Guiné > Bissau > O antigo Pavilhão de Tisiologia, desenhado pelos arquitectos Licínio Cruz e Mário Oliveira, do Gabinete de Urbanização do Ultramar, Projeto de 1951/53. Passará a Hospital Militar, o HM 241, com o início da guerra, em 1963.
A vida é curta e a arte é longa: memórias de um médico que também passou pelo Hospital Militar de Bissau
por Luís Graça
Aconteceu-te isso, a angústia da despedida, talvez pela primeira vez, quando foste mobilizado para a Guiné, em rendição individual, aos 28 anos, em março de 1968 (se a memória não te estiver a trair, o que já não podes garantir, cinquenta anos depois).
Foi num café-restaurante das Avenidas Novas, em Lisboa, que já não existe, hoje deve ser uma agência bancária ou imobiliária.
Como o local do almoço era público e a PIDE costumava ter "bufos" por aqueles sítios, não houve grande discursos, e muito menos efusivos, e muito menos ainda contestatários… Aquilo, o teu almoço de despedida, parecia mais um velório do que outra coisa...
Em boa verdade, tu nunca te tinhas metido em "encrenca" nenhuma até acabar o curso de medicina, não querias ver o teu pobre pai embrulhado em maus lençóis, e sobretudo perder a tua valiosa bolsa de estudo, paga por uma conhecida fundação.
Em suma, não tinhas liberdade económica para te poder armar em herói antifascista e anticolonialista, como alguns dos teus colegas (que tinham papás da classe média alta, gente bem relacionada ). Mas não escondias que, em 1968, eras "contra o regime" (como então se dizia) e achavas uma estupidez a continuação da guerra do Ultramar, sem fim à vista. (Para mais o "velho", o "botas", estava a "esticar o pernil"...)
Não vais dizer "boa parte da juventude universitária", porque isso era mentira: quem estudava naquela época eram filhos e filhas de gente da "situação", ou que tinha algum, para não dizer razoável, poder económico, empresários, proprietários, comerciantes, professores, advogados, médicos, médio e alto funcionalismo público… Conheceste inclusive vários estudantes que eram filhos de ministros e secretários de Estado... e que "degeneraram", cuspind0 na sopa ou mordendo a mão a quem lhes dera o ser e o ter...
Entretanto, tu davas conta de que a guerra, de que pouco ou nada se falava em público, muito menos nos jornais, na rádio e na televisão (a não ser no programa do "Natal do Soldado"), começava a mexer com a malta. Havia mortos e feridos, havia faltosos, refratários e desertores, e alguns até eram da tua rede de relações ou conhecimentos…
Também nunca tiveste conversas, nem grandes nem pequenas, com o teu pai, quando ele vinha de férias, ou regressava de mais um comissão de serviço, sobre a situação nos territórios ultramarinos, como então se dizia e escrevia. Sabias (ou melhor, suspeitavas) que ele "não morria de amores pelo regime" mas não podia dar-se ao luxo de morder a mão de quem lhe pagava o vencimento, a "soldada", ao fim do mês. Além disso, era um militar de secretaria, oriundo da Escola Central de Sargentos que, se bem te recordas, funcionava em Águeda.
A tua mãe, embora apenas com a 4ª classe mal tirada, era mais politizada do que o teu pai. Ela era natural de Alcácer do Sal, emigrara, muito jovem, para Setúbal com a família. Trabalhara como empregada doméstica, logo acabada a escola, e depois como operária na indústria conserveira. Foi em Setúbal que os teus pais se conheceram. E foi aí que tu nasceste. Tempos difíceis. Valeu-te uma bolsa de estudos que te permitiu ir fazer, em Lisboa, o curso de medicina, em 1958. És do curso de 1958/59.
Em solteira, quando operária conserveira, aos 17/18 anos, ainda menor, a tua mãe terá chegado a distribuir o clandestino jornal "Avante", na fábrica e no bairro onde residia. Não sabes se alguma vez foi "antifascista", um palavrão que nunca lhe ouviste, da sua boca.
A tua mãe também não era beata, se bem que fosse à igreja, uma vez por outra, em cerimónias militares oficiais e em certas datas, por conveniência social: na festa de Natal, no dia do Regimento, no dia nacional da infantaria, etc. Afinal, era casada com um militar de carreira (e isso era, de facto, uma pequena promoção social naquele tempo, para uma filha e neta de trabalhadores dos arrozais). A tropa, mal ou bem, era também um pouco a sua família alargada… E depois tinha orgulho no seu "menino que andava nos Pupilos do Exército". Fazia gala de o dizer às amigas, vizinhas e patroas. Todavia, não havia nesse tempo grandes misturas, entre as famílias dos senhores oficiais e as dos sargentos… Eram oriundos de estratos sociais diferentes, estava tudo dito.
Em todo o caso, para completar o magro vencimento do teu pai, a tua mãe vira-se obrigada a trabalhar de costura, em casa, numa velha máquina "Singer", comprada a prestaçóes, e fazer bolos para festinhas, nomeadamente para as famílias dos oficiais e sargentos do RI 11, em Setúbal.
Não, também nunca acompanhou o teu pai nas quatro comissões de serviço no ultramar (Cabo Verde, Índia, Angola e Moçambique), ou nas mudanças de regimento (além do RI 11, em Setubal, esteve em Tomar e nas Caldas da Rainha). E ficaria viúva bastante cedo, aos quarenta e oito anos.
Não chegou a ser preciso chamar o médico do regimento, o RI 11, onde o teu pai estava colocado, na altura. O médico era um bom homem, alentejano de Évora. O teu pai era de Estremoz. E até se dizia que o médico era do reviralho, só por ser alentejano e republicano.
Tens uma vaga ideia de o ter ido esperar, ao teu pai, já criança com quatro anos, ou coisa assim, a Lisboa, ao Cais da Rocha Conde de Óbidos. Regressava de Cabo Verde, com a sua companhia.
Terá sido a primeira vez que andaste de automóvel e, depois, de barco. Foste tu, e a tua mãe, de carro, à boleia. Não sabes de quem era o carro, pensas que era conduzido por um amigo da família, que tinha carros de aluguer na praça de Setúbal. Talvez também fosse de Estremoz, conterrâneo e colega de escola do teu pai.
Ou, se calhar, foi mais tarde. Tens as memórias de infância baralhadas. Se calhar foi quando ele voltou a partir para outra comissão, desta vez para a Índia, já como 1.º sargento, aí por volta de 1947 ou 1948, quando masceu a tua irmã. Tu devias ter 7 ou 8 anos. Já andavas na escola, deve ter sido, pois, em 1948. Lembras-te que ainda não havia o Cristo-Rei em Almada.
Ele acabou por fazer lá duas comissões, a segunda como voluntário, com direito a vir de férias de licença graciosa. Aproveitou para fazer o 7.º ano no liceu de Goa. Virá depois a frequentar a Escola Central de Sargentos. Ainda esteve em Angola, em 1961, aqui já com o posto de tenente SGE. Acabou a sua carreira militar em Moçambique, em 1965…
Regressou em 1967, para morrer um ano depois, já tu estavas na Guiné. Morreu cedo demais, o teu pai, ainda primeiro que o Salazar. Foi em maio de 1968. Estava o Schulz a ir-se embora. E tu no mato, na zona leste, quando recebeste a triste notícia. Não foste ao funeral do teu pai, não te deram a devida autorização a tempo de apanhar o avião da TAP. Uma prepotência ou uma mesquinhez que nunca perdoaste ao teu comandante do batalhão. Talvez por esse motivo nunca morreste de amores por ele. (Soubeste, mais tarde, que, sendo hipocondríaco, egocêntrico e mesquinho, não suportava a ideia de ficar sem médico, em pleno mato, na tua ausência.)
Escassos meses depois de chegares à Guiné, foste colocado no Hospital Militar de Bissau, "onde fazias muito mais falta do que no mato", segundo a ordem pessoal que recebeste de Spínola, ainda brigadeiro, o teu comandante-chefe que tiveste a honra de conhecer na altura.
Estás a falar do Hospital Militar de Bissau, o HM 241 (ainda te lembras do número). E, em boa verdade, foi um grande escola para ti e outros médicos e cirurgiões. Foi lá que fizeste verdadeiramente o teu internato em cirurgia geral e ortopedia. Tiveste lá grandes mestres. O que não admira, também não faltava "matéria-prima". E depois, com o Spínola, o Hospital tornou-se um verdadeiro orgulho para todos. Dizia-se, sem exagero, que era o melhor hospital da África Subsariana, só tendo paralelo nos hospitais centrais da África do Sul… (Não sabes, nunca lá estiveste.)
Em suma, e voltando à tua infância e adolescênia, cresceste com um pai ausente, que tu mal conhecias, a não ser pelos retratos que a tua mãe e espalhava pela casa, com uma velinha acesa para que a santa da sua devoção o protegesse. Quando vinha a casa, recompensava-te com alguns brinquedos, baratos, de lata, e sobretudo muitas histórias. Era um bom contador de histórias, sabia as aventuras todos do Tigre da Malásia, dos livros do Emílio Salgari. Mas nunca falava da guerra, da guerra do ultramar, que depois passou a chamar-se guerra colonial...
Era um homem meigo, contrariamente à tua mãe (que, coitada, tinha de ser pai e mãe, que tinha de dar o pão, o amor e a educação, a ti e à tu mana; era uma mulher precocemente marcada pela dureza da vida e pelas agruras do casamento com um homem ausente do lar).
Na semana em que fizeste 70 anos, o dia 28 de fevereiro de 2010 calhava a um domingo e o dia 1 de março era segunda-feira. Alguém sugeriu fazer a tua "festinha de despedida" na sexta-feira à noite, mas tu opuseste-te terminantemente.
Durante os dias úteis da semana não dava jeito, porque afetava o normal funcionamento do serviço e muita gente não poderia vir. E depois nunca se devia comemorar o aniversário natalício, na véspera, porque dava azar. E tu nessas coisas, eras mesmo supersticioso. Ou não fosses cirurgião.
Ah, sim, as profissões de risco têm os seus mecanismos de defesa contra o sofrimento psíquico. Já alguém te explicara isso, num congresso médico em França: dos toureiros aos pilotos de avião, dos mineiros aos tipos que trabalham nos arranha-céus, dos artistas de circo aos pescadores de alto mar, sem esquecer os polícias e os militares… Todos têm que saber racionalizar os riscos a que estão expostos. (Viste na Guiné os milícias e também os "turras", feridos, que chegavam ao hospital, com corpo inutilmente coberto de amuletos.)
Enfim, a "tua festa" (ou foi a festa dos outros ?) acabou por ser marcada para um sábado, dia 6 de março de 2010.
Com Spínola, há uma escalada da guerra. Mas não se discriminava ninguém... Propaganda? Não, no HM 241 chegava-se a a operar "turras" do PAIGC (e até um cubano, o capitão Peralta!), feridos e aprisionados pela tropa e evacuados de helicóptero, que custava uma pipa de massa à hora.
Nessa semana tu atingias o limite legal de idade para trabalhar na função pública, neste caso no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Já te poderias ter reformado alguns anos antes, acumulando os anos de serviço com o tempo da tropa. Mas não quiseste. Por altruísmo? Por amor ao serviço público? Não tens a certeza... Se calhar, foi antes por medo de ir para casa onde ninguém te esperava de braços abertos . Chamavam-te, por isso, o “dinossauro” do Hospital, o "velhadas", o "marreta", o "missionário" e outros mimos.
É uma imposição estúpida: sentias-te ainda, aos 70 anos, em boa forma, física e mental, com forças para continuar a dirigir o serviço de ortopedia, que era o teu mimo,a menina dos teus olhos. É certo que já não operavas há uns tempos. Ou melhor: ias fazendo uns “biscates” para não perder a firmeza da mão… Enfim, umas coisas mais leves: fraturas simples, joanetes, uma ou outra artroplastia do joelho, umas infiltrações... Por outro lado, tinhas uma excelente equipa, de fazer inveja a qualquer hospital.
De qualquer modo reconhecias que um tipo, aos 70 anos, já não tem o mesmo treino de mão, a mesma agilidade, a mesma paciência, a mesma resistência e os mesmos reflexos de quando era mais novo. E sobretudo a mesma pachorra para aturar os diretores clínicos e os administradores hospitalares e as suas folhas de excel, os gráficos de desempenho, qualidade e produtividade, enfim, para lidar com a burocracia e a numeracia da saúde. Um hospital, público ou privado, é uma fábrica, é cada vez mais gerido como uma fábrica. E infamante foi a imposição do controlo biométrico da assiduidade, da iniciativa de um ministro qualquer, de quem também já esqueceste o nome.
Uma parte dos teus colegas, nesse tempo, reformava-se do público, logo que preenchia os requisitos legais, na expetativa de vir a poder trabalhar na privada. Alguns até aceitaram ser penalizados na contagem de tempo. Mas era uma ilusão. No privado eram esmifrados até ao tutano. E tinham que alimentar todos os setores da fábrica, da imagiologia ao bloco operatório, da hotelaria aos cuidados médicos e de enfermagem, do nascer ao morrer...
Nunca pensaste em vir a trabalhar na privada, querias tu dizer, numa clínica ou num hospital fora do SNS. E muito menos depois de acabar a carreira no público. Afinal estavas cansado de aturar doentes cada vez mais reivindicativos (e que sabiam tudo da sua doença através da Wikipedia!), para além dos constrangimentos impostos pela direção clínica e o conselho de administração, da escassez de recursos humanos e materiais, das birras dos anestesistas, da ingratidão dos internos, dos narizes empinados das senhoras doutoras enfermeiras,
Acho que fizeste bem em pôr um ponto final na tua aventura terrena no domínio da saúde… Na próxima encarnação, serias o que Deus ou o Diabo quisessem…
Estavas em regime de dedicação plena, o que era raro na tua especialidade, que até pode ter uma baiuca cá fora numa qualquer clínica com nome de santo. De qualquer modo, aos 70 anos, punha-se o dilema: o que irias fazer a partir de então, com todo o tempo do mundo à tua frente?!...
Não eras escritor nem pintor como alguns dos teus colegas médicos, mais talentosos e famosos. Vivias na periferia de Lisboa e tinhas perdido as tuas raízes em Setúbal e no Alentejo. Perderas completamente o rasto aos teus parentes de Alcácer do Sal e de Estremoz. Também nunca tiveste o culto da família. E infelizmente também nunca tiveste um filho. A tua vida conjugal não fora feliz. Casaste-te, descasaste-te, e com o tempo, depois de alguns relacionamentos desastrosos, começaste a ficar cada vez mais... misógino.
Reconhecias que tu eras o último obstáculo para ele subir até ao topo da hierarquia do serviço… Para isso, era preciso "matar o pai"…
Mas tu não o condenavas… No lugar dele, tu farias o mesmo, confidenciaste a alguém. De certo modo, acontecera-te o mesmo com o teu "patrão" no hospital anterior, onde começaste a tua carreira. Desististe de esperar que ele arrumasse as botas, tinhas mais três ou quatro rivais à frente… O que fizeste foi concorrer para outro hospital, que ia abrir e que tinha vagas para ortopedistas, e logo a chefiar. Aliás, foste tu que, aos quarenta e tal anos, foste montar o serviço… E essa foi a tua coroa de glória, abrir um serviço de raiz.
Em suma, já estavas ali, no último hospital em que trabalhaste, há uma eternidade… Enfim, chegara a vez do render da guarda, por muito que isso te custasse.
Mas voltando ao teu sucessor: e se tu foste um pai para ele!... E que pai!... Recebeste-o de braços abertos, ajudaste-o a fazer o internato da especialidade e, se ele hoje é um grande ortopedista, muito melhor do que tu (és tu próprio a reconhecê-lo), a ti também o deve. Pelo menos em parte. O resto é mérito dele e da estrelinha da sorte que o levou até ao estrangeiro onde aprendeu novas técnicas que tu não dominavas... É verdade?!
Reconheces igualmente que tu foste uma espécie de pai tirano. Foste muito mais exigente e menos condescendente com ele do que com qualquer outro dos internos que por lá passaram pelo serviço. Porque ele era melhor do que os outros, ou tinha que ser o melhor. Provavelmente ficou-te a odiar… Mas nunca o deixou transparecer. É apenas o teu “feeling”…
Em suma, tu e ele tinham, então, na véspera da tua jubilação (odeias a palavra!), uma relação de amor-ódio, latente.
No almoço, nesse tal sábado, foi ele que fez o discurso da praxe… E que discurso! Deixou-me sensibilizado, quase até às lágrimas (a ti, que não tens lágrima fácil)… É difícil, se não impossível, saber se foi sincero, ele era um homem, ainda jovem, brilhante, eloquente, de grande inteligência e um sedutor nato, um "charmoso", bendito entre as mulheres.
Foi ele e a tua secretária clínica que organizaram tudo… Apareceu quase toda a gente, médicos, enfermeiras, assistentes técnicas e administrativas… O mulherio em peso, não tanto por ti mas mais provavelmente por ele, que era o teu sucessor. O poder é afrodisíaco, alguém o disse.
O hospital, ou seja, o conselho de administração, ofereceu-te uma salva de prata com o teu nome gravado, e duas linhas de blá-blá de cujo teor já não te lembras. O Ministério da Saúde também te deu uma medalha de mérito (era o mínimo!). E o pessoal do serviço, incluindo os participantes no almoço, tiveram a gentileza de te presentear com um “voucher” para tu fazeres um cruzeiro à Grécia, com visita ao sul da Itália (Vesúvio, Nápoles, Pompeia...), e uma excursão ao templo de Asclépio, em Epidauro, no Peloponeso, na Grécia, onde começou a grande aventura da medicina ocidental de que tu, embora insignificante ator (modéstia tua), também fazias parte.
Não sabes porque é que estás agora a recordar o teu passado. E, depois, a conversa é como as cerejas. Tem piada, reconheces que há séculos que não falavas da tropa, do teu passado como alferes miliciano médico, entre 1968 e 1970, na Guiné de má memória. Em boa verdade, desde que regressaste em 1970... (Também nunca ninguém tivera curiosidade em saber, nunca te perguntaram, nem tu falavas sequer sobre esse período da tua vida. )
Guiné de má memória?!... Confessas que não tens saudades desse tempo, a não ser pelo que aprendeste como médico e como ser humano. Da guerra não tens saudades, as guerras nunca são populares, e aquela muito menos o era. E tens pena de então não teres conhecido melhor os Bijagós onde fizeste uma pequena visita, num fim de semana prolongado.
Com os primeiros tempos de Spínola, logo em meados de 1968, tens a ideia de que a guerra se agravara, de um lado e do outro. Chegavam feridos muito graves ao Hospital de Bissau, politraumatizados, que era preciso tratar de imediato. O teu maior orgulho foram as vidas que conseguiste salvar, embora alguns dos rapazes que tu (e a tua equipa) operaste, tenham ficado deficientes para o resto da vida.
A Guiné era pequena, aí do tamanho do Alentejo, e ainda mais pequena na maré-alta, a Força Aérea chegava a todo o lado, nomeadamente os helicópteros, os Alouettes III, que faziam as evacuações Ypsilon (se bem te recordas). Eram as ambulâncias do céu, estavam equipadas com bom material de suporte de vida, e enfermeiras paraquedistas que prestavam logo, "in loco", no mato ou em pleno ar, os primeiros socorros, essenciais para manter o fio da vida até Bissau.
Elas eram poucas, mas desdobravam-se em múltiplas missões e foram uma mais-valia (como se diz agora...) para os serviços de saúde militares. Eram muito jovens mas corajosas e competentes. Já não te lembras do nome de nenhuma delas, nem sequer da cara.
Do mato, propriamente dito, tens poucas recordações. Fotos, algumas, mas não te lembras onde param. Uma das situações que te marcou, talvez pela positiva (o que até pode parecer estranho!), foi a receção que te fizeram no quartel que te calhou na rifa (já não te recordas do número do batalhão).
Tu já estavas avisado que os gajos mais velhos gostavam de pregar partidas aos "periquitos"… Mas nunca mais te lembraste desse precioso "lembrete", que já trazias de Mafra…
Recordas-te de ter chegado ao sítio onde foste colocado, em 1968, não longe de Bafatá (não interesse agora o nome), nos finais da época seca, a de maior atividade operacional, de parte a parte. Ao que parece, o quartel nunca tinha sido atacado, nem nas proximidades havia atividade inimiga recente, a não ser a norte do rio Geba e ao longo da margem direita do rio Corubal donde o PAIGC nunca fora desalojado...
Foste de avioneta, viste aquela enormidade de terras pantanosas e alagadas, e aqueles rios em ziguezague que eram a estreita porta de entrada na zona leste.
Mal acabaras de arrumar os teus pertences, num quarto partilhado com mais dois alferes, no edifício do comando, ouves alguns rebentamentos e rajadas de armas automáticas. E depois um profundo silêncio… Nem tiveste tempo de ficar acagaçado, veio logo um militar de transmissões chamar-te à pressa, porque tinha havido uma emboscada com mina anticarro, ao fundo da pista, ali a menos de um quilómetro e tal… Havia “manga de mortos e feridos”!… Manga? Não percebeste...
Logo as Daimlers e o piquete que estavam de serviço, partiram a toda a velocidade, ao longo da pista, do lado de fora do arame farpado…
Um dos majores, talvez o segundo comandante, já não podes precisar, eufórico, quase histérico, apareceu, equipado a rigor (o que te surpreendeu, já que tinhas estado com ele, há menos de um hora!), a conduzir um jipe, mais o furriel enfermeiro, com a bolsa dos primeiros socorros… Os maqueiros já tinham seguido com o piquete, garantia-te o furriel. Havia uma grande excitação no ar, com gente a correr pelo corredor que ia dar à messe, atropelando-se uns aos outros...
O major deu-te ordens, com voz grossa (mas que te pareceu... algo teatral), para tu subires para o jipe. (Tratava-te, com alguma deferência, por doutor e não pelo teu posto.) … Tu nem sequer estavas de camuflado, nem tinhas nenhuma arma de defesa distribuída… Ficaste sem pinga de sangue, confessarás mais tarde, mas veio ao de cima o teu sentido do dever hipocrátrico, mais forte do que o medo do cagarolas do militar "periquito"… Pegaste na tua malota, ali à mão, e lá seguiste com o major a todo o gás…
Até apareceu uma "enfermeira paraquedista", vinda não sabes donde, de calça de camuflado, cabelo bem apanhado, e uma T-shirt branca, e que, para vergonha tua, era bem bem mais expedita e desembaraçada do que tu, no socorro aos "feridos"… Eles eram tantos que tu não sabias para onde te virar… E cada um gemia mais do que o vizinho... Mas, estranhamente, não havia fraturas expostas...
Ainda levou uns bons minutos até tu te aperceberes que tinhas caído… na esparrela!... Foras praxado, que nem um pato, para gáudio daquela cambada de malandros que estavam a escassos semanas de acabar a comissão!... Disseram-te depois que os oficiais "periquitos", de rendição individual, eram todos praxados à chegada... Mas nem todos gostavam da brincadeira!...
A encenação estava tão bem feita que até o sangue era sangue mesmo, embora de galinha ou de vaca, não era mercurocromo, como nos filmes de cobóis.
Não levaste nada a mal, mostraste o teu "fair play", convidaste a malta para o bar de sargentos, pagaste logo uma rodada de uísque a toda a malta, atores e figurantes… Em boa verdade, duas rodadas, que te custaram o equivalente a duas ou três garrafas!... Os gajos eram umas esponjas...
Pronto, são estas as histórias de que tu ainda te lembras do teu passado, da infância, da juventude, e da guerra, ou das guerras, a da Guiné e dos hospitais onde, num caso como noutro, procuraste sempre fazer (e dar) o teu melhor… Tens a consciència do dever cumprido como médico, quer civil quer militar.
E aqui fica o resumo da entrevista que aceitaste dar, com alguma relutância, para um projeto de investigação sobre os médicos na guerra colonial... Não tens a certeza da tua história valer grande coisa, mas esperas, ao menos, que os jovens historiadores façam bom uso dela.
Nota do editor: