1. Mensagem do nosso camarada Miguel Pessoa, Cor PilAv Ref (ex-Ten PilAv, BA 12, Bissalanca, 1972/74), com data de 14 de Setembro de 2016, contendo um trabalho intitulado "Marte, saia a Força Aérea, o Pirata ejectou-se em Gandembel!", da autoria do TGeneral PilAv José Nico, relatando o abate, em 28 de Julho de 1968, do avião pilotado pelo então TCor PilAv Costa Gomes, Comandante do Grupo Operacional 1201, que vamos publicar em duas partes.
Caros editores
O General Nico (da Força Aérea) disponibilizou este texto para publicação no blogue "Luís Graça & Camaradas da Guiné", socorrendo-se da minha pessoa para vos fazer chegar o artigo.
Dada a sua extensão não sei se será possível a sua publicação num único poste. Tenho sempre receio da sua divisão em partes, por poder eventualmente desinteressar o leitor. Mas a equipa editorial irá certamente ponderar as duas hipóteses... e decidir-se pela melhor opção.
Um abraço.
Miguel Pessoa
PEDAÇOS DAS NOSSAS VIDAS[1]
Cumpri muitas missões durante a minha carreira na Força Aérea Portuguesa. A comissão na Guiné, porém, sobrepôs-se a todas as outras e marcou-me indelevelmente para o resto da vida. A mim e certamente a todos os que, de algum modo, partilharam a mesma experiência. É dela ou de acontecimentos com ela relacionados, que vos irei dando conta…
VII – “Marte[2], saia a Força Aérea, o Pirata[3] ejectou-se em Gandembel!”
Por TGeneral José Nico
I Parte
A frase em título reproduz uma angustiante emissão rádio efectuada na frequência 49,0 MHz FM, ao fim da manhã do dia 28 de Julho de 1968. Nesse preciso momento encontrava-me a efectuar o “sector”[4] de Nova Lamego, com um DO-27, e confesso que fiquei gelado. O Comandante do Grupo Operacional 1201 (GO 1201), na altura o combatente mais graduado da Força Aérea na Guiné, tinha sido forçado a abandonar o avião por razões que não foram explicadas no momento, numa área que todos sabíamos infestada de guerrilheiros. Por esse motivo assumi instintivamente a sobrevivência, em consequência da ejecção, como um risco menor naquela situação. Foi a possibilidade do Tenente-Coronel Costa Gomes ser capturado pelo inimigo que mais me assustou. Respondi imediatamente ao Tubarão[5] informando-o que o Sampunhe na Mouco[6] ia interromper a missão e rumar a Gandembel para ajudar a tentar localizar o piloto no solo. Todos os aviões em voo mantinham escuta permanente em 49,0 MHz, que era o canal para apoio aéreo às forças de superfície, e foram vários os pilotos que também alteraram a missão para se dirigirem a Gandembel. Soube-se depois que o G-91 5411, pilotado pelo Comandante do GO 1201, tinha sido atingido por fogo antiaéreo e incendiara-se. O número dois da formação, alarmado com o enorme rastro de fogo deixado pelo avião, incitara o chefe a ejectar-se imediatamente o que ele fez alguns segundos depois. Logo a seguir, enquanto observava o pára-quedas a descer para a mata, o Capitão Vasquez comunicou a situação ao Centro Conjunto de Apoio Aéreo (CCAA) e com essa transmissão rádio alertou o dispositivo aéreo para aquela emergência. As palavras que então proferiu ainda hoje ressoam na memória de todos os que as ouviram naquele já longínquo dia e são elas que dão o título a mais este “PEDAÇOS DAS NOSSAS VIDAS”.
Limitações organizacionais da Força Aérea na Guiné
A minha vida mudou radicalmente quando, no dia 28 de Setembro de 1967, a porta do HC-54 Skymaster 7504, que me transportou até Bissau, se abriu e uma baforada de ar quente e húmido invadiu a cabine dos passageiros. Tinha feito a viagem desde Lisboa com o meu camarada de curso, o Tenente Balacó Moreira, e foi aquela bofetada de calor húmido com odor a ferrugem que nos anunciou o peculiar ambiente em que íamos viver e combater a partir daquele dia.
Tínhamos completado o treino operacional em F-86F, na Esquadra 51 de Monte Real mas, para a guerra que se desenrolava na Guiné, não houve qualquer preparação específica. Era um nível de formação que ultrapassava as capacidades de uma pequena unidade de voo como era a Esquadra 51. Penso mesmo que nunca foram inseridos, no treino que se seguia ao curso de pilotagem de aviões de caça (em T-33), os ensinamentos resultantes da recolha de informações e da análise do que se estava a passar em África, nem a disseminação de eventuais lições aprendidas, nem sequer das práticas da cooperação aeroterrestre. A Força Aérea, com a expansão forçada pela defesa dos territórios ultramarinos, ficou de tal modo estirada que estas questões que exigiam um estado - maior central, com capacidade para estudar o nível operacional da guerra, nunca foram convenientemente resolvidas.
Desembarquei assim em Bissau necessitando de tempo e experiência para perceber o que faziam os que já lá estavam e o porquê de como o faziam. Como a actividade era intensa as oportunidades para concretizar a necessária qualificação para operar no teatro de operações da Guiné surgiram em catadupa, umas atrás das outras. Apenas me foi explicada uma prioridade: como o DO-27 era pau para toda a obra quase todos os pilotos, independentemente do tipo de aeronave a que se destinavam, que no meu caso era o G-91, tinham que ser também qualificados naquela aeronave. E foi assim que, logo no dia seguinte à chegada, comecei a receber instrução no DO-27 e passados três dias fui considerado apto para operações. Só depois disso, no dia 3 de Outubro de 1967, efectuei então o primeiro voo em G-91 e poucos dias depois estreei-me contra o dispositivo antiaéreo do PAIGC no Quitafine[7].
Outra questão muito importante, que na altura me passou despercebida, foi que o nível operacional da guerra pura e simplesmente não existia na Força Aérea ou, para ser mais preciso, existia apenas uma pessoa que tinha estatuto para analisar o que se passava, pensar o que se poderia fazer com os recursos disponíveis e planear: o Tenente-Coronel Costa Gomes, Comandante do GO 1201 que nessa função era apoiado pelo Comandante da Esq 121, o Capitão Vasquez. Todos os outros elementos, na grande maioria jovens tenentes do quadro permanente e alferes e furriéis milicianos, eram executantes puros que dominavam apenas o nível táctico. Não havia um estado-maior operacional e isso influenciou sempre, sem que nos apercebêssemos, a qualidade da nossa operação mau grado o voluntarismo e agressividade dos pilotos, como se perceberá do episódio que me proponho relatar.
De facto, agora à distância de 50 anos, analisando a nossa organização e a forma de emprego do poder aéreo naquele tempo, é óbvio que as responsabilidades de nível operacional residiam na pessoa do Comandante da Zona Aérea de Cabo Verde e Guiné[8] (COMZAVERDEGUINÉ). Numa condição de guerra é, na actualidade, indiscutível que deviam ter sido responsabilidades apoiadas por um estado-maior o que nunca aconteceu. Poder-se-ia agora argumentar que dada a pequena dimensão da componente aérea as responsabilidades de nível operacional caberiam nas competências do Comando-Chefe e, de facto, isso podia ter sido feito não fosse o facto do QG conjunto ser um comando essencialmente terrestre. Da Força Aérea apenas contava com um oficial de ligação com o posto de capitão. Mas mais ainda, nos casos em que o comandante da zona aérea não tivera experiência anterior nas unidades de caça, essas responsabilidades eram informalmente assumidas pelo comandante do grupo operacional como se fosse uma coisa natural. Mas tal como o comandante da zona também o comandante do grupo operacional não dispunha de um estado-maior de combate. Em termos práticos foram responsabilidades de cariz vincadamente unipessoal e, por isso, foram deficientemente exercidas mas nunca ninguém se apercebeu desta lacuna porque não fazia parte da nossa cultura.
Antecedentes do abate do Pirata[9]
No dia 26 de Julho de 1968 uma parelha de G-91, em patrulhamento na fronteira Sul, foi alvejada por fogo antiaéreo, na vizinhança do corredor do Guilege. O relatório do chefe da formação referia que foram detectadas três armas no ponto GUILEGE 8 H 1 5/9, próximo da antiga tabanca de Sare Morso[10]. Porque situações desta natureza tinham sido comuns nos últimos meses de 1967 até Março de 1968 tudo sugere que não foi atribuído nenhum carácter de urgência ou excepcionalidade à informação. No entanto, havendo diariamente um briefing dado pelos oficiais de informações do CCAA às 17h00, sobre a actividade efectuada em cada dia, é muito provável que o facto tenha sido divulgado nessa altura. Pessoalmente não tenho memória disso e tenho a certeza de que se tivesse dado conta dessa ocorrência teria ficado focado nela. Mas mais ainda, se o assunto não foi referido no briefing ao fim do dia deveria ter sido no briefing da manhã, no dia seguinte, às 08h00, onde era exposta a actividade prevista para esse dia. Também, provavelmente pensando que a posterior análise do relatório seria suficiente para desencadear as acções mais adequadas, os pilotos envolvidos não comunicaram o facto de viva voz, nem ao Comandante da Esquadra 121, nem ao Comandante do Grupo Operacional. O certo é que nenhum deles tomou conhecimento da existência daquela AAA[11] e isso influenciou negativamente as decisões posteriores.
Nesse mesmo dia 26 de Julho, ao fim da tarde, na reunião diária no Comando-Chefe[12], foram referidas pelos oficiais de informações notícias dando conta da existência ou construção de um túnel na zona fronteiriça, que passaria debaixo do corredor[13] que, vindo de Kandiafara, penetrava no território nacional. Como nessa altura o alvejamento dos G-91, ocorrido durante a manhã, ainda permanecia no âmbito da Força Aérea, os oficiais de informações do Comando-Chefe não estabeleceram qualquer ligação entre aquelas notícias e a AAA que já fora detectada.
No dia seguinte, 27 de Julho, uma segunda parelha de G-91 voltou a ser alvejada pelas mesmas armas[14] mas, novamente, nem o Comandante da Esquadra 121, nem o Comandante do GO 1201 tomaram conhecimento do facto. O relatório deve ter tido o tratamento de rotina a nível do CCAA mas não influenciou imediatamente o nível de decisão do grupo operacional, o que se pode explicar por motivos de natureza circunstancial. Provavelmente, absorvidos por outras solicitações, nem o Comandante do GO 1201, nem o Comandante da Esquadra 121 assistiram aos briefings de informações das 17h00 do dia anterior nem ao das 08h00 desse dia e também nenhum dos pilotos envolvidos achou necessário comunicar-lhes o facto directamente.
Sensivelmente na mesma altura em que os guerrilheiros, certamente apoiados pelos barbudos do Fidel[15] como era a prática corrente, faziam tiro ao alvo à parelha de G-91 que acabo de referir, o Tenente-Coronel Costa Gomes chamou o Capitão Vasquez que conhecia bem o trilho do corredor do Guilege e informou-o sobre as notícias que ouvira no dia anterior referindo o aumento da actividade do PAIGC e a história da construção de um túnel. Deu-lhe então instruções para efectuar um reconhecimento visual em DO-27, para confirmar ou desmentir essas notícias, e recomendou-lhe que levasse com ele um piloto de helicópteros para o caso de vir a ser necessário lançar uma operação helitransportada.
Friso novamente que, até ao momento, apesar das indicações já existentes, tanto o comandante do grupo como o Capitão Vasquez continuavam a ignorar a existência de armas AA[16] activas junto ao corredor do Guilege. Começou assim a desenhar-se uma armadilha que iria ter consequências desastrosas.
O RVIS[17] ao corredor do Guilege na tarde do dia 27 de Julho de 1968
É com as palavras que se seguem que o então Capitão Vasquez relata o que aconteceu durante o RVIS:
“Planeei a missão com o Tenente Ruano e descolámos com destino ao corredor do Guilege.
Iniciámos o reconhecimento a partir de Porto Balana voando a cerca de 300 pés sobre o terreno e mantendo o trilho à nossa direita. Fomos observando ou "lendo" o trilho, à procura de indícios que configurassem ou não a suspeita levantada na reunião no Comando-Chefe.
Pouco depois de atravessar a picada Gadamael Porto - Gandembel, seguindo o corredor em direcção à “cambança” para Kandiafara e com o trilho entre 200 a 300 metros à direita, fomos subitamente surpreendidos por um intenso tiroteio antiaéreo, vindo da esquerda da nossa rota de voo. As armas que disparavam seriam duas ou mais, dado o intenso matraquear ouvido dentro do avião e a quantidade de trajectórias tracejantes avistadas, próprias de armas de calibre não inferior a 12,7 mm. (Ver a rota de voo, no croquis da carta de 1/50.000). Reagi voltando imediatamente pela direita para me afastar das armas e por sorte entrei imediatamente num aguaceiro que caía naquele momento sobre o trilho o que terá facilitado o escape. Não sentimos nenhum estrondo, nem surgiram sinais de mau funcionamento o que deu logo a sensação de que não tínhamos sido atingidos.
Regressámos imediatamente a Bissau com uma aterragem intermédia em Buba para inspeccionar o avião o que permitiu confirmar que não tinha sido danificado.”
A rota do RVIS desenhada numa carta 1:50.000 pelo ex-Capitão Vasquez
À chegada à BA12, Bissalanca, o Capitão Vasquez e o Tenente Ruano foram imediatamente relatar ao Tenente-Coronel Costa Gomes o que se tinha passado. O comandante do grupo mostrou-se surpreendido e questionou a credibilidade da presença das armas AA naquela zona. Na sua ideia, a anterior tentativa do PAIGC declarar o Quitafine uma zona libertada[18], com recurso à instalação de numerosas armas AA, tinha acabado por ser derrotada em Março de 1968 e não faria agora sentido insistirem naquela táctica porque a Força Aérea acabaria por destruir-lhes o arsenal. Além disso, tinha sido o Tenente-Coronel Costa Gomes que liderara essa campanha e penso que lhe custou admitir que, pelo menos aparentemente, estava tudo a voltar à estaca zero. Chegou mesmo a chamar a atenção do Capitão Vasquez para a responsabilidade do que estava a relatar mas a segurança das afirmações dos dois pilotos acabou por convencê-lo.
É certo que o PAIGC tinha continuado a instalar AAAA ao longo da fronteira mas apenas em território da Guiné-Conacri. Procuravam atingir os aviões a operar nas proximidades e raramente foram detectadas. Lembro-me de uma vez em que voava sobre a fronteira Sul com o Tenente Firmino das Neves ter avistado por entre a folhagem o característico relampejar de uma AA que não nos atingiu. Outro caso de que tenho conhecimento, esse na mesma altura em que ocorreu o episódio objecto do presente relato, deu-se com uma parelha com o Capitão Vasquez e o Tenente Balacó Moreira. Voavam também sobre a fronteira e começaram a ver uma série de flocos que se formavam mais acima da altitude de voo. Eram claramente rebentamentos de granadas de canhões AA 37mm que deviam estar programadas para os 8000´. Não foi possível detectar as armas e o chefe da formação deu ordem para descer imediatamente para anular o campo de visão dos atiradores não tendo havido consequências.
Ao fim da tarde, na reunião no Comando-Chefe, o Tenente-Coronel Costa Gomes comunicou então o que se tinha passado durante o RVIS no corredor do Guilege. A reacção do Brigadeiro Spínola, no seu estilo peculiar, foi muito directa e até um pouco desabrida:
- Isso é um problema para a Força Aérea resolver! – disse ele rodando a cara de modo a fixar o Comandante do Grupo Operacional.
O ex-Tenente-Coronel Costa Gomes diz que até lhe pareceu que o monóculo do Comandante-Chefe faiscou quando deu aquela ordem. Talvez tenha sido o reflexo momentâneo de alguma luz mas o que mais o marcou foi a percepção de que naquele caso a Força Aérea era ele, Costa Gomes, e só ele. Sentiu por isso que o Comandante-Chefe lhe estava a dar uma ordem de missão personalizada e que ele, naturalmente, teria de cumprir.
Um reconhecimento fotográfico que correu mal
No dia seguinte o Comandante do GO 1201 deu ordem para que fosse preparada uma parelha de G-91 para se efectuar um reconhecimento fotográfico. Nessa manhã eu estava incumbido de executar um TGER[19] em DO-27 em apoio do batalhão de Nova Lamego. Por mero acaso, antes de partir, assisti a uma conversa entre o comandante do grupo e o Capitão Vasquez em que os dois combinavam um reconhecimento fotográfico a baixa altitude para localizar e identificar umas AA junto ao corredor do Guilege. Foi a primeira vez que ouvi falar dessas armas e, não sei porquê, fiquei com a sensação que aquilo podia correr mal.
Conta o ex-Capitão Vasquez que planeou a missão sozinho e que, numa carta 1:50.000, traçou uma rota em que o ponto inicial para a aproximação ao alvo era o aquartelamento do Guilege. Daí para a frente era só manter rumo e velocidade e o alvo devia ser avistado, se tudo corresse bem, um minuto e dezasseis segundos depois. A baixa altitude não havia referências, só se via o campo verde de um ondulado uniforme formado pelas copas das árvores. A navegação tinha que ser por isso muito estável e ao fim do tempo era necessário subir ligeiramente para tentar detectar visualmente onde estavam as AA, manobrar para corrigir a posição relativa, colocar o retículo da camara mais adequada no alvo e accionar o sistema fotográfico.
A seguir deviam descer imediatamente e afastarem-se flectindo para a esquerda para evitar entrar na Republica da Guiné-Conacri.
Quando os dois pilotos chegaram à linha da frente levantou-se a questão de quem seria o número um da formação. Pessoalmente penso que isso seria indiferente visto que naquele tipo de aproximação baixa apenas contava o rigor da navegação. O Capitão Vasquez embora já tivesse sido alvejado por aquelas AA não sabia com precisão onde elas estavam e, portanto, tinha tantas probabilidades de acertar como o comandante do grupo. Estava é mais rotinado no voo baixo o que poderia facilitar a detecção de qualquer pormenor que lhe permitisse corrigir a navegação e, por último, estava mais habituado a utilizar o equipamento de reconhecimento fotográfico. No entanto, apesar de contestada pelo capitão, a decisão do comandante do grupo foi peremptória: seria ele a liderar a missão. Nos últimos anos ouvi várias vezes o ex-Tenente-Coronel Costa Gomes explicar o que o levou àquela opção. Evoca normalmente dois motivos. Diz ele que, naquela altura, imaginava ter sido directamente responsabilizado pelo Comandante-Chefe. Sentia que o Brigadeiro Spínola estava à espera que fosse ele a resolver o problema daquelas AA e, além disso, como se tratava de uma missão com algum risco e sendo o mais antigo não podia deixar de ser ele a ir à frente. Era inadmissível proceder de outra forma. O que se passou a seguir foi mais ou menos o seguinte:
A parelha descolou seguindo os procedimentos de rotina e voaram a uma altitude confortável até terem o Guilege à vista. O Tenente-Coronel Costa Gomes pilotava o G-91 5411 e o Capitão Vasquez seguia-o cerca de 300 metros atrás no G-91 5416. Depois desceram e passaram o Guilege já a voar muito baixo. O número dois deixou-se então atrasar para criar maior espaçamento entre os aviões e facilitar a manobra individual. Ao fim do tempo previsto o número um iniciou uma subida suave para tentar localizar as armas. Viu-as imediatamente à sua direita, numa zona desmatada, com um ligeiro declive, mas estava praticamente em cima delas sem condições para fotografar. Aparentemente surpreendidos os atiradores das AA não abriram fogo imediatamente, possivelmente porque estavam à espera de alvos na direcção de Gandembel que era para onde estava virada a encosta onde estavam instalados.
Reflectindo agora sobre os detalhes deste momento penso que o facto de não terem disparado logo terá funcionado no imediato como uma espécie de tranquilizante para o Tenente-Coronel Costa Gomes. Só assim se justifica que numa situação tão vulnerável não tenha iniciado imediatamente uma manobra de evasão. Ainda estava a avaliar o que poderia fazer para se colocar em posição para fotografar quando, por volta dos 800’ e com cerca de 250 KIAS, viu as armas começarem a disparar todas ao mesmo tempo e sentiu o que lhe pareceu serem umas pancadas na fuselagem. Imediatamente acenderam-se as luzes de aviso de fogo o que o levou, instintivamente, a aumentar ainda mais o angulo de subida. Pelo retrovisor viu que tinha fogo na cauda e então comunicou[20] ao número dois o que sucedera e pediu-lhe para verificar o estado do avião.
O Capitão Vasquez concentrado na sua própria navegação não tinha dado por nada. Estava a procurar localizar as AA, que não chegou a ver, quando ouviu a comunicação do chefe da parelha. Olhou imediatamente para a frente e viu o outro avião numa atitude pronunciada de subida com a cauda envolta em chamas que se prolongavam num longo rastro.
Há quase cinquenta anos que o ouço repetir o que sentiu naquele momento. Diz ele que a situação lhe pareceu tão severa que não hesitou em dar-lhe indicação para se ejectar imediatamente, apesar dos gravíssimos perigos que o esperavam no solo:
- "Pirata, tem fogo, ejecte-se já, Pirata, ejecte-se já"!!!!
- “Vou aguentar mais um bocado” – respondeu o Pirata que, apesar do fogo, estava bem consciente dos riscos da proximidade aos guerrilheiros do PAIGC.
A seguir, o número dois observou o avião do chefe a meter a asa esquerda em baixo e rodar para esse lado, a muito baixa velocidade, como se fosse fazer um “renversement”. Não chegou a rodar 180º mas terá completado entre 110º e 120º de rotação nessa manobra saindo mais ou menos apontado ao sol e ao único aquartelamento do Exército naquela zona: Gandembel.
O Tenente-Coronel Costa Gomes conhecia bem a área, tinha estado poucos dias antes no aquartelamento com o Brigadeiro Spínola e por isso estava orientado e foi sem dificuldade que, apesar da aflição, localizou imediatamente o aquartelamento. Manteve a direcção do voo até ter Gandembel mesmo à sua direita e então ejectou-se. Pelos meus cálculos terão decorrido cerca de 30 segundos desde que foi atingido até esse momento.
O número dois, que entretanto tinha “cortado a volta” para se aproximar, ficou a ver o pára-quedas descendo sobre a mata, bastante próximo do aquartelamento. Foi então que mudou para a frequência de apoio aéreo e emitiu o alarme que compõe o título deste relato.
O TCor Costa Gomes com o Comandante-Chefe em Gandembel poucos dias antes de ser abatido
A rota desde o Guilege até ao alvo e depois à ejecção.
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Notas:
[1] - Série de artigos inicialmente projectada para ser publicada na revista Mais Alto da Força Aérea.
[2] - Indicativo táctico do Centro Conjunto de Apoio Aéreo na Base Aérea 12 (CCAA). Anos mais tarde passou a ser designado Centro de Operações Aero-Tácticas (COAT)
[3] - Indicativo táctico do TCor Francisco Dias da Costa Gomes, na altura Comandante do Grupo Operacional 1201
[4] - Missão de ligação e apoio logístico em proveito de um batalhão do Exército.
[5] - Indicativo táctico do Cap Fernando de Jesus Vasquez, Comandante da Esquadra 121 que emitiu o alerta e que, na circunstância, era o asa do Comandante do Grupo.
[6] - Indicativo táctico do autor do presente artigo.
[7] - Na altura, a única directiva superior para a Força Aérea era uma nota da Secretaria Geral da Defesa Nacional (na Cova da Moura, em Lisboa), com umas poucas linhas de texto dando conta do emprego de armas antiaéreas pelo PAIGC, no Sul da Guiné, e que terminava com as seguintes palavras “…pelo que deve a Força Aérea proceder à sua neutralização.”
[8] - O mais elevado nível de Comando da Força Aérea no Teatro de Operações da Guiné.
[9] - Pressupostos baseados na rotina diária das operações.
[10] - ZASITREP 209/68 26JULHO
[11] - Anti-Aircraft Artillery
[12] - QG do Comandante em Chefe
[13] - Corredor do Guilege
[14] - ZASITREP 210/68 27JULHO
[15] - O enquadramento das operações antiaéreas pelos cubanos já está suficientemente recortado para se assumir que também participaram nesta acção. Por essa altura os apoiantes cubanos eram quase todos pretos para não se distinguirem facilmente no meio da guerrilha.
[16] - Antiaérea(s)
[17] - Sigla que designava uma acção de reconhecimento visual
[18] - Estratégia desenhada pelo Comité de Descolonização da ONU, também conhecido como Comité dos 24. Como a estratégia não vingou o Comité dos 24 acabou por decidir enviar, em 1972, três embaixadores que efectuaram uma passeata furtiva no Sul da Guiné e declararam depois ter estado em “zonas libertadas”. Foi com base nesse testemunho, claramente fabricado, que Portugal foi considerado ocupante ilegal do território o que criou as condições políticas para que, a seguir, em 24 de Setembro de 1973, o PAIGC declarasse unilateralmente a independência. Na prática, a declaração unilateral da independência não foi uma iniciativa do PAIGC mas sim um plano concebido e orquestrado pelo Comité dos 24.
[19] - TGER: sigla para transporte geral que neste caso incluía tudo o que um batalhão normalmente necessitava distribuir pelas companhias. Normalmente era transportado pessoal, correio, víveres, munições, etc..
[20] - As comunicações tácticas entre os G-91 eram efectuadas em UHF, gama de frequências que não estava disponível nos outros tipos de aeronaves do GO1201.
(Continua)
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Nota do editor
Último poste da série de 12 de julho de 2016 >
Guiné 63/74 - P16296: FAP (96); Algumas correções, para a história: (i) Morais da Silva comandava a Esquadra121, também dos Fiat G-91 e nunca voou helicópteros; (ii) quem veio substituir o cap pilav Cubas em 1970 foi o cap pilav Zúquete da Fonseca, o meu primeiro comandante de Esquadra; (iii) não foi a Esquadrilha mas a Esquadra de voo 122, que sempre se designou por Canibais; (iv ) quando lá cheguei, em 8/12/1970, ainda conheci a "velhice", o Jorge Félix, o Solano de Almeida, o Heleno e o Falé... (Lino Reis, ex-alf mil pil, BA 12, Bissalanca, 1970/72)