1. Mensagem do nosso camarada António Murta, ex-Alf Mil Inf.ª Minas e Armadilhas da 2.ª
CCAÇ/BCAÇ 4513 (Aldeia Formosa, Nhala e Buba, 1973/74), com data de 14 de Junho de 2015:
Camaradas Luís e Carlos Vinhal
Por achar que vinha mesmo a calhar, resolvi passar ao papel uma historinha (conto breve 2)
que há muito andava na minha cabeça e que já teve várias versões e mais teria se continuasse apenas na cabeça.
É uma historinha surreal quase, - ou talvez nem tanto - , mas que pode dar uma achega para se perceber a relação, algumas vezes complicada, da tropa com as mulheres e as bajudas do nosso encantamento.
Tal como a maioria já reconheceu, também na minha zona os casos de envolvimento foram raríssimos, e nunca houve conflitos por causa disso.
A historinha trata, ainda, da obsessão psicopática (ou fixação maluca?), que normalmente descamba no assédio sexual. E de como isso pode afectar o comportamento e a autoridade do assediador, se este tiver responsabilidades de chefia, quer seja na tropa, quer seja noutra actividade qualquer.
Isto nada tem de científico, de que não percebo nada. É só observação.
É um bocadinho longo este conto, mas não consigo cortar mais sem estragar o efeito. Por isso sugeria que, se tiver de ser cortado, o fosse nos pontos que assinalei com (*****), ou então publicado inteiro - teria melhor leitura - num daqueles dias em que escasseia o material para publicar. Isto, se entenderem publicar.
Um grande abraço a ambos
A. Murta
Conto breve
2 - “Binta: um caso de saias, faca e alguidar”
Estava um dia quente e abafado, sem uma aragem. O alferes Lourenço, sozinho no quarto dos oficiais, fazia tempo para o almoço deitado sobre a cama em tronco nu e folheando um jornal com mais de quinze dias. Quando olhou para o relógio sobre o caixote-mesinha de cabeceira, viu que já passava da hora. Sentou-se à pressa na cama e enfiou a camisa e as botas. Desligou a ventoinha e saiu para a messe, ali ao lado no mesmo edifício. Quando entrou, à mesa estavam apenas dois outros alferes. O alferes Madaleno tinha saído cedo para a protecção às obras da estrada nova. Faltava ainda o Capitão Arsénio. O ordenança-barmen aguardava ordens junto à porta que liga a messe ao bar. O alferes Lourenço puxou a sua cadeira e sentou-se à mesa perguntando para os colegas:
- Então hoje não se almoça? - E um deles respondeu:
- Deixa vir o capitão!
- Deixa vir o capitão, não! Deixa vir o nosso capitão, faz favor! - disse o capitão que, ao entrar, ainda ouvira a conversa.
Os alferes mantiveram-se calados e sisudos. O capitão fez um sinal para o ordenança servir os almoços e acomodou-se no seu lugar, no topo da mesa e à esquerda do alferes Lourenço.
- Então, Lourenço!... Ontem esteve nalguma orgia, ou quê? Para entrar no aquartelamento às três da madrugada!... - Disse isto com um sorriso largo e cínico, baixando a cabeça para olhar directamente nos olhos do alferes.
- Desde quando anda a vigiar-me as horas de entrada no aquartelamento, capitão?
- Ora!... Não é preciso ser bruxo para saber de onde vem e, como chega quase sempre a arrastar as botas, todos dão pela sua entrada, não sou só eu!...
- Tenha maneiras, capitão Arsénio!
Entretanto o ordenança já tinha trazido as travessas e as bebidas e fingia-se alheado do diálogo. Recuou para a porta do bar e ficou às ordens.
- Mas também lhe digo. Por uma febra daquelas até eu mandava às urtigas a prudência e a reverência! - Continuou o capitão.
O alferes Lourenço nem começara a comer e os colegas debicavam contrafeitos. Mas o capitão, enquanto falava, começara a comer normalmente, fazendo crer que a conversa era naturalíssima, o que irritou ainda mais o alferes.
- Ouça, capitão. Peço-lhe que acabe com esse despropósito, a ver se ainda consigo almoçar.
- Então, Lourenço!... Não se amofine, homem!
- Não me amofino, o caraças! Não lhe ficam bem esses comentários jocosos e provocadores, valendo-se da sua posição. Ou esquece, nestes momentos parvos, que é a autoridade máxima desta merda toda?
O capitão pousou os talheres e com os olhos muito abertos para o alferes ia para dizer qualquer coisa, mas o alferes continuou: - E como vai impor essa autoridade aos seus subalternos se se desconsidera a si próprio, à frente de todos, como um primata despeitado, hã?
Dito isto, encolerizado, o alferes levantou-se brusco atirando a cadeira ao chão, perante a estupefacção de todos e dirigiu-se à porta. O capitão ainda ordenou:
- Alferes Lourenço! Volte aqui imediatamente! - Mas já o alferes saía porta fora sem lhe dar atenção e dirigindo-se para o quarto.
Puxou a cortina de chita da janela deixando o quarto na penumbra e deitou-se de costas em cima da cama. Fechou os olhos e ficou ofegante e a transpirar, com os punhos cerrados. Não tinham passado cinco minutos e entra, de rompante, o alferes Martins Silva:
- Foda-se, pá! Que ambiente de merda! Nem acabei de almoçar!...
O alferes Lourenço nem abriu os olhos e o camarada, sentando-se na borda da cama em frente, continuou, agora em tom de confidência:
- Ouve, Lourenço. Tens de te pôr a pau. Não é a primeira vez que o capitão toca no assunto e fá-lo sem papas na língua quando tu não estás. Parece que tem uma obsessão pela Binta ou então é uma tara qualquer que o descontrola completamente. Refere-se a ela como uma fêmea que nasceu apenas para enlouquecer os homens. Acho que isto se pode tornar perigoso. Eu a ti... - desculpa estar a meter-me no assunto - , eu a ti deixava passar algum tempo..., ou afastava-me dela definitivamente. Ainda, para mais, casada...
O alferes Lourenço abriu os olhos e rodou a cabeça lentamente para o camarada, dizendo sem ânimo:
- Sabes, meu caro..., o problema nisto tudo é que não devia ser suficiente ter habilitações académicas e passar o cú pelos bancos das academias militares, para se poder comandar homens, dirigir pessoas. É preciso ter mais qualquer coisa para além das teorias e das técnicas. Os neurónios deviam ser avaliados um a um e, depois, no seu todo. E a alma vista de vários ângulos e submetida a testes. Neste caso concreto...
Não completou a frase pois bateram à porta. Era o ordenança com uma ordem para o alferes Lourenço:
- Desculpe meu alferes, mas o nosso capitão quer que vá falar com ele ao gabinete.
Os alferes entreolharam-se interrogativos e o Martins Silva encolheu os ombros e arqueou as sobrancelhas, enquanto o Lourenço se levantava e pensava em voz alta:
- Será que reconsiderou e quer pedir desculpa?
O outro abanou lentamente a cabeça achando que não.
Deu dois toques na porta do gabinete e, muito formal, abrindo-a, disse:
- Dá-me licença, meu capitão?
Sentado à secretária, o capitão parecia preparado para um assalto.
- Entre e deixe-se de merdas! Sente-se! - Decepção e esfriamento.
- Não, obrigado. Prefiro ficar de pé.
- Como queira. Chamei-o aqui para lhe comunicar umas coisas mas, antes, quero dizer-lhe que não volte a repetir a atitude que teve ao almoço, porque eu não lho admito, percebeu?
- Mas não admite o quê, capitão Arsénio? Você tem-se desautorizado constantemente com as suas atitudes e já não tem condições para admitir ou deixar de admitir.
- Você verá, nosso alferes! Mas queria dizer-lhe muito mais: tenho informações do meu colega do aquartelamento de Samba-Fula de que o marido da Binta Domingo anda doido e só arranja problemas lá no pelotão de milícias. E que anda a afiar os cornos para, um dia destes, vir cá enfiar-lhos na barriga. Largue essa gaja, alferes Lourenço, antes que seja tarde.
- Ah! Então o capitão, para me poupar, prefere que o Mamadu lhe venha cá enfiar os cornos a si!... É isso, capitão? Não seja hipócrita!
O capitão, sem argumentos, ainda tentou mais uma prepotência, proibindo o alferes de, daí em diante, se ausentar de noite para a tabanca. A reacção do alferes foi tão violenta que, de repente, se abriu a porta que dá para a secretaria, aparecendo a cara do 1.º Sargento com olhos esbugalhados:
- Há algum problema, meu capitão?
- Não há problema nenhum, nosso sargento! Feche essa porta e não se ponha para aí a escutar, ouviu?
O sargento bateu com a porta com toda a força.
- Está a ver, capitão? Já ninguém lhe tem respeito!..
- Não lhe admito que me faça observações! E muito menos que me chame hipócrita ou outra coisa qualquer!
- Repito-lhe. Não admite nem deixa de admitir, capitão! Já pensou, ao menos por uma vez, como se vai impor até ao fim da comissão, com a sua autoridade na sarjeta? Você não tem condições para desempenhar as funções que lhe confiaram!
O capitão pôs-se em pé de um salto e, colérico, disse:
- Ponha-se no olho da rua, nosso alferes! Antes que lhe ponha um processo disciplinar às costas! Já!
Como se precisasse de mais motivos, pensou o alferes Lourenço. Calmo, mas olhando-o bem nos olhos, respondeu-lhe baixinho enquanto ia abrindo a porta:
- Tome nota, capitão Arsénio! Um de nós não vai acabar esta comissão!
- Ou ambos, nosso alferes! Ou ambos!...
*****
Passaram-se várias semanas e, apesar de alguma tensão entre os alferes e o capitão, o dia-a-dia decorria dentro de uma aparente normalidade, com ordens curtas e secas e com uma actividade operacional favorável a baixas tensões. À cautela, o alferes Lourenço manteve-se arredado da tabanca, menos por respeito ao capitão e mais por estratégia defensiva. Mas, se por um lado o Mamadu não dava sinais, a Binta Domingo começava a insistir nos porquês, através de bilhetinhos que lhe enviava. Ao menos dissesse porquê! Não desejava mais vê-la? Ou seria que, sem querer, o tinha magoado? E porque é que o capitão insistia em querer falar com ela? Saberia de alguma coisa?
Lourenço cedeu. Estava farto de se privar do aconchego da sua amiguinha por causa de um psicopata e das ameaças incertas de um marido ciumento. Bilhete para lá, bilhete para cá e combinaram novo encontro. Mas o alferes, ainda contrafeito, mais contrafeito ficou quando ela lhe indicou uma morança de adobe e chapa de zinco de uns familiares ausentes.
Estava uma noite amena mas um pouco escura. Em redor, tudo parecia demasiado tranquilo e isso teve um efeito contrário no estado de espírito do alferes. Para se tranquilizar, enquanto caminhava, levou a mão ao bolso da perna direita e tacteou a Walter. O facto de ter o seu grupo de combate de serviço nessa noite, sentinelas de confiança, também era tranquilizador, quis acreditar. Continuou a andar mas sem convicção. Para trás, uns já dormiam e outros entregavam-se aos jogos de mesa do costume. Pareceu-lhe que a sua saída não fora notada. Hoje também eram menos no aquartelamento, pois dois grupos de combate se mantinham fora para dormir no mato.
Respirou fundo e bateu levemente na porta de zinco. A Binta apareceu enrolada num lençol e, depois de fechar a porta, correu para a cama, num quartito escuro e acanhado, com a entrada, - sem porta - , frontal à da rua. O alferes Lourenço sentou-se na borda da cama em silêncio e foi habituando os olhos à escuridão, tentando perceber os detalhes à sua volta. Para além da cama, também não havia mais nada para ver. Só então se deu conta de que, atrás de si, na parede onde se encostava a cama, quase aos pés desta, havia uma espécie de janela minúscula, fechada apenas por uma rede fina. Era possível ver através dela uma ténue claridade exterior.
Após um longo silêncio, a Binta ensaiou dizer qualquer coisa, mas ainda a medo:
- Então, Lourenço? Não te deitas?
Mas ele quase não lhe deixou terminar a frase, dizendo “Chiu!...”, e já a pensar como lhe diria a urgência que tinha em sair dali. Havia qualquer coisa, inominável, que lhe dizia que fora um erro tremendo aquela visita. Queria sair dali mas faltavam-lhe as palavras e as forças para se pôr de pé. Parecia paralisado. Mais uma vez tacteou a Walter e, no bolso esquerdo das calças, a enorme lanterna com punho de borracha.
- Que se passa, Lourenço? Deita! - insistia ela, quase num sussurro.
Ele não disse nada, apenas a afagou docemente através do lençol. Continuava de costas para ela e cada vez mais tenso, como que encurralado. Nem debaixo de fogo, pensou. Após novo silêncio que pareceu uma eternidade e eis que, do exterior, chega um restolhar abafado, hesitante mas próximo, logo interrompido pelo silêncio absoluto. Alerta, mas já a duvidar dos seus ouvidos face à enorme tensão, o alferes aguardou e tentou relaxar. Longa espera, pareceu-lhe. De novo o restolhar junto à parede, em chão de capim seco.
Percebiam-se cautelas experimentadas. O alferes crispou-se e todos os seus sensores passaram a um estado de alerta tal, que lhe pareceu possível ver o que apenas estava a ouvir e, sentir até, a vibração cardíaca do intruso, tal como sentia a sua. É o capitão!, - pensou. Grande filho da puta! Não imaginava que chegasse tão longe a sua audácia e a sua loucura. Vem à procura de uma tragédia e, se calhar, vai tê-la, o energúmeno!
Aos poucos, os sons quase imperceptíveis, vinham nitidamente por debaixo da pequena janela. Com o máximo cuidado deslizou na borda da cama e chegou-se para a cabeceira, para ficar fora do alcance da janela, mas mantendo sempre os olhos fixos nela. Depois segredou aos ouvidos da Binta:
- Está alguém do lado de fora a espiar. Silêncio absoluto!
Ela estava a dormir, ou quase, e levantou ligeiramente a cabeça, mas ele fez-lha deitar novamente. Entretanto, uma silhueta começava a surgir muito lentamente na janela, da esquerda para a direita, com um recorte nítido na contraluz e que, para espanto do alferes, deixou perceber que se tratava, afinal, de um africano ainda jovem. O Mamadu não era, de certeza, pensou. Embora nunca o tivesse visto. Confundido mas atento, viu a cabeça rodar e encostar-se de frente à rede da janela, tentando lobrigar para o interior escuro do quarto.
Sentiu ganas de, num golpe rápido, lhe dar uma coronhada violenta na cara que o prostrasse. Mas conteve-se, com receio de falhar e ser dado o alarme. Aguentou imóvel tentando adaptar-se à ideia de que tinha um grave problema pela frente. Ainda avaliou a hipótese de dar a volta à morança e surpreender o intruso. Mas depois? Dava-lhe um tiro? E se fosse mais que um? Matava-os todos?
Entretanto a silhueta abandonara a janela sem qualquer ruído. Depois, talvez, de uns dez minutos insuportáveis, soam na porta de zinco três pancadas aparentemente normais. A Binta, num sobressalto, saltou da cama só com o lençol a embrulhá-la e foi abrir. Na ombreira da porta iniciou-se um diálogo completamente estranho aos ouvidos do alferes que, de onde estava, ouvia mas não via nem podia ser visto. Relaxou um pouco quando, uma vez ou outra, ouviu rir a Binta mas, retesou-se até à asfixia, quando os ouviu discutir acaloradamente no silêncio da noite, sem saber se ela estava, ou não, a negar a sua presença ali.
Com a pistola na mão direita e a lanterna na outra, levantou-se no escuro e abriu as pernas para se estabilizar, virou-se para a entrada e, pronto para o pior, rodou a patilha de segurança. Num momento mais exaltado da discussão à porta, descontrolou-se e acendeu inadvertidamente a lanterna. Apagou-a rápido mas, se o intruso até ali tinha dúvidas, agora só podia ter certezas.
Terminada a conversa, a Binta fechou a porta com força e correu para dentro dizendo aflita:
- Lourenço! Tens que ir embora! Espera dez minutos e foge rápido até ao quartel! É o meu primo que quer apanhar-te!
Ora, isto só enervou ainda mais o alferes, pois nunca a tinha visto assim, ela que era só facilidades e de um optimismo inabalável. A tudo dizia “não tem problema”...
O alferes abriu a porta e olhou para o trilho que levava ao aquartelamento, bem definido na escuridão. No sossego da noite, perpassou-o uma estranha onda de tranquilidade, que o fez sair, sem correr, mas com passo seguro e decidido. Não porque o aquartelamento era já ali, mas porque estava preparado para tudo, pensava ele. Ainda disse: “Adeus, Binta!”. Ela ficou a vê-lo afastar-se, no aro da porta, como um anjo branco.
Não tinha dado uma dúzia de passos e eis que, do escuro entre as palhotas, surgem três vultos que lhe barraram a passagem, sem uma palavra, aparentemente desarmados, mas resolutos. Afinal, eram adolescentes, embora dois deles quase homens feitos. O mais novo avançou um passo e recuou logo, espantado.
- Alferes Lourenço?!!!
O alferes, que não largara a pistola e agora lha apontava, percebeu que, afinal, eles não sabiam quem estivera com a Binta, logo, aquilo não lhe era dirigido a si especificamente. Mas isso não o tranquilizou. De novo voltou ao estado de tensão máxima, crispado. As pernas vacilaram-lhe quando disse:
- Ninguém se mexe! Vou sair daqui e o primeiro que se mexer, leva um tiro!
Pela primeira vez em toda a sua vida estava na iminência de ter mesmo de matar à queima-roupa. Com a comissão a chegar ao fim, tão perpassada de situações de grande perigo e nada se comparava ao que lhe estava a acontecer. Se os matasse, ficaria à mercê da fúria dos nativos ou, na melhor das hipóteses, sujeito às leis militares. Ficaria desgraçado.
Os rapazes não pareciam nada intimidados e são arrogantes por natureza, ele sabia-o. Excepto o mais novo, ostentavam mesmo um ar de desafio. Mas não eram eles que assustavam o alferes Loureço, mas sim o que iriam, de certeza, desencadear, obrigando-o a defender-se a tiro. Isto era o que mais o assustava. Tinha que se decidir. Enfiou o cano da Walter na barriga do mais novo, próximo de si, e começou a contorná-los dizendo:
- Mexes e disparo!
Começou a recuar na direcção do aquartelamento, devagar e sempre a apontar a arma. Eles viraram-se para não o perderem de vista, mas sem saírem do lugar. A tensão era brutal. Para piorar, ouviu espantado a voz da Binta gritar:
- Foge, Lourenço! Foge rápido! Rápido, rápido!
O alferes olhou para a casa onde estivera e viu-a toda nua, ainda na porta, sacudindo com fúria o lençol branco, como se o pudesse enxotar para a segurança de um porto seguro. As pernas do alferes começaram a tremer, estava no instante decisivo: tinha que reagir rapidamente ou desfalecia. Sentindo que estava a uma distância suficiente deles, uma dúzia de metros, virou-se bruscamente e começou a correr para o aquartelamento, percebendo que nesse instante começavam, também eles, a correr para o interior da tabanca, aos berros e batendo com fragor nas portas de zinco das palhotas:
- Traz G3! Traz G3!
Ainda sem estar a salvo, mas já quase a entrar no aquartelamento, que dormia, o alferes fazia um esforço titânico para correr, mas as pernas não lhe obedeciam e, por momentos, pareceu-lhe que tinha regressado aos pesadelos de criança em que, fugindo dos monstros, as pernas, embora frenéticas, não o faziam sair do lugar, deixando-o a vogar. Com esta pequena distracção o alferes estatelou-se ao comprido no chão irregular. Mas isto fê-lo despertar e deu-se então conta, ao levantar-se a custo, de que tinha caído em cima da pistola que lhe esfacelou o peito contra as costelas. Tinha a camisa empapada de sangue mas não sentia nada. Começou a andar, coxeando, e olhou para a mão direita que também sangrava, agarrando ainda a pistola. O dedo no gatilho todo esfolado. Virou-se para a tabanca, mas já não havia correrias e berros. Só silêncio. Parecia que alguém, autoridade suprema, pusera subitamente a recato, aqueles jovens estouvados e perturbadores da noite.
Ali, no aquartelamento, tudo dormia. Tudo parecia apaziguado. Teria o capitão dado conta do incidente, estando agora a observá-lo? Achou que não. Se alguém se apercebeu de alguma coisa, foram as suas sentinelas nos postos, rapazes da sua confiança. Decidiu sentar-se num lugar recôndito e mais escuro para recuperar a respiração, antes de se dirigir ao quarto sem ser notado. Amanhã lavar-se-ia e fingiria uma indisposição para passar o dia de folga na cama. Meditou e adormeceu sentado, por instantes, ainda com a pistola na mão.
*****
Era um fim de tarde magnífico e o pessoal vinha com óptima disposição. Tinha sido mais um dia rotineiro passado no mato, sem sobressaltos, para fazer protecção a uma coluna. Depois de muitos quilómetros apeados e a fazer picagem, para lá, vinham agora prazenteiros em dois Unimog´s de regresso à base. No Unimog da frente, de pé para amortecer solavancos e ao lado do condutor, como era habitual, o alferes Lourenço segurava-se ao pára-brisas com a mão esquerda e, na outra, segurava a G3. Estavam quase a chegar e, lá adiante, já se via o grande poilão como referência da tranquilidade e da segurança da zona. Mais à direita, lá ao fundo, também já era possível ver as manchas brancas do casario do aquartelamento, através da mata de grandes árvores mas espaçadas.
De súbito soa um tiro - de certeza de G3 -, do lado direito da mata, e o alferes, com o nariz a arder, berra para o condutor:
- Pára! Pára essa merda!
A travagem brusca quase provocou o choque do Unimog de trás e a projecção dos homens para cima dos condutores. Antes de o Unimog do alferes parar, já ele ia num salto para o chão em atitude defensiva, mas não houve mais nenhum disparo. Sentiu um grande ardor na base do nariz e no lábio superior e levou a mão à cara para se certificar se tinha sangue. Não, mas estava queimado de certeza. Pensou, em fracção de segundos: como fora possível, à velocidade a que vinham, aos saltos no Unimog, quase ser atingido na cabeça? Tudo isto ocorreu num ápice, pois mal chegou ao chão e vendo que parte do pessoal saltara também, entrou a correr na mata e fez várias rajadas curtas. Depois, virando-se para trás, disse ao furriel Paulo:
- Vais aí pela direita, eu vou pelo meio e tu – apontou para o 1.º Cabo Cardoso - vais pela minha esquerda. Rápido! Vamos fazer uma batida, que o gajo não pode estar longe.
Antes, virou-se para o furriel José Nunes e mandou-o continuar com as viaturas e o resto do pessoal para o aquartelamento. Enquanto seguiam em passo de corrida pela mata de chão quase limpo, com uns aglomerados esparsos de arbustos e um ou outro baga-a-baga, o alferes pensou, pela primeira vez, quem poderia ter sido o atirador furtivo que, sem dúvida, o tentara alvejar, e porquê. De repente fez-se luz na sua cabeça: Mamadu! Só podia ser. Subiu-lhe uma raiva das entranhas e parou, chamando pelos outros com a mão. Disse, falando baixo e por gestos:
- Tomem atenção! A ordem é: capturar o gajo, ou matá-lo! Não se afastem demasiado e tomem como referência o aquartelamento à esquerda. Vamo-nos manter sempre à vista. Olhos bem abertos!
Caminhavam agora com mais cautelas, mas já se estavam a afastar muito e o alferes começou a impacientar-se. Parou a olhar para trás, para o lado da picada, e concluiu que o tiro não podia ter sido disparado de tão longe. Crispou-se. O atirador tinha de estar por ali oculto, até porque, à esquerda e já não visível era o aquartelamento e, em frente, já se via a bolanha, onde o fulano não arriscaria entrar por ficar exposto.
De repente, soam dois tiros vindos da orla da mata com a bolanha, cortando-lhe o raciocínio. Instintivamente, o alferes saltou para trás da árvore que estava mesmo ao seu lado, mas ainda a tempo de ver um vulto agachado a mudar de posição lá à frente. Berrou:
- Está ali, o gajo! Cuidado! Está atrás do baga-a-baga em frente.
Enquanto o furriel e o 1.º Cabo se levantavam do chão, ele avançou vários metros ocultando-se de árvore em árvore. Sentiu que todo ele se eriçava num instinto felino. Teve o impulso de correr até ao baga-a-baga e contorná-lo despejando o carregador da G3, mas dominou-se e, enquanto avançava, começou a incitar a presa.
- Sei que estás aí, turra! Não tens hipóteses, filho da puta!
Viu surgir o cano da G3 do lado direito do abrigo e atirou-se para o chão no instante em que soou novo tiro. Pensou: o gajo não tem saída, mas é perigoso. Vou provocá-lo continuamente até chegar ao baga-a-baga e, ao expor-se, é abatido pelo furriel ou pelo 1.º cabo. Fez-lhes entender por gestos o que pretendia e avançou.
- Nharro de merda! Deita a arma para longe e sai daí que não te acontece nada, nharro!
Estava-se a ficar num impasse e perigosamente próximos do abrigo do atirador. O furriel e o cabo, cada um de seu lado, estavam quase no alinhamento do baga-a-baga, prontos a disparar se ele se expusesse. Mudou de estratégia, o alferes: chegou-se mais para o lado do furriel até se fazer ouvir e disse:
- Passas tu a espevitá-lo para o distrair. Não pares, que é para ele não dar pela minha aproximação. Vou até lá e mando-lhe uma bojarda. Está atento e deita-te porque vai haver merda. Mas mantém-no na mira.
Soou novo tiro, mas agora na direcção do furriel que começara a provocá-lo. Parecia estar a ficar nervoso. O alferes aproveitou a brusca ocorrência e, em três saltos, estava colado ao baga-a-baga. Puxou o porta-granadas do cinturão, retirou uma granada defensiva e, a seguir, levantou o braço mostrando-a ao cabo, acenando-lhe para que se deitasse. Virou-se para o lado oposto, para o furriel, mas percebeu que ele vira o sinal já feito ao 1.º Cabo. Sossegou uns segundos e respirou fundo. Encostou-se de lado na parede rugosa daquele colosso de terra, esticou os braços para baixo e descavilhou a granada, silenciosamente. Ergueu os olhos para o topo e avaliou a força a imprimir ao arremesso. E lançou a granada para o outro lado, num arco premeditadamente lento.
Quase se surpreendeu com o fragor modesto da explosão. Rápido, sacudiu-se de terras e poeiras e contornou o baga-a-baga de arma apontada. Teve um choque que o deixou estarrecido. Gritou:
- Capitão!!! Capitão filho da puta que me desgraçaste a vida! Fodeste-me a vida, capitão!
O capitão estava um pouco à frente do baga-a-baga. Deve ter tentado chutar a granada. Deitado de costas, sem um ai, tinha os olhos muito abertos fixados no alferes, metade da cara esfacelada e o camuflado empapado de sangue no peito.
Entretanto surgiram o furriel e o cabo que, atónitos e mudos, recuaram uns passos. O capitão parecia que ia dizer qualquer coisa, teve um vómito de sangue e a cabeça tombou-lhe para o lado com os olhos abertos.
O alferes, que não parara de praguejar, descontrolou-se e, com um profundo lamento, deitou a G3 ao chão e desatou a correr internando-se na mata profunda, longe da bolanha.
*****
Apesar da frescura da tarde, quase no fim, ali dentro abafava-se. E o ambiente de odores e conversa fiada dos circunstantes, que ocupavam quase todos os assentos de lona, só piorava a situação. De que é que estarão à espera? Impacientava-se o alferes Lourenço.
Finalmente, um dos motores, o do lado direito, arrancou e pôs aquela geringonça toda a oscilar e a torcer-se, parecendo que se ia desconjuntar a todo o instante. Mas com o arranque do motor esquerdo e após ter atingido as rotações normais, tudo se equilibrou numa vibração miudinha. As conversas, interrompidas por instantes, retomaram a senda mas num tom mais alto devido ao barulho dos motores. Sentiu-se um pequeno estremeção do monstro e, lentamente começou a rolar na pista, ganhando velocidade aos saltos como numa picada. Depois, pela suavidade que sobreveio, percebeu-se que já se elevara nos ares.
Tudo começou a ficar para trás. Até o futuro. O alferes Lourenço olhou de esguelha para os fundos da cauda do Nord Atlas e fixou-se no caixão, no meio de outros caixotes, presos com cintas ao bojo do avião. Pensou:
“Tinhas razão, grande sacana! Ambos não acabámos a comissão!”.
© António Murta
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Nota o editor
Último poste da série de 1 de dezembro de 2014 >
Guiné 63/74 - P13965: Conto breve (António Murta, ex-Alf Mil da 2.ª CCAÇ/BCAÇ 4513) (1): Pesadelo