Guiné-Bissau > Região de Tombali > Parque Nacional do Cantanhez > Madina > 10 de Dezembro de 2009 > 7h32 > Um "dari" (chimpanzé) descendo uma árvore ... Este grande símio (o mais aparentado, do ponto de vista genético, ao ser humano) é muito difícil de observar e fotografar... Contrariamente a outros primatas que existem no Parque, ainda com relativa abundância como o macaco fidalgo ("fatango", em crioulo).
Foto: © João Graça (2009). Todos os direitos reservados [Edição e legendagem: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Hoje temos de encorajar os nossos amigos da Guiné e o povo guineense a proteger o "sancu" e o "dari"
por Luís Graça
Eu já respondi ao inquérito 'on line' desta semana... Tinha de resto a obrigação de ser o primeiro ou um dos primeiros a fazê.lo. E a resposta foi: "1. Nunca comi [macaco]"... ( E se comi, juro que nunca soube...).
Sem ofensa para ninguém, comer babuíno é, para mim, como comer um parente nosso, mesmo que muito afastado... Zoologicamente falando, pertencemos à mesma ordem, a dos Primatas... Temos um antepassado comum, longínquo, que ainda vem do tempo dos dinossauros (, ou seja, de há cerca de 70 milhões de anos)... Claro que os babuínos não são hominídeos... São macacos, nem sequer são símios, nem muito menos hominídeos...
Mas macaco, infelizmente, é produto "gourmet" em muitas partes do mundo (incluindo a Guiné-Bissau)...
Tanto quanto me lembro e sei, nós - as nossas tropas - não caçávamos babuínos (a não ser muito esporadica ou pontualmente: havia muiras armas naquele tempo, e nem todas estavam em boas mãos... Eu também não, nunca cacei, não sou nem nunca fui caçador...
Os nossos soldados fulas, da CCAÇ 12, também não os caçavam, de resto as ocasiões não eram muitas: a atividade operacional era intensa e eles não tinham tempo para ir à caça. Por outro lado, eles eram crentes e tementes a Alá.
As milícias e os caçadores das tabancas em autodefesa poderiam eventualmente fazê-lo, um pouco às escondidas... Também os comiam, nas nossas costas - dizem que com algum sentimento de culpa, sendo muçulmanos. Além disso, os nossos amigos fulas sabiam que, para os "tugas", carne de macaco era tabu alimentar (tal como o porco, para eles; tabu que procurávamos respeitar quando partilhávamos as nossas rações de combate com eles, embora também houvesse quem gostasse de pregar partidas de mau gosto com os derivados da carne de porco como o chouriço, mas os fulas não se deixavam enganar facilmente).
Nas tabancas fulas por onde passei ou onde estive em reforço ao sistema de autodefesa, vi crianças ou adolescentes com mausers (!) nos campos de cultivo: afugentavam os macacos-cães e às vezes matavam os mais atrevidos, quando eles tentavam invadir (e destruir) os campos de "mancarra" (amendoim)... Não acredito que os enterrassem ou os deixassem para os "jagudis" (abutres)... Em tempo de guerra, a carne era um luxo...
Amigos e camaradas, não façamos apressados juízos de valor, em função dos nossos próprios padrões civilizacionais, princípios, valores ou pré-conceitos: no passado, os nossos caçadores também matavam, por exemplo, as aves de rapina, para poderem ter coelhos em abundância... E ainda hoje matam, o que é uma vergonha para todos nós, além de crime!
O consumo de carne de macaco era raro ou esporádico, entre os "tugas". Alguns faziam-no por "bravata", por "fanfarronice", por "desfastio", por "tédio" ou simples "provocação": um gajo na guerra tem de provar de tudo, desde que sobreviva; noutros casos, terá sido por mera "curiosidade" e ainda, também, por "necessidade" (que é uma coisa fisiológica, elementar,. animal)... Não ignoremos nem escamoteemos o facto de ter havido muito boa gente, do nosso lado, que passou fominha, fome mesmo, na Guiné, durante o longo período da guerra em que estivemos envolvidos, para mal dos nossos pecados...
Enfim, nalgumas situações haveria também o "gosto do petisco" que leva os "tugas" a comerem coisas "esquisitas" (e até "nojentas", para outros) como os "túbaros de carneiro" (no Alentejo) ou as "tripas" (à moda do Porto), os "pézinhos de coentrada", o ensopado de enguias, os passarinhos fritos, as perninhas de rãs, os caracóis e as caracoletas, a moreia frita, a sopa de navalheiras,,,, e eu sei lá que mais!
No meu tempo, vi uma vez um macaense, de origem chinesa, nosso camarada (já não posso precisar a subunidade, creio que era já no tempo da CCS / BART 2917, Bambadinca, 1970/72), preparar e assar na brasa um pequeno babuíno (macaco-cão)... No final, a pequena carcaça (completamente preta) fez-me lembrar os nossos bebés (humanos)... Reconheço que me chocou, apesar do meu "relativismo cultural" e da tolerância que julgo ter em relação a "usos e costumes" que não são os da "minha tribo"...
Nas diversas tabancas fulas, em autodefesa, por onde andei (em geral, por períodos de duas semanas), nunca me apercebi do consumo de carne de babuíno... Mas havia tantas coisas de que a gente não se apercebia naquela terra e naquela guerra (por exemplo, a mutilação genital feminina, o infantícídio, a feitiçaria, entre os fulas; as negociatas e a corrupção, entre os chefes "tugas")...
A única (e pouca) carne de caça que eu relutantemente comprava (ou que me ofereciam) era de gazela... O estado sanitário da caça era sempre suspeito... A carne, o peixe e os demais produtos frescos deterioravam-se rapidamente com o calor (e as moscas)... "Peixe da bolanha", julgo que comi pouco: sabia a lodo... No destacamento rio Udunduma, apanhávamos peixe, em abundância, com granadas de mão... Já dos lagostins ou camarões gigantes do Rio Geba Estreito eu era fá...
A caça era uma actividade de risco nas tabancas por onde passei, de diferentes regulados: Joladu, a norte do Geba, Corubal, Xime... Implicava sair do relativo "conforto" da tabanca e internarmo-nos no mato, que era "terra de ninguém"...Por outro lado, a caça já era escassa no meu tempo, devido à guerra: para além de lebres, galinhas e porcos de mato, só me lembro de ver uma gazela a atravessar, como uma bala a bolanha de Ponat Coli no Xime...
Para o Zé Turra, o pobre do macaco-cão era o substituto da vaca... Quem tinha vacas eram sobretudo os fulas. E só as matavam na morte do dono... Nas chamadas "zonas libertadas" era arriscado ter vacas... Entre os apoiantes do PAIGC havia muçulmanos, cristãos e animistas... Nas tabancas da margem direita do Rio Corubal, de biafadas e balantas, em tabancas onde só podíamos ir no tempo seco ou em operaçõe com tropas helitransportadas (por ex., mata do Fiofioli), havia vacas, porcos e galinhas... Contra as mais elementares regras de segurança, diga-se de passagem...
Mas hoje sabemos que os guerrilheiros do PAIGC, animistas e não-animistas, caçavam em larga escala o macaco-cão... Ninguém pode fazer a guerra com a barriga a dar horas...Por muito frugais que eles fossem (e tinham fama de só comer arroz um avez por dia!), de vez em quando era preciso "macaco-kom" para fazer o "mafé"...
Pobre do "sancu" que foi também uma das vítimas daquela maldita guerra!
Quanto à fauna e flora da Guiné que se tem vindo a degradar nos últimos 30/40 anos, ou seja, desde que o PAIGC é poder... Nas floresta-galerias do triângulo Xime-Bambadinca-Xitole e nas matas do Cuor, era relativamente frequente depararmo-nos, no decurso de operações, com bandos de cem e mais babuínos, ruidosos e agressivos perante a invasão do seu território... Eram zonas sem população ou que a guerra tinha despovoado... "Terras de ninguém", ou terras onde a guerrilha do PAIGC se movimentava muito melhor do que nós..
Quem esteve no sector L1 (Bambadinca), connosco, " tropa macaca" - como eu, o Humberto Reis, o Jorge Cabral, o Beja Santos, o Joaquim Mexia Alves, só para citar alguns "senadores" da Tabanca Grande ... - nunca mais esquecerá o maldito Mato-Cão onde se fazia segurança às embarcações (civis) que passavam pelo Geba Estreito, entre Xime, Bambadinca e Bafatá... Enfim, mais tarde, por volta do último trimestre de 1971 foi lá construído um destacamento, inaugurado pelo Pel Caç Nat 63...
De um modo geral, pode dizer-se que as populações da Guiné-Bissau, não muçulmanas, tradicionalmente caçavam e comiam o "sancu". E «as que estavam no "mato" (ou seja, do lado ou sob controlo do PAIGC) deviam recorrer mais vezes à carne de macaco...
Depois de 1980, a caça (ilegal) ao macaco-cão terá aumentado significativamente. E as populações de algumas espécies começam a figurar na lista vermelhas das espécies criticamente em perigo...
Já em relação ao "dari", o chimpanzé das matas do Cantanhez e do Boé (Pan troglodytes verus cuja população estimada, em 2015, é de 35 mil indivíduos, em toda a África Ocidental, tendo sofrido um brutal decréscimo de c. 6,5% ao ano, entre 1994 e 2014!), parecia todavia haver, tradicionalmente, um maior respeito, por parte da população local, devido às suas "semelhanças" com o ser humano. Pelo menos, no meu tempo!...
No entanto, o seu habitat , na África Ocidental, está cada vez mais ameaçado pelas actividades humanas (destruição da floresta, fragmenmtação da mancha florestal, expansão das áreas de cultivo, captura ilegal para o mercado negro, doenças e epidemias, industrialziação, instabilidade política, corrupção, falhanço das políticas de conservação...). Em toda a África ocidental, esta espécie (uma das três espécies de chimpanzés) vai mesmo desaparecer se falharem as políticas de conservação, se falharmos todos nós... Em boa verdade, não sei se ainda vamos a tempo....MAS TEMOS QUE IR A TEMPO!
Voltando ao babuíno, e às recordações do meu tempo: era difícil precisar o números de machos adultos, talvez dois ou três, que integravam um bando de 100... Talvez mais (posso estar a ser influenciado pelas minhas leituras posteriores na área da etologia, pela qual me interesso...).
Nunca vi, felizmente, ninguém, à minha frente, matar um babuíno... Em contrapartida, havia crias de babuíno que serviam de mascote nos nossos quartéis... Um triste hábito que era tolerado por todos nós... Naquela época não havia "consciência ecológica", nem se falava de "direitos dos animais"...
Também nunca dei conta da utilização da pele do babuíno para efeitos medicinais, por parte das populações com quem lidei (fulas, mandingas, balantas), quer em Contuboel (junho/julho de 1969), quer em Bambadinca (julho de 69 / março de 71)...
Passado meio século, e face às dramáticas mudanças que se estão a operar na Guiné, ao nível da fauna e da flora, nós, antigos combatentes, temos a obrigação de alertar e encorajarar a Guiné e o seu povo para a necessidade de proteger o seu património natural, e mais concretamente proteger o "sancu" e o "dari".
Não é admissível que haja restaurantes em Bissau que tenham nas suas ementas a carne do "sancu"...Igualmente inadmissível, é o crime (irreparável) da destruição das sagradas florestas-galeria da Guiné...
Em suma, passemos a mensagem: "Comer macacos... só os do nariz!"...
Ficaremos todos mais pobres quando eles se extinguirem e quando as areias do deserto do Sará chegarem às portas de Bissau! Ficaremos todos mais pobres, os guineenses, os amigos da Guiné, a humanidade, nós todos, afinal, os últimos hominídeos, o Homo Sapiens Sapiens... (**)
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Notas do editor:
(*) Vd. postes de:
29 de setembro de 2014 > Guiné 63/74 - P13667: In Memoriam (196): Claúdia Sousa (1975-2014), estudiosa do dari (chimpanzé) do Cantanhez, morre aos 39 anos, de doença. O funeral é amanhã, na Figueira da Foz
11 de janeiro de 2009 > Guiné 63774 - P3720: Fauna & flora (2): Os macacos-cães do nosso tempo (Luís Graça / J. Mexia Alves)
8 de março de 2007 > Guiné 63/74 - P1575: A TSF no Cantanhez, com uma equipa de cientistas portugueses, em busca do Dari, o chimpanzé (Luís Graça / José Martins)
(...) 1. Reportagem TSF > Dari, Primata como Nós > 2 de Março de 2007 .
No sul da Guiné-Bissau, o chimpanzé tem nome de gente. Na pista de Dari, uma equipa de cientistas portugueses estuda, há cinco anos, os chimpanzés das matas de Cantanhez com o objectivo de ajudar a salvar uma espécie ameaçada, sobretudo pela redução do seu habitat e pela dificil coexistência com as populações humanas do sul da Guiné-Bissau (e do norte da Guiné-Conacri).
A par do chimpanzé (em tempos, um homem, ferreiro, que Deus transformou, por castigo, em alimária, segundo as lendas locais), há outros primatas e outros mamíferos como o búfalo e até o elefante na mata do Cantanhez. (...)
(**) Último poste da série > 3 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16678: Manuscrito(s) (Luís Graça) (100): O desertor
8 de março de 2007 > Guiné 63/74 - P1575: A TSF no Cantanhez, com uma equipa de cientistas portugueses, em busca do Dari, o chimpanzé (Luís Graça / José Martins)
No sul da Guiné-Bissau, o chimpanzé tem nome de gente. Na pista de Dari, uma equipa de cientistas portugueses estuda, há cinco anos, os chimpanzés das matas de Cantanhez com o objectivo de ajudar a salvar uma espécie ameaçada, sobretudo pela redução do seu habitat e pela dificil coexistência com as populações humanas do sul da Guiné-Bissau (e do norte da Guiné-Conacri).
A par do chimpanzé (em tempos, um homem, ferreiro, que Deus transformou, por castigo, em alimária, segundo as lendas locais), há outros primatas e outros mamíferos como o búfalo e até o elefante na mata do Cantanhez. (...)
(**) Último poste da série > 3 de novembro de 2016 > Guiné 63/74 - P16678: Manuscrito(s) (Luís Graça) (100): O desertor