diamoc (Diamantes de Moçambique), falando em prejuízos devido ao terrorismo na região de Tete – MANDAR. (…)»

11/12/73. «Racionamento de gasolina no Exército. Circular do Quartel-Mestre General – PROIBIDA. (…).»

3/1/74.«De Lisboa mandaram avisar todos os jornais: “Não é autorizada a publicação de qualquer comunicado ou notícia referentes a problemas de carreira militar ou de situação de qualquer categoria das Forças Armadas. (…).»

21/1/74. «Adis-Abeba estuda embargo de petróleo a Portugal – não referir, em título, “a Portugal”. (…)»

14/2/74. «Artigo de um jornalista francês que esteve em Timor - TRANSCRIÇÃO PROIBIDA. Dizia mal de nós e que os indonésios não tinham desistido de ocupar Timor. (…)»

2/3/74. «Africanos na Sociedade das Nações [sic]. Não lhes chamar, em título, nacionalistas. (…)»

16/3/74 .« (…). 0.45: Demissão de Costa Gomes e António Spínola – EMBARGO até às 5 horas da manhã. Se o jornal sair antes, não pode.» 1.10: «O caso de Lamego é para PROIBIR. Quanto ao caso das Caldas da Rainha parece que o senhor director do EXAME PRÉVIO vai autorizar mais qualquer coisa. Mas ainda não se sabe o que é. Ele ainda está a ler os papéis todos e depois é que dirá. Portanto, mandem o que têm.» (23.35) «Rebentou uma mina entre Viseu e Lamego – feriu um soldado e matou outro. É para PROIBIR. (…).»

19/3/74. «Regresso do general Luz Cunha – PROIBIDA qualquer referência ao Spínola. (…).»

24/3/74. «Acidente de Castelo Branco com camioneta de explosivos. Notícia puramente objectiva. NADA que as pessoas fiquem a pensar que era uma camioneta militar.(…).»

11/4/74. «Niassa – já se pode dizer que saiu. Notícia pequena. O barco só largou às 23 horas por ter tido necessidade de fazer novas provisões para substituir as estragadas pela explosão. Quanto aos nomes dos feridos – NADA! (…).»

18/4/74. « (…). Confraternização dos alunos do Colégio Militar – PROIBIDAS indicações dos nomes dos oficiais que fizeram parte do curso X ou do curso Y. Isto para não referir os assuntos que os senhores têm de MANDAR SEMPRE CÁ, mas que às vezes se esquecem … (…).»

Por esta pequena amostra (só de um jornal) ficamos a perceber um pouco da política governamental usada para ocultar da opinião pública a verdade sobre o que se passava no âmbito militar/guerra no ultramar.
____________

Nota do editor

Último poste da série de 23 de março de 2015 > Guiné 63/74 - P14400: Notas de leitura (695): "Império Ultramarino Português", Empresa Nacional de Publicidade, 1950 (1) (Mário Beja Santos)