segunda-feira, 21 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23098: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento, ex-Fur Mil Art) (22): Lugares da Guiné

Carta Geral da Província da Guiné
© Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné


1. Em mensagem do dia 18 de Março de 2022, o nosso camarada José Nascimento (ex-Fur Mil Art da CART 2520, Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71), lembra os locais da Guiné por onde peregrinou.


RECORDAÇÕES DA CART 2520

22 - LUGARES DA GUINÉ

A CART 2520 enquanto sediada no Xime exerceu uma grande actividade fora do arame farpado, tanto a nível de Companhia ou de pelotão e conjuntamente com a CCAÇ 12 e os Pelotões de Caçadores Nativos 52 e 54, originando para os operacionais um enorme trabalho e também um grande desgaste físico e psicológico. O 3.º pelotão a que pertenci, percorreu praticamente todos os cantos, trilhos e picadas da zona operacional. Por mero acaso fui tomando alguns apontamentos numa pequena pasta onde guardava a minha correspondência e que actualmente a conservo quase religiosamente.

A partir destes curiosos apontamentos, da minha memória e com recurso à carta do Xime e de outros locais, elaborei uma lista que vou partilhar com os camaradas da nossa Grande Tabanca, ou melhor, da Tabanca Grande, dos lugares da Guiné por onde andei, incluindo também os lugares da segunda fase da nossa passagem pelo Ultramar quando a nossa Companhia assentou arraiais em Quinhamel:

Bissau - Início da comissão em 30 de Maio de 1969, alguns dias. Em Junho e Julho de 1970 várias vezes e em Março de 1971
Brá - Primeiras dormidas na Guiné antes da partida para o Xime
Xime - Base da CART 2520 durante o 1.º ano, Junho de 1969 a Junho de 1970
Bambadinca - Um sem número de deslocações com a finalidade de alguns reabastecimentos, ir buscar e levar correio e outros serviços
Mansambo - Primeiras 3 semanas para o treino operacional com o 3.º pelotão
Bafatá - Várias idas com a finalidade do Vaguemestre comprar vacas para nossa alimentação
Ponte Rio Udunduma - Por inúmeras vezes como mini destacamento e de passagem para Bambadinca
Enxalé - Mais de dois meses como destacamento e para segurança da população
Finete - Patrulhamento até ao Enxalé
Mato de Cão - Patrulhamento a partir de Finete até ao Enxalé
Mato Madeira - No percurso entre Finete e Enxalé
Malandim - Zona do Enxalé, patrulhamento
Gambana - Nas proximidades do Enxalé, patrulhamento
Madina Colhido - Inúmeros patrulhamentos e montagem de emboscadas e de seguranças aos barcos que passavam no rio Geba
Ponta Varela - Em operações
Ponta do Inglês - Três passagens em Operações
Foz do Corubal - Uma passagem em Operação
Ponta Coli - Dezenas de seguranças para a passagem de colunas da nossa Companhia e de outros militares
Ponta Luís Dias - Passagem durante Operação
Mouricanhe - Em Operação
Chacali - Em patrulhamento
Chicamiel - Em Operação
Poidon - Em patrulhamentos
Háfio - Em operações
Darsalame/Baio - Em Operações
Buruntoni - Em Operações
Colicumbel - Em patrulhamentos
Lantar - Proximidades do Xime em patrulhamentos
S. Belchior - Em operações
Malafo - Patrulhamento
Bissilão - Em Operações
Gundagué Beafada -Em operações
Amedalai - Ponto de passagem obrigatório para colunas a Bambadinca
Samba Silate - Em patrulhamento, passando por Amedalai
Taibatá - Colunas de apoio à população
Demba Taco - Colunas de apoio à população
Quinhamel - Base da CART 2520, tendo divergido para Safim, João Landim e posteriormente para o Biombo
Safim - Base do 3.º pelotão - Junho, Julho e parte de Agosto de 1970
João Landim - Permanência de dois meses com uma secção
Nhacra - Breve passagem
Biombo/Ondame - Entre Setembro de 1970 e Março de 1971 como destacamento
Blom - Tabanca nas proximidades do Biombo
Blimblim - Tabanca nas proximidades do Biombo
Dorce - Tabanca nas proximidades do Biombo
Ponta Biombo - Patrulhamentos e momentos de descontração
Ilondé - De passagem
São Vicente da Mata - De passagem
Cais de Pigiguidi - Chegada a Bissau e "Adeus Guiné"

José Nascimento

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Nota do editor

Último poste da série de 23 DE JUNHO DE 2021 > Guiné 61/74 - P22311: Recordações da CART 2520 (Xime, Enxalé, Mansambo e Quinhamel, 1969/71) (José Nascimento, ex-Fur Mil Art) (21): Martins, o caçador de rolas

Guiné 61/74 - P23097: Notas de leitura (1430): “Amílcar Cabral - Pensar para Melhor Agir”; edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 (5) (Mário Beja Santos)


1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 31 de Julho de 2019:

Queridos amigos,
Aqui se põe termo a um conjunto de súmulas referentes às intervenções de Amílcar Cabral num seminário de quadros que foi um facto importante na história do PAIGC. A Direção do Partido entendera chegar a hora de convocar os quadros mais antigos e mais novos, fazer notificar a história da luta armada, fazer o seu balanço, proceder a críticas, rever processos organizacionais, discutir a ideologia, a democracia revolucionária, traçar as perspetivas para a luta que esperava o Partido tanto na Guiné como em Cabo Verde. É um documento único, várias centenas de páginas em que o líder de forma esquematizada fala com todos os seus quadros e responde às suas questões. Como nota curiosa, observe-se que os livros que hoje se podem comprar de Amílcar Cabral em alfarrabistas são coletâneas de discursos e documentos avulsos, neste livro está a prova comprovada da organização mental de Amílcar Cabral, da sua lucidez, o peso das suas convicções. Dou este livro como obra de leitura obrigatória para quem quer aprofundar o papel de Cabral na vida do PAIGC.

Um abraço do
Mário



Um guia prático para conhecer o pensamento do revolucionário Amílcar Cabral (5/5)

Beja Santos

A obra intitula-se “Pensar para Melhor Agir”, comporta o teor integral das intervenções de Amílcar Cabral no Seminário de Quadros do PAIGC, que se realizou em Conacri, de 19 a 24 de novembro de 1969. A edição é da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014, e tem organização de Luís Fonseca, Olívio Pires e Rolando Martins. De há muito que só é possível ler Amílcar Cabral entre nós nas bibliotecas ou adquirir as suas obras em alfarrabistas. As intervenções do líder do PAIGC foram revistas a partir das bobinas que então recolheram integralmente a sua comunicação, mais uma razão para encarar este trabalho como uma boa oportunidade de revisitar a essência do seu pensamento.

Amílcar Cabral manterá sempre uma narrativa ambígua sobre o que entende por socialismo, a luta anti-imperialista, o quadro fixo dos seus aliados. Reconheça-se no entanto que sempre exprimiu a vontade de que o partido-Estado contemplasse as suas obrigações de solidariedade com as outras colónias portuguesas e neste seminário, em que fala do futuro, lembra aos quadros do PAIGC que há que estreitar as alianças no continente africano. Falando das forças armadas, volta à tónica da crítica, aqui não há ambiguidades: 

“Não devemos esquecer que há erros, faltas e atrasos nas nossas Forças Armadas: muitas emboscadas mal feitas, muito atraso em chegar ao ponto onde se deve chegar, muita falta de vigilância nos rios, apesar de terem boas armas nas mãos para atirar contra os barcos, falta de coragem para atirar contra os aviões, apesar de sabermos que quantos mais tiros der contra os aviões mais medo têm os aviadores. Não temos feito reconhecimento como deve ser, antes dos ataques. O resultado é que muitas vezes vamos fazer ataques e caímos nas minas. Não temos sabido fazer planos corretos, na prática concreta de um ataque, porque o dirigente pode fazer um plano geral para um ataque, mas na situação real de colocar os homens no terreno, no momento do ataque, alguns comandantes não o têm sabido fazer. Devemos, por exemplo, reconhecer que, até hoje, só em dois ataques a quartéis inimigos é que prendemos tugas, em Catancunda e em Bissássema. Ora isso é muito pouco com tantos ataques a quartéis”

E desvia o raciocínio para as melhorias que são necessárias introduzir na logística, e volta a falar em erros: 

“Há pouco tempo, por causa de um erro do nosso camarada José da Silva, na frente norte, mas erro também de todos os camaradas que lá estavam, os tugas apanharam-nos uma quantidade importante de material. O José da Silva e outros cometeram erros tão grandes que os tugas vieram apanhar esse material e talvez tenha havido conluio entre eles. Não podemos permitir que, com tanta canseira para levar material de guerra da fronteira para o norte da nossa terra, venham os tugas apanhar material em Faquina, Biambi, Bula, no chão dos Manjacos, etc. Isso não pode ser”.

 As observações seguintes são sobre a disciplina, o trabalho político nos centros urbanos, insiste que as forças armadas devem dar golpes mais duros e decisivos aos colonialistas.

Agora a conversa muda de azimute, é preciso elevar a consciência política dos estudantes do Partido, levanta a questão delicada de relações familiares com elementos de outros países e não se escusa a afrontar a questão dos quadros técnicos ao nível da meritocracia: 

“Numa terra pobre como a Guiné e Cabo Verde, os quadros técnicos, científicos, etc., por mais que não queiramos, vão viver melhor que a maioria do povo em geral, porque não é possível que um doutor de leis faça devidamente o seu trabalho morando numa palhota cheia de mosquitos, com lama no chão, etc. Não faz sentido um arquiteto, um engenheiro, um médico, ou mesmo um especialista de mecânica ou eletricidade ter, de manhã, de encher a boca de água para borrifar o chão da sua palhota para este ficar duro, como faz normalmente o nosso povo. Queiramos ou não, no começo da nossa vida, os quadros que se estão a formar vão ter algumas vantagens em relação ao povo em geral”.

Finda esta sucessão de intervenções que se prolongaram de 19 a 24 de novembro, o último dia foi reservado a debate e a conclusões. Como seria de prever, Cabral respondeu a questões muito dispersas como a situação da luta na região de Nhacra e nos centros urbanos, focou a situação dos camponeses na Guiné e em Cabo Verde, procurou clarificar o que era uma direção coletiva e o centralismo democrático, como se estava a processar a justiça militar e como funciona a democracia revolucionária; puseram-se questões como o uso de algemas, o tratamento a dar aos ladrões de vacas, o abastecimento dos internatos, como agir se os colonialistas vierem a dar independência à Guiné sem Cabo Verde, como responderá o PAIGC. Aqui é categórico: 

“Não paramos enquanto não libertarmos os dois. Isto tem de ser, esse é o nosso caminho e o nosso juramento. Podemos usar todas as táticas que quisermos com o inimigo, mas não deixemos o inimigo desviar-nos para questões que nos lança apenas como diversão, para afastar a nossa atenção das coisas importantes. Importante é o seguinte: lutar cada dia com mais força na Guiné, com mais tiros contra a tropa tuga; em Cabo Verde, fazer o máximo para o mais depressa possível começarmos a dar tiros. Entretanto, faça-se barulho político por todo o lado, mesmo que vá muita gente para a prisão”.

Não se escusa de abordar questões delicadas como a posição do PAIGC face às declarações de Rafael Barbosa, desvia a conversa para a assistência sanitária à população e ao funcionamento dos tribunais populares, como receber as populações que vêm às áreas libertadas, como e porque se deve fazer a cobrança de impostos, o que constitui a crítica e a autocrítica e alertou os presentes para os falsos amigos e as infiltrações, exemplificando: 

“Há camaradas da segurança do Partido que passam a vida com um indivíduo de origem libanesa que reside em Zinguinchor. Os camaradas apresentaram-me esse libanês como sendo um grande amigo do Partido. Cheguei a realizar uma reunião em Zinguinchor com os camaradas e convidei-o a sentar-se ao meu lado, acreditando que era um amigo do Partido. Pois, certo dia, agentes nossos informaram-nos de que o tal libanês trabalhava para os portugueses e alertei o Luís Cabral. O Luís nunca o visitou, mas havia elementos da nossa segurança que passavam a vida em casa dele. Certo dia, fomos informados da chegada de uma pessoa com correspondência da PIDE para esse libanês. Como não o podíamos deter no Senegal, os nossos camaradas fizeram um bom trabalho, combinando com a polícia para parar e revistar o carro. Mandaram parar o automóvel, revistaram o passageiro e encontraram a correspondência destinada ao libanês, provando que ele é, efetivamente, um agente dos colonialistas”.

Nas conclusões, ele recorda: 

“Elogiei a nossa luta como jamais alguém poderá elogiá-la, mostrei as nossas vitórias com a maior clareza possível, as vantagens, a coragem da nossa gente. Mas também vos falei com toda a franqueza das nossas misérias, das muitas sujidades que ainda temos no nosso seio e temos de limpar depressa, se queremos de facto estar à altura do nosso valor”

E despede-se assim: 

“Durante seis dias, como vosso dirigente, trabalhei, cumpri o meu dever como tenho cumprido chefiando a luta no plano militar, no plano político e em todos os planos. Estas são as minhas palavras, com um grande agradecimento pelo triunfo que representou este nosso seminário. Tenho a certeza de que, se cada filho da nossa terra, homem ou mulher, mantiver esse interesse em saber sempre mais e em pôr em prática, concretamente, aquilo que sabe, nada nos pode parar no caminho certo da vitória na nossa luta, no caminho do progresso, da paz e da felicidade da nossa gente”.
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Nota do editor

Último poste da série de 18 DE MARÇO DE 2022 > Guiné 61/74 - P23089: Notas de leitura (1429): “Amílcar Cabral - Pensar para Melhor Agir”; edição da Fundação Amílcar Cabral, Praia, 2014 (4) (Mário Beja Santos)

Guiné 61/74 - P23096: Memória dos lugares (438): Rancho da Ponderosa, destacamento de Ualada, subsector de Empada (Francisco Monteiro Galveia, ex-1º cabo op cripto, CCAÇ 616, Empada, 1964/66; vive em Fronteira)


Guiné > Região de Quínara > Empada > CCAÇ 616 (1964/66) > Destacamento de Ualada, o "Rancho da Ponderosa".

Foto (e legenda): © Francisco Monteiro Galveua (2022). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]


1. Mensagem, com data de ontem, às 18h22;Francisco Monteiro Galveia (ex-1º cabo op cripto,  CCAÇ 616  (Empada, 1964/66) , que vive em Fronteira:


Junto foto minha no capô da viatura em 1965, à entrada do "Rancho da Ponderosa" (*). 

Da operação que eu pedi ao Jorge para comentar, é que ele tem mais apontamentos que eu, quanto aos nomes, foi-me passado na altura: que José Pedro Pinto Leite que era deputado na ala liberal da Assembleia Nacional, seria natural daquela povoação e que as nossas tropas tinham que ir ao local para mostrar que o inimigo não tinha o local em seu poder. (**)

Quanto aos nomes e residência eu desconheço. Do que eu me lembro é que um pelotão reforçado com o pelotão de milicias saiu de Empada após o pôr do sol a pé, pela madrugada passaram por toda a gente sem darem um tiro nem dizerem nada e embarcaram nas lanchas LDM com destino a Empada. 

Havia um posto de sentinela avançado numa árvore de grande porte, que se estava lá alguém estava a dormir. É possivel que essa terra se chame Darssalame. O Jorge deve ter mais elementos por isso o meu pedido anterior. 

Um abraço Xiko.

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domingo, 20 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23095: Antologia (85): Operação Crocodilo, Guiné-Bissau, junho/julho de 1998 (Revista da Armada, julho de 2013): Em 44 dias de missão e em 23 operações, foram resgatados 3487 refugiados, com o apoio do navio de carga "Ponta de Sagres" da Portline (Correio da Manhã, 17/2/2007)

1. OPERACÃO CROCODILO 

Revista da Armada, julho de 2013, pág. 20

(Com a devida vénia...) (**)

Em 7 de junho de 1998 desencadeou-se na Guiné-Bissau um conflito interno entre forças militares leais ao Governo do Presidente Nino Vieira e aquelas que se viriam a agrupar e torno de uma “Junta Militar” liderada pelo general Ansumane Mane.

A fim de efetuar o rápido resgate de cidadãos portugueses e de países amigos que, fruto da elevada insegurança criada pelo conflito, pretendessem abandonar a Guiné-Bissau, o Estado Português colocou em curso a Operação Crocodilo. (*)

Esta operação envolveu uma força conjunta dos três ramos das Forças Armadas, sendo a componente naval constituída pela fragata Vasco da Gama, com dois helicópteros Lynx Mk95 embarcados, pelas corvetas Honório Barreto e João Coutinho e o navio reabastecedor Bérrio. Comandava esta força naval o CMG Melo Gomes.

De forma intensiva e, muitas vezes, simultânea (1), as duas aeronaves foram utilizadas em diversas missões de embarque de cidadãos nacionais e de países amigos para os navios da força naval, na distribuição de ajuda humanitária em diversos locais do território guineense, e em algumas missões de reconhecimento.

Uma das missões de recolha de cidadãos nacionais realizadas pelos dois helicópteros levou-os a cruzarem grande parte do território da Guiné-Bissau até aos Rápidos do Saltinho, nas proximidadesda fronteira com a Guiné-Conacri. 

Após um trânsito realizado a muito baixa altitude, sobrevoandoas vastas e densas florestas guineenses e utilizando a cobertura dos braços de rio e das copas das árvores para evitar uma desnecessária exposição, os helicópteros tomaram imediato contacto com grupos armados da “Junta Militar” logo que aterraram no local de recolha. Desembarcada diversa ajuda humanitária e recolhidos os passageiros ali presentes,  regressaram à Vasco da Gama sãos e salvos.

De referir que as cartas de navegação aérea disponíveis eram fotocópias a preto e branco de cartas aeronáuticas que datavam do início dos anos setenta (2). Sendo que naquela área do globo ocorre frequente perda de cobertura GPS, as aeronaves realizaram grande parte da operação com recurso a procedimentos de navegação tática meramente visual (carta-terreno).

Os helicópteros tiveram ainda uma importante participação no processo inicial de mediação e negociações de paz entre as partes em confronto, realizando diversas aterragens em local sob controlo das forças da “Junta Militar”. Releve-se a missão de transporte de uma comitiva de representantes dos países da CPLP, liderada pelo então Ministro dos Negócios Estrangeiros, Dr. Jaime Gama, de Cape Skirring, no Senegal, para a fragata Vasco da Gama, então a navegar no leito do Rio Geba.

Para poder manter e operar as duas aeronaves que embarcaram durante a Operação Crocodilo, o MUTTLEY, nickname do destacamento de helicóptero atribuído então à fragata Vasco da Gama, recebeu um reforço de dois tripulantes e três técnicos de manutenção.

Num ambiente de elevada volatilidade, o emprego criterioso e eficaz dos dois helicópteros embarcados na Vasco da Gama, associado à sua rapidez e versatilidade, revelou-se de importância muito relevante para o cumprimento da missão da força naval durante a Operação Crocodilo.

P. Conceição Lopes CFR

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Notas

1. Muitas das missões aconselharam à operação simultânea dos dois helicópteros. Sempre que possível, o convés de voo do Bérrio era usado em apoio à operação simultânea. Contudo, quando os navios não estavam em companhia, o que aconteceu várias vezes, a realização de operações de voo das duas aeronaves obrigou a uma coordenação e precisão concertada de todo o navio em geral, em particular de toda a equipa de convés de voo, sem margens para erros ou atrasos.

2. Fotocópias tiradas, na véspera da largada da força naval de Lisboa, de cartas da Esquadra 501 (C-130) da Base Aérea nº 6 do Montijo.


2. Informação complementar do jornal "Correio da Manhã", de 18/2/2007 (***), excertos selecionados (e negritos)  pelo editor LG, com a devida vénia:

(...) "Quando a guerra acaba, o pesadelo resiste na memória dos sobreviventes: 10 de Junho de 1998 – Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas –, o País é surpreendido com o agravar dos conflitos na Guiné-Bissau. O então líder da Junta Militar – brigadeiro Ansumane Mané –, que comandava as tropas amotinadas no país, acusava a França de conivência com a intervenção militar do Senegal e da Guiné-Conacri. Por seu lado, o presidente ‘Nino’ Vieira, suportado por 1500 militares (parte deles senegaleses), combatia os revoltosos. 

O nosso País acordava para uma missão imperiosa: a de resgatar os cidadãos portugueses ameaçados por fogos-cruzados

Melo Gomes foi o oficial superior escolhido para comandar a Força Naval envolvida na operação ‘Crocodilo’; na semana passada, sob a égide do hoje Chefe de Estado-Maior da Armada (CEMA), a Marinha simulou, em Tróia, um cenário semelhante para testar a intervenção da Força de Reacção Rápida[Exercício ‘Intrex’]

(...)  Recuando à África onde há nove anos se desenrolou uma missão real , desvendam-se contornos, até políticos, decisivos para fazer avançar a operação ‘Crocodilo’. “Criou-se logo uma célula no Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) e reuniu-se o primeiro-ministro, António Guterres, com o ministro da Defesa e MNE, Jaime Gama, e os respectivos gabinetes”, recorda José Lello, na altura secretário de Estado das Comunidades. Fizeram-se contactos diplomáticos, só que não era possível esperar mais. Pela primeira vez, ponderou-se a hipótese de pedir auxílio a navios civis que estivessem na região.

O feriado festivo – de quarta-feira – ligava por ponte o fim-de-semana do oficial de operações Braz de Oliveira (hoje porta-voz da Marinha). “Recebi a notícia quando estava dentro do carro, com a minha família, a caminho do Algarve”, recorda. Inverteu a marcha em direcção à Base Naval do Alfeite, em Almada, e embarcou na fragata ‘Vasco da Gama’ com o comandante Melo Gomes. “Foi feita a ordem de operações, promulgadas as instruções de coordenação e preparada a largada.” A Marinha tinha 48 horas para se aprontar e fazer--se ao mar quando a tutela decidisse.

O Aeroporto Osvaldo Vieira, em Bissalanca, era palco de confrontos – dominados pelos rebeldes –, impossibilitando que os cidadãos portugueses fossem resgatados por via aérea.

Contra-relógio, do lado do Governo, o secretário de Estado das Comunidades recebia dos Serviços de Informação os dados para avaliar o conflito. “Os relatórios permitiam fazer uma avaliação a cada momento. De antemão, já se sabia que a situação era complicada. Só que África é imprevisível. E, de repente, como não havia organização táctica [nos combates], aconteceu” – disse José Lello. Mas a situação agudizou-se.

“Acordámos com o som dos bombardeiros; a primeira coisa que fizemos foi ligar para a Embaixada”, relata ‘Amir’ Carmali, um português que residia em Bissau. “Ainda não tinham informações concretas para nos dar, só nos aconselharam a não sair de casa.” Ouviam-se rajadas, bazucadas, bombardeios, que tinham como alvo os militares. Na capital, as ruas eram controladas por senegaleses ao serviço de ‘Nino’ Vieira.

Em Portugal havia a certeza: o resgate impunha-se. A Marinha precisava de mais de três dias para alcançar Bissau. Só restava pedir ajuda a navios civis.

 “Houve um contacto que é das coisas extraordinárias: sabíamos que havia um navio lá e não é que o primeiro-ministro [Guterres] consegue, ele próprio, falar com o comandante”, revela Lello.

(...) Na Guiné, a distância obrigou a que fosse o navio de carga ‘Ponta de Sagres’  [ da Portline] o primeiro a tirar portugueses de Bissau.

Contrariando o noticiado na época, o comandante do ‘Ponta de Sagres’ afirma que o navio não foi mobilizado. “Tínhamos carga para Bissau e fundeámos no limite das águas territoriais”, conta Hélder Almeida (#). Foi Stanley Ho – o magnata de Macau e principal accionista da Portline – quem assumiu todos os riscos da operação.

“A Embaixada (##), que tinha os contactos de toda a gente, foi inexcedível no apoio”, garante o refugiado ‘Amir’ Carmali. Os estrondos da guerra aterrorizavam. Mais: tinha chegado o momento de abandonar as casas. A representação portuguesa aconselhou-os a levar panos brancos e pertences leves. Correram até à Sé de Bissau, que servia de ponto de encontro, e seguiram para o cais. “Estavam lá centenas e centenas de pessoas brancas, pretas, tudo.”

Dia 11, perto da hora de almoço (cinco dias depois do estalar da crise) zarpou a ‘Vasco da Gama’. Antes, às 09h00, o ‘Ponta de Sagres’ avançou para Bissau. “Tive noção do risco. Mas decidi sozinho, porque há alturas em que o comandante decide sozinho.” Chegados ao cais, dois navios, um cubano e outro russo, cerravam o espaço. Mais de seis horas depois, o russo cedeu lugar ao cargueiro – ainda com 300 contentores cheios de alimentos, material de construção, roupa e outros produtos. O embaixador Henriques da Silva e a cooperação portuguesa assistiram ao embarque e à filtragem de refugiados feita por senegaleses. Só embarcavam portugueses e cidadãos de países amigos.

“Íamos de calções e camisa; o calor apertava”, conta ‘Amir’, que agarrava apenas uma garrafa de água e um saco com o que se salvou. Para trás, o irmão deixava negócios de importação e exportação. “No porto, as granadas caíam muito perto – nem na Guerra Colonial em Moçambique vi bombas cair tão perto.” Soavam alertas; o chão e o ar vibravam assustadoramente; o assobiar dos tiros atirava os refugiados, encobertos pelas mãos na nuca, para terra. Os estrondosos morteiros só encontravam resposta nos gritos de pânico.

‘Amir’ e mais 30 refugiados, zarparam à boleia do navio russo que transportava para a Índia as cinco mil toneladas de castanha de caju, vendidas por ele e o irmão. Foram para Banjul, Gâmbia. À partida, antes de darem lugar ao ‘Ponta de Sagres’, o agora dono de um restaurante lisboeta, com 54 anos, disse: “Olha, oh Deus, nós já estamos a safar-nos. Agora, Ajuda estas pessoas.”

No ‘Ponta de Sagres’ caberiam cerca de mil pessoas. Embarcaram 2250. Os refugiados, de 30 nacionalidades, fizeram 24 horas até Dacar, no Senegal. “A bordo, a habitabilidade era precária: casas de banho, só algumas mulheres e crianças lá chegaram; eles faziam onde calhava; as messes foram abertas também às mulheres e crianças com alimentação à base de massas, grão e bolachas; à noite passaram frio e, muitos, fome e sede; devem ter dormido sentados”, conta o comandante.

Dia 15 de Junho de 1998, a ‘Vasco da Gama’ entrou em águas territoriais da Guiné – o pior dia, o do ataque da Junta Militar ao quartel de Brá e ao aeroporto. “Estivemos sempre sob ameaça e a própria Força Naval foi bombardeada e alvo de morteiros”, lembra o oficial de operações do Estado Maior. 

Durante os 44 dias de missão foram evacuados, em 23 operações, 1237 refugiados. A fragata ‘Vasco da Gama’, as duas corvetas ‘João Coutinho’ e ‘Honório Barreto’ e o reabastecedor ‘Bérrio’ foram a localidades distantes, como Bubaque, Ponta do Biombo, Varela (**) e Rápidos do Saltinho, buscar pessoas. Faltou um navio polivalente à Marinha.

 (...) Uma semana depois de terem começado os confrontos na Guiné, a população da capital guineense baixou de 300 mil para 130 mil residentes. Fugiram para o interior do país.

“Quando a fragata ‘Vasco da Gama’ se fez ao mar, parti para o Senegal com uma equipa médica e jornalistas”, relata o então secretário de Estado das Comunidades. “Levava um telemóvel satélite para me manter em contacto com o MNE.” O embaixador português em Dacar estabeleceu a ligação entre os refugiados e os voos da TAP que os trariam, sãos e salvos, para o nosso País.

No centro de refugiados, em Dacar, “fomos bem tratados”, garante ‘Amir’, embora muitos portugueses se tivessem queixado das condições. Havia um pavilhão amplo e cheio de camas de campanha para descansarem; comiam ração de combate e uma refeição quente por dia. 

Mais tarde, com as saudades a apertar, embarcaram com destino ao Aeroporto Militar de Figo Maduro, Lisboa. As autoridades verificaram os documentos; os refugiados descansaram e alimentaram-se; quem não tinha casa em Portugal recebeu dinheiro, alimentos e produtos de higiene.

A missão na Guiné terminou com recordações amargadas pelas circunstâncias, mas felizes pelo sucesso no resgate de 3487 refugiados. 

Na semana passada, o ‘Intrex’ deu provas da capacidade de reacção da Armada. E a ‘Vasco da Gama’ seguiu para o Mediterrâneo Ocidental para integrar uma força com o porta-aviões espanhol ‘Príncipe das Astúrias’, em mais um exercício. (...)

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Notas do CM e do editor LG:

(#) Hélder Almeida, de 64 anos, comandava o navio de carga ‘Ponta de Sagres’, durante o resgate na Guiné. Recebeu de Jorge Sampaio, ex-Chefe de Estado, a Ordem Militar de Torre de Espada.

(##) Recomanda-se a leitura dos 3 postes que aqui publicámos há mais de 10 anos sobre a origem deste conflito político-militar... São da autoria do antigo embaixador português e nosso camarada Francico Henriques da Silva, membro da nossa Tabanca Grande:

17 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7803: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (1) (Francisco Henriques da Silva)

18 de Fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7814: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (2) (Francisco Henriques da Silva)

19 de fevereiro de 2011 > Guiné 63/74 - P7818: Das causas da guerra civil Bissau-guineense, de 7 de Junho de 1998 a 7 de Maio de 1999 (3) (Francisco Henriques da Silva)

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Nota do editor:

(*) Vd. poste de 18 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23090: (In)citações (198): a atuação de Patrício Ribeiro, durante a guerra civil de 1998/99, e nomeadamente em Varela, em articulação com o NRP Vasco da Gama..."Se isto não é heroísmo, então eu nunca vi nenhum herói ao vivo e a cores" (Luís Graça)

 (**) Último poste da série > 15 de março de 2022 > Guiné 61/74 - P23082: Antologia (84): Poema dedicado ao Tono d'Amelita, meu companheiro de carteira no velho colégio, morto em combate em Moçambique (Alberto Bastos, ex-alf mil op esp, CCAÇ 3399 / BCAÇ 3853, Aldeia Formosa, 1971/73)

(***) Vd. CM - Correio da Manha - Guiné em Tróia a ferro e fogo: A operação que levou a Marinha à Guiné, em 1998, é mais do que uma memória: é um exercício militar para testar a capacidade de reacção rápida. 18 de Fevereiro de 2007 às 00:00

sábado, 19 de março de 2022

Guiné 61/74 - P23094: A galeria dos meus heróis (44): O "mô camba" Jorge Levi, natural de Luanda, levado por engano pela "garota de Ipanema" a desertar do exército colonial... Um filho de pai ausente, que foi quase tudo na vida, não se achava mau ator de todo mas que, afinal, não sabia como sair de cena... (Luís Graça)

 

Angola > Luanda > Ilha de Luanda > Esplanada do famoso Restaurante Coconuts > 19 de Setembro de 2004 > Em cima da praia, praticamente privativa. Com seguranças, em todos os lados. O apartheid do dinheiro, como em qualquer outra parte do mundo não inclusivo.  Um ou outro russo, com dentes de ouro... Dos cubanos, não se dá conta...Um almoço de peixe grelhado com vinho ficava então, no mínimo, entre 40 a 50 dólares (o equivalente ao salário mínimo na função pública, em Angola nessa época!)... Estive em Luanda, pela primeira vez,  em setembro de 2003.  Ainda no tempo das "vacas gordas": 1 dólar equivalia a c. 85 kwanzas. O cacete (tipo de pão) custava cerca de 20 kwanzas (julho de 2004). Hoje, em 19 de março de 2022,  1 dólar equivale a 455,99 kwanzas (5,4 vezes mais). E 1 euro vale 504,07 kwanzas. Nesse tempo ainda eram raras as caixas de multibanco. Comprávamos  kwanzas na rua às  quínguilas que puxavam um maço de notas sebentas do farto peito que servia de cofre. A grande maioria da população activa de Luanda (três quartos) estava então na economia informal ou paralela.

Foto (e legenda): © Luís Graça (2004). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]




O autor, em Contuboel, c. junho/julho de
 1969.  Foto: Luís Graça

A galeria dos meus heróis >  O "mô camba" Jorge Levi, natural de Luanda, levado por engano pela "garota de Ipanema" a desertar do exército colonial

por Luís Graça


– O que é que se leva desta vida ?!... Boa pergunta, a tua, mas, se queres que te diga, não sei, não sei mesmo responder-te... Assim, de chofre, tenho dificuldade em responder-te… Enfim, para te dar uma resposta, digamos, que não seja politicamente correta...

– Prazeres terrenos, coisas boas da vida que não haja no céu… Não é a tal pergunta de um milhão de dólares!...


– Sim, mas... o que me apetecia logo responder-te é aquilo que me parece mais óbvio: não levas nada, "mô camba" [meu amigo], fica cá tudo!… Mas tudo mesmo!... Casas, chácaras, automóveis, iates, contas bancárias, amantes, mulheres, filhos, netos, amigos, camaradas, memórias, vaidades, tainadas... 

E deu uma das suas saudáveis gargalhadas, que me vieram confirmar que aquele era mesmo o "mô camba" Jorge Levi

 Eh!, mano, lembrei-me dos iates, mas ficas a saber que não tenho (nem quero ter) nenhum.

– Talvez a pergunta seja cretina… E, depois, a verdade é que...ainda não saiste de cena, como tu gostas de lembrar!

Aí o Jorge,  um "caluanda" de alma e coração,  deu um murro na mesa, querendo talvez, com esse gesto (que não era de irritação),  exprimir um misto de espanto e de alívio, e quase fazendo saltar as chávena do café e os respetivos pires mais os balões da aguardente DOC Lourinhã:

– Porra, ainda não morri, nem sequer arrumei as botas!...É verdade, estou vivo e ainda sou capaz de vir contigo à Ericeira comer uma caldeirada... Já não vinha cá, ao "Puto", há muitos anos!... Sou mais velho do que tu, mas ainda não me acho com idade para encerrar para balanço, fazer o deve e o haver da puta da vida...


Infelizmente ele tivera  de voltar à terra dos seus avós não pelas melhores razões, mas sim por motivos de saúde... 


– Bem, ainda sou cidadão português... e europeu. Às vezes esqueço-me deste privilégio, que em Angola ou no Brasil vale ouro... Eu costumo dizer, tenho o melhor de dois mundos...Nasci em África, o berço da humanidade...  

Procurei tranquilizar o meu amigo, o "caluanda", com quem convivera no Seminário Maior, durante dois anos, antes de irmos para a tropa e depois, para a guerra na Guiné. Voltara a encontrá-lo em Luanda, há uns largos anos atrás, em 2004. E, mais recentemente, em Lisboa, onde ele, de passagem,  me procurou no sítio onde eu trabalhava.


Em 2015, ele viera expressamente de Luanda, onde também tem casa, na Maianga,   para ouvir em Lisboa a opinião de um reputado urologista, que o tranquilizou, relativamente à gravidade do seu carcinoma da próstata,  e o encaminhou para uma conhecida clínica em São Paulo. Embora reservado, o prognóstico não era assim tão mau quanto se temia no início. 

– Não vou morrer desta merda, mas tenho que submeter-me a  um tratamento rigoroso em São Paulo  – disse-me ele,  descontraído, nesse fim de semana, já não me lembro qual, do mês de setembro de 2015, no fim do verão, em que o convidei-o para almoçar comigo. 

Escolhi uma coisa que eu sabia que ele gostava, uma caldeirada de peixe em terras do Oeste estremenho, na Ericeira, que tinha a vantagem de ficar às portas de Lisboa, e que ele conhecia do tempo da tropa, quando passara por Mafra, no Curso de Oficiais Milicianos. No dia seguinte, ou no princípio da semana, partiria para São Paulo (onde, de resto, já residia a maior parte do tempo e tinha o grosso dos seus negócios).

Quis, também, de certo modo, retribuir a hospitalidade com que ele me recebera na ilha de Luanda, nesse ano já distante de 2004. Eu estava alojado numa casa de hóspedes, ternurenta, de estilo colonial, dos anos 20 do séc. XX, a Soleme, dirigida por umas simpatiquíssimas e adoráveis senhoras, manas de um conhecido general, próximo do Edu. Mas foi na rua, na Maianga, no sítio mais inverosímil do mundo, que eu me cruzei com o Levi, e foi ele que, espantosamente, me reconheceu.

– Bolas, estás na mesma! – interpelou-me ele, descaradamente.

– Só com... quarenta anos a mais!

– Dá cá um "candando", um abraço do tamanho da distância que nos separa no tempo e no espaço! 

Agora na Ericeira,  com o grande oceano Atlântico à nossa frente, retomámos a nossa  longa conversa na ilha de Luanda.  
 
– O que é que se leva desta vida ?... Perguntas tu, e bem, e eu volto a responder-te: Nada. 

– Se ainda fosses cristão... – acrescentei eu.

– Sim, se eu ainda fosse cristão, remeteria isso para o juízo final. Aí, sim, todos temos de prestar contas, crentes ou não crentes. E eu já tenho o bilhete comprado para a última 
viagem... Só não fiz a mala... nem pus de lado os mantimentos para a viagem, como faziam os antigos egípcios.

Não tinha perdido  o sentido de humor que eu sempre lhe conhecera, apimentado com o gosto da linguagem vernácula. E eu retorqui-lhe:

– Temos todos bilhete comprado ou reservado para o barco de Caronte... Mas acreditas nessa, do além ?


– Já não tenho idade para voltar a acreditar... Perdi a fé, na altura de ir para a tropa... Ou fizeram-ma perder.  Fui batizado, em criança,  por força do lóbi materno, com grande desgosto do meu avô e do meu pai, que eram militantemente ateus ou agnósticos, nunca soube qual era a diferença...

– Somos todos cristãos, de uma maneira ou de outra, até os ateus e os agnósticos. Todos temos uma matriz cristã... Não há como fugir ao nosso caldo de cultura judaico-cristã... Gosto de repetir que somos todos cristãos, 
 socioantropologicamente falando, uns "cristãos velhos", outros "cristãos novos"... E tu deves ser "cristão nivo", pelo apelido de família... Vá lá,  responde  à pergunta... – disse-lhe eu, em tom de mais de  galhofa do que de proviocação.

– Não  me conheces o suficiente, tivemos muitos anos afastados. E eu mudei, como todo o mundo... E mudei muito, Hoje sou como a enguia, refugio-me em subterfúgios, silogismos, desculpas mal esfarrapadas... Se calhar sou demasiado cobarde para te responder com franqueza…

E aí contemporizei eu, mais uma vez:

− Também não quero ser o teu confessor. Se invertêssemos os papéis, eu também ficaria  à rasca para te dar uma resposta brilhante, sincera e sobretudo convincente... Iria refugiar-me, como tu, nos lugares comuns... Mas hoje sou eu o entrevistador. Ou o santo inquisidor, se preferires...

E acrescentei, para lhe lisonjear o ego que eu sabia que era bem maior do que o meu:


− De qualquer modo, quero aqui deixar expresso o meu agradecimento pelo tempo de antena que me concedes... ainda por cima num mau momento da tua vida que, felizmente,  há de passar...  Sei que abriste uma exceção... no ano [, 2015,] em que fazes os setente anos e decides tirar uma sabática... Passas os teus negócios a um dos teus filhos "brasileiros", é isso ?!...


− Mais brasileiros do que angolanos ou portugueses, os meus filhos. Nenhum deles conhece Portugal, para desgosto meu... E de Angola, só Luanda e o Mussulo.... Nisso, fui um mau pai, os meus filhos pouco ou nada  sabem das minhas raízes... Tive pouco tempo para eles....

E depois de um gole da aguardente DOC Lourinhã, acrescentou: 

− Quanto aos meus negócios, no Brasil, estão agora limitados ao imobiliário, em S. Paulo, onde investi umas massas valentes na boa altura. Com a crise,  é bom ter património.  E se tens grana, compra... Quanto à minha sabática, se queres que te diga,  é apenas uma forma de ganhar tempo ao tempo, como se tal fosse possível... É uma corrida onde estou em desvantagem.

− Estamos todos em desvantagem, Jorge,  na corrida contra o tempo!...

E eu prossegui, explicando-lhe uma das razões de ser do nosso "almoço de trabalho"... A outra razão era de "saudade" e de "amizade".

− Acredita, estás aqui por uma boa causa... E alguém há de pagar o almoço... Já te expliquei, por email, a natureza do meu trabalho de investigação sobre histórias de vida de gente que andou no seminário e fez a guerra colonial...

– Pois seja, como queres. Mas não vejo onde e a quem o meu caso possa interessar.  Sou um caso atípico, deixa-me prevenir-te. De resto, continuo a ser um gajo porreiro, mesmo acabado, ou à beira do fim de prazo de validade... 

– Qual quê ?!... Somos velhos amigos, condiscípulos e só depois camaradas de armas, se bem que eu não goste da expressão. Por outro lado, nunca nos encontrámos na Guiné. Espantoso: vamo-nos encontrar em Luanda, estava eu a caminho do Hospital Josina Machel / Maria Pia, aonde eu fazer uma visita de estudo. Estava em Luanda num curso de administração hospitalar... Lembras-te  do nosso encontro ?!

Ele fez que sim com a cabeça, e eu prossegui:

– É verdade... São demasiadas cumplicidades para uma conversa íntima sobre o sentido último da vida... Passei grande parte da adolescência à volta desta estúpida questão existencialista... Anos que, afinal, não vivi!... Mas tu é que foste o sortudo, tu é que tiveste uma vida aventurosa, cheia de emoções, em pelo menos três continentes, entre o Velho e o Novo Mundo...

Depois de uma breve pausa, para molhar os lábios com a nossa aguardente DOC Lourinhã, no final da refeição, o Jorge Levi disparou:

– É muita bondade tua. Dás-me uma dica. Vou começar por aí... Nunca tinha pensado nisso, se calhar vivi uma vida por empréstimo, esta vida que eu vivi talvez não fosse minha mas dos personagens que criaram para mim… 

– Quem ? O destino ?

– Não sei quem, só sei que tudo  é teatro, afinal, citando o Machado de Assis do "Dom Casmurro"...

– Como assim ?!... É verdade, todos temos várias máscaras, desempenhamos vários papéis, podemos até ter vários heterónimos, como o pobre diabo do Fernando Pessoa que ouvia vozes e acabou por morrer a falar sozinho, entre duas bicas e um bagaço…

– Quero eu dizer: não escolhi, foram mais as vezes que eu segui a única picada que me apareceu pela frente. Noutras deixei-me levar pelas circunstâncias. A única exceção terá sido a entrada no seminário, na altura em que nos conhecemos...  

– Exceção ?... – perguntei-lhe eu. – Sempre me pareceste muito autodeterminado, mais seguro do que eu dos "caminhos do Senhor"... De resto, no Seminário Maior, eras o nosso herói, secreto, invejado: uma "vocação tardia", algo de muito bem amadurecido, e ainda por cima vinhas de um meio social favorecido... Até se dizia, ao ouvido, que o "caluanda" (a tua alcunha) era afilhado do Cerejeira... Havia gajos que te invejavam por detrás e adulavam pela frente... Muito mais importante para nós, “sotainas negras”, tinhas mundo, tinhas viajado, tinhas conhecido gajas... Nenhum de nós tinha mundo, e seguramente a maior parte eram virgens...

– Fazes-me rir!... 


– Mais tarde, muito mais tarde, voltei a encontrar-te, em Luanda, homem de negócios, até então de sucesso no plano empresarial, profissional, social e até amoroso... E ainda bem que não chegaste a padre, tinhas estragado muitas famílias... Sempre foste um sortudo com as gajas...

– Não me lixes! – intimou-me o Jorge. – São mais as vozes que as nozes. E depois não confundas sucesso com dinheiro. Ganhei muita grana com os negócios no Brasil e até em Angola, no tempo das vacas gordas... Mas também perdi, estupidamente, muito dinheiro... Calotes, casinos, festas, investimentos errados, desvalorização da moeda, subornos, luvas, prendas, "gasosa"... Sobretudo muitas luvas e muitas prendas. Sou realista, dirás tu que sou cínico:  o dinheiro compra tudo, menos a felicidade...

– Por favor, não digas isso aos pobres... E os negócios do coração ?

– Da cama, queres tu dizer... Vou-te ser franco, tenho pouco a esconder nesta altura do campeonato: tive gajas porque tinha dinheiro...

– ... E lábia!... Muita lábia, disseram-me!

– Seja, dinheiro e lábia ! – concordou o Jorge.

– Não é preciso mais – anui eu. – E alguma "tusa", vamos lá...Mas até isso agora se compra na farmácia.


– "Cumbú", dinheiro,  graveto, meu menino, sobretudo dinheiro para poder sustentá-las!... Não há "fodas" de borla, só por amor... O meu avô paterno, que eu ainda conheci bem, era um mulherengo, eu segui-lhe o rasto... Mas só gosto de brasileiras, dengosas, com cheirinho a cravo e canela...

– "Gabrielas"?!... Mas, já agora, quem era esse teu avô ?

E lá fomos mergulhar na história da família paterna... Esse avô, esse "pretoguês",  era um alentejano de Elvas, “um português das Arábias”:

– Levou o meu pai, aos quinze anos, a Badajoz, aos touros e às "putas"... Não fiques chocado: eram outros tempos... Estamos a falar do início da década de 1930. E pôs ao meu pai o nome de Amato Lusitano... Ainda estou a tentar saber porquê... mas cheira-me que tenha a ver com a sua, nossa, costela de judeus sefarditas, e depois cristãos-novos à força...

– O Amato Lusitano foi o médico português mais famoso do séc. XVI, João Rodrigues de Castelo Branco, descendente de judeus sefarditas, nascido em Castelo Branco, ao tempo de Dom Manuel I, o "Venturoso"... 

Falou-me com afeto e admiração desse avô, republicano dos quatro costados,  com quem ele ainda conviveu, em vida, em Angola, e que era "o seu ídolo de infância". Quando era "candengue", miúdo, viveu algumas temporadas com esse avô paterno em Nova Lisboa.

Esse avô era um homenzarrão, de barba pelo peito, e grande bigodaça, maçónico, anticlerical, professor primário. Deixara crescer a barba quando foi mobilizado para Angola, durante a I Grande Guerra. Participou nas "campanhas de pacificação do sul de Angola", onde foi ferido.

O Jorge sabia pouco desse período, sabia que o avô tinha estado integrado nas forças expedicionárias, sob o comando do general Pereira d’Eça (1852-1917), que combateram e derrotaram não só os alemães como o rei dos cuanhamas, o célebre Mandume (1894-1917) cuja bravura e carisma ele, de resto, passou a admirar. A sua paixão por Angola viria, ao que parece, desse tempo.

– O que te lembras mais desse teu avô ?

– Era uma rabo de saia, tinha olho azul como eu, impetuoso como eu, ainda mais garanhão do que eu, seguramente muito mais feliz e otimista do que eu... Melhor ser humano, seguramente, do que eu. Um homem com princípios e valores, que eu tentei seguir, mas que perdi ou atropelei nas trapalhadas da vida...

– ...Portanto, posso concluir que os amores são daquelas coisas que se levam desta vida...

– Amores e desamores – atalhou o Jorge. – Acho que não tive nenhum grande amor na minha vida... Nem as mães dos meus filhos... Gajas, sim, mas cansava-me delas depressa... porque eram possessivas, ciumentas, intriguistas, sacanas...

– Todavia, casaste ?!...

– Sim, como quase todo o mundo… Não há cão nem gato que não se case e descase... Em Angola, tal como no Brasil, é de bom tom ter uma "legítima" e uma amante. Ou duas, porque a uma delas  já estás a pòr os patins... Mas eu suportava mal a rotina do casamento e das relações estáveis... Ao fim de quinze dias a comeres bife, com batatas fritas e ovo a cavalo, já suspiras por umas ostras ao natural com um bom champanhe francês ou por uma feijoada mineira, acompanhada de umas caipirinhas...

– Tudo na vida é rotina! – comentei eu. – E o casamento tem muitas armadilhas, ao retardador.


– Casamento ? O casamento mata a paixão e o amor, e gera o ciúme... O casamento é só para dares uma mãe e um pai ao teu filho... 

– Ou é o preço que se paga para reproduzires os teus genes egoístas ?!...

– Ou isso !... No meu caso, de vez em quando voltava a casa, tipo caixeiro viajante, para "marcar o ponto"... pelo menos, na época em que viajava muito, França, Brasil, Angola, África do Sul... Por favor, não graves isto... E desculpa-me esta linguagem rude, franca, machista, como diriam as feministas, portuguesas ou brasileiras, mas eu sou desse tempo...

– Ficou por Angola, o teu avô Levi ?...


– Não, foi ferido, no célebre "quadrado de Mongua" em agosto de 1915 e penosamente evacuado para Luanda, onde se restabeleceu. Milagrosamente... 

– Regressou  a Lisboa, não ?!

 Sim, sim... Dedicou-se depois ao ensino e á divulgação do mutualismo e do cooperativismo. Assistiu, entretanto, com grande desgosto, à progressiva decadência da República e ao triunfo da Ditadura Militar em 1926 e à consagração do Estado Novo, já com Salazar. Por desgosto ou saudade, ou as duas coisas, retorna a Angola, instala-se em Nova Lisboa [hoje Huambo], como professor primário, na primeira metade dos anos 30. A minha avó ficará, nos primeiros anos,  na capital do Império com as raparigas. Era também professora. O meu pai era o único rapaz, o mais velho…

– Fala-me do teu pai…

– Esse seguiu também as peugadas dos meus avós. Depois do curso do magistério primário, foi para Barcelona tirar belas artes. Era o artista da família... Em 1936, com 22 anos, alistou-se nas milícias da República. Era anarquista. Louco. 


– Esteve na guerra civil espanhola ? – indaguei eu.

– Sim, e foi ferido. Ironicamente, não em combate contra os franquistas, mas sim numa "rusga" punitiva realizada pelos comunistas, imagina!... Matavam-se uns aos outros, aqueles filhos da mãe! 

– Safou-se ?

– Por um triz! – continuou o meu interlocutor. – Escapou à justiça dos "rojos" e dos "blancos"... Antes da queda de Barcelona, e logo depois dos bombardeamentos aéreos da cidade, o meu pai, que tinha passaporte português, pirou-se para França, creio que por volta de abril ou maio de 1938. Daqui para a Bélgica e depois depois Holanda e finalmente Angola. Eu nasceria seis anos mais tarde, já no final da II Guerra Mundial, em 1945.

– Passou incólume pela teias da PIDE ? 


– Não me perguntes como... A PIDE ou a sua antecessora (tinha outro nome, de que eu já não me recordo)...

– A "Pevide", até 1945, a PVDE, Polícia de Vigilância e Defesa do Estado.

– Olha, não sabia... Tinha pouca ou nenhuma implantação em Angola, essa "Pevide",  à época do meu avô... E mesmo a PIDE. Isto antes da guerra colonial... O território era vasto e os do "reviralho", sobretudo brancos e mestiços, mas também os negros "assimilados", estavam dispersos... e não incomodavam ninguém. Lisboa ficava bem longe. Alguns eram velhos desterrados por razões políticas ou de delito comum. Olha, tens o exemplo do Zé do Telhado, ainda hoje lembrado com respeito em Angola...

– A prova é que PIDE não previu nem preveniu, como lhe competia, os trágicos acontecimentos de 1961...

E eu emendei:

– Prever, devia ter previsto. Prevenido, era mais difícil, não era tarefa que llhe competisse.

– De resto, havia mais liberdade em Angola, que era uma colónia,  do que na capital do Império... – acrescentou o meu amigo.
– E éramos mais liberais nas ideias e nos costumes.

– O teu pai chega a Angola, quando ?... – pergunto eu.

– Talvez em finais de 1938 ou princípios de 1939, já não posso precisar. Em Amesterdão, apanhou um navio inglês, misto de carga e passageiros, que fazia a rota do Cabo. Os avós maternos do meu pai, que viviam em Lisboa, com alguns meios de fortuna própria (o sogro do meu avô era médico, também republicano), devem-lhe ter mandado dinheiro, "cumbú",  depois que fugiu de Barcelona. 

– Chega a Angola... e depois ?

– Desembarcou em Luanda, onde o navio inglês se reabastecia, e foi visitar os pais, em Nova Lisboa, decidindo depois percorrer Angola, de lés a lés, de Cabinda ao Cunene.

O Jorge conta-me que o pai, Amato Lusitano, para sobreviver e custear a expedição, fez de tudo um pouco: fotografia, pintura, ilustração, jornalismo. E até safaris. Era um bom aguarelista. Ganhou dinheiro a vender aguarelas e retratos a carvão aos fazendeiros ricos e até aos sobas, aos administradores, aos caçadores profissionais e aos missionários, que só conheciam a sua região. 

– Pelo caminho teve várias ocupações de ocasião, fez contactos e amizades.  E se calhar filhos... Era um sedutor nato. Conheceu a minha mãe numa fazenda de café do Uíge. E cantou-lhe a canção do bandido... Foi caçador no Leste, mestre escola em missões protestantes no Sul, capataz de fazendas de café no Norte , e boémio em Luanda. Acabou por se perder em Luanda... Álcool, sexo, droga, sabes como é... A decadência.

Enfim, escreveu para jornais em Luanda e até em Lisboa, sob pseudónimo, notas etnográficas sobre os usos e costumes dos diversos povos de Angola. Havia então uma grande curiosidade sobre a África negra, que viria a ser reforçada, em 1940, com a Exposição do Mundo Português, "de que foi comissário um grande africanista, o capitão Henrique Galvão, se não estou em erro, e que o meu avô conheceu", acrescentou o Jorge.

Depois da eclosão da II Guerra Mundial, o pai do Jorge, o Amato Lusitano, fixou-se em Luanda, na Maianga. Como tinha o curso do magistério primário, e havia falta de professores, não lhe foi difícil arranjar emprego. Mas não gostava de ensinar.

– Era uma homem de ação, e um gajo da noite, o meu pai. Não tinha pachorra para os putos da escola nem para os inspetores escolares  nem muito menos para os filhos. Por outro lado, amava os grandes espaços, as chanas e os desertos... Eu nasci, como te disse, antes do final da guerra…

– Um pai ausente ?!... – insinuei eu.

– Sim, em boa verdade, cresci sem pai, sem o afeto, o colinho, de um pai. A minha mãe sofreu muito com as escapadelas e as infidelidades dele... Ela, sim,  era uma verdadeira matriarca, uma mulher de forte personalidade, uma verdadeira angolana... Fiz o 7º ano no antigo Liceu Salvador Correia. E depois vim para Lisboa, para casa dos meus tios-avós maternos, que tinham um palacete na avenida da República, e que eram muito católicos. Viviam bem. Um deles era cónego da Sé e muito influente junto do Cardeal Cerejeira. Em contacto com a malta do colégio Pio XII e da JUC, aproximei-me da Igreja. E, de repente, no meu 2º ano de agronomia, tive uma coisa parva, daquelas que não têm explicação, uma crise mística, senti que Deus me chamava para padre e me confiava a grande missão de salvar a humanidade...

– Porra, uma vocação tardia?!... – interrompi eu.

– Sim, se quiseres... Entrei com facilidade no Seminário Maior, com a bênção do tio-avô cónego e do Cardeal Cerejeira, que me tratava por "meu filho"... Ainda me lembro de ter ido lá ao palácio dele, o palácio do patriarcado,  ali no Campo de Santana,  se não erro,  fui ao beija-mão com o meu tio-avô cónego...

– Mas foi sol de pouca dura, não ?!... Refiro-me à crise mística...

– Fiz dois anos de teologia, como sabes. Nas férias grandes, não resisti ao pecado da carne. Andei enrolado com uma gaja francesa que, ainda por cima, me pregou um valente "esquentamento". 

– Acontecia aos melhores. E depois ?...

– Já não era o primeiro, para quem, como eu, nascera e  crescera em África... Lá havia maior liberdade de costumes. Ou, se quiseres, maior promiscuidade sexual... Andava-se nos musseques com segurança, pelo menos até ao final de 1960...Enfim, perdi a vontade de salvar a humanidade, deixei de ouvir a voz de Deus a chamar-me, senti-me expulso do Paraíso como o  Adão,  ao ver o meu diretor espiritual a apontar-me o dedo e a por-me fora do seu gabinete... Fiquei especado no meio do corredor!... Ingénuo, havia lhe contado tudo, desculpando-me que  a carne era fraca, que eu era pecador, para mais impenitente, incapaz de mostrar arrependimento.... 

– Estou a imaginar a cena!... Foi aí que saíste.

– Não me expulsaram, tinha boas cunhas. Eu é que tomei a iniciativa de sair, fiz as malas e nem disse adeus àquele ninho de lacraus, de mentes perversas e falsos moralistas... Foi aí, que começou a debandada, poucos do meu tempo chegaram a padre, se é que chegou algum, com os ventos do Vaticano II a soprarem já forte. Claro, passei por uma crise de identidade, andei na noite de Lisboa e, para curar-me, acabei por ir para a tropa e alistar-me como voluntário nos paraquedistas. Mas chumbei. E foi um duro golpe na minha autoestima...

– Abreviando a história, foste para a Guiné como alferes miliciano...

– De cavalaria, imagina!

O Jorge, depois de mais um gole, da segunda rodada de aguardente DOC Lourinhã, explicou-me o que eu já adivinhava: o tio-avô cónego, a rogo da sua avô materna (em Lisboa) e da sua mãe (em Luanda), conseguiu "dar um jeitinho", através de capelão-mor das Forças Armadas.

– Afinal, cunhas sempre as houve... – atalhei eu.

– Acabei por ir, em rendição individual, não já para um esquadrão de cavalaria, que era em Bula ou Bafatá, não me lembro, e ficar no Quartel Geral, na Amura, a lidar com mapas e papéis... Um tédio, como deves imaginar, para um gajo que sonhava com os paraquedistas!... O que me valia era a 5ª Rep, o Café Bento, onde passava uma boa parte do dia... Ainda te lembras, do Bento, junto à Amura ? Era o maior "mentidero" da Guiné...

E continuou a sua narrativa:

– Fui de férias em julho de 1970, e aproveitei para dar um salto a Luanda, para matar saudades da minha cidade, da minha mãe, restante família e amigos, incluindo alguns dos antigos condiscípulos do liceu, que ainda restavam, poucos, por lá, e que eu não via há vários anos, desde que fora para Lisboa estudar... Uns estavam na tropa, outros na guerra, de um lado ou do outro... Um ou outro, mestiço, iria  chegar mesmo a general nas FAPLA na segunda guerra da independência.

Bissau, comparada com Luanda, nessa época, era uma vilória. Luanda crescera com a guerra e sobretudo com o notável desenvolvimento económico dos anos 60, coincidindo com a guerra (que não chegava lá). Era das cidades mais prósperas e animadas de toda a África...


– Devias ter conhecido Luanda nessa altura!...– fez-me ele inveja.

Foi então que o Jorge Levi travou conhecimento com uma brasileira do Rio de Janeiro (ou de São Paulo, já não posso precisar), a Zinha, que tinha vindo de Paris, com o Maio de 68 no currículo. E um curso de ciências sociais, creio que etnologia, mal tirado na Sorbonne.

Embora fosse filha de "coronel" (o pai era um grande fazendeiro no Nordeste), a Zinha lutava contra a ditadura militar, como de resto muitos dos jovens universitários, artistas e intelectuais brasileiros dessa época. Em trânsito por Luanda, a brasileira queria viajar para o sul de Angola e para a Namíbia, para fazer um trabalho de pesquisa sobre os ovambos, com uma tradição histórica de resistência à colonização europeia, alemã,inglesa e portuguesa... Mas as autoridades portuguesas e sul-africanas cortaram-lhe as asas e as veleidades…

– Mal a conheci, fiquei seduzido pelo seu "canto de sereia". Passei com ela um mês maravilhoso na ilha de Luanda e no Mussulo... Chamava-lhe a "garota de Ipanema", estava então na moda a canção do Tom Jobim e Vinícius de Morais... 

– Estou a ver o filme... Acabadas as férias...

– Quando chegou a hora de voltar a Bissau e ao tédio da minha Rep, na Amura, ela conseguiu convencer-me a acompanhá-la até Durban, onde dizia que tinha amigos, de origem indiana, ativistas políticos. Queria conhecer o pulsar da luta contra o apartheid... Tomámos um avião e acabámos por aterrar... no Rio de Janeiro, onde ela possuía um apartamento, ainda do tempo de estudante. 

Pôs a mão na testa, e exclamou:

– Porra, eu devia estar muito bêbado!... E estava. Sem me dar conta, acabava de me tornar desertor do exército colonial... Que leviandade!... Há amigos e familiares meus que nunca acreditaram nesta história do arco da velha, e continuam a pensar que eu desertei por razões políticas.

– A sério ?!... Não tiveste noção da gravidade dessa tua levi...andade ? Durban ou Rio de Janeiro, a distância era a mesma de Bissau.


– Em boa verdade, eu era um puto mimado... nesse tempo. Acredita, não tinha qualquer intenção de desertar, nem tinha razões para isso: estava em Bissau, no bem-bom, na chamada guerra do ar condicionado... Nunca tinha saído de Bissau, fora de Bissau só conhecia a estrada para Bissalanca... Nem sequer cheguei a ir a Nhacra comer ostras e camarões...

– Em conclusão,  um acidente de percurso.

– Nem mais: enganei-me no avião!

– E os teus pais e restante família ?

 Claro, a minha mãe, quando o soube, ficou fula comigo. O meu pai, esse, nem chegou a saber. Estava já separado da minha mãe e era-lhe indiferente saber o que eu fazia ou deixava de fazer. Recordo-me de ele me dizer quando fiz os meus 18 anos: "Agora és maior e vacinado, toma bem conta de ti, que eu não duro para sempre".  

E prosseguiu:

– O meu avô, paterno, esse, teria ficado radiante, se ainda fosse vivo. O meu avô materno, por seu lado, mal o conhecia, pouco íamos à fazendo dele no Uíge, por causa da distância... Deixámos de lá ir depois de 1961, com a guerra... O meu avô vinha a Luanda, uma vez por outra, mas aborrecia-se logo. Ele não era da cidade, era um homem do mato. E tinha, à boa maneira angolana, várias famílias... e eu terei ainda, seguramente, por lá, largas dezenas de tios e primos...

– E como foi depois a vida no Brasil ?

– Um ano depois, ou nem tanto, a minha fogosa companheira passou à clandestinidade... Desapareceu, pura e simplesmente... Deixou-me um bilhetinho na porta da geladeira: "Amo-te muito, mas mais a liberdade do meu Brasil. Ti cuida. Ciao”.

– Tiveste que ir à vida... ou melhor, ir à procura doutra  "garota de Ipanema"...


– Não gozes, tem pena de mim... Tive uma enorme dor de corno, porque o PCB, o Partido Comunista Brasileiro,  roubara-me a namorada... Talvez tenha sido..."a mulher da minha vida", se bem que eu nunca casaria com ela... A pobre da Zinha será encontrada, mais tarde, penso que já em 1973, morta com um tiro na nuca, nua, violada, na lixeira de uma favela... Pelo que consegui apurar, mais tarde, fora executada por um esquadrão da morte.

– Porra, lamento muito!... 

E depois de uma pausa:

– Foi então que te mudaste para São Paulo...

– Mudei de ares, e em boa verdade precisava de ganhar dinheiro... O
 patacão da guerra e a mesada da mamã (na realidade do avô do Uige, que cedo recuperou a fazenda depois dos trágicos acontecimentos do 15 de março de 1961 e montou um grupo de milícias de autodefesa)  haviam-se acabado há muito... Mudei-me para São Paulo... Lá conheci gente, portugueses, que se opunham ao regime do Estado Novo e à guerra colonial, incluindo alguns marinheiros que haviam desertado em França... Um deles abriu-me as portas do mundo dos computadores..., coisa de que eu nunca ouvira falar.

Nessa altura estava já em grande expansão, a mecanografia, as "main frames" e a informática de gestão. O Jorge Levi encontrou emprego numa conhecida multinacional, de origem francesa. Depressa aprendeu o essencial do negócio ... Acabou por abrir uma empresa de importação de equipamentos informáticos... Mais tarde, negociaria também em armamento, e em equipamentos eletrónicos para fins militares (carros de combate, transmissões, sistemas de defesa anti-aérea, etc.). Tudo de origem francesa. 

   Um salto de gigante, Jorge, temos de concordar.

Não se abriu comigo sobre esse período mais "obscuro" da sua vida, em que, segundo me deu a entender, terá chegado a vender a alma ao diabo... Pudor ? Má consciência ? Sigilo ? 

– Sabes como é, o segredo é a alma do negócio e em países como Angola os negócios de guerra são segredo de Estado... Posso só acrescentar que fiz algumas coisas que envergonhariam o meu avô paterno (para não falar do meu pai, que esse deixou cedo, em Barcelona,  a bandeira preta da revolução, o gajo era anarquista, como te disse)... Negociei com ditaduras militares latino-americanas... mas também com os cubanos, os angolanos, os franceses e por aí fora...

Muitos anos depois, vou encontrá-lo, ao Jorge Levi,  no centro de Luanda, por um bambúrrio, por um feliz acaso da sorte.  Combinámos um encontro no Coconuts, no outro  dia  
As suas feições não tinham mudado muito, apesar do tempo decorrido...

– Como o Mundo é Pequeno!...

Dessa vez, na praia à frente ao Coconuts, pus-me a mirá-lo de perfil, e reconhecê-lo por detalhes como o  nariz aquilino e o olho azul, de judeu sefardita, com provável ascendência holandesa… Os seus antepassados, cristãos-novos, terão ido para Amesterdão no séc. XVII. Alguns, poucos, ainda regressariam a Portugal, duzentos e tal anos depois, na segunda metade do séc. XIX, com o triunfo do liberalismo...


Embora discreto nesta matéria, dava então a entender que tinha bons conhecimentos no MPLA e até na "entourage do Edu" (ou do "nosso mais velho", como se dizia respeitosamente nessa época, em Luanda)... Tinha também boas ligações aos franceses e até aos russos, depois da queda do muro de Berlim. Não tinha, de resto, grandes preconceitos, de natureza político-ideológica, cultural, ética ou religiosa, quando se tratava de "negócios... sujos", mas "chorudos" como os da indústria da guerra.

– Que o meu avô me perdoe!– e levantava as mãos aos céus, esquecendo-se que o avô era ateu ou agnóstico..


Nunca mais voltara a Portugal, a não ser a seguir ao 25 de Abril, para regularizar a sua situação militar e pedir um passaporte. Beneficiou da amnistia aos refractários e desertores. Tinha tripla nacionalidade, angolana, portuguesa e brasileira... Era tratado como VIP na terra onde, de resto, nascera... 

Fez questão de lembrar que dois generais, que se notabilizaram na tal segunda guerra da independência, andaram inclusive com ele no liceu Salvador Correia... Um deles ajudou-o a recuperar a casa da mãe, na Maianga, ocupada a seguir à Independência ou ao 27 de Maio de 1976...

No dia seguinte ao nosso encontro, ele ia deslocar-se ao Huambo para prestar uma discreta homenagem ao seu saudoso avô. Apesar da guerra, e da destruição da cidade, os seus ossos ainda lá estavam, no cemitério local. Mandara compôr e ajardinar a campa que, milagrosamente, escapara à sanha dos homens da UNITA. Tinha lá um antigo empregado que zelava pela boa memória do patrão Levi...

– Ele era do MPLA, o teu avô ?

– Se sim, nunca mo disse abertamente... Era um nacionalista, isso sim.  Se quiseres, era o que se chamava um "compagnon de route", um companheiro de estrada... Mas como era branco, "tuga", e era funcionário público,com uma boa casa e uma boa horta, e tinha uma família numerosa para sustentar, incluindo criados (que ele considerava como parte integrante da família), nunca tomou posições públicas que o comprometessem aos olhos das autoridades portuguesas, e nomeadamente da PIDE, que certamente o vigiava, embora discretamente, em Nova Lisboa. Claro, apoiou Norton de Matos, Humberto Delgado...

E esclareceu:

– Nunca fui (nem já irei) à Torre do Tombo, tendo estado a viver fora de Portugal estes anos todos, mas é bem possível que o meu avô tivesse ficha na PIDE... Apesar de ser um herói da I Guerra Mundial, com uma cruz de guerra... Mas era amigo de muitos futuros nacionalistas angolanos... Ele ensinou a ler e a escrever a alguns dos melhores quadros e dirigentes, da região do planalto, não só do MPLA como da UNITA...

Em tom de desabafo, e com toda a sinceridade, o Jorge confidenciou-me:

– O meu querido avô não chegou (e ainda bem) a conhecer a independência da terra que ele tanto amava e que fez sua. Muito menos passou pela provação da devastadora guerra civil que se seguiu...  Morreu cedo, ia fazer setenta anos, em 1965. Teria morrido de desgosto, se visse os angolanos a matarem-se uns aos outros, com russos, cubanos e sul-africanos pelo meio. E se soubesse que o seu neto querido também havia contribuído, indiretamente, para isso...

– E o teu pai ? Os teus pais ? 


– Do meu pai perdi-lhe o rasto, disseram-me que se tinha radicado na África do Sul, logo a seguir ao 25 de Abril ou já depois da Independência, ninguém me soube dizer ao certo. Vivia com uma "cabrita"... As nossas relações sempre foram distantes, para não dizer difíceis. Para mim, morrera há muito... Na realidade, ele  já morreu  há uns bons anos atrás
, na África do Sul, mais ou menos com a idade que eu tenho hoje...  Nem sequer o vi, quando estive de férias da Guiné, em 1970. A minha mãe, essa, é retornada, não é assim que vocês dizem, aqui no "Puto" ?!... Ainda é viva, com 90 anos feitos, vive com uma das filhas... Uma grande senhora! Eu chamava-lhe a "rainha do Congo"... Portuguesa dos quatro costados, saudosa do império, salazarista, católica, apostólica, romana!... Mas uma santa, com lugar garantido no céu!

– E tu ?... Afinal, o que vais levar desta vida ? Ou contar ao São Pedro, à hora de lhe bateres à porta ? 
– insisti eu, com humor e ironia.

– Depois da nossa conversa, longa mas agradável, aqui à beira-mar, na Ericeira (de que já não me lembrava de nada), e depois da tua aguardente, que não fica atrás do "cognac" dos franceses, cheguei a esta conclusão definitivamente provisória ou provisoriamente definitiva....

– Fiquemos pelo definitivamente provisório...

– Como queiras... Eu é que não consigo imaginar outro guião para o filme da minha vida. Fui de tudo um pouco: santo e canalha, herói e cobarde, místico e safado, rico e pobre... Já não sou o gajo que  tu conheceste nos anos sessenta e tal, e que voltaste a encontrar em 2004 ... Depois disso, a vida tem-me corrido mal, a começar pela saúde, pelo amor e pelos negócios... Se a história fosse outra, eu hoje não saberia dizer quem sou ou quem fui... Estaria no divã do psiquiatra, com uma tremenda crise de identidade... É pena que um gajo não tenha uma segunda oportunidade...  Aí juro-te, que seria santo!

 Afinal, a vida é uma peça de teatro  e não somos nós que a escrevemos – tentei eu amenizar a conversa.

 –  E eu, sem nunca ter sido um gajo genial, acho que até nem  fui mau ator de todo...

– Não, não fostes nenhum canastrão! – arrematei eu. – A não ser porventura daquela vez em que foste levado pela "garota de Ipanema" a desertar do exército colonial... O maior problema de pessoas como tu, com uma vida 
– como eu hei de dizer ? 
,  tão cheia, tão preenchida, é como saber sair de cena, sair do palco e das luzes da ribalta, com dignidade, discrição, estilo, humanidade... e humildade.

E em jeito de conclusão, ainda meti a minha colherada:

Aliás, é o nosso problema, meu e teu: como é que a gente aprende a despedir-se, com tempo e vagar, da Terra da Alegria, para citar o meu poeta preferido, o Ruy Belo, que também era das Católicas, acho até que foi da "Opus Dei" ?!...

– Não concluis nada, porque esse vai ser privilégio meu... Não me levas a mal, mas eu faço questão de pagar  a conta, mesmo estando tu na tua casa, que também é minha... Foi a conversa mais agradável e inteligente que eu já tive nestes últimos anos. E a caldeirada estava deliciosa. Estou-te muito grato por isso!  Deste-me vida e ganas de voltar a viver.

E não esteve com meias medidas, sem me dar tempo de reagir, puxou de um maço de notas, gesto que eu já tinha  visto em 2004, no Coconuts, pagou a conta e deixou uma boa gorjeta. 

Não voltei a vê-lo, ao Jorge Levi. E o meu último mail, enviado para a caixa de correio da sua conta no Brasil,  foi devolvido há uns largos meses atrás, sinal de mau augúrio. Onde quem quer que ele agora esteja,  espero que ainda me possa ler, e se ria das "baboseiras" que aqui escrevi a seu respeito, uns anos depois... 

Mas juro que é a verdade e só a verdade, mesmo que nomes de pessoas e de lugares possam eventualmente estar trocados, para respeitar o direito,  do  "mô camba", meu amigo, condiscípulo e camarada Levi, ao esquecimento... É o último direito, que ele e eu temos, o direito ao esquecimento.

© Luís Graça (2022)

Lourinhã, agosto de 2019. 
Revisto, 3 de março de 2023.
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Nota do editor:

Último poste da série > 29 de agosto de 2021 > Guiné 61/74 - P22497: A galeria dos meus heróis (43): De companheiros de infortúnio a amigos para a vida - III (e última) Parte (Luís Graça)