Blogue coletivo, criado por Luís Graça. Objetivo: ajudar os antigos combatentes a reconstituir o "puzzle" da memória da guerra colonial/guerra do ultramar (e da Guiné, em particular). Iniciado em 2004, é a maior rede social na Net, em português, centrada na experiência pessoal de uma guerra. Como camaradas que são, tratam-se por tu, e gostam de dizer: "O Mundo é Pequeno e a nossa Tabanca... é Grande". Coeditores: C. Vinhal, E. Magalhães Ribeiro, V. Briote, J. Araújo.
segunda-feira, 3 de julho de 2023
Guiné 61/74 - P24448: Notas de leitura (1594): "Mariazinha em África, o bestseller de Fernanda de Castro com ilustrações de Ofélia Marques (1) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 Fevereiro de 2021:
Queridos amigos,
Fernanda de Castro teve para este best seller da literatura infantojuvenil colonial duas ilustradoras topo de gama da chamada segunda geração do Modernismo português: Sarah Afonso e Ofélia Marques, a primeira de um grande ecletismo, desde a pintura de trabalhos artesanais, a segunda inequivocamente uma grande ilustradora, aguarelista exímia, e de uma obra complexa, onde pôs a nu aspetos da sua vida íntima. O livro de Fernanda de Castro foi estudado não exclusivamente pelas razões do seu sucesso mas pelo significado da evolução das representações coloniais, é do maior interesse acompanhar o olhar da autora sobre o guineense, selvagem ou ingénuo, criado fiel, sempre atrapalhado com a linguagem, as mostras do deslumbramento pelo feitiço africano, e a memória autobiográfica que a autora jamais escondeu, ficou-lhe uma saudade enorme daquela Guiné onde lhe morreu a mãe em Bolama e aonde ela retorna numa poesia vibrátil, de grande poder evocativo, caso do livro África Raiz, já na década de 1960. É desta parceria entre Fernanda de Castro e Ofélia Marques que aqui se presta esta homenagem.
Um abraço do
Mário
Mariazinha em África, o bestseller de Fernanda de Castro com ilustrações de Ofélia Marques (1)
Mário Beja Santos
Em termos de literatura infantil de caráter colonial, não houve obra que competisse com as dez edições que conheceu "Mariazinha em África", obra de Fernanda de Castro. A primeira edição foi de 1925, teve desenhos de Sarah Afonso, a edição de 1940 e a seguinte, de 1947, teve desenhos de Ofélia Marques. Fernanda de Castro nunca escondeu que este livro era marcadamente autobiográfico, em pequena acompanhou a mãe e foi para Bolama, onde o pai dirigia a capitania. Há algo de catártico nesta história de ternura, a sua mãe morrerá inopinadamente na capital da colónia, Fernanda de Castro dedicar-lhe-á versos de uma grande beleza. De que trata esta consagrada obra de literatura infantil? Mariazinha tem vários irmãos, vamos vê-la em amena conversa com dois deles, Chico e João, Mariazinha dá-lhes conta que vai visitar o pai: “O pai destes meninos era oficial de Marinha, e havia perto de três anos que estava em África, na Guiné portuguesa, em comissão do Governo. Em todas as cartas mandava dizer que tinha muitas saudades da mulher e dos filhos e, um dia, acabada quase a época das chuvas, pediu à mulher que fosse passar uns meses com ele e que levasse Mariazinha, que era a mais velha, e Afonsinho, que era o mais novo, e não podia ainda separar-se da Mãe”. E começa a azáfama dos preparativos, sobretudo da roupa adequada aos trópicos, a mãe não esconde a inquietação de deixar os filhos, mas terá que ser.
Escolhi este desenho da partida porque nos dá conta do profundo talento de Ofélia Marques, ela aparece sempre classificada como uma exímia desenhadora de crianças, de traço seguríssimo, esculpindo imagens de desvelo e ternura, pois o que vemos neste seu primeiro desenho é uma justa proporção, o perfeito equilíbrio entre aqueles seres humanos que acenam em terra e no navio, a imagem fica completa com outro barco lá ao fundo e com as mercadorias e a própria figura do estivador que se agiganta diante de uma pequena multidão. Uma imagem com tudo o que é indispensável para nos falar de uma partida ali para os lados do Cais de Alcântara.
Mariazinha é irrequieta e travessa, sempre curiosa, começa por ter enjoos, passam depressa. Faz imensas perguntas à tripulação, no mar vê grandes animais luzidios que davam saltos e pergunta se são tubarões, afinal era toninhas, e fala-se de peixes voadores, quando se mostra uma lanterna, eles saltam e caem a nossos pés, no convés, e vemos na segunda imagem Mariazinha a olhar surpresa para o trabalho do marinheiro que parece estar a praticar a pesca do candeio, atenda-se ao fulgor que desponta da escuridão, na justa medida da luz que rompe da escuridão. E chega-se a terras de África, entra-se no canal do Geba, um rebocador traz pilotos que ajudam a navegar em segurança e assim se entra em Bissau onde o pai os espera e partem todos para Bolama.
E assomam outros motivos de curiosidade quando chegam a casa, foi-lhe preparado um quarto que Fernanda de Castro descreve assim:
“Era um lindo quarto pintado de azul, com uma porta para o jardim. A cama era de metal amarelo e tinha um colchão de arame. Nada ali faltava, nem mesmo uma secretária com tinteiro, papel de carta, mata-borrão e uma caneta de tinta permanente! Numa pequena estante, muito bem arrumados, estavam uns poucos de livros de aventuras, um dicionário Larousse Ilustrado e uma História de Portugal, em dois volumes. Mas o que a mais surpreendeu foi uma espécie de cortinado de tule que estava enrolado no teto, mesmo por cima da cama”. Era um mosquiteiro. Atenda-se às representações coloniais que nas sucessivas edições a autora foi polindo, por imposição do politicamente correto.
Aparecem os empregados da casa: Lanhano, um preto fardado de branco, com uma risca muito bem feita na carapinha; Adolfo, bom rapaz mas não vê dois palmos diante do nariz, Undôko, o jardineiro, trabalhador, fiel, boa pessoa mas é como os crocodilos: tem dentes a mais; Mamadi, filho de um dos régulos mais ricos da Guiné, estava lá em casa para aprender o português e para entreter o Afonso; e o cozinheiro Vicente, dele se dá imagem que fala uma língua de trapos, é muito engraçado e ingénuo.
Começam as aventuras naquela terra cheia de calor onde se fazia a cesta entre as onze da manhã e as três da tarde. A menina faz perguntas aos criados, vêm as respostas num português mascavado. “No jardim havia um mirante alto, uma espécie de caramanchão coberto de trepadeiras, alguns metros do solo, onde corria sempre uma leve aragem e onde Mariazinha costumava instalar-se para ler ou para estudar. Subiu as escadas do Mirante, seguida pelo cão Guiné, e instalou-se confortavelmente. Mas não tinha ainda lido três páginas quando um barulho ensurdecedor lhe chamou a atenção… Curiosa, espreitou para a rua através das trepadeiras. Dezenas de pretos, soltando gritos agudos, desciam a rua numa algazarra infernal. Traziam nas mãos grandes folhas de palmeiras e, ágeis como macacos, faziam extravagantes cabriolas”. Nova preciosidade de Ofélia Marques, o equilíbrio do conjunto de autóctones, a menina no alto, a economia de dois arbustos para marcarem as bermas da imagem garantem uma leitura pronta em toda a sua amplitude. Mesmo nas imagens mais pequenas o poder imaginativo de Ofélia Marques parece inesgotável. Mariazinha conhece Ana Maria, a filha do governador. Farão a viagem de automóvel bem acidentada, acabam por ser transportadas por quatro pretos robustos, já que o chão estava completamente enlameado, e Ofélia Marques desenha o que é preciso ver: dois transportadores, as meninas repimpadas, um pedaço de vegetação onde até aparecem catos e uma ave voa ao fundo do lado esquerdo, nada mais é preciso.
Haverá depois um passeio no mato, irão até ao Oio, os adultos vão preparados para uma caçada, a viagem é deslumbrante, vêm arrozais a perder de vista, depois a paisagem muda, surge o capim alto, uma fauna perigosa e hostil por ali proliferava e rastejava. Há uma avaria, põe-se o problema da gasolina, as meninas quase desfalecem porque precisam urgentemente de água, surgem cocos e depois chega uma caravana salvadora. Haverá uma caçada a valer, as meninas conversam com nativos, que admirados olham para aquelas meninas brancas. No acampamento há um ataque de formigas, tudo se resolve e na manhã seguinte partem para Farim. “Passaram o dia a ler, a dormir, a jogar o crapeau, a pôr talco nas mordeduras das formigas. À noite, foram para a cama com as galinhas. E na manhã seguinte, bem repousadas, partiram para Bolama, onde a mãe de Mariazinha começava a estar inquieta".
Para o leitor mais interessado no estudo das representações coloniais desta obra, recomenda-se o trabalho de Margarida Isabel Melo Beirão intitulado Mariazinha em África, de Fernanda de Castro – Representações coloniais, tese de Mestrado do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, 2018: https://ria.ua.pt/bitstream/10773/25216/1/Documento.pdf.
(continua)
Na antiga Calçada dos Caetanos, hoje Rua João Pereira da Rosa, muito perto do edifício da Liga dos Combatentes, que foi a habitação da escritora Ana de Castro Osório, perfila-se um prédio onde viveram Oliveira Martins, Ramalho Ortigão, José Gomes Ferreira, Fernanda de Castro e António Ferro, Ofélia Marques e Bernardo Marques. Lá em baixo é a Rua do Século e lá em cima o Conservatório Naiconal e a Igreja dos Inglezinhos. Felizmente que todo este património arquitetónico está classificado. ____________
Nota do editor
Último poste da série de 30 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24442: Notas de leitura (1593): Flora da Guiné-Bissau (2) (Mário Beja Santos)
Guiné 61/74 - P24447: Casos: a verdade sobre... (34): A CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72), comandada pelo cap inf Augusto José Monteiro Valente (1944-2012), e depois maj gen ref, que embarcou para o CTIG sem três alferes (que terão desertado) e durante a IAO ficou sem o último, por motivos disciplinares...
1. Quem ler o resumo da história da CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 1970/72) não se apercebe do "drama" do seu pessoal e do seu comandante... Esta subunidade partiu para a Guiné, no T/T Carvalho Araújo, em 19 de setembro de 1970, desfalcada de três dos seus quatro oficiais subalternos: não compareceram ao embarque, por razões que desconhecemos (ou melhor: "desertaram", segundo a cópia da história da unidade que possuímos, com anotações manuscritas, que presumimos serem da autoria do seu antigo comandante, falecido aos 68 anos como maj gen ref, Augusto José Monteiro Valente).
Quando estava a fazer a IAO (Instrução de Aperfeiçoamento Operacional), no CIM de Bolama (instrução que terminou a 30 de outubro de 1970), o seu único alferes, miliciano, e para mais com a especialidade de operações especiais, foi transferido no dia 22 desse mês e ano, por motivos disciplinares.
Quando a companhia estava pronta, em 16 de novembro de 1970, para embarcar em LDM paar Bissau e depois para o sector que lhe foram destinado no sul da Guiné (Catió e Cabedú), não tinha oficiais subalternos... Uma situação anómala e talvezs inédita... Mas os problemas de pessoal não ficaram só por aqui... Leia-se este excerto da história da unidade, cap I, pág. 61:
(...) CONCLUSÃO:
1. No aspeto de pessoal, a Companhia começou a sua vida na Guiné bastante mal, dada a falta de três oficiais com que embarou na Metrópole, situação agravada posteriormente por o único subalterno presente ter sido transferido por motivo discxiplinar
En consequéncia a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional (IAO) descorreu sem subalternos. Estes só começaram a chegar quando a subuniddaes entrou em Sector.
Felizmente o espírito de corpo e de disciplina das praças era bastante forte e os sargentos chamados ao comando dos Grupos de Combate revelaram-se competentes para o cargo-. A Compamhia,apesar das dificuldades por que passou no início, manteve-se coesa e disciplinada.
2. Ao longo da comissão a Companhia foi sendo privada de furriéis quer, pelas suas suas qualidades, foram colocados em diligênnci em subunidades africanas. Para ocupar as suas vagas foram chegando furriéis recém-vindos da Metrópole, sem contacto com tropas e que colocados de repente no comando de militares já com meses de comissão, afetariam necessariamente o ritmo da atividade da Companhia.
3. Uma companhyia, se se pretende seja eficiente, não pode ser ser constituída só por 144 praças, 17 sargentos e 5 oficiais; é necesaário, além disso, que estes homens formem uma "unidade, que se conheçam uns aos outros, que se estimem e amem mutuamente, o que náo pode ser conseguido com mudanças frequentes do pessoal que a constitui. (...) (*)2. Ficha da unidade: Companhia de Caçadores n." 2792
Identificação: CCaç 2792
Unidade Mob: RI 16 - Évora
Crndt: Cap Inf Augusto José Monteiro Valente (**)
Divisa: - "P'rá Frente"
Partida: Embarque em 19Set70; desembarque em 020ut70 | Regresso: Embarque em 08Set72
Síntese da Actividade Operacional
Após ter realizado a IAO, de 05 a 310ut70, e ainda efectuado o treino operacional, de 01 a 15Nov70, no CIM, em Bolama, seguiu, por fracções, em 18Nov70 e 04Dez70, para Catió e Cabedú.
Em 06Dez70, rendendo a CArt 2476, assumiu a responsabilidade do subsector de Catió, com dois pelotões no destacamento de Cabedú, ficando integrada no dispositivo e manobra do BArt 2865 e depois do BCaç 2930, tendo sofrido várias flagelações aos aquartelamentos e executado patrulhamentos, emboscadas e contactos com as populações.
Em 21Ago72, foi rendida no subsector de Catió pela CArt 6251/72, tendo-se deslocado por fracções, em 13Ago72 e 23Ago72, para Bissau, a fim de aguardar o embarque de regresso.
Observações - Tem História da Unidade (Caixa n.º 87 - 2ª Div/4ª Sec, do AHM).
Fonte: Excertos de Portugal. Estado-Maior do Exército. Comissão para o Estudo das Campanhas de África, 1961-1974 [CECA] - Resenha Histórico-Militar das Campanhas de África (1961-1974). 7.º volume: Fichas das Unidades. Tomo II: Guiné. Lisboa: 2002, pág. 397.3. Cópia da história da unidade que me chegou às mãos com o carimbo do Centro de Documentação 25 de Abril / Universidade de Coimbra
Companhia de Caçadores 2792- História da Unidade. Província da Guiné. Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra. Espólio 186. Nº 8165. Oferta do general Augusto Valente. (Excerto, manuscrito, pág. 3/I)
Nota manuscrita, pág. 4/I: "144 praças | 17 sargentos | 05 oficiais. Â partida faltavam 3 oficiais (que desertaram)". (Segundo informação da história da unidade, a Companhia era "constituída por militares naturais de diversas províncias metropolitanas, sendo contudo as maiores percentagens constituídas por militares naturais das regiões a Norte do Rio Douro e a Sul do Rio Tejo", pág. 3/I).Não sei se as notas manuscritas, aqui reproduzidas, são do punho do maj gen ref Augusto José Monteiro Valente (1944-2012). Julgo que foi um antigo aluno meu, pessoa que muito estimo, o médico do trabalho Joaquim Pinho, da região centro, que me facultou, há uns anos atrás, cópia (não integral) desta história da CCAÇ 2792. Em 05/08/2022, 14:45, enviou-me, por email, a seguinte mensagem (de que se transcrevem alguns excertos)
Caro Doutor: Aqui estou, sempre que souber algo relevante de ex-combatentes da Guiné...
Em 31 de janeiro faleceu no Porto, de "doença prolongada" , o Furriel Miliciano Ranger e de Minas e Armadilhas, Licinio Cabral, da CCAÇ 2792 (Catió e Cabedú, 70-72)...
Dados da CÇAÇ 2792 foram oferecidos (ao Centro de Documentação 25 de Abril e são de acesso livre), em vida, pelo então general Augusto Valente, ex-MFA, com papel de relevo nos acontecimentos do 25 de Abril, na Guarda (RI 12) e Vilar Formoso (PIDE/DGS), bem como no pós- 25 de Abril, ex Comandante da GNR, licenciado em História pela Univer5sidade de Coimbra, etc. (...).
(*) Último poste da série > 16 de janeiro de 2023 > Guiné 61/74 - P23988: Casos: a verdade sobre... (33): Vitorino Costa, o primeiro comandante da guerrilha, formado em Pequim em 1961, a ser morto pelas NT em meados de 1962
Guiné 61/74 - P24446: De volta às montanhas de Liquiçá, Timor Leste, por mor da Escola de São Francisco de Assis, em Boebau (4.ª estadia, 2023): crónicas de Rui Chamusco / ASTIL (excertos). Parte I, 19 e 21 de março de 2023
Timor Leste > Escola São Francisco de Assis (ESFA), em Boebau, Manati, Liquiçá, inaugurada em 2018. Foto de cronologia da página do Facebook da ASTIL - Associação dos Amigos Solidários com Timor Leste (com a devida vénia...)
Todo vosso, Rui Chamusco" (..:)
Foto (e legenda): © Luís Graça (2017). Todos os direitos reservados. [Edição: Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
Chegou finalmente o dia da comemoração do 5.º aniversário da inauguração da ESFA.
Muita ansiedade, alguma preocupação sobre a viagem, grande azáfama em preparar o evento. À hora marcada, frente ao Hotel Timor, em Dili, lá estamos nós (Eustáquio, Mário Louro, Mariana, Adobe, Monizia e eu) prontos para acolher a chegada da Sra. Embaixadora que, passados alguns minutos se fez presente.
A partir da escola Cafe de Liquiçá, começa a grande aventura do caminho até Boebau. Um percurso com muitos precalços, buracos e e mais buracos, pedras inesperadas, lamas escorregadias, curvas e contracurvas, subidas e descidas arrepiantes, pessoas e animais ocupando as vias já de si estreitas e perigosas. Um autêntico “cabo das tormentas”. Compensavam-nos as paisagens deslumbrantes que se estendiam por montes e vales. Valeu-nos a perícia dos motoristas, com destaque para o senhor João que nos safou de situações embaraçosas.
E por fim, chegamos a , a terra prometida. Uma grande emoção de aqui voltar. Ambiente de festa em frente da escola, com o povo e sobretudo as crianças com os rituais de acolhimento caracteríticos (danças, imposição dos tais, ramos de flores, palmas, beijos e abraços. Muita emoção e algumas lágrimas impossível de conter.
Depois, o ritual muito próprio desta região: oferta de areka, folha de malus e cal para mascar, ou tabaco para inalar. Seguem-se os discursos de boas vindas e os discursos dos convidados. Sobre a mesa, são colocados cocos que o Cesáreo foi colher e prepar e que saborosamente fomos consumindo. Ao som de músicas e canções cantaram-se os “parabéns”, cortou-see distribui-se o bolo. É uma satisfação enorme ver e ouvir estas crianças (e não só) cantar canções portuguesas: o malhão, as modinhas, viva a máusica, etc, etc... Cantam com a alma e o coração.
Depois do almoço, com ementa timorense à qual não faltou uma garrafa de vinho do Porto para o brinde, fzemos a visita à “casa dos professores” , que a Astil de Portugal patrocinou, donde se observam paisagens do outro mundo: montes de Ermera, ribeira de Laoeli, enxtensão do vale até Atabai já junto ao mar. Valeu a pena o esforço dispendido para aqui chegar. Como diz a professora Cristina, “ isto enche-me a alma”.
De regresso à escola, já todo o mundo dançava. Mas foi sobretudo a dança das crianças que nos cativou e levou a associarmo-nos a elas (menos eu que ando coxo).
Depois foi a hora do adeus. Muita gratidão, muitos beijos e abraços, muitos “beija-
mãos” das crianças, e algumas lágrimas. Eu promenti que dentro em pouco vou voltar, e estarei uns dias com eles. Assim o farei.
E agora outra vez a amargura do caminho. Isto é mesmo para gente valente, que saiba suportar tanto baloiço, alguns arrepios, algum cansaço e outras contrariedades.
Mesmo assim, fomos brindados com a paisagem de uma cascata impressionante, que vertia as suas águas em queda até ao caminho por onde passamos. O restante caminho fez-se bem, até Aipêlo e até Dili.
Junto ao Hotel Timor de novo, para agradecermos mais uma vez a visita da sra embaixadora Manuela Bairos e louvarmos a sua coragem e simpatia para connosco.
“ No queremos a un hombre pregonero / Queremos a un hombre / Que se embarre connosotros / Que viva connosotros / Que bebe connosotros el vino en las tabernas. / Los otros no interessan / Los otros no interessan.”
É de gente assim que nós precisamos. Bem haja, Dra Manuela. Não iremos esquecer a sua presença e proximidade. Que São Francisco de Assis a proteja.
Ao percorrermos o trajeto de Ailok Laran para Dili, um percurso penível devido ao mau estado dos caminhos que mais parece a “via dolorosa”, o Eustáquio que tudo faz para evitar os saltos e sobressaltos, muda de direção pensando que o outro caminho seria melhor. Eis então quando, o caminho escolhido estava interrompido. “ Por quê não se pode passar?” perguntei eu. “Parece que há morto ou ‘barlak’ (festa de noivado)”. E vai daí, toca a virar à esquerda à procura de outra solução.
Mais à frente, noutro cruzamento, havia um ferro espetado no chão com um pano
branco a servir de bandeira.
Sempre a aprender, até morrer...
(*) Vd. postes de 2 de outubro de 2017 > Guiné 61/74 - P17814: Ser solidário (204): "Uma escola em Timor" - Parte I: o projeto de construção de uma escola em Manati-Boibau, Liquiçá, Timor Leste... (Rui Chamusco, tabanca de Porto Dinheiro)
domingo, 2 de julho de 2023
Guiné 61/74 - P24445: (In)citações (253): A Grande Conquista (Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887, Canquelifá e Bigene, 1966/68)
A GRANDE CONQUISTA
adão cruz
“A grande conquista”, palavras de António Damásio num dos seus livros, referindo-se à origem dos sentimentos e da consciência, constitui, a meu ver, uma espécie de visão através de um binóculo construído por miríades de pecinhas científicas, da ponte entre o cérebro, a mente, o pensamento e a consciência. Ponte essa, muito difícil de visualizar com o curto alcance dos nossos olhos do dia-a-dia e com a nossa escassa vontade de pensar. Esta é a grande incógnita das Neurociências, cujos contornos há muito se começam a deixar definir. De uma forma extremamente simplista, permitam-me que vos transmita aquilo que vejo através desse tal binóculo que tantos cientistas me emprestaram.
Os primeiros seres unicelulares, viveram isolados, sem conexões, bastando-se a si próprios. A vida foi dando passos muito lentos, contínuos e progressivos, durando cada um deles milhares de milhões de anos. Os seres unicelulares foram-se aproximando, tornaram-se vizinhos, começaram por cumprimentar-se, iniciaram seguidamente ligações e colaborações entre si, transformaram-se em seres grupais, multicelulares, criaram meios de transportes entre eles, sistemas sanguíneos, linfáticos e outros, a fim de levar a cada um deles fluidos contendo alimentos e substâncias químicas, organizaram-se em primitivas colónias chamadas órgãos, e posteriormente em conjuntos de órgãos, empresas denominadas organismos, para os quais tiveram de criar administradores a que se deu o nome de Sistemas Nervosos, os quais passaram a interagir e comunicar com todas os sectores orgânicos por telemóveis e e-mails denominados hormonas e neurotransmissores.
Ao fim de milhares de milhões de anos, o cérebro e todas as estruturas nervosas começaram a ter a capacidade de gerar imagens representativas do mundo exterior, do mundo em seu redor, através dos estímulos sensoriais que lhes chegavam. A existência de imagens só se tornou possível quando os sistemas nervosos atingiram um nível particularmente elevado. Extremamente importante também, foi a capacidade de mapearem no seu interior todo o mundo exterior que os envolvia. O mapeamento destas imagens constitui a pedra basilar da mente. Aquilo que António Damásio chama o “circunjacente”, isto é, o mundo dentro de todo o organismo. Só desta forma, foi possível associar as imagens que foram levadas ao cérebro e a todo o organismo, de tudo o que se passava no seu mundo externo, com as imagens recriadas no seu mundo interno. Todavia, nenhum destes fenómenos é estanque. Tudo faz parte de um Todo, uno e indivisível, inserido numa dinâmica única e imparável. Daqui em diante, a Natureza, nos passos lentos e progressivos de muitos milhares de milhões de anos da Evolução, começou gradualmente a desenvolver a Mente, isto é, a capacidade de integrar, coordenar, gerir e validar toda a informação, cada vez mais complexa, resultante da interacção entre estes dois mundos, cada vez mais um só. A partir daqui, não será difícil entender que esta prodigiosa capacidade das estruturas neurológicas, ao gerar e gerir a portentosa riqueza da memória, do saber e do intelecto seja o berço do Pensamento. E menos difícil ainda será conceber como filhos do Pensamento, o Sentimento, a Consciência, a Reflexão e a Decisão. E não vai levar muito tempo, penso eu, a pormos o binóculo de lado, pelo menos nesta travessia.
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Nota do editor
Último poste da série de 25 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24430: (In)citações (251): "Hoje falamos dela", de Adão Cruz, ex-Alf Mil Médico da CCAÇ 1547 / BCAÇ 1887 (Canquelifá e Bigene, 1966/68)
Guiné 61/74 - P24444: (De)Caras (200): Graduados da segunda e terceira geração da CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1972/74) - II ( e última) Parte: Bambadinca (António Duarte, ex-fur mil, CART 3493 e CCAÇ 12, dez 71/jan 74)
Da esquerda para a direita, temos:
- Fur Garrido; Alf Tavares (II) (Foto nº 5B);
- Fur Emílio Costa; Fur Mec António Lalanda Jorge; Fur António Duarte e Alf Viana (Foto nº 5C).
Fotos: © António Lalande Jorge (2023). Todos os direitos reservados. [Edição e legendagem complementar: António Duarte e Blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné]
1. Segunda (e última) parte da seleção de fotos enviadas pelo António Duarte (ex-fur mil, CART 3493 / BART 3873, Mansambo, 1971/72, e CCAÇ 12, Bambadinca e Xime, 1972/74):
Este último foi delegado de batalhão e pediu para ir para o mato (pertencia à Cart 3492 no Xitole, mas foi colocado na Cart 3493 em Mansambo). Os pais viviam em Bissau, pois o pai era comandante da PSP, havendo a particularidade de falar crioulo correctamente, já que foi criado em Bissau. Veio para Portugal fazer o serviço militar (CSM). Cheguei a falar com ele em Chaves em 1979.
Os Alferes eram atiradores de infantaria e todos os furriéis eram também atiradores de infantaria, excetuando eu próprio que era Atirador de Artilharia. Os primeiros faziam a especialidade em Tavira e eu em Vendas Novas. Obviamente que o Fur Andrade por ser de Op Esp. esteve em Lamego
Bem e é tudo. Se recordar é viver, acho que vamos ser eternos. (...)
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Nota do editor:
(*) Último poste da série > 30 de junho de 2023 > Guiné 61/74 - P24441: (De)Caras (199): Graduados da segunda e terceira geração da CCAÇ 12 (Bambadinca e Xime, 1972/74) - Parte I: Bambadinca (António Duarte, ex-fur mil, CART 3493 e CCAÇ 12, dez 71/jan 74)
sábado, 1 de julho de 2023
Guiné 61/74 - P24443: Os nossos seres, saberes e lazeres (579): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (109): Com sangue d’África, com ossos d’Europa: do Paúl a Pombas, de Pombas a Porto Novo, de Porto Novo a Mindelo, o regresso (8) (Mário Beja Santos)
Queridos amigos,
Agora que a viagem acabou, confesso que encontro um certo desequilíbrio quanto à narrativa usada sobre estas duas ilhas. S. Vicente era uma memória remota de uma tarde de agosto de 1970, quatro alferes em fim de comissão vagabundearam pelo Mindelo e tomaram um táxi, viram praias e altivas paisagens lunares, olhando sempre ao longe uma outra ilha que o condutor do táxi assim comentava, é mais frondosa, tem coisas para a gente comer e às vezes ali chove, os turistas preferem-na. Isto para dizer que vinha matar saudades de S. Vicente, aqui recebi a bonita lição de que o cabo-verdiano respeita as imagens do seu passado, este ajuda a não desvirtuar a singularidade do seu presente euroafricano; e depois fui pulsionando pela floresta mágica de Santo Antão, a plenos pulmões, contraste de duas ilhas do mesmo país, separadas por alguns quilómetros, não deve haver neste mundo, fui subjugado por este sortilégio de culturas cultivadas em vales, em terraços, em quase jardins, e recordo perfeitamente o almoço havido em Ribeira do Paúl em que tínhamos pela frente uma Nova Iorque de penhascos cercados de mangos, bananas, cana de açúcar, enfim, subsistência, tudo num quadro harmónico, sempre com a curiosidade de ver subir e descer caminhantes de muitos pontos do mundo que sabem que nunca saíram defraudados desta floresta mágica em que se consorciam vales ubres com montanhas que parecem torres de atalaia. Sim, tudo farei para voltar.
Um abraço do
Mário
Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (109):
Com sangue d’África, com ossos d’Europa: do Paúl a Pombas, de Pombas a Porto Novo, de Porto Novo a Mindelo, o regresso (8)
Mário Beja Santos
Já vos contei que vivo numa graciosa casinha no Paúl, frente às montanhas, é nesta atmosfera edénica que dou pelos odores do que me pareceu um incendio à distância, fui a correr à mercearia da D. Joana, que cheiro é este, então o senhor não sabe que temos aqui um trapiche ao pé, o senhor não vê chegarem a parirem viaturas cheias de cana? Fui para casa e folheei "Cabo Verde, Retalhos do Quotidiano", de João Lopes Filho, Editorial Caminho, 1995. A cana sacarina foi uma das primeiras espécies a ser introduzidas em Cabo Verde, há depoimentos de valor historiográfico ao longo dos séculos XVI e XVII que falam da boa qualidade do açúcar. Dá bastante trabalho: preparar a terra, mondar-lhe a erva, precisa de terra fresca e húmida, ao longo dos séculos o seu fabrico era bastante rudimentar, hoje há diversas variedades da planta. A quase totalidade da colheita é entregue aos mestres do trapiche, para fabricarem mel e/ou aguardente, esta tem o nome de grogue. Só uma pequena parte destas canas é consumida em natureza, nalgumas ilhas fabrica-se um produto axaropado que tem o nome de “tchope”.
Sinto um apelo irresistível de ir visitar o meu vizinho, à cautela, continuo a documentar-me. O conjunto das instalações é chamado terreiro do trapiche, o trapiche ocupa o centro do terreiro, debaixo de árvores frondosas (quase sempre mangueiras) e tem ali ao lado a casa da tenda, onde a calda é posta a fermentar, e também as instalações do alambique para destilação de aguardente, o forno com o tacho onde fabricam o mel e alpendres para empilhar canas, os currais dos bois, e por aí adiante. O antropólogo Lopes Filho escreve que nomeadamente em S. Nicolau e Santo Antão há as cantigas do curral do trapiche. E leio mais sobre a cozedura do mel, a natureza do alambique e como se prepara o ponche.
Indumentado de forasteiro, vou visitar o trapiche, recebido com regozijo, os odores são embriagantes, ó vizinho vamos beber um copinho, entra-me um fogo pelo estômago, agradeço do coração, e saio dali depois de se ter comprado um vasilhame de mel. Comecei bem o dia.
Guardo melancolicamente algumas anotações do último dia aqui no Paúl. Volto a subir esta imensa ladeira e assomo-me até à região do vale, não sei se voltarei a ter este benefício de caminhar entre montanhas que parecem ter torres de atalaia, sucessivas cortinas de rochas ponteadas por verdura. Lá no alto volto a avistar os aficionados dos passeios pedestres, atiram-se a um bom estirão até o vale do Paúl, virão ao fim do dia esfalfados. Arrumo os tarecos, dentre em breve passará por aqui um coletivo e vamos descer este precioso percurso onde não há berma que não tenha vegetação exuberante, iremos assim até Eito. Em Pombas voltarei a apanhar um coletivo e regresso à praia de Sinagoga, após contemplação, regresso a Pombas e ao seu cenário magnificente. Contemplação do mar e depois almoço. É então que leio uma nota escrita no final do dia de ontem, foi-se até a um restaurante de nome Dragoeiro, um jantar de gala com peixinho do melhor, no regresso houve que pôr luz no smartphone, era noite de breu, parecia pesca do candeio, quem subia ou descia andava com o seu telefone digital. Foi então que encontrámos um reformado da marinha mercante a viver em Roterdão, mas sempre com saudade da terra, faz questão de conversar em inglês. Em Pombas, fecho os olhos para recordar todo aquele verde das montanhas, aquelas cumeadas que lançam as suas gretas pontiagudas para vales anchos, tudo cultivado, há para ali mangos, milhos, feijões e muito mais, qualquer dia chove e durante dias o leito daquelas ribeiras pulsará com águas turbilhonantes que correm para o oceano. Que natureza tão misteriosa, que ilha tão fecunda e ao mesmo tempo árida, um vergel mágico que atrai gente de todo o mundo, compreensivelmente.
Tudo isto se passa na varanda da minha casa, o leito da ribeira como se vê está seco e a vegetação parece ardida, um pouco acima erguem-se culturas, há casas lá no topo das montanhas, venho a esta varanda ao amanhecer, há o chilreio da passarada, gente a subir e a descer, olho para os céus para ver o movimento das nuvens, ao anoitecer ergue-se uma neblina lúgubre mas as vozes assomam pelos caminhos, estou perante um cenário cheio de vida, que me dá um indizível aprazimento.
Cinco instantâneos de uma natureza que tão profundamente me tocou, confesso que perdi o sentido de orientação, tão estontecido pela beleza, não sei estou a olhar para os fundos de Xôxô ou para os cumes montanhosos de Corda e Esponjeira, talvez para o caso seja irrelevante, é sempre este verde que parece dominar a pedra crestada e toda esta orografia vulcânica que parece não ter fim até se precipitar no mar. Abençoada ilha onde tive a dita de ver a consagração da vida.
Cerca de 70 anos separam estas duas fotografias, creio que estava no topo da chamada réplica da Torre de Belém e apanhei no primeiro plano a Praça Estrela, com cenário montanhoso ao fundo. A imagem de 1954 obviamente que quis consagrar a baía do Mindelo e a sua envolvente, lembrar que a relíquia do passado ainda era uma força do presente.
Imagem de Mindelo, retirada de Panorama, revista portuguesa de arte e turismo, Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, nº 10/11/1954
Sim, quero voltar, há para aqui um enigmático apelo da parte desta natureza insular, momentos houve em que olhando estas costas recortadas, estes céus violetas de fim de crepúsculo me lembrei da minha amada ilha de S. Miguel, comparei poetas daqui com os de lá e não é difícil de entender as saudades da terra, este crioulo cimentado há séculos, este mar profundo que mais separa do que aproxima de África, esta mestiçagem antiga que desenvolveu um caráter, uma singularidade cultural de remotas comparações. Longe de mim pensar que é possível dizer adeus a Cabo Verde quando se desenvolveu o poder magnético de voltar, há que fazer para que a oportunidade não demore. Então, até à próxima!
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Nota do editor
Último poste da série de 24 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24428: Os nossos seres, saberes e lazeres (578): Itinerâncias avulsas… Mas saudades sem conto (108): Com sangue d’África, com ossos d’Europa: visita a Xôxô e à Ponta do Sol, e subida até ao Paúl (7) (Mário Beja Santos)
sexta-feira, 30 de junho de 2023
Guiné 61/74 - P24442: Notas de leitura (1593): Flora da Guiné-Bissau (2) (Mário Beja Santos)
1. Mensagem do nosso camarada Mário Beja Santos (ex-Alf Mil Inf, CMDT do Pel Caç Nat 52, Missirá, Finete e Bambadinca, 1968/70), com data de 18 Fevereiro de 2021:
Queridos amigos,
Os inventários desta cientista que estudou aturadamente a flora da Guiné-Bissau podem ser úteis a uma instituição científica da Guiné-Bissau, terei o maior prazer em ceder estas três separatas a quem de direito. De um modo geral as imagens que guardamos têm a ver com as árvores de grande porte, as prodigiosas riquezas do tarrafo, os cajueiros, as lalas húmidas e as luxuriantes savanas, todos estes pormenores da flora são, regra geral, omitidos. Por isso considerei que a sua publicitação ajudava a valorizar recordações do passado. Nunca mais esqueci a beleza dos nenúfares nos arrozais, o contraste entre toda aquela brancura imaculada a despontar em águas barrentas, muitas vezes encostando-se aos diques protetores. Como recordo, uma floresta-galeria que havia entre Sancorlã e Salá, no fundo do regulado do Cuor, fazendo fronteira com o regulado de Mansomine, a luz solar filtrando-se entre a espessa ramaria e as teias de gigantescas lianas por toda a parte, suportando-se nos ramos das árvores. E as lalas floridas com umas flores brancas e róseas e amarelas, dava pouca atenção e agora percebo o que perdi por as não ter apreciado como elementos faustosos que são desta grandiosa flora tropical.
Um abraço do
Mário
Flora da Guiné-Bissau (2)
Mário Beja Santos
Comprei um tanto às cegas num leilão três publicações relacionadas com a flora da Guiné-Bissau. Assunto um tanto árido para o meu elenco de curiosidades, acresce que saí um tanto traumatizado da prova oral de Ciências Naturais do quinto ano, demorei um tempo infinito a distinguir fanerogâmicas de criptogâmicas. Mas o que me chamou a atenção foi ter uns pozinhos de conhecimento da riquíssima flora que pude ir conhecendo em florestas-galerias, savanas, bolanhas, margens de rios, matas densas ou ralas, à volta de palmares, e o mais que se sabe. Vamos cingirmo-nos ao primeiro trabalho da bióloga Maria Cândida Liberato, a investigadora tem vasto currículo conforme se pode ver no site https://actd.iict.pt/view/actd:MOMCL, este seu primeiro trabalho publicado pela Junta de Investigações Científicas do Ultramar data de 1980, recomendo vivamente um passeio por aqueles documentos do Arquivo Científico Tropical, encontrei fotografias históricas guineenses com o maior interesse.
Passámos anteriormente em revista arbustos, pequenas árvores ou lianas da família das Connaraceae, vamos agora ver as Chrysobalanaceae e as Malvaceae, respeitantes aos dois trabalhos seguintes de Maria Cândida Liberato, de 1982 e 1983 respetivamente.
As Chrysobalanaceae são árvores ou arbustos, é uma família com cerca de 450 espécies das zonas tropicais de baixa altitude. A cientista enumera as diferentes variedades e indica a respetiva proveniência. As Malvaceae são ervas, arbustos ou pequenas árvores, incluem subarbustos pequenos e diretos, subarbustos anuais, ervas anuais ou vivazes, plantas subarbustivas, arbustos ou ervas mais ou menos pilosas, ervas vivazes ou anuais, e pelas imagens que me foi dado verificar temos na Europa o nosso variegado hibisco.
Estes três trabalhos sobre a flora da Guiné-Bissau comportam minuciosas descrições que seguramente são muitíssimo interessantes para botânicos, estou totalmente recetivo a que me sugiram qual a melhor entidade a quem posso oferecer semelhantes trabalhos.
Encontrei na web um trabalho do guineense Jeremias Sani e pareceu-me da maior utilidade, neste contexto, reproduzir o que ele diz sobre a flora do país:
“A diversidade da flora da Guiné tem correspondência com a caracterização geográfica e do seu solo. As florestas constituem uma verdadeira barreira contra o fenómeno da desertificação, da degradação dos solos e do assoreamento das bacias hidrográficas. São elas que suportam a agricultura e produzem madeira, lenha, carvão, caça e produtos florestais não lenhosos tais como o mel, frutos, raízes, tubérculos, plantas medicinais, vinho e óleo de palma e tantos outros bens que, na Guiné-Bissau, são essenciais. Porém, a pressão demográfica, as alterações climáticas, a intervenção humana por queimadas, a extração massiva de madeiras consideradas nobres, a monocultura de mancarra (amendoim), de arroz e de caju, têm alterado a flora (e a fauna) da Guiné-Bissau.
Existem paisagens maravilhosas todas elas bem distintas umas das outras. Na guiné podemos observar toda a extensão dos rios com mangais que podem chegar aos 10 metros, zonas dos arrozais, as florestas secas, florestas sub-húmidas e savanas. O solo é praticamente estéril por serem secas e estarem saturadas de sal, apenas algumas plantas e gramíneas tolerantes ao sódio conseguem resistir nestas condições.
Na zona sul do país, devido à maior humidade, predominam as bolanhas (arrozais alagados). Aqui, principalmente nas regiões de Tombali e de Quinara e nalgumas ilhas do arquipélago dos Bijagós encontramos a floresta sub-húmida, com vegetação variada: árvores de grande porte, de 30 e 40 metros de altura – sobretudo “Pó de miséria” (Anisophylla lamina), “Polon” (Ceiba pentandra) e “Pó de bitcho amarelo” (Chlorophora regia) -, árvores entre os 20 e os 30 metros, arbustos e ainda lianas. As florestas de transição, como o nome indica, fazem a fronteira entre a floresta sub-húmida e as florestas secas e semi-secas, principalmente na região de Gabú e no litoral, onde predominam os “poilões” (Ceiba pentandra)”.
Oxalá que as referências a estes trabalhos suscitem entusiasmo a botânicos e ecologistas em geral.
Vegetação herbácea costeira, ilha de João Vieira, imagem retirada do trabalho Parque Nacional Marinho de João Vieira e Poilão: Biodiversidade e Conservação, 2018, de Luís Catarino e Bucar Indjai
Nota do editor
Último poste da série de 26 DE JUNHO DE 2023 > Guiné 61/74 - P24432: Notas de leitura (1592): Flora da Guiné-Bissau (1) (Mário Beja Santos)