1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 12 de Março de 2018:
Queridos amigos,
O memorável quadro de recordações de infância em Bolama não salvaguarda o leitor de perceber que o empreendimento de Tabanez Ribeiro não chegou a bom porto, havendo hoje vasta bibliografia sobre tudo o que ele escreve desde navegações atlânticas até às amarguras de um Estado independente que não consegue dar ao mundo uma imagem de governação responsável, onde a classe política prima pelo seu poder autofágico, porquê discorrer longamente sobre matéria consabida, porquê mais do mesmo, porquê não ter carimbado umas memórias únicas partindo da peculiar circunstância do que viu na sua infância e juventude e experimentou na sua comissão militar? É mistério insolúvel, e assim se escrevem livros com elevada carga dececionante.
Um abraço do
Mário
Guiné-Bolama, História e Memórias, por Fernando Tabanez Ribeiro (2)
Beja Santos
“Guiné-Bolama, História e Memórias” por Fernando Tabanez Ribeiro, Âncora Editora, 2018, despertava a curiosidade atendendo à circunstância de que o autor vivera uma parte da sua juventude na Guiné, a ela regressando como oficial da Armada. Mas o relato das suas memórias não resistiu à tentação de respigar um elenco de dados históricos sobre as navegações atlânticas portuguesas, a questão da escravatura na área da Senegâmbia, a figura dos lançados, a questão de Bolama no século XIX, o relevante papel histórico do Honório Pereira Barreto, as guerras da pacificação lideradas pelo Capitão João Teixeira Pinto, a questão da religiosidade na colónia da Guiné e depois Bolama, tão carinhosamente recordada, não hesito em dizer que é o ponto alto do seu registo do que viu e sentiu e agora passa a escrito.
Nada ficaremos a saber sobre a sua comissão militar, era compreensível a expetativa, foi oficial imediato de uma Lancha de Fiscalização Grande, impossível não haver recordações que possibilitassem um arco entre o passado da sua mocidade e a prova de armas.
Entendeu o autor que se devia debruçar sobre a problemática da independência, o papel de Amílcar Cabral, o seu assassinato, o projeto de união política entre Guiné e Cabo-Verde, deplorar como a República da Guiné-Bissau se mantém um país adiado, e fazer um balanço da historiografia da Guiné e da colonização.
Começa por conjeturar o que seria o resultado que teria hoje uma sondagem à população guineense no sentido de avaliar o respetivo grau de satisfação. Para surpresa de muitos, têm sido feitos trabalhos neste domínio, aguarda-se que a antropóloga alemã Tina Kramer consiga fazer um resumo em língua portuguesa da sua tese de doutoramento sobre a reconciliação dos guineenses quarenta anos após a independência. Num resumo já publicado no blogue Luís Graça e Camaradas da Guiné a cientista deixou perfeitamente claro o desapontamento de vencedores e vencidos, se estivermos a falar dos que militaram ativamente nas fileiras do PAIGC e daqueles que apoiaram a soberania portuguesa. Ninguém pode esperar regozijo dos brutais ajustes de contas, do esbanjamento e pilhagem de recursos, da má utilização dos financiamentos da cooperação e dádivas para projetos de desenvolvimento, o compadrio étnico na assunção dos cargos públicos e parcialmente nas Forças Armadas, nas execuções sumárias, na indignidade à testa dos assuntos públicos, para já não falar do acinte entre forças partidárias que põe em primeiro lugar a cupidez no exercício do mando, relegando para as calendas o bem-estar das populações. Ninguém desconhece esta situação calamitosa, Carlos Schwarz da Silva, à frente da AD, que foi uma das mais influentes ONG guineenses, contou tudo nos seus relatórios, como são exemplares os relatórios da Liga Guineense dos Direitos do Homem, basta ir ao seu site e ler o relatório Quarenta anos de impunidade na Guiné Bissau. E a própria literatura não ilude toda esta conflitualidade, basta ler o grande escritor Abdulai Silá.
A história de Amílcar Cabral, até à biografia incontornável que lhe dedicou Julião Soares Sousa, tinha uma componente mítica onde não faltavam lendas descaradas. O historiador interroga frontalmente a questão da fundação do PAI em 19 de setembro de 1956, sabendo-se, como a documentação atesta, que Amílcar Cabral nunca falou do PAI antes de 1959, mais concretamente depois de ter ido a Bissau e dividido tarefas com Rafael Barbosa. Nunca o governador da Guiné expulsou Amílcar Cabral, ele regressou a Portugal com a mulher muito combalidos com malária, não foi forçado a ir trabalhar para Angola, foi um antigo professor do Instituto Superior de Agronomia que o indicou para o projeto angolano onde trabalhou em Cassaquel, com resultados brilhantes. Um dos seus hagiógrafos, Oleg Ignatiev, pôs a circular a lenda, continua a render. Não houve fuzilamentos no congresso de Cassacá (fevereiro de 1964) por divergências ideológicas, convergem os testemunhos de que se tratava de um conjunto de guerrilheiros que procediam selvaticamente com as populações, forjando até episódios de feitiçaria para matar pessoas. Ter, como aconteceu durante décadas, acusado a PIDE de estar associada à conjura do assassinato de Amílcar Cabral, hoje é manobra completamente desacreditada. O que os arquivos da PIDE mostram e o próprio Fragoso Allas, ao tempo seu dirigente confirma, é que tinha sido montada uma rede de informação ao mais alto nível em Conacri, Dakar e Ziguinchor, sobretudo, os comerciantes deslocavam-se nesses círculos e colhiam informações valiosas, transmitiam com regularidade as notícias do acréscimo de tensões entre guineenses e cabo-verdianos. É chão que deu uvas incriminar a PIDE, como as coisas são nunca aparecerão as peças fundamentais do processo e temos que acreditar no que escreveram Óscar Oramas, Bobo Keita e Aristides Pereira, este na última fase da sua vida. A lenda do assassinato ainda faz o seu percurso, continua-se a falar em Sekou Touré como instigador do assassinato, ele que no início da manhã daquele dia 20 de janeiro de 1973 enviou um embaixador até Amílcar Cabral avisando-o que estava iminente um golpe, Cabral desvalorizou. Quanto ao significado do ditador da Guiné Conacri ter recebido, a altas horas da noite, os conjurados, como poderia ser de outra maneira? O complô ocorre em território estrangeiro, basta ter dois dedos de testa para perceber que os conjurados precisavam de se legitimar, saiu-lhes o tiro pela culatra. O resto é lenda.
E quanto a um outro tipo de solução que conduzisse a uma transição mais frutuosa para a Guiné, é esquecer que Salazar e Caetano recusaram qualquer entendimento com os dirigentes do PAIGC, está tudo escrito, é comovente responsabilizar a forma insensata como se deu a transferência de soberania, os próprios dirigentes do PAIGC lembram que foram instigados pelos dirigentes do MPLA e da FRELIMO, tinham que ser completamente independentes já para que os processos de descolonização não entravassem em delongas neocoloniais, os dirigentes do PAIGC aceitaram a governação do país sem dinheiro nem quadros, vinham encadeados pelo sonho da ajuda socialista, o sonho caiu na água. Tudo isto é já conhecido, questiona-se o que leva Tabanez Ribeiro a recuperar a história devidamente anotada.
Não se pode deixar de saudar o ato de coragem do autor no enaltecimento que faz de René Pélissier, é de facto o mais influente historiador de língua francesa sobre os acontecimentos coloniais portugueses, a despeito de verrinas e de algumas injustiças que comete, uma das quais o autor recorda pela sua gravidade, a maneira como Pélissier desconsidera Marcelino Marques de Barros, um pioneiro da cultura, da língua, da etnografia e da etnologia guineenses. Concorda-se com a sua opinião quanto à importância do levantamento documental feito por Hermano Tavares da Silva quanto à presença portuguesa na Guiné, história política e militar entre 1878 e 1926. É um grande trabalho, de facto, mas onde há dois erros palmares, inacreditáveis, ao dizer que se constata neste período ter havido uma espécie de luta de classes entre o Governo/administração e os comerciantes e de que alguns levantamentos deste período preludiam o que vem a acontecer com a luta armada, não há qualquer sintonia possível entre guerras localizadas e o projeto de independência de que Amílcar Cabral foi a bandeira. Mas também os grandes estudiosos cometem os seus dislates, é preciso é não os aplaudir…
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