Capa do livro, cortesia da Visão (2009)
1. Há 50 anos, a 22 de Fevereiro de 1974, era publicado o livro Portugal e o Futuro, do General António de Spínola sob a chancela da editora Arcádia, Lisboa, e por iniciativa do editor Paradela de Abreu.
Nele se defendia, no essencial, a ideia de que a solução para o "problema ultramarino" passava por outras vias que não a sorte das armas, e nomeadamente a solução política, com a concessão de progressiva autonomia para as "províncias ultramarinas", integradas numa espécie de "Commonweath" lusófona tardia (a chamada "tese federalista").
O livro não foi censurado, e a alguma comunicação social, sujeita à censura ("Exame Prévio"), pôde noticiar o seu lançamento. (Portugal continuava a ser um "país amordaçado" desde 1926, mas jornais como a "República" e o "Expresso" deram cobertura ao evento, transcrevendo inclusive alguns excertos; no "Diário de Lisboa", por seu turno, não há uma única linha sobre o acontecimento, nas edições de 22, 23 e 24 de fevereiro de 1974.)
Marcello Caetano, apesar da irritação do Ministro do Ultramar e da clara oposição do Presidente da República, Américo Tomás, não quis impedir a saída do livro (receoso das repercussões que a notícia da proibição poderia ter, a nível nacional, nomedamente entre os militares, e sobretudo a nível internacional) que foi autorizada pelo nº 1 da hierarquia militar, o CEMGFA, o gen Costa Gomes.
O livro, de 248 páginas, tornou-se um best-seller. Mais de 300 mil exemplares foram vendidos, num ápice, dentro e sobretudo fora do circuito normal do mercado livreiro. Toda a gente o comprou. Mas poucos leitores, na época, terão tido a pachorra de o ler de fio a pavio e de entender e analisar as suas propostas (de algum modo, tardias, desfasadas e confusas) para pôr fim à "guerra de África" e repensar o regime...
Confesso que eu fui um deles. A obra era um estopada. E estupidamente não me aprecebi da sua importância naquele momento da nossa História. Hoje dou a mão à palmatória. E prometo ir ao sótão limpar-lhe o pó.
É daqueles livros que se vende ainda hoje nas feiras de velharias, em saldo, a preço de um euro ou menos. Mesmo assim foi seguramente um dos livros que abalou uma época e um regime, e ajudou a acelerar o caminho para o 25 de Abril. (Os oficiais das Forças Armadas, mais conservadores, cautelosos, reservados, mas descontentes com a sua carreira devorada por uma guerra interminável), acabaram também por aderir às "teses spinolistas"; o livro deu-lhes respaldo moral e disciplinar para o seu descontentamento e até revolta, como aquela que, logo a seguir à demissão de Spín0la e Costa Gomes, foi ensaiada no dia 16 de março de 1974, o chamado "golpe das Caldas".
Recorde-se (porque a memória é curta) que, a 17 de janeiro de 1974, Spínola fora nomeado vice-chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, por sugestão de Costa Gomes (CEMGFA). U cargo criado só para ele, considerado um herói da guerra de África e com muito prestígio... Menos de 2 meses, a 15 de março, os dois generais serão afastados dos seus cargos (o topo da hierarquia militar) devido à recusa em participar na manifestação de apoio ao Governo e à sua política ultramarina, cena que ficou conhecida como a "brigada do reumático".
A demissão de Spínola e Costa Gomes (que teve amplo eco nos jornais da época, apesar da censura), acabou por ser um tiro de ricochete, isolando, desautorizando e fragilizando ainda mais o Govermo de Marcello Caetano que já em 28 de fevereiro havia apresentado um pedido de demissão ao Presidente da República, Américo Tomás (que obviamente o recusou).
Já antes, no dia do lançamento do livro, em reunião com Costa Gomes e Spínola, Marcello Caetano terá oferecido de bandeja o poder aos dois generais (que obviamente recusaram o presente envenenado).
Ao que se sabe hoje, Spínola oferecera um exemplar autografado a Marcello Cateano e pediu a sua autorização para o publicar, como mandavam as regras (sendo um militar no ativo, e n.º 2 da hierarquia militar, o vice-Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas). No dia 20 de fevereiro de 1974, o professor e primeiro-ministro acabou de ler o livro. Confessaria, mais tarde, nas suas memórias, que o golpe militar que ele pressentia e temia há meses, já estava em marcha e era imparável.
Há 15 anos atrás, o jornalista Luís Almeida Martins publicou, a propósito desta efeméride, na revista Visão, (edição nº 833, de 19 a 25 de Fevereiro de 2009) um artigo com o título (irónico), "Portugal e o passado", e que termina com este parágrafo:
" (...) Poucos dias antes de morrer, a 13 de agosto de 1996, com 86 anos, [Spínola] foi visitado no Hospital da Estrela por Nino Vieira, presidente da Guiné-Bissau e antigo comandante do PAIGC. Ao sair do quarto, Nino trazia uma lágrima no olho. Os guerreiros têm uma conceção própria da vida e da morte. Não sabem é ler o futuro, como o livro de Spínola demonstrou à saciedade"...
Curiosamente, Nino voltaria a referir este episódio, na audiência que concedeu, doze anos depois, em 6 de março de 2008 (a um ano de ser brutalmente assassinado), a um grupo de participantes do Simpósio Internacional de Guiledje, em que eu estava presente, e que registei.
De qualquer modo, o livro "Portugal e o Futuro" abalou Marcello Caetano e o seu regime, defendia, ha 15 anosm o jornalista da Visão;
"Pela primeira vez, um oficial-general atrevia-se a discordar da doutrina oficial"...
E não era um oficial qualquer.
(...) O homem do "pingalim e monóculo" ganhara uma "aura castrense talvez só suplantada pelas de Mouzinho de Albuquerque e de outros chefes militares das campanhas coloniais da viragem do século. Dando uma no cravo e outra na ferradura, combatia a guerrilha, enquanto, de pingalim na mão, organizava congressos dos povos guineenses e delegava poderes nas autoridades tradicionais. O seu monóculo tornou-se lendário. Alcunharam-no de 'Caco' e tinha uma corte de admiradores de camuflado que bebiam as suas palavras" (...).
O alcance efectivo da obra de Spínola e da sua tese do federalismo e do "diálogo" com os movimentos nacionalistas africanos, a começar pelo PAIGC (como solução política para uma guerra que não poderia ter solução militar), ainda é hoje objecto de discussão e controvérsia entre especialistas, historiadores e antigos combatentes (como é o nosso caso).
De qualquer modo, importa sobretudo sinalizar a efeméride, mais uma vez. Ao fim e ao cabo, Spínola foi o comandante de muitos de nós, entre 1968 e 1973... e a ninguém deixou indiferente, pela positiva ou pela negativa, a sua figura, a sua conduta, o seu pensamento, a sua estratégia, o seu percurso. Um lugar na História da nossa Pátria ninguém lho tira.
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Nota do editor:
Último poste da série > 21 de fevereiro de 2024 > Guiné 61/74 - P25196: Efemérides (428): Homenagem aos Antigos Combatentes da Guerra do Ultramar do Concelho de Resende - Freguesia de Anreade, no dia 13 de Abril, pelas 15h00 e S. Romão de Aregos, no dia 4 de Maio, à mesma hora